Tag: Paulo Miklos

  • Review | Assédio

    Review | Assédio

    De Maria Camargo, Assédio é uma minissérie, de dez episódios, baseada no livro A Clínica: A Farsa e os Crimes de Roger Abdelmassih, de Vicente Vilardaga. Embora seja dito que a adaptação é livre em relação ao fatos que ocorreram com Abdelmassih. Roger Sadala é um especialista em reprodução in vitro, conhecido como Doutor Vida e que ajudou muitas pessoas a engravidar. O médico, interpretado Antônio Calloni, era na verdade um abusador que se aproveitava das fragilidades de muitas mulheres para se envolver sexualmente com elas.

    A abertura com tema natalino soa estranha, por remeter a uma música que trata de felicidade ao mesmo tempo em que a trama foca na desgraça de muitas mulheres e famílias. O primeiro caso é de 1994, com Stela (Adriana Esteves) que tem sua intimidade mostrada bem aos poucos, primeiro como uma mulher que quer engravidar e não consegue, e que depois deposita todas as suas esperanças no doutor Sadala. No primeiro episódio mostra o abuso sem focar no rosto da paciente, evitando qualquer risco de erotização da vítima. Esse cuidado que Camargo tem é muito valido e até necessário, pois independente da beleza ou não das atrizes, a última coisa que deveria acontecer é transformá-las em algo fetichista, seja pelas mulheres ou pelo ato sexual criminoso.

    Já no segundo episódio se quebra qualquer trégua da trama com seu vilão. Roger lambe a vítima, de maneira animalesca – a ideia é mostra-lo como um ser sub humano, abaixo de qualquer atitude ética ou moral. Essa primeira mulher mostrada não estava totalmente desacordada, fato que a fez lembrar em detalhes do estupro que sofreu, e gradativamente, a falta de pudor de Roger vai sendo revelada. O médico se esconde atrás de uma aura de carinho e ternura, fingindo se importar com os outros, alegando que sua família é toda assim, de abraços e afagos e que por isso pode ser confundido com alguma aproximação pseudo-amorosa ou aproveitadora.

    Há uma personagem sempre em suspeição, a jornalista Mira (Elisa Volpato) que no início é apenas uma estagiárias, mas já suspeita que a perfeição pintada em volta de Roger é estranha demais. Ela recebe ligações anônimas e passa a investigar mesmo que seu chefe a mande parar. Com o decorrer dos dez episódios, ela ganha autonomia, principalmente quando a redação é comandada por Suzana (Bete Coelho), que entende o drama que Mira conta por solidariedade feminina.

    O roteiro mostra em tom de denúncia quantas vidas foram destruídas pelas atitudes de Roger. Casamentos desfeitos, condições psicológicas severas nas mulheres vilipendiadas, entre elas Eugenia (Paula Possani), aconselhada por advogados a deixar a história de lado, afinal era a palavra dela contra a dele, um homem famoso, respeitável e amigo de gente poderosa. A ideia de onipotência de Roger é muito bem pontuada pela postura de Calloni, que convence os espectadores que não viram seus crimes quanto a sua inocência. A construção do personagem beira a perfeição.

    O seriado tem alguns núcleos diferenciados, como o da família Sadala, que vive junto a Roger e é toda bancada pelos seus milhões, entre filhos, netos, sua mãe e sua esposa, Gloria. Mariana Lima vive uma mulher obcecada, que se sente mal ao assistir a maioria das traições do marido e mergulha em um estado depressivo terrível, graças não só a infidelidade mas também ao câncer que contrai. Apesar do melodrama que a envolve, Lima consegue mostrar bem como uma pessoa que é exposta à convivência pode ser tão envenenada. Ela literalmente definha, sentimental e fisicamente.

    Calloni fala diretamente com o espectador, com a cara mais lavada do mundo. Com o tempo se percebe que isso na verdade é um depoimento que ele deu ao advogado especialista vivido por Paulo Miklos. Os casos mostrados são diversos, de pessoas pobres, que viviam no Nordeste e que fizeram muitos sacrifícios para pagar o caro procedimento, e casos onde os estupros aconteciam sem qualquer medicamento.

    Apesar de um elenco que conta com gente muito boa já citada – além de João Miguel, Paolla Oliveira, Herminia Guedes e outras participações menores – Assédio depende muito de Calloni – inspiradíssimo no papel, capaz de demonstrar muitas camadas humanas, sendo odiável, mentiroso e capaz de comover por seu carisma típico dos mitomaníacos. O fato dele ser descolado da realidade não justifica seus atos, mas faz entender os motivos que o fizeram cometer atos tão vis, ele já está alienado ao mundo tangível há muito, envolto em hipocrisia, crueldade e sangue frio para cometer atrocidades com qualquer mulher que ele meramente ache atraente. A naturalização do abuso frente à qualquer homem que aparece diante das câmeras que gravam esse drama faz  justificar não só o debruçar na história de Roger Abdelmassih, como a denúncia em forma de programa televisivo de massa. Forte, atual e certeira em seus comentários.

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  • Crítica | Gosto se Discute

    Crítica | Gosto se Discute

    Fruto da exploração de figuras famosas da internet, Gosto se Discute é uma comédia que se ambienta no cenário gastronômico, focado principalmente em dois personagens, o chef de cozinha Augusto (Cássio Gabus Mendes) e Cristina Falcão, vivida pela escritora e youtuber Kefera Buchman. Já no começo, o longa debocha das food trucks, encarando-os como modas passageiras, organizadas por gente prepotente e insuportável. Na realidade, essa visão claramente é a de Augusto, que se vê sendo ultrapassado pela concorrência mais moderna.

    O restaurante de Augusto não está indo financeiramente bem, ao ponto de seu investidor bancário enviar uma auditora, Cristina, para analisar o negócio a fim de tentar reorganizar os ganhos do estabelecimento. Seu estilo é agressivo, ela demite quem quer, além de ser grosseira com tudo e todos. Os conflitos entre os personagens principais começam por serem ambos muito geniosos, ainda que a maioria deles sejam absolutamente fáceis de resolver, se os dois tiverem paciência. O que se vê é uma gritaria desenfreada e uma necessidade de se causar alvoroço sem motivo.

    A ideia do diretor André Pellenz é mostrar um sujeito competente, mas que se perdeu com o tempo, no início era um homem de sucesso, mas que não se renovou. A questão é que os percalços que aparecem para Augusto e Cristina são bobos e óbvios, e a necessidade de referenciar programas que fazem sucesso como Masterchef revela a pobreza total do roteiro de Pellenz, que claramente não consegue reprisar sequer o que funcionou em seus filmes anteriores, como Minha Mãe É Uma Peça. O filme consegue ser conservador até nas piadas sexuais, falta malícia e malemolência ao texto.

    É  curioso como a tentativa de faturar em cima de figuras publicas da internet no cinema não tem funcionado quase nunca nos últimos anos. É Fada! até teve algum êxito, mas Internet: O Filme e Contrato Vitalício foram muito mal de crítica e bilheteria, em especial por seus realizadores não entenderem que o que funciona no youtube não necessariamente faz sucesso nos cinemas. Gosto Se Discute também se baseia nisso, embora sua formula seja mais genérica, e repleta de elementos que normalmente fariam sucesso em filmes de Roberto Santucci, típicas das globochanchadas, formato esse que também tem mostrado um certo desgaste nos últimos tempos.

    O acréscimo de coadjuvantes, interpretados por Paulo Miklos, Zéu Britto e Gabriel Godoy são extremamente caricatos, e não acrescentam nada a trama. O filme tampouco causa sensações básicas como simpatia ou antipatia pelos personagens, dada a total falta de tridimensionalidade deles. Os romances são forçados e as atuações fracas, nem Kéfera e Mendes conseguem sair da trivialidade, assim como os fatos que ocorrem com seus personagens. Gosto se Discute não foge nada do ordinário, ao contrário se posiciona perfeitamente na linha abaixo da mediocridade do cinema brasileiro de orçamento mais abastado, não conseguindo valorizar nem os pontos que poderiam soar mais interessantes ao espectador.

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  • Crítica | California

    Crítica | California

    California 1

    Incisivo e direto, o longa metragem de estreia de Marina Person demonstra, já em seus momentos iniciais, o caráter de descoberta a respeito da adolescência e juventude. Situado em 1984, o roteiro é focado em Estela (Carla Gallo), uma menina que intenta viajar finalmente para a Califórnia, local onde mora seu tio, vivido por Caio Blat. O repertório da moça é vasto dentro da exploração da cultura pop, com enfoque em seu amor por cinema e pelo clássico Blade Runner, e predileção pela música de David Bowie.

    Person tem em sua família uma tradição cinematográfica muito prolífica, uma vez que é filha de Luis Sérgio Person, tradicional diretor de São Paulo Sociedade Anônima. Seu cinema é intimamente ligado ao do pai, a começar pelo média metragem anterior, documentário focado no pai. Apesar de tocar também nos momentos históricos políticos brasileiros, visando a Ditadura Militar como Luis Sérgio fez em O Caso dos Irmãos Navas (de forma velada, no caso do clássico), sua abordagem na fita atual é diferenciada e com uma identidade própria, com claras referências ao tom que Larry Clark dava aos seus dramas juvenis, ainda que não haja uma sexualidade tão explícita quanto em Kids e suas outras películas.

    O imaginário de Estela (ou Teca) envolve uma parcela bastante careta da sua família, em destaque para  pai vivido por Paulo Miklos (ironicamente) e por seu tio que vive como crítico musical nos EUA. Logo, a viagem de Estela é desmarcada, por que seu parente vêm ao Brasil, inesperadamente. Sua vida amorosa também é dividida entre dois meninos bem diferentes, um rapaz comum e ordinário, e do outro lado, JM (Caio Horowicz), misterioso, rebelde e repleto de nuances.

    O modo como as meninas discutem sexo é franca, repleta de devaneios, viagens e palavras típicas da imaturidade. A discussão passa a ser mais madura e menos burguesa quando JM abre diálogo com ela, falando abertamente sobre caretice, personalidade e pulsão. A abordagem cinematográfica de Person é corajosa, ao expor os corpos de seus atores sem pudor ou receio, conduzindo o descobrimento e desabrochar sexual, tratando em paralelo as consequências do sexo, levando em conta até a burrificada culpa a que se atribuía a quem era sexualmente ativo em pleno tempo de repressão.

    A jornada de Estela é ligada ainda à despedidas e trocas de cartas, de amores distantes, que apesar de não presentes fisicamente, fazem bem a jovem mulher, alimentando-a de um modo que as pessoas comuns e ordeiras. Teca não pertence ao mundo em que vive, talvez por isso ocorra a hesitação por parte dos que lhe causam furor em usar tal apelido, pois sua identidade parte do nome civil que tem, distanciando-se da menina, para desembocar em uma mulher como um grande potencial pela frente. O modo com a diretora escolheu conduzir seu Califórnia só torna tudo mais singelo e interessante, equilibrado e urgente quando necessário e didático quando se exige.

  • Crítica | Democracia em Preto e Branco

    Crítica | Democracia em Preto e Branco

    Democracia em P e B

    Cuidadosamente focado em sua introdução sem cores – em preto e branco -, o filme de Pedro Asbeg emula a barra pesada da época, com a repressão do Regime Militar ainda sem as “novidades europeias” do futebol, e da democracia. O medo tomava conta da vida dos cidadãos, os mandantes não tinham qualquer pudor em demonstrar o seu poderio, humilhando as pessoas comuns, que não tinham acesso aos mesmos direitos dos que impunham fardas. O contra-ataque precisava acontecer em alguma instância, e sob o som de Núcleo Base do IRA!. uma destas facetas é mostrada, sob os campos de São Paulo; uma outra luta, ligada a igualdade, ao esporte e a música.

    A narração de Rita Lee grafa o quanto havia um não-desejo pela alternância no poder, tanto dos presidentes nacionais militares, quanto no certame do Corinthians, com Vicente Matheus no posto mais alto. A realidade aviltante que ocorria no quadro político brasileiro gritava mais do que qualquer receio “clubístico”, uma vez que a insegurança que tomava os não-poderosos, por sua vez era motivada pela “segurança” dos governantes.

    A derrocada do Brasil fez com que os integrantes da nova chapa do poder no Sport Club Corinthians Paulista se interessassem por um maior progressismo não condizente com os outros tempos, os de Matheus especialmente. Com o tempo, o laranja do antigo presidente, Waldemar Pires. O catalisador desta mudança viria primeiro pela figura de Sócrates, um jogador elegante, inteligente, letrado e inconformado, mas ainda sem um norte, sem uma direção para lutar. Este paradigma mudaria com o acréscimo do lateral Wladimir. O rapaz de pele negra acompanhava as greves no ABC Paulista, se via então como um operário da bola. Dali começava uma discussão mais profunda a respeito dos direitos civis, ainda no elenco de um time de futebol. O último fator para que o grito fosse completo viria com a juventude, com Walter Casagrande Júnior, o centro-avante de apenas 19 anos, que trazia a polêmica do Rock’n Roll na postura, cabelos e na pele para dentro de campo, paro algo além do simples “tatibitate” do futebol.

    Os jogadores passaram a ganhar voz, se valendo até da queda de divisão do time, uma vez que eles disputavam a Taça de Prata. A inflação piorava, o medo de faltar alimento na mesa do pobre aumentava, enquanto o modo de reger via repressão parecia cada vez mais tacanho, com uma trilha sonora que começava a falar mais abertamente sobre a hipocrisia da lei. Viriam Edgard Scandurra com o seu IRA!, a letra de Selvagem dos Paralamas, que louvava o monstro que somente crescia, e claro, o disco de Paulo Miklos e seus Titãs Cabeça Dinossauro, que não mais via o amor como a via para caminhar o povo, e sim mostrava através dos riffs de guitarra como era truculenta a realidade do país. O rock de Frejat, Cazuza, Renato Russo, Ultraje e outras turmas mostravam o que era o pensamento do jovem, como ele via as direções sociais que a nação tomava.

    Sob a tutela do administrador técnico – e também sociólogo – Adilson Monteiro Alves e de Sócrates, começava o que Juca Kfouri e o publicitário Washington Olivetto nomeariam como Democracia Corintiana, onde todos tinham o mesmo poder de voto e peso. Jogadores como Zenon, Wladimir e Casão eram politizados, e ajudariam a quebrar os paradigmas de concentração pré-jogo e do bom-mocismo como método de tratar o esporte. A civilização do time de Parque São Jorge não era obrigatoriamente moralista, ao contrário: Era evoluída, madura, sabendo bem o que se queria.

    Para Sócrates, foi o movimento político dos jogadores que manteve o time bem dentro das quatro linhas. Esta era a base do bom futebol deles, além claro do acesso aos shows de músicos amigos, Blitz, Rita Lee, Maria Bethânia entre outros. A relação dos esportistas com os músicos era bastante intrínseca e íntima, de modo que era quase indistinguível a identidade de um e de outro. A busca pela liberdade de expressão era comum aos dois segmentos, a música era o canal para a liberação, o que não ocorria desde 1968, com o jovem falando para o jovem.

    O pensamento evolui, como dito na narração por Lula, e o advento da Democracia Corintiana passaria a falar também do voto do povo, do voto direto que finalmente ocorreria. A campanha mudaria para DIA 15 VOTE, grafada acima dos números dos jogadores de futebol, o que visava quebrar a deseducação política do torcedor comum, desde os geraldinos e arquibaldos até aos já conscientes de que era preciso modificar o quadro político, e mobilizar a opinião pública.

    Os comícios para as Diretas Já começaram bastante tímidos, com poucas pessoas. E aos poucos o movimento aumentaria, até desembocar no comício da Praça da Sé, de um caráter suprapartidário, com discursos de Ulysses Guimarães, Brizola, Lula, Fernando Henrique, em uma união completamente impensável atualmente, unidos pela quebra da tutelagem do povo brasileiro, para que a população pudesse enfim andar sozinha, reconquistando sua democracia. A rejeição da emenda em 1984 foi um duro golpe na população brasileira; o sentimento de comoção logo deu lugar a sensação de que foram iludidos, inclusive Sócrates, que aceitaria a proposta de venda para a Fiorentina, da Itália.

    Os integrantes daquele time preferem encarar todo aquele tempo com um saudosismo tocante, de que o país voltaria a sorrir, e que havia começado ali a redemocratização do Brasil. No entanto, a sensação de que o pior da ditadura ainda permanecia não poderia ser ignorado, uma vez que o modus operandi policial prossegue semelhante ao do Regime. Até pela última música executada – Até Quando Esperar, da Plebe Rude -, a sensação de Democracia em Preto e Branco não é de otimismo, e sim de uma amálgama entre a melancolia e a objeção, de um país que apesar de um pequeno progresso, ainda tem muito a evoluir; muito esforço a ser executado para que se torne uma república minimamente digna, sendo esse viés o que faz da fita ser algo muito a frente dos documentários contemporâneos.