Tag: Festival do Rio 2015

  • Crítica | Tikkun

    Crítica | Tikkun

    TikkunBaseado no imaginário popular ligado ao extremismo religioso judaico, Tikkun é o novo longa-metragem de Avishai Sivan, centrado em Haim Aaron (Aharon Traitel), um jovem versado nos ditames litúrgicos, cujo caráter ainda está em formação, inclusive no que tange suas certezas de crença.

    O drama gira em torna das dúvidas do personagem principal e suas dificuldade de viver no ambiente ortodoxo que compreende seu lugar comum. Aaron orbita a força de seu pai, mas jamais se sente pertencente a mesma atmosfera de conhecimento e empatia dos seus. Os preceitos repetidos a si e aos seus irmãos mais moços o coíbem em seus desejos mais íntimos, manifestados em tela através da repressão de sua sexualidade nunca plenamente alcançada.

    O estudo da psiquê de Aaron passa essencialmente pela dificuldade que o mesmo tem em dar vazão ou expressar minimamente sua libido. Todas as sua tentativas fracassam, e os artifícios visuais para demonstrar esses reveses não poderiam ser melhor escolhidos. A urdição de Sivan em exibir visualmente a problemática de seu caracter é absurda, com cenas que em uma primeira visualização, parecem sem sentido, mas que são carregadas de simbolismo e alegorias ocultas, especialmente ao retrocesso intelectual a que se atribui o extremismo religioso. Outro fator interessante no roteiro de Sivan, é a condição hereditária, uma vez que o patriarca (Khalifa Natour ) vez por outra, também tem momentos de epifania, provando que os “demônios” não assolam somente a mente “fraca” do incrédulo Haim.

    A mensagem presente em Tikkun é reflexiva, associando de modo justo a castração mental e emocional a morte sanguinolento, expressando que a supressão da sexualidade denigre o humano, reduzindo-o a um espectro inanimado, descaracterizado de alegria, vida, ânimo ou vontades próprios. A crítica ao judaísmo não exagera na acidez, o que permite paralelos com tantas outras religiões e ideologias que tem na não discussão, o cerne de seu pensamento. A trajetória do herói falido não encontra redenção, edificação ou soluções tranquilas, ao contrário, carrega-se em uma ambiguidade representativa que não encontra eco nas suas atitudes e ideário normativos, tendo somente nessa representação um resquício de evolução de quadro.

  • Crítica | Hilda

    Crítica | Hilda

    Hilda 1

    Filme de Andres Clariond, o mexicano Hilda discorre sobre os desmandos de um patrão, focando em uma figura pitoresca para denunciar o abuso e assédio moral que membros das altas rodas normalmente impõe sobre homens e mulheres pobres, normalmente motivados unicamente pela possibilidade de o fazer sem maiores problemas além de alguns olhares de desprezo.

    A base do roteiro explora duas figuras principais, a primeira delas mostrada já no início, na figura da socialite entediada e um bocada desequilibrada emocionalmente Suzanne Lemarchand , magistralmente interpretada por Veronica Langer, uma figura carente por essência, que abraça qualquer possibilidade de rompimento com a monotonia e solidão extrema que a afligem. Em seu discurso, há uma fala que soa possessiva e mandatária, mas que esconde uma estranha necessidade de dependência de outrem, manifestada através da fala a respeito do nome de possíveis governantas, como “Hilda, eu nunca tive uma Hilda”.

    A personagem título é vivida por Adriana Paz. O “chamado” quase é recusado por ela, por medo de perder contato com seu marido e filhos, receio que obviamente é alcançado.O roteiro é baseado na obra de Marie N’Diaye, e explora questões graves, como a face ruim da globalização, a comum servilidade latina, mesmo em ambiente mexicano e o choque cultural entre enriquecidos e pobres. A mesma subserviência e troca parental vista em Que Horas Ela Volta? se manifesta neste de maneira jocosa, ainda que o caráter seja diferenciado.

    A questão de engajamento político dos personagem é utilizado como despiste, como mais um tentativa da mulher rica em driblar seu vazio existencial. A posse que a mulher impõe não é tão baseada em egoísmo, e sim em uma manifestação de solitude, assumindo através desse aspecto o caráter de comédia do filme, apesar até do espírito denunciativo, servindo como um Tempos Modernos de escalas e acidez menores que o clássico de Chaplin.

    A história paralela do filho de Suzanne é demonstrado como apenas uma distração pequena, já que todo o escopo da história passa pelos olhos da senhora, que pouco se importa com o destino do próprio rebento, ocupada sendo refém de sua insanidade, mantendo a demência viva através do sequestro que impôs a sua criada. Hilda mostra uma personagem digna de pena, que vive em um círculo vicioso, uma mulher incapaz de livrar-se dos vícios que a tornam um alguém tão distante de ser harmoniosa.

  • Crítica | Cozinhando o melhor do mundo: El Celler de Can Roca

    Crítica | Cozinhando o melhor do mundo: El Celler de Can Roca

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    Estreia na direção da dupla Luiz González e Andrea Gómez, o documentário Cozinhando o melhor do mundo: El Celler de Can Roca investiga a tradição do restaurante famoso El Celler de Can Roca, acompanhando a família que dá nome ao estabelecimento, em busca de novos sabores, aproveitando o hiato do local para reciclar todas as suas ideias de combinações gastronômicas.

    A tour mundial engloba os parentes Joan, Jordi e Josep, começando pela Espanha e pelo País Basco, onde iguarias das mais incomuns são provadas por si, inclusive de animais vivos, como o peculiar gosto de formigas cultivadoras de mel, que tem seu sabor retirado da parte de trás. Obviamente, é curioso e de abrir o apetite acompanhar todo o processo de “mineração” dos cozinheiros, em busca de possibilidades de novas misturas, mas o formato do filme é demasiado tradicional, se assemelhando demais aos medianos programas televisivos da History Channel e Discovery.

    Cozinhando um mundo 3

    A cada visita há uma apresentação de alguma tradição local, mas sem aprofundamento, e sem acréscimo de importância para o causo filmado. O restaurante catalão passa a aumentar seu escopo de sabores, mas o filme em si não passa de um exercício de vaidade e de louvor ao seu próprio micro universo.

    Não há qualquer menção de autoria por parte dos realizadores, parecendo até um mero produto de propaganda, caindo em questões complicadas como redundância de material e repetição enfadonha, em uma ideia que caberia perfeitamente em um curta-metragem, e não em um formato de quase noventa minutos que basicamente tem um tom e uma fala, sobre o esmeros dos chefs e empresário em tornar sua marca em algo maior do que ela já é. Cozinhando o Melhor do Mundo causa fome em seus espectadores, mas não provoca qualquer simpatia pelos personagens humanos da trama.

  • Crítica | O Incêndio

    Crítica | O Incêndio

    O Incendio 1

    Prestes a deixar seu antigo apartamento, o casal protagonista de O Incêndio vive em insegurança sobre seu futuro e sobre o que representa o passado na vida dos dois enquanto par. A linda Lucia (Pilar Gamboa) vive um momento de receio bastante particular, ajudado e muito por uma estranha enfermidade que a aflige. Para piorar, seu marido Marcelo (Juan Barberini) também enfrenta problemas em seu emprego de professor, graças às reclamações dos pais de alunos.

    Grande parte do drama de ambos está na – finalmente alcançada – retirada do dinheiro que os possibilitaria enfim deixar o apartamento, que alugavam nos últimos anos, para enfim residir na casa que compram. O encontro com o responsável pelas escrituras e documentos desmarca o acordo e não consegue encontrar a dupla no dia combinado, fator este que ajuda a desencadear uma série de “eventos desabafos”, que fazem ambos ponderar sobre a vida que levavam, tudo num espaço de apenas um dia.

    A paranoia e stress que habitam o convívio do casal revelam não só a insegurança inerente à mudança, mas também incômodos comumente silenciados e aceitos por parte dos que formam um romance. O ambiente conflituoso e babélico é muito bem conduzido pelo estreante em longas Juan Schnitman, que já havia tangenciado assuntos parecidos em suas antigas parcerias, Grande Para La Ciudad e El Amor – Primera Parte. No entanto, o modo delicado com que conduz O Incêndio tem um bocado de ineditismo, não em relação ao tema, mas no modo direto com que confronta seu público.

    As cenas de briga não são tão agressivas como o são na vida real, mas as reconciliações incluindo relações sexuais, cujo pedido de perdão está implícito, são muito bem conduzidas, especialmente pelo alto teor de violência e da química de Gamboa e Barberini, que curiosamente só funciona plenamente nesse tipo de sequência, o que ajuda a determinar qual é o ponto de concordância do complicado e comum casal.

    A eternidade e intensidade são construídas e mantidas em um fôlego poucas vezes visto, até para o prolífico cinema argentino. Alguns erros são evidentemente notados, pela ainda pouca experiência de seu realizador, mas muitos pontos elegem Schnitman como um possível grande cineasta no futuro, já que talento em conduzir dramas e predileção por encaixar a câmera onde se deve são características master de seu cinema, bem como a capacidade de representar em tela a inversão de valores que por vezes permeia o coração do homem e da mulher, resultando em um filme apaixonante principalmente pela persona de Lucia.

  • Crítica | Quase Memória

    Crítica | Quase Memória

    Quase Memória 1

    Filme de proposta ensaística, Quase Memória conta a história de Carlos, um jornalista que recebe um pacote estranho, em sua casa, e passa a explorá-lo. Antes de descobrir o que há na encomenda, o personagem percebe um homem mais velho, que é na verdade, ele mesmo. As duas versões são vividas por Charles Frick e Tony Ramos, e a contraparte idosa tem um claro problema de memória, o que influi diretamente em seu ofício, e faz ambos tentarem recordar os momentos nostálgicos das gerações anteriores.

    As lembranças tencionam chegar a uma poesia, que põe em cheque todo o repertório de seu diretor Ruy Guerra, que reinventa os flashback em formatos extremamente coloridos, protagonizados pelo pai de Carlos, o senhor Ernesto (João Miguel), em uma parcela da história que faz discutir bastante política, baseado principalmente na época da ditadura militar dos anos sessenta. Mesmo com todos os recordatórios, a memória do homem velho segue falhando.

    Quase Memória 3

    Guerra adapta o texto do jornalista Ernesto Cony Filho, mas a transposição não é feita a um modo sério. A abordagem com humor teatral passa do tom na maioria das vezes, chegando ao ponto de irritar profundamente seu público sempre que João Miguel aparece diante das câmeras – fator que ocorre inúmeras vezes dentro dos noventa e cinco minutos de duração.

    O excesso de canastrice faz as situações dramáticas perderem força, falhando no papel de parecer um retrato da história, mesmo que tal recorte seja absolutamente parcial. Outro problema é a pouca exigência de seu ator principal, uma vez que Ramos quase não tem momentos onde sua dramaturgia seja realmente posta a prova, ao contrário, sobrando momentos onde qualquer artista genérico poderia realizar seu papel.

    Os momentos finais são os mais emocionantes, mas nada que justifique todo o entorno pitoresco e risível de Quase Memória. As emoções vividas pelo protagonista, somente nos minutos finais ajudam a relembrar o quão desperdiçado foi o seu talento durante o restante da fita, e o quão frívolo soou o resultado final do exercício de Guerra, que tenciona muito mas entrega pouco.

  • Crítica | 11 Minutos

    Crítica | 11 Minutos

    11 Minutos 1

    Fruto da loucura do diretor polonês Jerzy Skolimowski – realizador também de Classe Operária e Quatro Noites Com Anna – o longa 11 Minutos é um filme evento, orquestrado todo em direção a um episódio peculiar na vida de pessoas ditas normais, bem ao estilo de muitos outros produtos, cuja inspiração varia evidentemente dependendo da sua equipe criativa.

    A gama de personagens inclui um marido ciumento descontrolado, uma atriz belíssima a procura de um trabalho hollywoodiano – o que evidentemente causa um dejá vu metalinguístico – uma jovem confusa, um vendedor de cachorro quentes que busca redenção de seus pecados do passado, uma estudante de índole duvidosa, um limpador de janelas, um ancião que faz desenhos, um grupo de freiras glutonas, paramédicos e um diretor de filmes. O destino de todos eles se cruzam, sem muito espaço para uma maior profundidade para nenhuma dos indivíduos mostradas em tela.

    A direção de atores é esmerada, compensando de certa forma a completa falta de substância dos homens e o pouco tempo de tela para cada parcela de história. Exigir um background mais especialização em substância em texto como esse beira o azedume, mas o que realmente incomoda em 11 Minutos é não acrescentar quase nada na questão de ser um mero acaso, uma sucessão de eventos que envolve a dicotomia de acaso e destino vista em tantos outros produtos semelhantes.

    O filme foge de ser algo dispensável pela criatividade de seu feitor em posicionar a câmera, e pela multiplicidade de preconceitos sugeridos no filme, ainda que não haja muita reflexão sobre as ocorrências em geral, a estética utilizada é interessante e diferenciada, utilizando bem o formato, mesmo que o conteúdo propriamente dito não seja nada distante do comum.

  • Crítica | Mate-Me Por Favor

    Crítica | Mate-Me Por Favor

    Mate Me Por Favor 1

    Co-produção Brasil / Argentina, Mate-Me Por Favor apresenta a depressão típica de muitos dos frequentadores de baladas, que vêem na solidão o único consolo para a miséria em que vivem. Tal aspecto serve de despiste, um misto de ponto de partida e válvula de escape para a real intenção do longa-metragem de estréia de Anita Rocha da Silveira, que investiga uma série de assassinatos, com um curioso padrão.

    A câmera logo segue a trajetória de Bia, vivida por Valentina Herzsage, uma menina nova, no começo de sua puberdade. A trama desenvolve as descobertas de sua sexualidade, além de demonstrar também a intimidade dela e de suas amigas, moças cuja beleza jovial se situam no despertar da libido. Os diálogos entre elas são superficiais, bem ao estilo dos filmes de terror slasher, ainda que a atmosfera e o conjunto de diálogos seja tipicamente brasileiros com manifestações intimamente ligadas a cultura nacional.

    Mate Me Por Favor 2

    O desejo latente do grupo de meninas é compreender como funciona o próprio corpo e seus desejos. Quase todas as conversas envolvem homens e tem um forte apelo de sedução. Mesmo os assuntos “proibitivos” ocorrem ao redor dos assassinatos da trama, revelando um desejo intenso por relações carnais. Para Bia, as discussões são diferentes, até por ter um parceiro sexual fixo. A todo momento a menina revela uma curiosidade mórbida ao se inteirar sobre as mortes que ocorrem pelas redondezas da Barra da Tijuca, no Rio de Janeiro, quadro que vai evoluindo com o decorrer da trama, tornando-se mais uma de suas obsessões.

    Há uma miscelânea de influências em Beatriz e suas amigas, desde a predileção pelo música, usando o funk carioca como destaque até a ligação com a religião, aludindo de um modo debochado às igrejas evangélicas “modernas” que tomaram as ruas do Rio de Janeiro em um passado recente, com mensagens que se distanciam do modo retrogrado normalmente associado a prática da crença, envernizando o conceito através de uma falsa liberdade mas que ainda castra seus fiéis de mentalidade fraca e ingênua.

    Mate Me Por Favor 3

    Mesmo com o dogma religioso, a sexualidade não é suprimida da vida de nenhuma personagem. Ao contrário, o mergulho mental nos eventos violentos se aprofunda ainda mais , piorando quando encontram uma das vítimas dos assassinatos. A tentativa de salvá-faz a protagonista se inserir em seu lugar, imaginando-se vítima de uma violência sexual.

    Há em Bia uma semelhança mórbida com as personagens de Breaton Easton Ellis, não no sentido da futilidade por vias de riqueza financeira, mas sim pela falta de amor próprio, em uma manifestação de misantropia que ocorre a partir da baixa auto estima, da vontade de se ferir e do desejo irreversível de não mais existir. O anseio da adolescente é alcançar a mesma tranquilidade estampada no rosto dos mortos, passando também pelos momentos de agonia pelos quais os vitimados passaram, como se ansiasse pela dor. As longas caminhadas solitárias e sem rumo à espera do nada, revela o desejo pelo ato mau, pela chaga que atingiu as mulheres mortas, buscando de maneira intensa a sensação que outras tiveram.

    O cuidado da direção de Anita em retratar uma face pouco explorada da sociopatia é enorme e empática. Mesmo retratando desejos pouco usuais, não é difícil sentir-se no lugar de Bia, graças principalmente aos closes dados nos rostos das garotas, revelando hematomas, marcas e desejos incontidos, no olhar e boca de suas personagens. As expressões de Valentina Herzsage servem de prenúncio de quaisquer manifestações de libido. O modo como Silveira termina seu filme é hermético, como um chamado ao desejo e a descoberta da identidade do jovem, através do ímpeto carnal e pela auto destruição de um modo experimental e infelizmente poucas vezes realizado no Brasil.

  • Crítica | Kiri – Profissão: Assassino

    Crítica | Kiri – Profissão: Assassino

    Kiri 1

    Valendo-se da experiência de seu realizador Koichi Sakamoto enquanto diretor de séries televisivas tokusatsus, Kiri: Profissão Assassino conta uma história que precisa da modernidade para dar certo, já que gira em torno de um site ilegal, chamado “Assassinos”, que serve para contratar matadores de aluguel e leilões, resultando também no óbito de quem o contratante chame.

    A trajetória dos personagens é genérica, focada em Kiri (Yumiko Shaku), uma bela e jovem moça que é treinada para exercer o papel de fria executora de pessoas, e que com o tempo evolui o bastante para espionar a operação do site. A jornada é de vingança, já que a personagem-título vai em busca de um dos funcionários que marcou seu passado, cuja sede por sangue é bem maior do que a demanda que ocorre nos pedidos on-line.

    Kiri 2

    O extremismo da violência é puramente gráfica, e contrasta com as curvas das belas moças que impingem a dor e a morte. As cenas de ação são bem filmadas, sobrando gore, cortes profundos e dilacerações, em uma reimaginação do que Takashi Miike faz em seu cinema, mas sem a mesma qualidade do veterano diretor. A remontagem das femmes fatales é feita muito além do simplismo visto em Resident Evil e Lucy, com uma coragem em explorar a ferocidade e hostilidade típicas da puberdade, sem medo de fazer isto através de atos de pessoas cuja juventude ainda não permite ter um pleno entendimento do valor da vida, remetendo à temática típica de mangás shonen.

    O conjunto de sentimentos exibidos em tela é bastante subalterno em comparação com as lutas mostradas em tela, mesmo que um tempo demasiado seja gasto analisando os meandros e consequências desses atos. O texto, apesar de confuso, serve em todos os seus vazios para não desviar a atenção do público sobre o que importa dentro do longa, rendendo um entretenimento repleto de sangue, pele e agressividade, de fácil esquecimento minutos após seu termino, descartável como os gibis japoneses de material barato.

  • Crítica | Francofonia

    Crítica | Francofonia

    Francofonia 2

    Mistura de deslumbre visual com explicação histórica estilosa, Francofonia é o novo capitulo semi documental da filmografia do clássico diretor russo Aleksandr Sokurov, o mesmo do recente ( e interessantíssimo) Fausto. A diferença básica entre este e o anterior filme citado, é a tonalidade em abordar a temática de análise artística.

    Apesar da curta duração – até por causa de sua premissa – o longa-metragem apresenta uma estética cansativa, que mistura pequenas partes dramatizadas, e uma narração enfadonha, que demonstra os fatos históricos tão conhecidos, a respeito especialmente da Segunda Guerra Mundial e da participação da antiga União Soviética no certame.

    A gravidade ocorre na sucessão de informações, que passam longe de primar pelo ineditismo, o que não seria um grave problema, caso não fosse claro uma fita de Sokurov. Os pedaços encenados começam interessantes, engraçados e criativos, mas passam a ser tediosos pelo conteúdo repetitivo, que faz pensar o motivo do bom realizador em apelar tanto para a redundância, o que faz o espectador mais acostumado a sua filmografia se perguntar se não seria essa uma desculpa para ser panfletário em sua fita.

    Contudo, é óbvio que os fatos explicitados são importantes, bem como a valorização das artes mostradas. A ode ao Museu do Louvre e aos grandes epicentros artísticos mundiais, com um texto poético, centrado e muito belo a respeito da morada de tantos espécimes valiosíssimos para a historiografia dos feitos humanos. No entanto, até os pouco menos de noventa minutos de duração, mais parecem uma luxuosa aula de História da Arte, com slides mostrados em tela do que uma proposta fílmica, que talvez simbolize mais uma vertente de documentar cinema, certamente pouco afeito a parcela de espectadores mais populares.

  • Crítica | Os Cavaleiros Brancos

    Crítica | Os Cavaleiros Brancos

    Os Cavaleiros Brancos - poster

    Produzido com ótimas intenções, Les Chevaliers Blancs conta a história de uma ONG, chamada Move For Kids, que ajuda a recuperar crianças órfãs na África, facilitando a ponte entre as famílias francesas e os possíveis beneficiados. A sinopse fria passa longe de exemplificar a situação caótica e real que os envolvidos tem em conduzir tais atos, em um Chade devastado pela guerra. Porém, combina, e muito, com algumas das abordagens utilizadas pelo diretor Joachim Lafosse.

    Em Perder a Razão, Lafosse, demonstrou uma sensibilidade que até tenta se manifestar neste novo filme, mas que esbarra em fórmulas comuns que denigrem o produto final. A história é narrada sob olhar de Jacques Arnault, vivido por sua vez por Vincent Lindon, que acumula em si quase todo o aprofundamento dramático do roteiro, fator até comum em filmes que focam em situações complicadas, mas ainda assim um artifício bastante fraco.

    As dificuldades, tanto em angariar verba para realizar o abnegado trabalho, assim como a terrível negociação com os chefes de aldeia, é muito bem engendrada, assim como a denúncia relativa aos desmandos dos militares estrangeiros que ocupam o território africano. Obviamente, é válido aventar essas questões, que infelizmente se diluem pela completa falta de substância em qualquer personagem nativo.

    Les Chevaliers Blancs 3

    A vontade em reproduzir o caos faz com que os aflitos africanos sejam somente isso, quando não pessoas desumanizadas, seja pelo desespero em conseguir emprego ou fazer adotar seus próprios filhos, como fortificar a péssima ideia hollywoodiana de retratar os africanos como pessoas violentas e afeitas a belicidade – fato comum em uma guerra, evidentemente, mas que decai em variação de tom por não ter qualquer pessoa que se salve daquele estado selvagem.

    O documental do mal que faz não ter paz é interessante, mas as soluções fáceis deixam evidente há muito qual seria o final de Arnault e dos seus, perdendo importância inclusive por não haver qualquer momento de carisma da equipe, sequer nos plausíveis motivos que os fazem pensar em recuar. Curiosamente, a tentativa dos filantropos resulta no mesmo resultado final de Le Chevaliers Blancs, se diferenciando positivamente apenas por não dar margem a acusações de um possível racismo, como o argumento falaciosamente tem.

  • Crítica | Eu Sou Michael

    Crítica | Eu Sou Michael

    Eu sou Michael - poster

    Panfletário, e baseado em fatos ocorridos na biografia de seu personagem-título, Eu Sou Michael explora algumas linhas temporais ao exibir a trajetória confusa e polêmica de Michael Glatze. O filme de Justin Kelly se inicia em uma sessão religiosa informal, com James Franco, intérprete do protagonista, recebendo um confuso menino homossexual, acalentado pelo homem mais experiente que tenta mostrar, através da fé, que é possível “curá-lo” daquele comportamento.

    A câmera retorna ao passado, em uma colorida São Francisco, onde o personagem principal é editor de uma revista para nicho, de temática gay. O grave problema já no início é a dificuldade que o filme tem em retratar assuntos polêmicos, cujo conteúdo de contestação é alto. Glatze tem uma teoria plausível para a época, sobre a construção social da sexualidade, mas que é maltratada pelo argumento, caindo em desimportância pelo enfoque raso dado a esses aspecto. As mudanças de território funcionam como limiares, pontuando a mudança de espírito, com saltos cronológicos complicados e mal pensados.

    A impressão de que o texto gosta de generalizar é justificado pelo modo como os homossexuais são retratados, sempre como pessoas dispostas a relações abertas, com um descuidado ímpar em não mostrar que a “semi-poligamia” não é artigo obrigatório. O discurso religioso vai tomando a proximidade de Michael, tanto em sua psique quanto no roteiro de Kelly, Stacey Miller e Benoit Denizet-Lewis. Há a artificialidade desse alastrar, pecando em dois sentidos, através da condescendência junto ao preconceituoso, bem como a desistência do personagem principal, em doses homeopáticas e forçadas.

    Eu Sou Michael 2

    O flerte com o cristianismo conveniente ocorre através da sedução pela normalidade, aproximando o drama de uma Síndrome de Estocolmo que é sugerida e não desenvolvida. Aos poucos, Mike se “endireita”, tornando-se cada vez mais frágil, se igualando aos argumentos que agora abraça.

    Zachary Quinto desenvolve um Bennet muito mais profundo que todos os outros personagens, o que ajuda a assinalar o quão raso é é Eu Sou Michael. O filme soa claramente ofensivo para a plateia específica – leia-se o espectador gay – por conter nas palavras uma forte alusão à falta de identidade de gênero, associando de modo escuso a prática sexual entre homens do mesmo sexo a algo pecaminoso, tão simplista que se iguala em preconceito a tudo que Michael antes refutava. O erro do filme é em não tomar partido.

    Eu Sou Michael 5

    O declínio intelectual do personagem tenta ser associado a um novo patamar de espiritualidade, o que piora ainda mais o caráter expositivo, que insiste em tratar o sofrimento do biografado como tentação de crença. Especialmente ao chegar no estado do Colorado, onde a transição já está “assumida”, pontuada por argumentos baratos e reacionários.

    Eu Sou Michael retrata uma trajetória de um homem confuso, que acredita estar evoluindo ao negar seus desejos, associando-os a símbolos falaciosos, de fácil digestão para o binarismo conservador, mas intragável para um progressista. A ode ao discurso excludente só piora o grau ao explorar a nova faceta de sua sexualidade, sempre como um coito interrompido, justificado claro pela imbecil falta de conteúdo relevante em sua nova postura. Mesmo nas palestras em que ouve, Mike é deslocado, e ainda assim não consegue compreender que todo o esquematismo da história é mais um engodo, mais uma manifestação mentirosa do destino que o aguarda.

    A união com Rebecca (Emma Roberts) é mais uma das evidências de que os dois mundos não se encaixam, especialmente pela ignorância gritante de quem deveria ser sábio por ser a “imagem e semelhança” de alguém perfeito. O escavar de sua própria dignidade piora, assumindo cada vez mais que o medo é o estopim da graça, criando seus próprios sofismas. Toda a real sabedoria é concentrada em Bennet, que segue sua jornada como o personagem que não se perverte, ou se permite mentir para si mesmo. Suas últimas palavras ao ex-amante são quase como um clamor, uma última súplica para a coerência, do personagem e do roteiro, não atendida até o final.

    O resultado do filme de Kelly é nefasto. Se analisado sob o ponto de vista de igualdade sexual, é um espécime de cinema fraco, covarde e sem ousadia, desfenestrável por prestar um desserviço a discussões mais acaloradas, pela vertente da defesa dos direitos iguais, e gera ainda mais debate graças à vexatória abordagem utilizada, servindo como contra-exemplo de como gerar um filme de história polêmica.

  • Crítica | Green Room

    Crítica | Green Room

    Green Room 1

    Ainda seguindo o estilo rústico de seu filme anterior, Blue Ruin, Jeremy Saulnier acrescenta uma aura de popularidade a Green Room, que faz de seu modesto terror um longa carismático. O elenco, recheado de atores famosos, faz acreditar que a superficialidade e docilidade seriam a tônica do argumento, evidentemente como um longo e interessante despiste.

    The Ain’t Rights é uma banda de punk rock formada por jovens que tencionam apresentar uma rebeldia típica das poses de Sid Vicious e Joe Strummer, mas que na verdade escondem uma atitude ordeira, normativa e mantenedora do status quo. Após o fracasso de público da turnê, os rapazes decidem fazer um último show, em Oregon, “terreno” de nazistas e skinheads, que são brutalmente confrontados por eles já na primeira música que desautorizava o extremismo racista ideológico.

    Curiosamente, a elevação de patamar em relação à quantidade de público faz a banda aproximar-se de atitudes mais extremas. O quinteto adentra em uma trama que resume finalmente o real chamado à aventura, resultando na construção inicial em um mcguffin, como visto no clássico Um Drink no Inferno, inclusive reprisando os bons momentos do filme de Robert Rodriguez e Quentin Tarantino.

    Green Room 3

    A desventura troca o gore comum e típico desse subgênero de filmes por outros aspectos escatológicos, evidenciando ambientes sujos, pouco iluminados, repletos de lodo e sangue, características que emulam o caráter dos antagonistas, que bolam um cerco para encobrir seus pecados.

    O elenco de astros Anton Yelchin (Pat, o baixista e principal liderança entre os musicistas), Imogen Poots (Amber), Alia Shawkat, Joe Cole e Patrick Stewart serve basicamente para aumentar a simpatia pelo filme. Ainda que em posição agradável do ponto de vista dramatúrgico, o casting é bem subalterno em relação à trama anárquica, reféns de um acaso que suprime qualquer frieza e fúria assassina previamente estabelecida.

    O lema comum ao punk rock, o Do It Yourself, é posto em prática de maneira violenta e extrema, se valendo de lâminas, improvisos e ameaças para ser executado. A guerra improvisada que se estabelece só se torna crível – apesar dos claros absurdos – graças à morte extremamente comum de seus personagens, os quais também são bastante comuns, exceção feita a Amber, que está lá exatamente para ser o contraponto seguro e frio das pessoas despreparadas, fúteis e desesperadas do grupo, evocando um possível passado misterioso e de natureza tão parecida quanto a do bando de Darcy (Stewart).

    Green Room consegue apresentar muito, mesmo em pouco tempo de tela e de exposição de seus personagens, compensando com situações insanas bem urdidas e cenas excelentes, fruto da experiência de Saunier em retratar programas televisivos e reais, e com urgência tão grave quanto a obra cinematográfica exige.

  • Crítica | Paulina

    Crítica | Paulina

    paulina-posterBaseado em uma inversão de paradigma bastante polêmica, Paulina – novo longa de Santiago Mitre (roteirista de Abutres e Elefante Branco) – inicia-se exibindo uma discussão política acalorada pela fala da personagem-título com seu pai, Fernando (Oscar Martínez), sobre o futuro de sua carreira acadêmica. O motivo é que a mulher decide ir para uma cidade interiorana violenta, deixando para trás uma carreira em Direito bastante promissora.

    O mundo em que Paulina (Dolorez Fonzi) adentra é completamente diferente do universo com que está acostumada, e o seu discurso progressista é posto à prova a todo momento quando ocorrem tropeços enquanto leciona, graças à falta de convívio com uma população interiorana. A dificuldade em “falar” o linguajar do excluído serve de paralelo à dificuldade que alguns segmentos de esquerda têm ao estabelecer contato com o mesmo proletário que estes defendem.

    Apesar de conter uma direção interessante e um roteiro repleto de alegorias, todos os motes giram em torno da conversa inicial de Paulina e Fernando, com um conjunto de situações graves que redundam apenas na questão sobre até aonde o engajamento da mulher deve ir. As aulas de retórica não evitam a deseducação dos residentes do gueto, tampouco a salvaguarda da terrível situação de violência sexual.

    Quando um plot twist se aproxima, o argumento simplesmente dribla a possibilidade de se tornar um filme-denúncia para, ao invés disso, fortificar a ideia de um pensamento do evoluído e defensor do oprimido acima das necessidades pessoais. Paulina vive seu discurso, não permite que as contradições a deixem se aproximar de qualquer possibilidade de reacionarismo, evoluindo da simples questão da segurança financeira, elevando a discussão para a violação emocional e corporal.

    A sede por vingança não provém da violentada, mas dos homens que a cercam, e nem mesmo em uma posição vulnerável a mulher larga o protagonismo, tampouco permite uma solução que tenha qualquer resquício de machismo ou moralismo.

    A discussão que encerra o filme é didática e resume toda a emoção visceral que se viu a partir de todo o processo de aceitação da mulher, mostrando desde a intensa dor do estupro, até a dificuldade em conviver com um trauma impingido pelo mesmo alvo de proteção de toda uma vida ideológica e pragmática. A força em Paulina está nas atuações emocionantes de Fonzi e Martínez, mas também na atualidade de seus temas, tecendo um comentário agressivo para os ditames esquerdistas, expondo uma hipocrisia que normalmente encontra eco na atitude de muitos ditos marxistas.

  • Crítica | Os Irmãos Lobo

    Crítica | Os Irmãos Lobo

    the-wolfpackMisto de documentário com ficção, Os Irmãos Lobo é um experimento de Crystal Moselle, que investiga a rotina de uma família de imigrantes peruanos Angulo, que moram em Nova York e que só têm contato com o mundo externo através de fitas de vídeo e meios de comunicação. A encenação de Cães de Aluguel revela uma paixão cinéfila intensa da parte dos patriarcas, o mais desenvolto deles, e tal predileção quase esconde o isolamento pelo qual eles passam, sem acesso a quaisquer outras pessoas que não as escolhidas por seus parentes.

    Os Bons Companheiros, Pulp Fiction e a trilogia Batman de Christopher Nolan são válvulas de escape para a prisão domiciliar que lhes é imposta. A imagem da janela da metrópole serve de alento para os descendentes sul-americanos, em um total de sete que habitam um microuniverso ligado a sua religião, a sociedade hare krishna.

    O intuito de Moselle é demonstrar uma parcela do pensamento de um fundamentalista religioso, flagrando parte do discurso que faz bastante sentido tanto dentro de sua lógica própria quanto por quem é de fora desse contexto. Nas falas da mãe de família predominam os malefícios de uma socialização forçada, incluindo locais comuns como a escola, onde determinados valores tidos como indesejáveis são repassados, especialmente pelo convívio com seres da mesma idade das crianças e adolescentes.

    As fitas antigas, gravadas pelos rapazes, revelam um intenso consumo de artes pop contemporâneas, o que faz em um primeiro momento acreditar que os Angulo conseguem driblar mesmo a falta de convivência com outros entes em sua formação de gosto e de repertório. Por mais que o caráter da fita busque ser o mais isento possível, não há como analisar a situação do clã sob um prisma que não englobe um estranhamento pela alienação da senhora Angulo e de seus filhos, especialmente pelo claro e manifesto desejo dos rapazes em conviver com o externo, podendo desfrutar de atos simples, como o de ir a praia, fato registrado pelas câmeras.

    Tal manifesto ganha contornos reais quando o mais velho deles, Mukunda, decide viver fora do cercado de sua mãe, começando a usufruir dos prazeres externos. No entanto, as mudanças não são vistas muito distantes da realidade que lhe foi passada ano após ano, ao contrário, sua mentalidade tende a repetir todos os preceitos que lhe foram passados ano após ano, o que não resulta em uma conclusão desfavorável à criação pela mãe da família. A discussão proposta por Moselle, apesar de não acertar sempre e de cair em redundância em alguns pontos, inclui a questão da “escolha” por uma alienação específica. É na universalidade de julgamentos que reside o maior acerto de Os Irmãos Lobo.

  • Crítica | Campo Grande

    Crítica | Campo Grande

    campo garnde 7Apoiado em temas comuns ao cinema e à literatura, Campo Grande de Sandra Kogut usa o abandono de infantes como base para sua história: as dificuldades de gerar vida e de consolidá-la. Rayane (Rayane do Amaral) é uma menina deixada na porta da casa de uma família abastada de Copacabana, e que em sua tenra infância precisa lidar com a rejeição de sua progenitora e da mulher que a recebe, Regina (Carla Ribas), uma senhora que, ao menos aos olhos dos empregados, aparenta grande poder, mas que tem em seu comportamento um forte ranço discriminatório.

    O drama cresce quando surge o irmão mais velho, Ygor (Ygor Manuel). O menino revela a tentativa de ambos de encontrar a matriarca que os abandonou. A jornada dos pequenos envolve primariamente uma busca pelos pontos comuns dos bairros nobres cariocas, sem rumo ou planejamento graças à inexperiência do primogênito, que crê piamente que sua mãe retornará, e que tal regresso será por ali.

    As conclusões entre patronado e serviçais flertam com o tema de Que Horas Ela Volta?, ainda que a contestação no filme de Kogut seja mais incisiva e voltada para o preconceito observado entre áreas nobres do Rio de Janeiro e o subúrbio carioca. Os cenários são reprisados em segundo plano, ambientando as brincadeiras que demonstram a ingenuidade e alienação dos meninos em relação ao caos que os cerca. A falta de conhecimento e ciência do que vivem servem de frescor para sua própria atemorização.

    O debate estabelecido envolve as cercanias das crianças, como a urbanização dos pontos cruciais da antiga Guanabara e a despersonalização do indivíduo, exibindo em tela o quão banal se tornou a presença humana nas grandes cidades, especialmente nos arquétipos de moradores de rua. Ygor é um personagem absolutamente invisível à primeira vista, mesmo por pessoas cuja caracterização e poderio econômico tenham se aproximado dele, basicamente, por ele se assemelhar com os meninos de rua que habitam o asfalto da parte rica da cidade, ignorados também por homens não abastados financeiramente. Tal aspecto levanta mais uma fala secundária, mas ainda assim importante sobre a inexistência dessas pessoas perante os olhos do cidadão comum, do mesmo que se preocupa em ser filantropo com os que estão distantes  (em terras não menos assoladas que o seu derredor) mas que é incapaz de olhar além da vidraça de seus luxuosos carros.

    Ao adentrar o bairro de Campo Grande, Regina se sente habitando um novo mundo, diferente demais do seu próprio universo. A selvageria que ela acreditava existir no bairro suburbano é trocado pelo volume enorme de pessoas transitando entre o asfalto e passarelas, confusão que assusta o humano que não a habita, mas que em momento algum justifica tal desprezo.

    O choque emocional pelo qual passa a mulher é equivalente a um golpe na hipocrisia costumeira de muitos endinheirados, e a transformação por que passa Regina age prodigiosamente nesse sentido, uma vez que o roteiro só a premia com edificação após provar e sentir o mesmo que Ygor e Rayane, atingindo finalmente a real empatia que pretensamente deveria acompanhá-la.

    O desfecho não se permite cair na saída tranquila de dourar a pílula, tampouco os personagens se tornam perfeitos ou plenamente encaixáveis em formas agradáveis ao grande público. Toda a acidez do roteiro de Sandra Kogut e Felipe Sholl está em um subtexto que só é plenamente usufruído caso o espectador se concentre nos detalhes dramáticos. A camada superficial usa uma polidez em formato de despiste ao tratar do detentor da grande renda como ser afável somente com as crianças, que são aquelas ainda capazes de angariar inocência – e, portanto, sem culpa pelo caos que o mundo de Campo Grande apresenta.

  • Crítica | A Morte de J. P. Cuenca

    Crítica | A Morte de J. P. Cuenca

    A Morte de JP Cuenca 1Proposta que mistura documentário e ficção cinematográfica, A Morte de J. P. Cuenca explora uma história curiosa, baseada na vivência do personagem-título que estrela o filme, além de dirigi-lo e e roteirizá-lo. Tudo começa com uma investigação, após a morte de um homem que portava os documentos do protagonista, o que o fez ficar curioso e embasbacado com a situação mórbida.

    A partir deste fiapo de fato, começa uma odisseia rumo a tal verdade. O repertório de escritor de romances ajuda Cuenca a montar personagens periféricos – certamente o maior acerto de todo o seu longa de estreia no cinema – uma vez que são pessoas caricatas, extremamente engraçadas e bem conduzidas do ponto de vista dramatúrgico. As situações cômicas tomam o espectador pelas mãos, não permitindo a eles ficar incólume diante da grave comicidade que o assola.

    A Morte de JP Cuenca 3A primeira metade do filme é espirituosa e muitíssimo curiosa, especialmente por representar em tela uma forma de apatia poucas vezes explorada, dando ares tragicômicos para o estado depressivo e livrando o herói de torná-lo algo simplesmente digno de pena. No começo, J.P. é o que mais se aproxima de um ser humano normal, mas, ao investir na busca pelos fatos, ele mesmo cede à atmosfera insana que o cerca, chegando até a assustar boa parte dos que o cercam.

    O desfecho não consegue manter o mesmo ritmo e fôlego do começo se perdendo em sequências experimentais que evocam sexualidade e extrema beleza mas que não alcançam o público como os atos anteriores. O espírito é quebrado para se tornar algo diametralmente oposto, e não há uma preparação mínima para tal situação. O resultado final infelizmente decai muito, causando até enfado em quem termina de assistir a A Morte de J. P. Cuenca.

  • Crítica | Montanha da Liberdade

    Crítica | Montanha da Liberdade

    Montanha da LiberdadeSimples, direto e objetivo, Montanha da Liberdade – ou o original Jayuui Eondeok – é a nova fita do cineasta sul-coreano Hong Sang-soo. O longa-metragem reprisa de modo pródigo uma marca registrada do cineasta, apresentando uma trama palatável para um público mais conservador, repleto de muitas gags cômicas, mas que ainda assim produzem uma pequena reflexão.

    A história se bifurca se baseando na rotina de Kwon (Seo Young-Hwa), uma professora linguista que vive um claro inferno astral – flertando com a depressão –, além de analisar a rotina de Mori (Ryo Kase), um jovem japonês, com problemas de saúde, que foi até a Coreia reaver seu grande amor. A base romântica não faz o filme se tornar cafona, tampouco óbvio. A abordagem envolve uma porção de piadas que abraçam questões comuns aos homens, como alcoolismo, choque cultural e flerte amoroso não correspondido.

    A direção em que o roteiro aponta é certeira ao envolver os homens como habitantes do mesmo mundo, apesar da distância ideológica e nacionalista. Mesmo a xenofobia é tratada sob uma ótica engraçada, fazendo uma sátira da formação deste tipo de preconceito, e a condução de Sang-soo consegue abarcar a problemática fugindo completamente do panfletarismo.

    Montanha da Liberdade 2A recepção do filme no Festival de Veneza foi bastante calorosa, e não à toa, dadas as situações vividas por Mori: apesar de estar minimamente encaixado no ambiente coreano, ele aparenta ser um imã de situações bizarras e sem sentido, uma vez que todo o tipo de insano parece encontrá-lo nas pousadas onde ele se hospeda.

    O desfecho da fita é feliz, mas não cai no erro de ser extremamente adocicado. O inverso é que ocorre, com momentos hilariantes, inebriantes e emocionantes, em uma atmosfera leve apesar de não ignorar todas as vicissitudes comuns a rotina comum de quem vive em um mundo globalizado  e capitalista, exemplificando através do espírito depressivo do homem escravo do sistema, e como ainda dentro da contemporaneidade há a possibilidade de driblar tais eventos.

  • Crítica | The Diary of a Teenage Girl

    Crítica | The Diary of a Teenage Girl

    The Diary Of a Teenage Girl 1

    Narrado a partir de gravações de sua protagonista Minnie – executada pela inspirada e surpreendentemente expressiva Bel PowleyThe Diary of a Teenage Girl é o belo filme de estreia da atriz californiana Marielle Heller (de Caçada Mortal e Spin City) como diretora, além de ser baseado na graphic novel homônima de Phoebe Gloeckner, produto que causou furor por sua temática interessante.

    O roteiro de Heller é focado no despertar da feminidade e sexualidade de Minnie, que acaba se envolvendo primariamente em uma relação proibitiva, mas que a faz queimar etapas na volúpia e no jogo de sedução inexorável a quem se torna ativo em uma relação amorosa ou sexual. A evolução da moça é pontuada por situações engraçadas, graves e contadas da forma mais sincera possível, em um estilo que mistura desenhos e animações para evocar os sentimentos e sensações contraditórios da personagem, unindo paixão e talento na mesma mistura inebriante e irresistível.

    Através de sua sexualidade latente, ela acende o fetiche no mais próximo de homem ativo e devorador que lhe cerca, e tudo é conduzido de um modo muito corajoso e inusual, distante demais do estilo retrógrado que tipicamente permeia esse tipo de filme. A atuação de Powley funciona magistralmente graças à ótima escada que Kristen Wiig faz para ela, revelando finalmente uma faceta reservada que funciona, mas o fundamental é o roteiro muito bem urdido.

    Não há qualquer receio em retratar uma mulher cuja fome sexual é imensa, sem precedentes moralistas que barrem suas ações ou os acontecimentos do argumento. Nem a feminilidade, nem a juventude são coibidas, ao contrário, são louvadas livremente, usando o estilo documental para mostrar ao espectador que tal atitude deve prevalecer acima de qualquer preconceito.

    A jornada de Minnie não é só apresentar o desabrochar sexual, mas também a autoaceitação, descobrindo aos poucos o que a faz feliz e satisfeita, driblando causos como solidão, amor alheio e próprio e transformando em discussões maduras e adultas que não demonizam sequer questões tabus como prostituição e uso indiscriminado de substâncias ilícitas. The Diary of a Teenage Girl é um filme interessante tanto por seu formato quanto pelo conteúdo, servindo como diálogo entre as gerações mais antigas e a que acaba de entrar no período da puberdade.

  • Crítica | Micróbio & Gasolina

    Crítica | Micróbio & Gasolina

    Microbio e Gasolina

    Fugindo um pouco do estereótipo de sua filmografia – ao menos da mais conhecida – Michel Gondry produz um filme interessante sobre a tenra infância, flertando com os melhores e mais inspirados momentos de Chris Columbus. Micróbio & Gasolina conta a história de dois meninos marginalizados, no colégio e em suas casas, vividos por Théophile Baquet e Ange Dargent, uma dupla cuja química é invejável, funcionando em praticamente todos os momentos escapista que lhe ocorrem.

    A trama gira em torno do desajuste da dupla, que convive com o cruel panorama comum escolar, no qual qualquer diferença, mínima que seja, é motivo para exclusão e bullying. Os motivos que levam os dois a serem marginalizados são diferentes, já que Theo Leoir (Baquet) tem um forte cheiro de combustível graças à natureza do trabalho de seu pai, mecânico de automóveis, enquanto Daniel Guerrét (Dargent) é maltratado apenas por ter feições ainda andrógenas, frutos de uma pré-puberdade complicada. O caos instaurado em suas casas os faz tencionar criar um carro improvisado, disfarçado de casa, e partir em uma aventura pitoresca que começa na dificuldade de manter o foco na construção do veiculo.

    Apesar do tema infantil, o roteiro de Gondry abraça questões comuns também à fase da vida adulta. O uso da família de Guerrét é bem explícito em relação a isso, especialmente no drama de sua mãe, Marie Therese, vivida por Audrey Tautou, que sofre de um infortúnio. Porém, a obra não é tão focada em detalhes, por se tratar de um texto leve que prima pela experiência de vida de um infante, mas que também não deixa de ser grave por isso.

    Todos os obstáculos apresentados na jornada escapista de ambos fazem lembrar valores pouco em voga em um mundo globalizado, como a soma de forças pelas vias da amizade e do companheirismo representada pelos personagens, dois “fracassados”, apelidados pejorativamente de Micróbio e Gasolina, vencendo difíceis situações.

    A versão mirim de road movie inclui o desapego extremo pelos bens materiais das duas crianças – fator comum dentro do comportamento inocente – e um modo muito belo de encarar as agruras da vida e da viagem, mesclando juventude e romantismo, com uma sensibilidade que destoa inclusive dos outros personagens da fita. A sensação de cooperação mútua não é vista, fora do círculo interno de Daniel e Theo, por mais ninguém como algo tão vivo. Tampouco se nota a mesma paixão por explorar novos mundos e novas experiências como se vê no desejo do ideário dos dois amigos, argumento utilizado como um belo modo de contrapor a crescente depressão de todos os adultos da obra.

  • Crítica | A Bela Estação

    Crítica | A Bela Estação

    A Bela Estação 1

    Parte do engajamento da diretora francesa Catherine Corsini em retratar um cinema de gênero ligado a sexualidade homoafetiva,  A Bela Estação tangencia movimentos panfletários, ainda que o caráter de seu roteiro não caia para tal. A trama gira em torno de Delphine (Izïa Higelin), em um primeiro momento uma mulher bastante jovem, embrutecida pela natureza de seu trabalho na fazenda, que sofre problemas em assumir sua identidade sexual, graças à terrível mentalidade setentista predominante no ambiente rural.

    As mudanças no ideal de Delphine começam em uma viagem inocente para Paris, onde encontra por mero acaso um grupo de manifestantes feministas, já em seu primeiro ato ajudando-as a não serem agredidas por um homem. Das mulheres mais maduras, quem lhe captura a atenção é Carole (Cécile De France), uma mulher heterossexual e casada, que tem em seu repertório um vasto conjunto de reclames revolucionários e igualitários.

    O encantamento da personagem não é com o ativismo, como o próprio roteiro faz questão de pontuar, mas com a sua musa particular. A despeito até das convicções de ambas, começa ali uma nova relação, engraçada e descompromissada no começo, se agravando com o tempo, piorando demais quando a protagonista tem de voltar ao campo, acompanhada logo depois por sua amada.

    O não abraçar à causa feminista e a briga contra o reacionarismo se vê na dificuldade da fazendeira em falar abertamente sobre suas preferências, se importando muito mais com os afazeres do campo e com o status quo conservador da comunidade agrícola e de sua família, do que em relação ao seu novo namoro. A gravidade nos defeitos do filme estão na obviedade das situações, que se avolumam tanto a ponto de tornar óbvio o final, muito tempo antes do desfecho de fato.

    O choque de universos é sentido na pele de alguns personagens, mas claramente faltam cenas de confronto para a heroína da jornada, o que serve para mais uma vez fortificar a ideia de covardia da personagem, fator bastante comum em quem tenciona assumir-se. Infelizmente a premissa interessante não é plenamente alcançada, mas A Bela Estação ainda funciona como retrato comum de muitas pessoas, assim como funciona belamente como um embate entre repertórios distintos.

  • Crítica | Ralé

    Crítica | Ralé

    Ralé 1

    Dependendo fundamentalmente da inserção do espectador em sua proposta, Ralé, ficção que usa alguns elementos documentais para fortificar seu texto é uma ode à anarquia e à parcela da cultura popular normalmente ignorada pelo público conservador e purista das regiões Sul e Sudeste do Brasil, iniciando sua narrativa a partir de um conhecido áudio que se tornou meme nos últimos anos, a diretora Helena Ignêz – realizadora de Feio, Eu? e prolífica atriz de Belair e Dejaloh – já demonstra o caráter de seu longa em sua introdução.

    O roteiro de Ignêz explora uma trama metalinguística, envolvendo a feitoria de cinema e teatro, aludindo à peça Ralé, de Máximo Gorki. Apesar do formato episódico, que se mistura entre um quadro e outro, nota-se um caráter de road movie, que discute o nada e o vazio da existência, versando através da abstração sobre ócio, criatividade, sexo e paixão.

    A tentativa de reinventar o formato pode até não ser alcançado, especialmente porque isso só é confirmado após uma análise distanciada temporalmente, mas o texto ensaísta funciona por tentar ousar em direção a uma arrogância dadaísta, exibicionista como o exercício fílmico dentro do roteiro.

    Na camada superficial, há algumas alegorias junto a Cecil Bem Demente, de John Waters, ainda que o escopo seja sob um olhar crítico, típico do analista de artes. A escatologia real faz assustar, especialmente pela entrega de alguns membros do elenco, como Ney Matogrosso, Ariclenes Barroso e Simone Spoladore, todos expressando o auge de seus talentos e corpos. Ralé trata fusão de tesão, anarquia, sexualidade e punk, em um formato que louva o cinema.

    RALÉ – Trailer from Mercúrio Produções on Vimeo.