Tag: cinema mexicano

  • Crítica | Roma

    Crítica | Roma

    Sempre explorando novos caminhos, o cineasta mexicano Alfonso Cuarón entrega esse ano pela Netflix o seu trabalho mais pessoal, Roma é um filme de resgate de memórias numa espécie de carta ao passado. Na intimidade de uma casa de classe média da Cidade do México no início da década de 1970, Alfonso nos apresenta Cleo, uma empregada jovem e bondosa, que trabalha para a família de Sofia.

    Sofia é casada com Antonio e juntos eles têm 4 filhos, porém problemas no relacionamento dos dois vai mudando as relações da casa enquanto Cleo precisa lidar com uma nova descoberta. A personagem criada pela estreante Yalitza Aparicio é de uma sensibilidade rara, sua Cleo é silenciosa mas fala muito só com o movimento de seus lábios nas tantas vezes que sorri.

    Como a narrativa, ela é delicada e absolutamente amável, suas feições comunicam de maneira sutil e por isso em momentos mais dramáticos ela se sai tão bem, é como presenciar um momento cru e real. E Roma caminha bem com sua protagonista tanto em clima quanto estética, Cuarón dispensa a parceria de sucesso com o fotógrafo Emmanuel Libezki e faz ele mesmo a fotografia do longa, além de também co-editar. E ele não poderia se sair melhor.

    O preto e branco cai com uma luva em cenários cheios e ostentadores, contrastes e silhuetas realçam uma atmosfera nostálgica encantadora e a câmera se movimenta ressignificando espaços e ações, sabendo muito bem balancear com planos estáticos de muito impacto narrativo. O longa mesmo que linear e sem pressa para revelar um grande plot, entrega momentos pontuais de pura carga emocional que ecoam na mente do espectador, cenas marcantes e que nascem clássicas na frente de nossos olhos.

    Roma é de fato uma obra muito especial, além de carregar entrelinhas questões sociais como relações trabalhistas e divergências de classe que nunca parecem gratuitas, mas sim naturais, o filme traz um dos retratos mais fortes sobre as circunstâncias de ser mãe e mulher. Cuarón cuida de memórias nessa sua nova empreitada e consegue enraizar sua narrativa em imagens contemplativas e de significâncias das mais abstratas. Uma bela experiência, daquelas que se agradece por acontecer.

    Texto de autoria de Felipe Freitas.

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  • Crítica | O Monstro de Mil Cabeças

    Crítica | O Monstro de Mil Cabeças

    A sabedoria popular aponta uma semelhança entre advogados e planos de saúde: em algum momento, será necessário utilizar seus serviços. Apesar da afirmativa em tom de anedota, os cuidados da saúde, bem como a assistência as leis, são bases que deveriam estar disponíveis para a população em geral. A realidade, porém, se difere deste conceito, e muitos procuram planos de assistência de saúde privados para suprir necessidades que os serviços públicos são incapazes de atender. Porém, não é raro notícias sobre pacientes que precisaram acionar a justiça para se valerem dos direitos adquiridos ao assinar um plano de saúde, despesa normalmente cara e nem sempre com a qualidade garantida quando é necessário utilizá-lo.

    Baseado no romance de Laura Santullo, que também assina o roteiro da produção, O Monstro de Mil Cabeças, de Rodrigo Plá, é um pequeno exercício narrativo sobre uma mulher a procura do tratamento adequado para o marido doente, e do quanto a burocracia e a ineficiência da seguradora deixa-os desamparados. Em geral, tem-se a impressão que um plano de saúde oferece total cobertura aos seus segurados. Porém, em procedimentos que necessitam de um custo elevado, cada paciente passa por uma análise do caso para terem o procedimento autorizado ou não. Uma burocracia que defende a empresa de sua perda financeira se autorizasse todos os procedimentos de seus contratantes.

    Vivendo em uma situação semelhante, em que a seguradora não aceita novos exames no marido, a esposa Lúcia escolhe uma medida drástica e usa a força e a violência para coagir a diretoria da seguradora a autorizar o tratamento do marido. Diante de uma situação de grave enfermidade familiar, em que há um desgaste natural das emoções, a burocracia surge como mais uma dor a ser enfrentada.

    O ato desesperado em cena revela o quanto o sistema de saúde desenvolvido nos tempos presentes está defasado. A violência imposta em cena, demonstra o limite que muitas famílias vivem, desamparadas ou pelo sistema de saúde do governo ou pelo plano particular que deveria cobrir adequadamente seus clientes.

    A breve duração do filme permite que a história seja bem desenvolvida sem que a ação se prolongue mais do que necessário. Transmite o senso de urgência e desespero da personagem que, diante de uma situação inaceitável, escolhe um caminho sem volta a procura de salvar o marido. Sem guardar grandes cenas para o final, o longa se constrói nessa tensão desesperada e insere, em diversos momentos, falas em áudio de uma audiência na justiça, antecipado os fatos antes das cenas finais. Um desfecho que, como é de se esperar, não é favorável para a família, principalmente após a violência.

    Ao antecipar o desfecho natural, a trama evita tratar o tema como um espetáculo em que o apelo dramático é ampliado de maneira exagerada, a procura de ganchos narrativos. Mas compõe um quadro de tensão crescente em uma análise ficcional que simboliza a falência da concepção do sistema de saúde atual, o qual repete a roda do mundo, massacrando valores sempre a favor de manter corporações enriquecidas.

    Simples em sua execução, mas com um interessante tema simbólico e necessário, O Monstro de Mil Cabeças é uma reflexão sobre os tempos presentes vividos no limite da sanidade.

  • Crítica | Todo o Resto

    Crítica | Todo o Resto

    A burocracia e a rotina acachapante são os principais motes de Todo o Resto (no original Todo Lo Demás), novo filme da diretora mexicana Natalia Almada, a mesma que conduziu a cinebiografia El General, sobre presidente mexicano Plutarco Elias Calle. Dessa vez, a história é conduzida a partir da vivência de Dona Flor, interpretada com maestria por Adriana Barraza, atriz que consegue reunir em suas características muito diferentes em sua performance como atriz.

    O oficio da protagonista é em um escritório burocrático, invertendo o lado de abordagem do vencedor da Palma de Ouro Eu, Daniel Blake. Seu caráter é bastante íntimo e certeiro, com detalhes bem acertados, em especial nos enfoques nos pés da personagem e nos enquadramentos que deflagram a alta idade da heroína, não tendo pudor em mostrar varizes, rugas e demais sinais corporais de idade avançada.

    Almada é econômica em recursos cinematográficos clichês, evitando fade outs, trilha sonora emotiva, etc. A realidade do filme é a pragmática, crua como é a vida fora das salas de cinema, falando sobre a solidão de maneira tocante, mas não poetizando a vida. A letargia da personagem, que percebe injustiças acontecendo bem ao seu lado dialoga muito bem com as mudanças sociais retrógradas que ocorrem com o cenário político mundial e que sofrem com pouca ou nenhuma resistência por parte dos que deveriam se opor a ela, em especial os ativistas que como Flor, acham que estão fazendo um trabalho correto e repleto de boas intenções.

    Flor tem uma ligação emocional bem intensa com o felino que cuida, aspecto esse curioso, por que ela se compadece do animal, mas não daqueles que a cercam. Essa característica por sua vez também faz referência a outro pseudo espectro político, normalmente de direita, daqueles que conseguem sentir piedade, dó e lástima por seres que não tem fala mas que não enxergam sequer a miséria que ocorre nas sarjetas de seus prédios de luxo. Flor, ao contrário desses citados, não tem muitas posses, fato que torna ainda mais contraditória sua atitude já que não há sequer a (péssima) desculpa de não ter vivência para entender a dor e flagelo alheio.

    Todo o Resto é um filme silencioso, fato que dificulta qualquer tentativa de catarse. A sensação de isolamento se transfere da personagem para o espectador, uma vez que não há para Flor com quem dialogar e não há para o visualizador para quem torcer. A burocracia do dia a dia parece ter matado qualquer possibilidade de sensação seja por romance ou por empatia do cotidiano, fato que faz uma das últimas cenas se tornar ainda mais cara, quando uma mulher desconhecida toca em seu ombro, de maneira despretensiosa, encarada por sua vez como um evento único para a protagonista. A ideia de criticar o sistema econômico vigente é alcançada com maestria, fazendo deste filme de Natalia Almada uma pérola em meio a cinematografia latina recente.

  • Crítica | Hilda

    Crítica | Hilda

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    Filme de Andres Clariond, o mexicano Hilda discorre sobre os desmandos de um patrão, focando em uma figura pitoresca para denunciar o abuso e assédio moral que membros das altas rodas normalmente impõe sobre homens e mulheres pobres, normalmente motivados unicamente pela possibilidade de o fazer sem maiores problemas além de alguns olhares de desprezo.

    A base do roteiro explora duas figuras principais, a primeira delas mostrada já no início, na figura da socialite entediada e um bocada desequilibrada emocionalmente Suzanne Lemarchand , magistralmente interpretada por Veronica Langer, uma figura carente por essência, que abraça qualquer possibilidade de rompimento com a monotonia e solidão extrema que a afligem. Em seu discurso, há uma fala que soa possessiva e mandatária, mas que esconde uma estranha necessidade de dependência de outrem, manifestada através da fala a respeito do nome de possíveis governantas, como “Hilda, eu nunca tive uma Hilda”.

    A personagem título é vivida por Adriana Paz. O “chamado” quase é recusado por ela, por medo de perder contato com seu marido e filhos, receio que obviamente é alcançado.O roteiro é baseado na obra de Marie N’Diaye, e explora questões graves, como a face ruim da globalização, a comum servilidade latina, mesmo em ambiente mexicano e o choque cultural entre enriquecidos e pobres. A mesma subserviência e troca parental vista em Que Horas Ela Volta? se manifesta neste de maneira jocosa, ainda que o caráter seja diferenciado.

    A questão de engajamento político dos personagem é utilizado como despiste, como mais um tentativa da mulher rica em driblar seu vazio existencial. A posse que a mulher impõe não é tão baseada em egoísmo, e sim em uma manifestação de solitude, assumindo através desse aspecto o caráter de comédia do filme, apesar até do espírito denunciativo, servindo como um Tempos Modernos de escalas e acidez menores que o clássico de Chaplin.

    A história paralela do filho de Suzanne é demonstrado como apenas uma distração pequena, já que todo o escopo da história passa pelos olhos da senhora, que pouco se importa com o destino do próprio rebento, ocupada sendo refém de sua insanidade, mantendo a demência viva através do sequestro que impôs a sua criada. Hilda mostra uma personagem digna de pena, que vive em um círculo vicioso, uma mulher incapaz de livrar-se dos vícios que a tornam um alguém tão distante de ser harmoniosa.

  • Crítica | Cantinflas: A Magia da Comédia

    Crítica | Cantinflas: A Magia da Comédia

    Começando com uma curiosa narração, que demonstra o panorama do cinema mundial nos idos de 1955, o filme de Sebastian del Amo diversifica a linguagem entre o inglês americano e o espanhol, numa co-produção repleta de referências a estrelas da sétima arte. O plot explorado é a difícil mega produção que adaptaria o romance de Júlio Verne, A Volta ao Mundo em Oitenta Dias. Após recusas de possíveis protagonistas para a película, surge o nome do humorista mexicano Mario Moreno – executado por Óscar Jaenada – que é um aspirante, ainda tímido, executor de esquetes de comédia.

    A trajetória de Mario rumo à tentativa de se tornar um sucesso é dividida em tela pela volúpia de Michael Todd (Michael Imperioli) em tentar reunir o maior número possível de estrelas para a fita que quer produzir. Pressionado pelo estúdio, Mike passa por dificuldades cada vez maiores em angariar verba para a produção de seu épico. Logo, os destinos dos dois protagonistas cruzam-se.

    Retornando ao passado, Mario observa como o humor pode retratar bem a sociedade, fazendo, inclusive, políticos famosos rirem de peripécias semelhantes aos descasos à máquina pública. O humor poderia ser uma ferina arma nas mãos de um excelente guerreiro, um método que foge do lugar comum no dever de denunciar as mazelas sociais. O roteiro de Del Amo é simples, didático, mas não trata seu espectador como bobo, pelo contrário, revela de modo leve e singelo a evolução de Moreno como palhaço. Após algumas experiências de vestuário, Mario dá luz a Cantinflas, sua persona que ficaria famosa por todo o México e que o levaria a ser uma figura importante do cinema latino.

    A fama de Cantinflas cresce tanto que, na época retratada de 55, o humorista se dá ao luxo de recusar um papel secundário no filme que Mike produz. A mudança de estilo de vida do artista é mostrada de modo gradativo. O Vagabundo Cantinflas ganha os palcos e as salas de cinema com as estreias de Aí Está o Detalhe! e produções posteriores, focando a capacidade de improviso do humorista e sua pouca afeição a seguir os roteiros de modo linear. O intérprete se transforma em um competente realizador e produtor, aclamado por crítica e público, lançando mão de bens materiais de alto custo, mudando completamente de patamar econômico.

    Cantinflas é uma cinebiografia focada nos atos que envolvem a criação de uma película fadada ao fracasso desde sua pré-produção, e que só conseguiu ver a luz do dia ao decidir entregar o protagonista ao personagem título, um indivíduo latino, naturalmente ignorado pela sociedade conservadora dos Estados Unidos, ainda mais na metade do século XX. A relação de Mario com Mike faz com que a relato de vida seja dividido entre ambos, na construção da improvável amizade que se arrastou pelos anos de vida da dupla, até o acidente que cerceou a vida de Michael.

    O filme de Del Amo consegue ser reverencial e informativo, num equilíbrio poucas vezes vistas no gênero, trazendo à luz um personagem importante do cinema mundial, mas pouquíssimo conhecido no Brasil. O acerto talvez tenha sido não o de retratar Mario Cantinflas como uma figura mítica, mas sim de forma mais humana, repleta de falhas, acertos e fracassos, ainda que sua obra seja prolífica e genial.

  • Crítica | Heli

    Crítica | Heli

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    O cinema político do mexicano Amat Escalante  que também realizou Os Bastardos e Sangre  ganha uma nova faceta, pois em Heli o diretor trata de uma comunidade mexicana assolada pela ação do crime organizado, usando uma família de pessoas comuns para demonstrar como é o modus operandi dos “marginalizados” e como é o status quo daquela parcela da população.

    Logo no início, o caráter da fita é explicitado, mostrando um veículo truck se movimentando pela estrada, com o foco da caçamba, onde observam-se dois corpos ensanguentados e caídos, sendo levados a algum lugar ainda não definido. A violência parece ser a linguagem universal, ligada (e muito) à humilhação, uma vez que o rapaz que está derribado tem a cabeça pisoteada pela bota de alguém.

    A câmera acompanha as atividades de uma família, mas isso é meramente ilustrativo, uma vez que tudo o que ocorre com estas pessoas é puramente genérico. As pesquisas demográficas são feitas com o intuito de “catalogar” a população, demonstrando a ausência de representatividade das pessoas que habitam o vilarejo mexicano e que buscam a ainda não encontrada identidade pessoal.

    As cenas mais mundanas, que mostram as interações entre os personagens, quase nunca são apresentadas com trilhas sonoras, sendo o seu registro realizado somente com som ambiente, que, aliado às cenas em handycam, faz com que tais sessões se assemelhem demais às imagens de um documentário. A influência estadunidense no arraial é explicitada nas cenas de treinamento dos jovens que servem as forças armadas. Os rituais da farda variam com as fases da puberdade de um dos cadetes, que gradativamente vai descobrindo as suas vontades, contrastando a volúpia sexual com o esforço pueril e juvenil de procurar alcançar as metas, o que denota uma nova faceta da possível sedução do inocente, completamente diversa da ideia de Fredric Wertham.

    A agressividade das imagens registradas chega a impessoalizar as “vítimas” daquela truculência, fomentando a discussão sobre até que ponto as pessoas que sofrem as violências mostradas são realmente “presas”, e o quanto o comportamento de cordeiro delas ajuda a aumentar o poder dos criminosos. Os personagens não são chamados por seus nomes quase nunca, como se suas personificações fossem uma tela em branco com espaço para encaixar-se em qualquer contexto social em que o receptor esteja. A intenção é gerar empatia; mostra-se gente comum como exemplo de que qualquer pessoa poderia sofrer aquilo.

    As atividades triviais são filmadas em planos muito fechados e detalhados, de modo quase claustrofóbico para quem está vendo — sensação maximizada ainda mais graças à grande tela do cinema. A rotina do personagem-título varia entre seus afazeres domésticos banais, seu cuidado com as mulheres da sua família  quase sempre de super-proteção , e sua dúvida em usufruir do comércio de bens ilegais. Este último visa mostrar a tentativa do protagonista de tirar os seus entes deste incômodo modo de vida, ainda que a origem do artefato ilegal não seja explicitada. Mesmo sem certeza, ele tenta se ver livre, mas tal investida de fuga falha miseravelmente e Heli é pego, sua casa é destruída, e a família, dilacerada.

    A ação dos mascarados em busca dos narcóticos é truculenta, e sua fúria é assassina e inconsequente, não tendo piores conclusões pelo acaso de não estarem todos os membros da família na residência. O modo como os facínoras se vestem faz lembrar a polícia, demonstrando em imagens qual é a real autoridade do lugar. A tortura que se segue é feita pelos criminosos desmascarados, sem qualquer medo de identificação, e mesmo os atos mais cruéis são encarados com naturalidade pelas crianças que fazem parte do bando.

    O desespero que acomete Heli não se caracteriza somente pelo medo da morte, mas também pela responsabilidade de ser, em determinado momento, o único homem da casa, papel este que ele deveria ter exercido desde que se tornou pai, mas que não o fez até então por acomodação. A responsabilidade batia à sua porta, na verdade a arrombava, como os bandidos fizeram, e ele não poderia mais negar tais deveres. Até as cenas de cunho sexual e expositivas remetem às suas necessidades infantis. A irascibilidade que predomina no lugarejo pede ações mais firmes do jovem pai de família. A visceralidade da obra relembra que os fatos mostrados em tela não são tão diferentes da realidade, e que em casos retratados como este a violência prevalece até sobre as pessoas, desumanizando-as através da banalidade de atos coléricos.

  • Crítica | Depois de Lúcia

    Crítica | Depois de Lúcia

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    Dirigida por Michel Franco, a película começa num ritmo morno, às vezes arrastado, mas que não é cansativa em momento nenhum. No princípio a câmera é estática e o espectador é convidado a vivenciar o cotidiano dos dois personagens principais: primeiro do Pai e, pouco depois, da Filha.

    A lente de Michel Franco é curiosa e seu manejo fala mais que os diálogos e situações. O ângulo mostrado tenta isolar os personagens, principalmente quando o lugar registrado é estranho a eles. Pouco da história pregressa deles é mostrada no início, os fatos são revelados aos poucos, o que se sabe é que algo terrivelmente grave aconteceu aos protagonistas. As relações familiares são mostradas de forma leve e a realização do filme é contemplativa, num tom quase documental em dados momentos.  Seus “heróis” tem sérios defeitos, não são bonitos ou vitimizados.  A forma como cada uma das pessoas reage à perda é única, essas formas são mostradas realisticamente e sem complacência. Uma das temáticas mais fortes é a diferenciação entre estar familiarizado a perda de um ente querido e se contentar com a situação. A superação da situação em si não necessariamente traz a felicidade, e o diretor explora isso muito bem dentro do roteiro através das situações propostas.

    Enquanto a reação do Pai é de ira e impaciência quando longe da filha, a de Alejandra – que só é chamada pelo nome lá para o meio do filme – é de difícil adaptação e distanciamento da realidade. Esse distanciamento faz com que suas reações relacionadas ao incidente a que é submetida sejam as piores possíveis, sua condescendência com quem emprega violência a ela, e a consequente docilidade e submissão fazem com que os atentados a sua auto-estima sejam cada vez mais frequentes, ao ponto dela questionar até o seu amor próprio. A transformação que ela sofre é perfeitamente cabível, pois a Filha preocupa-se em não atrapalhar a reabilitação de seu Pai – que parece, ao menos aos seus olhos,  começar a superar seus traumas.

    Os fatos que seguem com Alejandra e a abordagem escolhida pelo diretor é cruel e mostra uma realidade atual, forte e visceral, tudo nela é angustiante, as tentativas de fuga, a rejeição que só cresce a degradação gradativa do homem. A preocupação maior é em explorar o drama e não em poupar o espectador das situações fortes, e mesmo tocando em temas assim, passa longe da vulgaridade – artimanha que seria até compreensível, visto o caráter e gênero do filme.

    Depois de Lúcia é como uma tortura implacável, que em determinados momentos chega a ser cínica, mas que é exercida aos poucos, tratando primeiro de afeiçoar os personagens para depois jogar com os fatos que acontecem em suas vidas, e todas as consequências que estes geram. O suspense final e a desforra de um dos protagonistas é extrema, porém cabível e demonstra perfeitamente como uma tragédia – ou a sucessão de várias tragédias – podem modificar as pessoas. Demonstra de maneira crível como fatos traumáticos podem isolar os indivíduos, e fazê-los se abnegar em preocupação com aqueles que amam e que sobreviveram a tragédia.