Tag: Festival do Rio 2016

  • Crítica | A Serpente

    Crítica | A Serpente

    Adaptado a partir da obra de Nelson Rodrigues, e tendo seu elenco capitaneado pela mesma Lucélia Santos que anos antes havia feito Engraçadinha e Bonitinha Mas Ordinária ou Otto Lara Rezende, ambos de 1981, o filme de Jura Capela procura uma versão mais lírica da peça A Serpente, inclusive pegando emprestado sua estrutura narrativa.

    O longa de pouco mais de 70 minutos é todo registrado em preto e branco, o que busca captar a poesia e o lirismo da obra de Rodrigues. O cenário de início é hermético e contém elementos de uma linha do tempo bastante confusa entre passado e presente, ainda que as roupas e o estilo que procuram contar sua trama remetam claramente ao pretérito. Ademais, as paisagens demonstram uma intimidade enorme com a natureza e uma decadência moral vista nas ferrugens e na destruição que envolve os personagens.

    A trilha de rock faz diferenciar o filme de outras tantas adaptações de Rodrigues, jogando-o em uma esfera de modernidade poucas vezes vista neste tipo de exploitation. Os personagens Paulo (Matheus Nachtergaele) e as gêmeas Guida e Lígia (ambas vividas por Lucélia) protagonizam os arquétipos típicos rodriguianos, envolvendo em suas relações o incesto, relações proibidas, frigidez sexual e não rigidez em relação ao compromisso matrimonial.

    O filme proporciona em quem é aficionado pela carreira de Nachtergaele, e em especial de Santos, uma sensação de nostalgia e alegria pela boa performance de ambos, visto que Lucélia é pouco vista no audiovisual atualmente. Sua forma e talento seguem intactos e o desempenho da atriz é simplesmente magnético. Apesar de ser uma produção muito barata e de conter mais elementos teatrais do que cinematográficos, a direção de Capela soa inventiva e inteligente, conseguindo marcar em seus poucos minutos de tela todo o conjunto de sentimentos presente na obra original, reunindo ciúme, tragédia, amor e descontentamento sexual  de forma harmoniosa, causando em quem assiste a curiosidade para futuras obras de seu realizador.

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  • Crítica | O Que Seria Desse Mundo Sem Paixão?

    Crítica | O Que Seria Desse Mundo Sem Paixão?

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    Após um filme de qualidade e temática controversa – Introdução à Música do Sangue – o diretor Luiz Carlos Lacerda, decide dedicar seu tempo e trabalho para discutir uma situação fantasiosa envolvendo o encontro dos fantasmas dos escritores Lúcio Cardoso (Armando Babaioff) e Murilo Mendes (Saulo Arcoverde).

    As aparições variam entre o fantasmagórico e a paródia involuntária, já que a maioria das performances não é bem construída, não por culpa dos atores, uma vez que há participações de Tonico Pereira, Paula Burlamaqui, entre outros, ou seja, artistas consagrados por ótimas atuações em trabalhos anteriores. A questão principal se dá na direção pouco inspirada dentro das esquetes propostas.

    Os assombramentos que alguns personagens fazem a Murilo e Lúcio dialogam perfeitamente com o assombrar que ocorre com o público que tem o terror de consumir o texto fraco de O Que Seria Desse Mundo Sem Paixão?. A tentativa de ser poético não funciona, pelo contrário, os diálogos transbordam banalidade e didatismo, quando não são acompanhados por uma narração que pouco acrescenta ao roteiro.

    A performance de Patrícia Niedermeier destoa do todo, exatamente por alcançar tudo o que o filme não consegue, que é inspiração e combinação de atuação com o texto dito. Sua participação torna-se um desperdício em meio a um produto que é trôpego. As partes mais interessantes são os links com o cinema dos outros e não com os de Lacerda. A falta de naturalidade e fluidez compromete a suspensão de descrença do público.

    Outro fator positivo é a personagem de Natália Lage, que está deslumbrante ao trabalhar como uma mulher cambaleante e empática, arrebatadora em sua condição de extrema humanidade. No entanto, essa é mais um ponto fora da curva, como mais um acerto em meio a um gigante volume de erros.

    Lacerda é um diretor que ficou conhecido por suas participações como assistente de Nelson Pereira dos SantosRuy Guerra, e seus maiores méritos foram com filmes documentais. Ainda assim nos momentos que misturam ficção com alguma realidade as sequências são risíveis, principalmente a que põe frente à frente um dos escritores entrevistado por um crítico de cinema famoso. A cena é pensada com boas intenções, mas a execução é complicada e toda a composição soa equivocada, causando risos ao invés de emocionar por inspiração e reverência, sendo essa a o resumo da qualidade de O Que Seria Desse Mundo Sem Paixão? especialmente em suas complicações e extrema pretensão.

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  • Crítica | O Jabuti e a Anta

    Crítica | O Jabuti e a Anta

    Jabuti e a Anta

    Eliza Capai usa o poder que tem como cineasta e contadora de histórias para denunciar uma questão importante, usando o tema da seca em São Paulo como o ponto de partida. O Jabuti e a Anta varia entre as imagens do vazio dos reservatórios do sudeste brasileiro e a investigação das causas disso, indo até os rios Xingu, Tapajós e Ene, presentes no meio da Floresta Amazônica.

    O documentário se auto-intitula um boat movie, já que se vale da estética dos road movies, registrando grande parte das imagens com a câmera em cima de um barco. A reflexão do filme se baseia também na descrição dos ribeirinhos, que vivem suas vidas e as de sua família no leito desses rios. Para quem tem a mínima sensibilidade, é impossível não se comover com os relatos, não só em relação a sujeira terrível que invade a paisagem e a casa dessas pessoas simples, mas também nas consequências ecológicas de cunho irreparável.

    O desmatamento influi nas chuvas, a poluição da água faz com que os peixes fiquem mais raros e esse cenário influi na alimentação das pessoas e na sua principal fonte de sustento. O roteiro condena a face dura do capitalismo, que tem na predação o seu norte e que não vê qualquer necessidade fora o lucro. O ser urbano destrói o habitat, ignorando as necessidades que não lhe convém.

    O Jabuti e a Anta está longe de ter uma abordagem perfeita, mas ousa bastante ao apresentar as informações de modo dramático, inserindo emoção em cada segmento, fortificado por uma narração intervencionista de Letícia Sabatella. A função de estabelecer a voz para quem não é capaz de falar por si só, já que os holofotes estão longe dessa faceta do povo brasileiro.

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  • Crítica | Melhores Amigos

    Crítica | Melhores Amigos

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    A carreira de Ira Sachs como diretor normalmente toca em temas relacionados a questão da homossexualidade. Seus últimos dois filmes tratam de fases da vida bastante diferentes, sendo o último O Amor é Estranho, focado na relação de dois homens já maduros e no fim da vida, e Deixe a Luz Acesa um episódio sobre a juventude. Ambos tem a qualidade bastante questionável, em especial pelo uso contínuo de clichês, e seu novo produto Melhores Amigos também incorre na mesma questão chave, dessa vez usando crianças como parâmetro para seu drama.

    A história é contada a partir do cotidiano de Jake Jardine (Theo Taplitz), um menino de apenas 13 anos que se muda para a casa do avô recém falecido. Entre brigas familiares pelas posses do local, ele conhece Tony (Michael Barbieri), o filho da moça que tem uma loja na residência nova da família Jardine. Entre brigas com os pais das duas crianças e a descoberta do um amor dúbio, se constrói uma relação sólida em seus laços afetivos, mas confusa na direção que ela toma.

    A intenção por detrás do roteiro de Sachs e Maurício Zacharias é maravilhosa, uma vez que esse é um ponto-chave  da homossexualidade. Uma boa parcela da comunidade gay tem ou teve dificuldade de assumir sua identidade sexual quando muito jovem, mesmo que já tivessem certeza e consciência da orientação ainda cedo. O problema é a maneira nada sutil com que isso é retratado, não soando tão maniqueísta e simplória quanto em Deixe A Luz Acesa, mas ainda assim é rasa, não propiciando qualquer debate, nem gerando carisma nas personagens que façam com que o público se importe com os dramas mostrados em tela.

    Os erros do texto se assemelham muito aos vistos em King Cobra, filme de temática gay recente. Ambos tem posturas muito normativas e tratam o assunto central de maneira tímida, perdendo a oportunidade de escancarar o quão hipócrita é a sociedade com essa minoria e o quanto as pessoas excluídas realmente sofrem. A favor do longa, há o fato do script tratar os personagens masculinos como homens sem atitude, em especial o pai do protagonista, Brian (Greg Kinnear), que é um sujeito apático e ideologicamente impotente, que recebe ordens de toda e qualquer mulher que o cerca. Ainda assim, não há um trabalho para mostrar esse fator como um sintoma à quebra do patriarcado como força vigente na sociedade, ao contrário, o aspecto está lá exposto e não há maiores preocupações com ele.

    Afora o tom morno do filme durante toda sua exibição, há uma tentativa de emular filmes clássicos de John Hughes, ainda que a referência recente mais explicita seja a de Micróbio e Gasolina, de Michel Gondry, acrescido obviamente o fato do despertar sexual. Fatalmente o episodio recente da filmografia de Sachs soa menos inspirado e sentimental que o anterior, resultando em mais um produto que tenta chegar a um ponto de profundidade mas que não o alcança.

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  • Crítica | Galeria F

    Crítica | Galeria F

    História pessoal, contada por meio de um documentário que se insere no cotidiano de seu biografado, Galeria F é o novo filme de Emília Silveira, a mesma diretora do excelente Setenta, sendo este também um novo longa sobre a resistência contra o Regime Militar. Theodomiro Romeiro dos Santos começou a se envolver com a luta política quando tinha 14 anos e foi capturado aos dezoito anos, passando boa parte de sua juventude em cárcere e tendo declarada sua sentença de morte.

    O caminho percorrido pela câmera é o da fuga que ocorreu com o militante, reconstruindo cada um de seus passos até os lugares onde se hospedou quando estava foragido. Guga, seu filho, acompanha o pai e o ajuda nessa jornada de reconhecimento. O arquivo digital permite a diretora manter sua câmera ligada o tempo inteiro, fazendo finalmente seu objeto de análise sentir-se tranquilo para não mais atuar de frente das lentes.

    Os relatos de Theo as vezes fazem falhar sua memória, sendo essas lacunas preenchidas por seus amigos e companheiros de lutas, que estiveram no presídio Lemos de Britto consigo, além dos partidários do PCBR (Partido Comunista Brasileiro Revolucionário) que servem para testificar suas palavras. O outro lado do filme é focado em Guga, que é quase um co-protagonista. O herdeiro busca entender a psique do pai e a rotina que o fez chegar onde chegou e o testemunho do filho é bastante emotivo e compreensivo, mesmo quando seu pai era rígido com ele na juventude, entendendo que a adolescência de Theodoro lhe foi tirada ao ficar tanto tempo aprisionado.

    Silveira faz um mergulho profundo na vida de Romeiro dos Santos, inclusive mostrando rapidamente a proximidade dele com ACM – Antônio Carlos Magalhães – ex-governador baiano por três mandatos e coronel nordestino. No entanto, a fórmula de seu filme se esgota cedo demais, tornando-se pouco dinâmico e menos inspirado que Setenta, ainda que tenha bons momentos em sua projeção.

  • Crítica | Baden Baden

    Crítica | Baden Baden

    Começando por uma experimentação metalinguística pontual, para depois mergulhar no cerne de sua personagem principal, Baden Baden é um filme de Rachel Lang e conta a história de Ana (Salomé Richard), uma mulher que acaba de largar um emprego na produção de um grande filme belga após ser destratada por uma atriz, para passar um verão extremo, na sua cidade natal Estrasburgo.

    A câmera semidocumental de Lang além de compor uma bela filmagem, faz referenciar o comum dentro do cinema da Bélgica, usando somente imagens para prestar homenagens a sétima arte do país europeu. Além disso, há uma preocupação da diretora em traçar uma história bastante feminina, mostrando uma mulher que está caminhando para a vida adulta, ainda guardando características típicas da adolescência.

    Ana é como um gato, só se achega as pessoas quando quer carinho ou outros tipos de interação. A intimidade da moça só ocorre com pessoas que ela permite se aproximar, entre elas a figura familiar de sua avó, que no decorrer da história, falece, deixando nela um enorme vazio sentimental. As características felinas se intensificam após a perda do ente querido, tornando a protagonista em um ser ainda mais arisco, exceto é claro quando quer acariciada, fator que a faz ainda mais apaixonante.

    A construção do banheiro que a mulher tenciona realizar é curioso, e funciona como o catalisador de uma vida nova, já que o exercício para alcançar esse objetivo exige dela criatividade, ação e independência. Os paralelos simbólicos que o roteiro de Lang propõe soam tocantes, repletos da sensibilidade que foi mirada em O Fabuloso Destino de Amelie Poulain, mas sem toda a aura de filme pseudo-hipster, ao contrário, já que Baden Baden é econômico, enxuto e ainda assim bastante emocional e terno em toda a sua duração.

  • Crítica | Mulher do Pai

    Crítica | Mulher do Pai

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    Mulher do Pai é um filme que remonta uma questão básica, estabelecendo uma relação íntima e muito complicada entre filha e pai. Nalu, vivida por Maria Galant uma menina de apenas 16 anos, que está descobrindo como funciona a vida adulta, passando pela descoberta da sua sexualidade e dos desejos e anseios comuns a uma mulher e não mais a uma menina. Ela mora com o seu pai Ruben (Marat Descartes), um sujeito que ficou cego ainda jovem, e que por isso, necessita de cuidados especiais. O mote principal do filme de Cristiane Oliveira são as conturbadas questões a respeito da responsabilidade de tocar uma casa, variando entre o dever do pai e de sua herdeira.

    A ausência da figura materna causa na moça um amadurecimento precoce em algumas questões. É função dela alimentar o pai e cuidar da casa, ao passo que a mesma não pode dar vazão aos sentimentos sexuais que começam a despertar em si, já que seu pai a vigia até quando ela está no telefone com as amigas. A falta se agrava pelo fato de que Olga, a matriarca falecida criou ambos de maneira super protetora, causando na relação entre eles uma estranha ligação emocional, mais mutuamente fraternal do que paternal, variando também para uma posse carnal.

    Entre novos conhecimentos e descobertas, Nalu se percebe uma mulher parecida com a mãe, transformando a super proteção em um sentimento de possessividade, uma vez que sua maturidade não a faz capaz de lidar melhor com esse sentimento que não dessa forma. Uma das pessoas que consegue fazer ela lidar melhor com toda essa bagunça edipiana é sua professora, a progressista Rosario (Veronica Perrotta). Logo, a relação de mentora e pupila se modifica, passando a docente a ser uma figura que resume os ciúmes que a garota tem de seu pai.

    Oliveira consegue montar um filme cuja fotografia é bastante bonita, valorizando os cenários do sul do país – próximos a fronteira com o Uruguai – mas o emocional do filme não corresponde a premissa estabelecida. A boa ideia por detrás do argumento esbarra em atuações mornas, com um texto que não ajuda a desenvolver a complexidade que deveria ser esta remontagem brasileira da obra de Sófocles.

  • Crítica | Todo o Resto

    Crítica | Todo o Resto

    A burocracia e a rotina acachapante são os principais motes de Todo o Resto (no original Todo Lo Demás), novo filme da diretora mexicana Natalia Almada, a mesma que conduziu a cinebiografia El General, sobre presidente mexicano Plutarco Elias Calle. Dessa vez, a história é conduzida a partir da vivência de Dona Flor, interpretada com maestria por Adriana Barraza, atriz que consegue reunir em suas características muito diferentes em sua performance como atriz.

    O oficio da protagonista é em um escritório burocrático, invertendo o lado de abordagem do vencedor da Palma de Ouro Eu, Daniel Blake. Seu caráter é bastante íntimo e certeiro, com detalhes bem acertados, em especial nos enfoques nos pés da personagem e nos enquadramentos que deflagram a alta idade da heroína, não tendo pudor em mostrar varizes, rugas e demais sinais corporais de idade avançada.

    Almada é econômica em recursos cinematográficos clichês, evitando fade outs, trilha sonora emotiva, etc. A realidade do filme é a pragmática, crua como é a vida fora das salas de cinema, falando sobre a solidão de maneira tocante, mas não poetizando a vida. A letargia da personagem, que percebe injustiças acontecendo bem ao seu lado dialoga muito bem com as mudanças sociais retrógradas que ocorrem com o cenário político mundial e que sofrem com pouca ou nenhuma resistência por parte dos que deveriam se opor a ela, em especial os ativistas que como Flor, acham que estão fazendo um trabalho correto e repleto de boas intenções.

    Flor tem uma ligação emocional bem intensa com o felino que cuida, aspecto esse curioso, por que ela se compadece do animal, mas não daqueles que a cercam. Essa característica por sua vez também faz referência a outro pseudo espectro político, normalmente de direita, daqueles que conseguem sentir piedade, dó e lástima por seres que não tem fala mas que não enxergam sequer a miséria que ocorre nas sarjetas de seus prédios de luxo. Flor, ao contrário desses citados, não tem muitas posses, fato que torna ainda mais contraditória sua atitude já que não há sequer a (péssima) desculpa de não ter vivência para entender a dor e flagelo alheio.

    Todo o Resto é um filme silencioso, fato que dificulta qualquer tentativa de catarse. A sensação de isolamento se transfere da personagem para o espectador, uma vez que não há para Flor com quem dialogar e não há para o visualizador para quem torcer. A burocracia do dia a dia parece ter matado qualquer possibilidade de sensação seja por romance ou por empatia do cotidiano, fato que faz uma das últimas cenas se tornar ainda mais cara, quando uma mulher desconhecida toca em seu ombro, de maneira despretensiosa, encarada por sua vez como um evento único para a protagonista. A ideia de criticar o sistema econômico vigente é alcançada com maestria, fazendo deste filme de Natalia Almada uma pérola em meio a cinematografia latina recente.

  • Crítica | Xale

    Crítica | Xale

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    Variando entre o estilo ficcional e o documental, Xale é o primeiro longa-metragem de Douglas Soares, e elucubra sobre o passado de sua amada vó Araci Vanassian e uma viagem que ela fez pela Armênia. O diretor então viaja para o país europeu a fim de remontar os passos de sua antepassada, para entregar a ela uma homenagem antes que a mesma morra.

    Nessa ida ao exterior, o cineasta leva o xale de sua parente, que teria sido adquirido em solo armênio. Enquanto está em viagem, a câmera serve como os olhos de Soares, e é em uma dessas cenas, quando ele descansa, que o neto descobre a doença de Alzheimer  da sua figura de reverência, ainda que isso seja mais um elemento inventado para a trama.

    O enfoque na ternura funcionária à perfeição em um curta metragem menos ambicioso, uma vez que não há grandes discussões dentro do produto final, sobrando apenas uma bela forma com um texto que pouco diz, inclusive banalizando a única parte grave do mesmo, já que a doença sem cura de uma das personagens foi inventada para o argumento final.

    Xale tem uma fotografia bonita e mostra uma relação carinhosa entre os dois parentes, ainda que não haja qualquer conteúdo a discutir a partir daí. Ao menos o filme não é tão pretensioso, execução feito ao seu formato como dito antes. Vale pelos sentimentos universais mostrados nele e claro pela exposição de um conjunto de emoções que é organizado por uma equipe de poucos membros, além ter uma mensagem de inclusão sexual naturalizadora.

  • Crítica | Então Morri

    Crítica | Então Morri

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    Longa experimental, que conta a história de uma mulher comum através de gravações de outras pessoas igualmente populares, Então Morri toma para si um método documental para contar sua história pseudo ficcional. O pontapé inicial é a morte da personagem retratada, e sua trajetória passa a ser retroativa, com interpretes que emprestam suas próprias experiências de vida ao personagem de Bia Lessa e Dany Roland.

    Bia já havia trabalhado com o registro emocional de Maria Bethânia, em Carta de Amor, enquanto Roland usa seu repertório como fotógrafo para ajudar a posicionar a câmera de um modo que os relatos sejam os mais pessoais possíveis. A preocupação do roteiro não é de causar emoções baratas, mas sim de evocar empatia por meio de gravações do cotidiano de pessoas simples e humildes, resgatando o registro de seus dias corriqueiros, que fortalecem a ideia de partilhar um drama global e que resume a experiência de viver em um Brasil distante dos cartões postais.

    O som direto ajuda a dar um aspecto de autenticidade ao produto final, ainda que faça piorar a qualidade de som. A metalinguagem tencionada transforma até o aspecto da legendagem em uma elemento narrativo que prima mais uma vez pela universalidade na trama. O tempo dirá se este será um marco para o formato de documentários como aconteceu com O Diário de Uma Busca ou se a tendência não irá para frente.

    Então Morri mira um método de contar a história semelhante em partes com o visto em O Curioso Caso de Benjamin Button, no sentido de ser uma trama retroativa, embora sua linguagem seja muito menos melodramática e apelativa, além de ser este um exemplar econômico e certeiro quanto a emoções e gastos. O que Lessa e Roland fazem com tão poucos recursos é um exercício interessante, tocante e palatável tanto para plateias de gostos mais refinados quanto para um público menos afeito aos gêneros herméticos e documentais, resultando em um produto belo em tudo que se propõe.

  • Crítica | Nocturama

    Crítica | Nocturama

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    O novo filme de Bertrand Bonello – diretor de Saint Laurent – começa com uma tomada aérea, muito bonita visualmente mas que na prática, pouco acrescenta a história e a qualquer outra discussão. Esta primeira sequência é simbólica quando se trata da análise de Nocturama, uma vez que toda a trama mostra no longa envolve uma fotografia muito bela, cenários suntuosos, ambientes gourmetizados, jovens muito bonitos e uma burguesia pseudo-revolucionária que não aparenta ter qualquer consciência de classe, sobrando apenas a vontade de destruir o status quo sem um embasamento mínimo.

    O cineasta retoma o visual deslumbrante típico de sua filmografia, artigo esse que enriquece seu filme ainda que tente servir de despiste para os defeitos textuais do mesmo e claro a falta de conteúdo de discussão. Os ataques terroristas impingidos pelos jovens são registrados por uma câmera que poetiza cada ação e que romantiza isso, mas não faz qualquer julgamento do mérito ou da razão dos alvos e de quem ataca.

    Há uma tentativa de apelar para a ironia de mostrar meninos fúteis e amantes de músicas eletrônicas tentando destruir o conservadorismo urbano e europeu, a questão é que não há qualquer pensamento que meramente chegue ao ponto de se tornar uma substituição para as questões a serem destruídas. O consumismo que deveria ser derrubado é o mesmo que habita o ideário dos que causam algazarra, para ao final, aparentar ser somente mais um produto que louva a rebeldia sem causa e que acaba por banalizar as revoltas que tem uma base e pensamento político sólido.

    Nocturama é um retrato do terrorismo à moda burguesa, tentando ser um conto moderno sobre o que havia ocorrido na França durante a revolução do século XVIII, mas sem qualquer brilhantismo mínimo tanto ideológico quanto em qualidade de argumento. A inteligência dentro de seu texto mora em alguns poucos paralelos com o modo amedrontado com que a mídia retrata os perigosos infratores, quando na verdade são meninos inofensivos e fáceis de desarmar, assim como o deboche com algumas instituições justiceiras, mas ainda assim é muito pouco, em especial por essa história ocorrer em uma capital em que frequentemente ocorre esse tipo de destruição de vida, patrimônio e moral.

  • Crítica | Waiting For B

    Crítica | Waiting For B

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    Waiting For B. marca a estreia em longas metragens dos diretores Paulo Cesar Toledo e Abigail Spindel. O enfoque de ambos é nos aficionados por Beyoncé Knowles, que aguardam ansiosos pela apresentação da cantora. A condição financeiramente prejudicada deles os faz acampar por duas semanas próximo do local, a fim de conseguir um lugar à frente do palco.

    O registro e observação se diferenciam do comum por mostrar pessoas fanáticas pelo trabalho da artista, sobrando muita descontração por parte dos fãs e claro ensaios mil para se adequar as coreografias da integrante de Destiny Childs. Há uma micro comunidade improvisada ali, que faz ter uma convivência forçada entre pessoas que não se conhecem mas que tem muito em comum, além da mesma paixão pela artista e a classe social, há também um forte caráter de discussão, tanto em relação aos preconceitos vigentes ainda no movimento LGBT, quanto da questão do embranquecimento da dita diva, que aos poucos, se distancia da tonalidade escura original de sua pela – aspecto esse destacado pelos próprios fãs.

    É curioso notar que apesar de haver uma idolatria enorme a Beyoncé, não há uma adulação livre de senso crítico, ao contrario, os entrevistados tem noção do caráter inalcançável e até elitista da performancer, uma vez que ela não se permite relacionar de maneira íntima com seus fãs, sendo até chamada de recatada quando é comparada com sua contemporânea Rihanna, por exemplo. A escolha por não ignorar essa faceta engessada e careta da musa além de dar credibilidade ao filme gera dúvidas interessantes sobre os motivos que fazem o público LGBT normalmente abraçar uma personalidade tão afeita as classes mais favorecidas, que se vale do discurso popular para fazer sucesso e claro, capitalizar.

    O documentário de debruça sobre assunto tabus, usando para isso as falas dos próprios personagens, sem necessidade de panfletar ou fazer um estudo aprofundado sobre os diversos temas sociais. Como o acampamento é próximo do estádio do Morumbi, é natural que durante a espera de dois meses hajam alguns jogos do São Paulo Futebol Clube, e para os que esperam há um receio em demonstrar sua sexualidade homo afetiva, receando qualquer violência via intolerância.

    As partes que evidenciam o desespero por estar perto do ídolo são secundários e desinteressantes, quase um despiste para apresentar as histórias de pessoas que conseguiram encontrar sua identidade sexual por meio do exploitation ligado a dança e a cantoria da personagem em si. O intuito é exemplificar essa cultura, tanto que a figura central do show não é apresentada pela câmera e suas músicas só tocam por meio de versões curiosas, nunca os arranjos originais. Nesse ponto, Waiting For B é pleno em qualidade e apresenta uma quadro comum mas ainda assim necessário de se retratar.

  • Crítica | De Palma

    Crítica | De Palma

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    De Palma, documentário de Noah Baumbach (Frances Ha e Enquanto Somos Jovens) e Jake Paltrow (Sonhando Acordado e Os Mais Jovens) começa mostrando o diretor biografado explicando seu fascínio pela obra Um Corpo Que Cai, clássico absoluto de Alfred Hitchcock, diretor que seria reverenciado em praticamente toda a filmografia do autor americano. O filme seria todo narrado pelo personagem título, driblando qualquer possibilidade de monotonia que a premissa supostamente teria.

    Brian de Palma é um diretor normalmente subestimado, em especial quando é comparado aos seus contemporâneos da Nova Hollywood, como Martin Scorsese, Francis Ford Coppola, Clint Eastwood, Steven Spielberg etc. O filme se dedica a mostrar as carreiras que o cineasta pensava para si antes de decidir se tonar diretor de cinema e o faz de maneira bastante íntima.

    A riqueza do longa mora nos relatos de Brian, que discorre por exemplo sobre a larga parceira que estabeleceu com Robert DeNiro, desde Quem Anda Cantando Nossas Mulheres e Olá Mamãe, até a parte da carreira do ator onde o mesmo já era um astro, em Os Intocáveis, detalhando até os rompantes de vaidades do interprete ítalo-americano, que era bem mais exigente tanto em relação a cachê quanto em agenda, agindo como um mimado mesmo com o amigo de longa data.

    De Palma usa boa parte da sua exposição para explicar o seu fascínio pelo Split Screen, dividindo a tela para demonstrar através da justaposição de imagens múltiplos ângulos do mesmo momento ou a dualidade de espírito dentro da mesma história. A desconstrução da figura artística mostra um personagem rico, apesar de ser caráter de operário de cinema, louvando a entrega que o diretor faz em sua filmografia, carreira de vida pessoal, reverenciado também a visão incomum que o sujeito tem sobre a sociedade em geral.

    O roteiro explora também os erros da filmografia, além das recorrentes acusações de machismo, já que utilizava as mulheres como vítimas de seus psicopatas, ao produto quando não eram as próprias as figuras que impingiam o mal. O aspecto herdado dos filmes de Hitchcock é explicado de uma maneira até pueril por parte do sujeito, que não consegue enxergar em suas atitudes qualquer misoginia.

    Os méritos do filme residem em dar liberdade a Brian para falar, tanto quando o sujeito relata o lidar com tantas estrelas, quanto nas reclamações sobre o uso excessivo do CGI no cinema atual. No entanto, a parte mais emocionante está reservada para o final, onde se discute Passion, ultimo produto do biografado, tendo então uma comparação desses com os decadentes Frenesi e Topázio, onde o diretor aceita a pecha sobre si e afirma que praticamente não há cineasta que mantenha o bom nível após completar um jubileu. De Palma é um registro emocional, que não precisa tentar soar hermético para garantir um bom conteúdo, ainda que carregue em si uma veracidade digna da poesia da obra do objeto de estudo.

  • Crítica | Capitão Fantástico

    Crítica | Capitão Fantástico

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    Capitão Fantástico foi uma das grandes surpresas de 2016 após estrear no Festival de Sundance, ganhar o prêmio Certo Olhar em Cannes e na escolha do público no Festival de Roma.

    Ben educa sozinho seus seis filhos nas florestas do noroeste dos Estados Unidos, até que sua esposa bipolar morre em um hospital psiquiátrico e eles têm de enfrentar a civilização indo até o seu funeral.

    O roteiro do próprio Matt Ross – que também dirige o filme – se fundamenta em um preceito básico: o preço da liberdade. Educar os filhos por conta própria, o tão criticado homeschooling, tem se tornado cada vez mais comum nos EUA e em outros países da Europa, porém o roteiro subverte essa lógica ao apresentar a educação caseira baseada em uma difícil sobrevivência na selva, literatura clássica, cultura geral e política por um viés de esquerda.

    Outra subversão é a jornada de autoconhecimento que a família passa. Apesar de eles se acharem intocados pela sociedade capitalista fascista de consumo, é lá que eles encontram o conforto que tanto precisam, a sua família. Este é o ponto alto do roteiro, o choque da família com quem eles encontram no caminho, principalmente seus parentes, é o que deixa o filme cômico e mais interessante, e que servem à premissa da obra.

    Por último, outra discussão que a história levanta é a discussão política de toda a esquerda através da educação que Ben dá aos filhos, onde um é anarquista, outra é taoista, e, claro os marxistas. Neste ponto, o filme é pragmático ao mostrar que a educação caseira de Ben não passava de uma ilusão, e a ironia é a tentativa de proteger os filhos do convívio em sociedade ou quem sabe de perdê-los para outras ideologias.

    O elenco é outro ponto alto do filme. Viggo Mortensen é o grande nome e segura bem as pontas como um pai frustrado que tenta manter a família unida. As crianças estão todas bem, cada um a sua maneira; destaque ainda para a pequena e sempre ótima participação de Frank Langella.

    A direção de Matt Ross é consistente e o seu domínio da narrativa é visível, principalmente no começo da obra e até a sua metade. Ela cai um pouco de qualidade no terceiro ato ao focar no drama familiar e perder um pouco da discussão política, porém fez o dever de casa ao não esquecer da dramaturgia.

    A fotografia de Stéphane Fontane é naturalista e se destaca nas cenas da floresta, assim como e a edição pontual e bem cadenciada de Joseph Krings. Capitão Fantástico deve agradar quem busca uma história original e diferente que traz questionamentos relevantes para a discussão política na sociedade.

    Texto de autoria de Pablo Grilo.

  • Crítica | Holocausto Brasileiro

    Crítica | Holocausto Brasileiro

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    Baseado na obra homônima da Daniella Arbex, que co-dirige o filme junto a Armando Mendz, Holocausto Brasileiro é um documentário denunciativo, encomendado pela HBO Films que tratou de ir de encontro a escritora com o projeto de tornar em áudio visual o livro que já detalhava os causos do começo do século XX no Hospital Colônia, um reduto psiquiátrico que tratava doentes psíquicos em Barbacena-MG.

    Analisar o filme sem levar em conta a história contada no livro é exercício fútil. O Colônia era um lugar que mantinha seus pacientes em condições degradantes, igualando-os a detentos sem qualquer dignidade, tendo inclusive setores do hospital que não tinham qualquer trabalho de limpeza, onde os mentalmente prejudicados transitavam entre seus próprios dejetos, que não eram limpos por dias ou semanas tendo alguns que sequer se vestiam.

    A falta de cuidado causou números alarmantes de doenças e de descuidos múltiplos. Segundo os estudos de Arbex, 60 mil pessoas foram mortas. As entrevistas de ex-funcionários, parentes dos que lá ficaram e pessoas que orbitavam o local, causando empatia no público por sua questão flagrante e pelas denúncias comuns a tantos outros manicômios pelo Brasil, em especial pela polêmica questão do eletrochoque, fazendo a partir daí um diálogo interessante com o recente ficcional Nise – No Coração da Loucura, que também trata da questão.

    Aos poucos o documentário martela no imaginário do espectador a realidade de que as pessoas não iam para lá com a expectativa de serem curadas, e sim de serem levadas para longe do mundo são e normal. O ambiente naturaliza as mortes e enfermeiros e médicos se acostumam tanto com o óbito que passa a serem estes eventos dignos de anestesia. Era comum que ao internar um parente as famílias se mudassem, para não serem notificadas de absolutamente nada a respeito dos doentes.

    O cunho mais sério do filme mora na mercantilização dos internos, desde a vendas de ossadas e cadáveres para as faculdades – passando de milhares os números com registro em caixa – como também o trabalho forçado dos pacientes, que eram pagos apenas com cigarros, mesmo que algumas obras grandes tenham ocorrido com o esforço dos doentes.

    Holocausto Brasileiro é reverencial em relação a obra de Helvécio Ratton, Em Nome Da Razão, um curta que também se passava em Barbacena no hospital e que já demonstrava grande parte dos maus tratos que os debilitados sofriam. Há até um trabalho de reconstituição com os envolvidos na produção do curta de 1979 e com outros jornalistas que frequentaram o hospital quando estava ativo e a conclusão final do filme foge de qualquer hipocrisia ou consolo de alma, uma vez que compartilha a culpa das ocorrências na sociedade civil que não abria os olhos para os oitenta anos de exploração de seres humanos. Apesar de em alguns pontos apelar para um sensacionalismo leve e de ter uma métrica bem normativa, não há muito o que reclamar do conteúdo do filme, que faz refletir demais sobre toda a questão envolvendo o descaso com os menos favorecidos, além de servir de paralelo com os demais flagelos sociais que habitam o Brasil como um todo.

  • Crítica | Certas Mulheres

    Crítica | Certas Mulheres

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    Filme de Kelly Reichardt, o drama episódico Certas Mulheres (Certain Woman no original) mostra a vida de algumas mulheres que residem em Livingston, Montana. O filme ganhou notoriedade por estar na seleção do Festival de Sundance em sua edição de 2016 e contém um caráter feminista interessante, em especial em sua primeira história.

    O primeiro segmento mostra a advogada Laura Wells (Laura Dern), uma mulher inteligente e ótima profissional que se encarrega do caso de Fullher (Jared Harris), um operário que foi vitimado em um acidente de trabalho. O drama dela é que apesar dos muitos avisos, o cliente simplesmente não a ouve, demonstrando um velho clichê machista de se ignorar a voz feminina unicamente por ser a de uma mulher. Das histórias é a mais interessante, especialmente pelo atabalhoada final e pela química interessante entre Dern (melhor atriz do filme, alias) e o carente personagem de Harris.

    A segunda história é protagonizada pela premiada Michelle Williams (Gina Lewis), que com seu marido uma casa, tentando então conversar com Albert (Rene Auberjonois) para conseguir o terreno do homem idoso. Neste ponto, nada acontece, há pouca movimentação e toda a trama soa desinteressante, exatamente por não existir qualquer necessidade dos eventos ocorrerem daquela forma. Tudo soa frívolo e é aqui que o drama aqui cai de qualidade, se tornando moroso e cansativo, fator que chega a denegrir até o próximo evento, que envolve a professora Beth Travis, vivida por uma tímida e contida Kristen Stewart, e que sofre com a obsessão de Patty (Ashlie Atkinson), uma moça carente que só busca aceitação e empatia da mesma.

    O tomo três é mediano, bem melhor que o segundo, mas a esse ponto o todo já estava comprometido. É válido mostrar uma pessoa que tem uma obsessão pela outra sem necessariamente apelar para a violência ou agressividade, uma vez que esses fatores não acontecem sempre em questões de stalker. Próximo ao final, Reichardt resgata os personagens que deram certo e que funcionaram bem, conseguindo então um desfecho que é bastante digno para suas personagens femininas fortes, ainda que sua estética e o modo de contar história soe um pouco desinteressante, graças ao terço do meio de seu longa.

  • Crítica | Intolerância.DOC

    Crítica | Intolerância.DOC

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    Intolerância.DOC é um filme denúncia, registrado pela diretora Susanna Lira (de Levante e Damas do Samba), que investiga os crimes de intolerância geral, com o auxílio da DECRADI (Delegacia de Crimes Raciais e Delitos de Intolerância), que é o regimento único no Brasil especializado neste assunto. Os pouco mais de oitenta filmes se dedicam a tentar fazer o público entender como o ódio acumulado pelo diferente pode resultar em crimes e práticas hediondas.

    O primeiro secto estudado é o ambiente das torcidas organizadas, em especial as paulistas Mancha Verde e Gaviões da Fiel. Os torcedores palmeirenses e corintianos tem por tradição a rivalidade e também o confrontamento físico entre as partes. Nesse pedaço, a documentarista entrevista figuras de ambas torcidas e se debruça sobre dois casos famosos de torcedores mortos, primeiro um do Palmeiras e outro do time alvi-negro.

    Toda a brutalidade desses confrontos é muito lamentada, tanto pela produção quanto pelos entrevistados, mas é curioso ver o mesmo Jânio Carvalho que era presidente da Mancha lamentar a violência extrema, uma vez que no produto internacional e também documental Real Football Factories o seu discurso era inverso, de confrontamento mesmo. Apesar de o longa querer validar alguns pontos de inclusão tanto do esporte quanto da torcida, é absurda a diferença de discurso entre este produto e o exibido no documentário via ESPN.

    Os causos e denúncias melhoram um pouco ao destacar crimes de homo e transfobia, normalmente entrevistando pessoas de São Paulo, mostrando a metrópole não só como o lar de diversas tribos, mas também como um ponto de encontro para diversas ideologias extremas e fundamentalistas. A resistência e a entrega dos nomes dos culpados à polícia serve não só como tentativa de reparação, mas também como um grito libertário de quem apanha e sofre unicamente por ter uma orientação sexual diferente da maioria vigente. Essa barbárie é muito bem registrada pelas lentes de Lira.

    De todos os nichos investigados, o mais curioso é o presente no ambiente dos punks, mostrando os carecas do ABC, os grupos nazi-fascistas e claro os anarquistas e marxistas que habitam a cena e o movimento. Há entrevistados dos dois lados, tendo até a inclusão de bandas como Os Inocentes e Cólera entre imagens de arquivo e depoimentos diretos. Para quem não está acostumado ao movimento do punk rock, talvez soe estranho que as mesmas músicas inspirem tanto um discurso progressista quanto um reacionário, mas ambas segmentações de fato existem e são muito mais comuns do que se imagina. O que é realmente contraditório é o fato de um sujeito ouvir as letras que destroem o sistema e ainda assim associar todo esse cenário ao discurso de um militar autoritário como é o caso de Jair Bolsonaro, que durante o filme, é alçado ao papel de figura de governo adorável, por parte de um dos ex-skin heads que cometia crimes raciais e homofóbicos.

    A coragem dos cinegrafistas é sui generis, principalmente quando se inserem nos conflitos. A estratégia de embaçar as lentes ao mostrar os entraves é inteligente, pois deixa tudo turvo para que o espectador tire suas próprias conclusões entre um discurso e outro, pendendo é claro para o deboche e desconstrução de tudo que é ligado a extrema direita. Ainda assim, o ritmo de Intolerância.DOC cai vertiginosamente, ao ponto de parecerem dois filmes colados um no outro, além do que o repertório de sua diretora faz com que a expectativa em relação a detalhamento de informação seja menor, e mais econômica. A escolha estética não é necessariamente ruim e o filme está longe de ter uma temática boba, evidentemente, até por servir de voz a muitos excluídos, mas seu potencial de grandiosidade tinha tudo para levá-lo ainda mais longe.

  • Crítica | Austerlitz

    Crítica | Austerlitz

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    Experimento de Sergei Loznitsa, Austerlitz tem uma proposta e premissa interessantes, mas com uma execução bastante calcada no preciosismo. O documentário de aproximadamente 90 minutos registra os memorias do holocausto abertos ao público, que recebem muitos visitantes todos os dias, a fim de não esquecer os horrores ali ocorridos e que tais atrocidades não se repitam.

    O diretor de Minha Felicidade e Na Neblina acaba por denunciar um fato terrível, e a culpa por isso é compartilhada. A câmera do diretor se mantém estática em alguns pontos de um antigo campo de concentração que está sempre cheio de visitantes. Ao mesmo tempo em que uma minoria de pessoas horrorizadas com o ocorrido naquele lugar e que mal conseguem manter o equilíbrio emocional ali, há também uma maioria esmagadora de visitantes que tiram selfies perto dos objetos de tortura, tornando a dor alheia do passado judeu em um espetáculo turístico, banalizando por completo todo esse sofrimento.

    Esse holocausto comercial estabelecido no longa tem um caráter de desrespeito total com a memória do local e dos que lá sofreram. Ao mesmo tempo em que os funcionários tentam mostrar aos visitantes que ali muitos tiveram suas vidas encerradas ou destruídas, há uma clara alienação e ignorância por parte de quem por lá passa. O próprio fato de cobrar ingresso para a entrada neste local soa hipócrita, diante dos discursos inflamados dos guias, que não estão lá necessariamente para alertar sobre os causos, e sim para ser o norte turístico dos pagantes.

    A questão central é que Loznitsa registra toda essa atrocidade, mas não faz qualquer julgamento com sua câmera. Esse formato funcionaria perfeitamente em um filme curta ou média metragem, mas em um longa-documentário sua escolha não faz muito sentido dentro da proposta apresentada. Sua função de denúncia se esvai, sobrando um tom de banalização, ainda que em menor escala. Ainda assim, Austerlitz não é longo, mas é moroso e exige paciência de quem o vê, sendo bem desnecessário sua duração, apesar de seus 90 minutos de duração.

  • Crítica | Comeback

    Crítica | Comeback

    comeback

    Primeiro longa de Érico Rassi, e uma das poucas surpresas positivas na seleção da Premiere Brasil do último Festival do Rio, Comeback é um bom exemplar de filme de gênero brasileiro, focando-se no sub gênero de assassino arrependido e retirado da profissão. Nelson Xavier está muito inspirado no papel de Amador, um ex-pistoleiro que apesar da alta idade segue arredio e inconformado com o os ostracismo que sofre.

    Em tempos de vacas magras, sobra a ele a exploração de máquinas de caça-niqueis e a submissão a um antigo aliado, que teve uma sorte melhor do que a sua na terceira idade. Nesse contexto, ele conhece o personagem de Marco Andrade , o neto de um antigo colega seu, que o ajuda a estabelecer contato com uma equipe de cinema, que produz um filme baseado em histórias de assassinos brasileiros obscuros.

    No discurso de Amador há um evocar de saudosismo, não só lembrando os seus áureos tempos, mas também reafirmando seu caráter de homem insubordinável e que é a todo momento indagado sobre seus feitos no passado, por não aparentar ser um sujeito agressivo ou homicida. As cenas de Rassi habitam bares pé sujo e possui uma trilha sonora típica de filmes latino americanos. Esse aspecto paupérrimo ajuda a construir o caráter verossímil do filme, pondo-o em uma perspectiva de importância enorme.

    A discussão da velhice e obsolescência programada foge de qualquer exploração tanto de clichês de coitadismo comuns a filmes focados em personagens já velhos. A sucessão de fatos faz lembrar os interessantes e viscerais contos de Rubem Fonseca, tomando emprestado desse a crueza tanto dos momentos violentos quanto no silencio sepulcral dos personagens. A diferença básica entre o argumento é os contos do escritor é a localização de cidade pequena ao invés dos centros urbanos vistos em A Grande Arte, Lúcia McCartney e afins.

    Amador é um homem de poucas palavras, neste ponto se assemelha aos muito heróis de western spaghetti. O fato dele falar quase nada ajuda a manter uma aura de mistério sobre a veracidade de seus feitos, assim como faz o trabalho de som da equipe de Rassi se tornar ainda mais gritante quanto a suas boas qualidades. O comeback previsto no título ocorre de maneira elegante e discreta, mas ainda assim sangrenta e explicita em suas consequências, findando o filme com uma fuga lenta e poeticamente filmada, estabelecendo assim um tom agridoce nos momentos de recém saída da aposentadoria do anti herói. O estampido das armas ensurdece o espectador e tira qualquer dúvida sobre o fato implacável do autor das chacinas anunciadas em Comeback.

  • Crítica | A Mulher Que Se Foi

    Crítica | A Mulher Que Se Foi

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    Lav Diaz é um diretor filipino conhecido por dois fatos distintos, sendo o primeiro a investigação dos costumes e rotinas de seu povo, observando o todo com um olhar profundo e visceral e o segundo em registrar seus filmes através de durações enormes. A Mulher Que Se Foi reúne essas duas características, ainda que tenha uma duração de apenas três horas e quarenta e seis minutos. A história é baseada no conto God Sees The Thruth, But Waits, de Leon Tolstói, e é focada na personagem Horacia Somorostro (Charo Santo-Concio), uma mulher que é libertada após décadas de uma reclusão injusta, só tendo essa libertação após o assumir da pena da verdadeira culpada.

    Este primeiro fator segue um mistério ao longo do filme, assim como as motivações de Horacia uma vez que se vê novamente transitando pelas ruas e vias comuns. O costume do cárcere a faz ter um receio tremendo, influindo até no resgate familiar que ocorre a partir de suas ações. O re-encontros são acompanhado do pedido de que não espalhem sobre a sua saída da prisão, fato que esconde um segredo somente revelado ao final.

    Diaz mostra a periferia de uma cidade, tentando emular uma universalidade suburbana, mostrando que o drama ali mostrado poderia ocorrer em qualquer país sub desenvolvido e que é refém de um poder paralelo tão presente no cotidiano do homem comum. A jornada de Horacia é de completo reconhecimento e tentativa de resgate de seu antigo ethos, mostrando os re-concertos de seu núcleo familiar convivendo com mudanças drásticas tanto de seus herdeiros quanto de seu ideário já modificado pós estadia na cadeia.

    O roteiro se desenrola de maneira lenta, apresentando nuances em absolutamente cada sub trama. Mesmo personagens periféricos e normalmente relegados a um papel coadjuvante em filmes como esse são trabalhados de modo a se conhecer toda a sua intimidade em poucas falas e cenas em que estes estão em tela. O filme se debruça sobre homens e mulheres marginais, fugindo de qualquer maniqueísmo barato, ao mostrar mesmo os personagens que lançam mão do banditismo como pessoas passíveis de erros e de carências, humanizados ao extremos mas que não justificam seus atos.

    O fim dos arcos dos personagens são muitíssimo bem trabalhados, em especial a da prostituta transexual Hollanda (John Lloyd Cruz), que tenta agradecer os cuidados de Horacia fazendo algo que ela mesma não teria coragem para fazer. A Mulher Que Se Foi é um filme caro, profundo e que fala de maneira muito bela sobre o destino de uma mulher que se cansa de esperar seu destino melhorar, mirando uma abordagem que poetiza as tragédias inerentes a vida comum.

  • Crítica | Sieranevada

    Crítica | Sieranevada

    sieranevada

    Sieranevada mistura o modo clássico de contar histórias do cinema romeno, através da direção intervencionista de seu realizador Cristi Puiu com uma câmera intrusiva que se assemelha demais com o estilo de documentário fake conhecido por mockumentary. A história segue o dia de Larry (Mimi Branescu) um homem comum, de baixo auto estima e riso fácil que se submete a praticamente todas as ordens externas dadas a si. A trama toda se passa no dia do sepultamento de seu pai em uma tarde em que passará com a sua família.

    A questão é que ao chegar na casa de seus parentes, a família é mostrada em uma formação de loucos, com homens e mulheres tendo discussões ferrenhas a respeito de política, religião, militarismo e teorias da conspiração. O conjunto de personagens é diverso, tendo desde uma senhora idosa e marxista, que é esposa de um sujeito falador e inconveniente, que gosta de alfinetar os parentes por causa do conservadorismo que supostamente todos vivem, até um parente mais jovem que acredita em toda sorte de manipulação por parte dos Estados Unidos nos atentados ocorridos pelo mundo.

    O fato do drama ocorrer três dias após o ataque terrorista ao semanário de Charlie Hebdo faz acirrar ainda mais os ânimos, causando discussões homéricas, normalmente acompanhadas pelo riso franco de Larry, fator que faz o próprio público rir junto. O atraso do padre dá espaço a trama de quase três horas propicia uma série de entreveros moderados entre os parentes, onde tudo ocorre num espaço curto de tempo e em um espaço físico ainda menor.

    Próximo ao final, o ritmo cai e a comicidade idem, com um enfoque desnecessário em um personagem mal urdido e mal interpretado. Ainda assim, esta face da discussão matrimonial serve de exemplo para Larry, do que não seguir sendo um alerta para seu próprio cotidiano. Sieranevada tem altos e baixos durante sua longa exibição, mas acaba sendo um bom registro sobre a intimidade e identidade do homem comum de seu país e sobre a diversidade de pensamento de uma sociedade com a civilização já solidificada.