Tag: Matheus Nachtergaele

  • Crítica | Cabras da Peste

    Crítica | Cabras da Peste

    Cabras da Peste é uma comédia policial brasileira que brinca com os estereótipos das antigas produções de ação que passavam nas sessões na tv aberta, as mesmas que colocavam policiais de estilos completamente diferente juntos, valendo-se de choques culturais ou raciais para gerar atrito em meio a uma missão de difícil solução. O filme conta a historia de dois policiais franzinos, um nordestino e outro do sudeste que por forças do destino são obrigados a trabalhar juntos.

    Há dois cenários iniciais que o diretor Vitor Brandt (Copa de Elite e Historietas Assombradas: O Filme) apresenta: o primeiro é a cidade do interior nordestino Guaramobim, que tem em Edmilson Filho um policial voluntarioso e trapalhão chamado Bruceuillis Nonato, e outro local é na cidade, mostrando Trindade, um pacato burocrata, interpretado por Matheus Nachtergaele, obrigado a agir em campo contra sua vontade. Ambos são fracassados em suas missões e acabam unidos pelo desalento de não terem êxito como policiais sérios.

    O humor do filme se assemelha ao visto nos filmes de Halder Gomes, como Cine Holliúdy e Shaolin do Sertão. Gomes dirigiria o filme a princípio, mas ao longo do projeto se decidiu que ele assinaria a produção executiva. Ainda assim não é difícil perceber as marcas de seu cinema, seja no fato de não ter receio em usar sotaques e dialetos próprios de sua localidade, ou no escracho do humor físico, que por mais que seja primário não trata o espectador como bobo.

    O fator mais engraçado do filme é o excesso de informações desencontradas. As falas dos personagens são quase sempre incompletas, de modo que a percepção é sempre deturpada. O roteiro faz questão de deixar as situações ambíguas para provocar um humor de erros que, apesar de bem simples, é bem feito e combina bem com a abordagem proposta. Os diálogos lembram o nível de explicação das telenovelas populares, e esse fator resulta em uma boa mistura com os clichês de filmes e seriados policiais dos Estados Unidos.

    Cabras da Peste é charmoso, engraçado, tem um elenco que funciona de maneira entrosada, com uma química exemplar entre Nachtergaele e Filho. Brandt um filme que conversa bem com a comédia tipicamente brasileira, com temperos e referências aos filmes humorístico de Ivan Reitman e John Landis. Seus personagens são erráticos, engraçados e muito humanos. O longa é engraçado, direto, brinca bem com os defeitos e incongruências dos filmes de ação antigos, e o faz com um charme e tempero próprio do cinema de Halder Gomes.

  • Review | Diário de Um Confinado – 2ª Temporada

    Review | Diário de Um Confinado – 2ª Temporada

    Após a primeira temporada de Diário de um Confinado, o ator e produtor Bruno Mazzeo e sua esposa e cocriadora Joana Jabace resolveram mais uma vez mostrar um pouco da rotina do personagem Murilo. O primeiro de seis capítulos chama-se Desconfinando, e mostra as mudanças de hábitos durante a pandemia do novo coronavírus. O programa segue sendo bastante engraçado, fazendo piada com situações do cotidiano e dificuldades provenientes dos tempos atuais e anormais.

    Murilo continua neurótico e paranoico, com muitos problemas. Além dele, há o retorno de alguns personagens engraçados, como a psicóloga que Fernanda Torres faz, a vizinha Adelaide feita por Débora Bloch ou Matheus Nachtergaele, além de participações de Leticia Colin. As pessoas querem ter algum contato social com Murilo, mas elas esbarram nas inseguranças dele, que é um sujeito naturalmente surtado. Essa tentativa de interação demonstra um pouco da péssima forma de lidar com a pandemia que a maioria das pessoas ostenta, e serve de denúncia – embora obviamente o intuito da série seja fazer rir, e não desenvolver uma grande crítica social.

    Em circunstâncias comuns, o personagem principal poderia ser encarado como antissocial (não que isso seja um problema), mas nesse cenário, ele é apenas cauteloso.  Os seis episódios mostram mudanças grandes na rotina de Murilo, ele está diferente, e essa dinâmica é bem divertida, e como o foco do seriado sempre foi mostrar a vida de uma maneira leve e descontraída. Além disso, há um número menor de quebra da quarta parede. Mazzeo, por exemplo, não se revela como personagem, como foi no fim da primeira temporada.

    No final do ano de 2020, houve um episódio maior (45 minutos, mais que o triplo da média), falando a respeito das festas típicas dessa época, com forte cunho emocional e que explora os personagens da família de Murilo, desde as inseguranças de ter que lidar com uma tentativa de vida normal em meio a uma pandemia às tentativas de seguir em frente mesmo com um novo tipo de rotina. Diário de Um Confinado – 2ª Temporada consegue refinar o seu humor, e até inovar em sua simples proposta, dando novas camadas ao seu personagem principal, que  se despede bem do seu público, abrindo possibilidades de aventuras futuras.

  • Review | Diário de um Confinado

    Review | Diário de um Confinado

    Diário de Um Confinado é uma série feita para o streaming da Rede Globo, protagonizada e idealizada por Bruno Mazzeo, o mesmo que anos antes havia feito Cilada, com direção geral e co-criação de Joana Jabace. O programa tem como personagem um sujeito solteiro, solitário e paranoico, que tem 12 episódios para mostrar seu cotidiano, lidando com seus receios de contrair corona vírus e apresentando seus vizinhos, parentes, o terapeuta, e toda sorte de vida social on line, já que está obrigado a ficar isolado.

    Mazzeo vive Murilo Barros, um homem comum, cuja aparência não é tão diferente da que o ator e humorista  sustenta. Um sujeito de meia idade, barbudo, levemente fora de forma, embora não seja esteticamente fora dos padrões. Sua aparência desleixada visa emular a condição da maioria das pessoas confinadas durante a pandemia, e nisso, ela acerta demais.

    A trilha sonora é repleta de músicas populares, sobretudo de rock nacional incluindo a que abre o programa, AA UU dos Titãs,  executada a exaustão ao longo dos capítulos. Entre os temas mais abordados estão a propagação de fake news por redes sociais, hipocondria, dificuldade em fazer exercícios, a futilidade da vida social, reuniões impertinentes entre condôminos, e até a dificuldade que um solteiro tem em se relacionar numa época em que não se pode ter quase nenhum contato social.

    O elenco de apoio quase nunca interage com Mazzeo direta e pessoalmente, a não ser Deborah Bloch, sua vizinha de porta, e Matheus Nachtergaele, um conhecido que ele encontra na rua. Fora eles, participam Renata Sorrah, Fernanda Torres, Lúcio Mauro Filho, Luciana Paes, Lázaro Ramos, Arlette Sales entre outros, quase sempre aparecendo em vídeo conferencia, ou seja, sendo o grosso gravado na casa desses atores, uma vez que a temporada inteira foi gravada de maneira remota.

    O programa foi dividido em duas partes, tendo seis episódios liberados em um dia e o restante na semana seguinte. Na primeira metade, os temas fluem bem, mas aos poucos a formula se desgasta, e se percebe um cansaço da parte dramática, com muita repetição de situações limite, e piadas não tão inspiradas.

    Diário de Um Confinado serve bem ao serviço da metalinguagem, não só pela quebra da quarta parede que Murilo faz o tempo inteiro conversando com a câmera de seu celular e, portanto, com o público, mas também por conseguir mesmo com dificuldades apresentar uma historia original e engraçada com poucos recursos de cenários e de possibilidades. É uma boa distração, embora obviamente não seja tão escapista, já que lida o tempo inteiro com o incômodo tema da quarentena.

  • Crítica | Piedade

    Crítica | Piedade

    Claudio Assis é um diretor brasileiro muito elogiado, suas obras O Baixio das Bestas, Amarelo Manga e Febre do Rato são louvadas, e até mesmo seus filmes não tão potentes, como Big Jato, tem motivos para serem apreciados.

    Piedade começa silencioso, com o personagem de Matheus Nachtergaele sozinho, em casa, e logo mostra alguns estranhos vídeos à beira-mar, vindo da cidade que dá nome ao filme. Assis localiza sua câmera em lugares obtusos, busca ângulos incomuns que miram registrar sensações diferenciadas de seus personagens. Talvez de maneira inconscientes, essa forma mais “diferente” de registro tente compensar a clara dificuldade do filme em desenvolver seus personagens que se valem de frases de efeitos e atitudes enérgicas para se impor em tela.

    Piedade é alvo de desejos de grandes corporações e os moradores parecem não querer sair dali. Isso faz com que o filme tenha algumas semelhanças narrativas com Aquarius, de Kleber Mendonça Filho, embora sua abordagem não tenha nem de longe a mesma urgência. O cenário onde vive Sandro (Cauã Reymond), serve para exibir toda sorte de arte que ajudou a inspirar Assis. O complexo de cinema antigo misturado com casa de tolerância é sua chance de exibir um sem número de pôsteres de filmes antigos, e inclusive, em alguns deles o auto-referenciam, soando pretensiosa e bastante pedante. Para piorar aspectos que deveriam parecer comuns são registrados de modo artificial, o sexo é plastificado, e nem a tentativa de crítica a utilização do sexo comercial às escuras justifica a péssima construção visual e dramatúrgica. O casamento dos dois aspectos citados além de não combinar, faz se perguntar se as intenções do roteiro é o moralismo barato.

    Piedade tem muitos momentos contemplativos e expressionistas, com grande parte das cenas belíssimas, mas o roteiro simplesmente não acompanha o apuro visual, soando na maior parte do tempo frívolo. O resultado final é de uma versão aquém do cinema de Assis, graças também ao ritmo enfadonho e as críticas sociais que não passam da barreira do óbvio.

  • Crítica | Nina

    Crítica | Nina

    O mote do livro Crime e Castigo, de Fiódor Dostoiévski, é justamente o poder da consciência humana atuando sobre aquilo que é certo, e errado, na cadência das nossas vidas. Num contexto ainda mais urbano, e principalmente contemporâneo, Heitor Dhalia reavaliou em 2004 os conceitos da clássica obra soviética num apartamento de classe média brasileira, onde a jovem Nina (Guta Stresser), de personalidade difícil e intensa, vive uma vida conturbada junto a Dona Eulália, uma locatária exigente e controladora. Disso, forma-se uma convivência de indiferença, típica de cidade grande entre proprietário e inquilino, com claros sinais de hecatombe a qualquer momento; sensação essa extremamente presente nos filmes-gatilho de Dhalia.

    Quem viu O Cheiro do Ralo, ótimo exemplo com Selton Mello antes do ator ousar trilhar seus caminhos como diretor (se dando bem somente em O Palhaço) já notou o viés surrealista e misterioso que os filmes dele, quase que de uma forma inevitável, carregam desde o cerne das suas histórias até a forma vibrante que elas tomam, em tela. Abusando de paletas de cores mais frias e uma ambientação intimista pra isso, quase que kafkaniana nos sentidos mais amplos da palavra (o artista tem uma clara influência dos grandes escritores melancólicos), Nina revela-se um filme introspectivo não só em tema e visual, mas na constante apreensão que deles vertem, resultando num filme desavergonhadamente denso, noturno e caótico, ainda que seja um caos calado e bem representado, entre personagens desconectados entre si.

    O que realmente interessa no primeiro filme de Dhalia são as personagens, sendo elas as donas de um filme bastante humilde em suas intenções, e inocente no que usa para atingi-las, como o irreverente e inesperado casal que se forma entre a protagonista e um cego que ela acha na rua, vivido aqui por Wagner Moura. Denota-se assim a redenção que ela, após ter feito um ato de maldade consciente com o gato de Dona Eulália, aceita da vida, do destino que oferece-a uma chance de fazer o bem após a vilania proposital contra o pobre bichano. São essas personas, meros fantoches da vida e seus acasos que dá gosto de acompanhar ao longo de uma trama que não acha espaço para excessos, mas para acompanhar com curiosidade e uma certa acidez de significados os caminhos de pessoas comuns pelas ruas de uma metrópoles cinza e muitas vezes sem dignidade como São Paulo consegue ser com seus habitantes.

    Procura-se alguma leveza e alguma redenção na moral de uma história sobre desigualdade e culpa social, invadindo o que tem de humanidade nesses personagens desconectados, entre si: Em Nina, na velha, no cego, na prostituta… peões de um jogo perturbador onde cada movimento errado num tabuleiro de crueldades custa um pouco da sanidade, e da consciência limpa de cada um. Nina é a dramatização interessante de uma melancolia urbana solitária que muitos de nós já sentimos, e que teima a nos remoer. No caso, a moldar as próprias loucuras adjacentes de uma mulher sozinha e presa a uma ambientação (produto do meio, sobretudo) que não lhe dá nenhuma esperança, e que por isso mesmo, a induz a tomar soluções que dialogam com a própria obra duradoura de um Franz Kafka, ou de um Dostoiévski, e o próprio cinema de Heitor Dhalia propriamente dito. O cineasta não tem medo de enfiar o pé no drama pesado de vez, e se dá bem nos interesses que rondam o bom debute do seu estilo.

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  • Crítica | Zama

    Crítica | Zama

    Conduzido pela diretora argentina Lucrecia Martel, Zama conta a história de um oficial da coroa espanhola, no final do século XVII, nascido na América do Sul, que está no aguardo de ordens reais concedendo-lhe a transferência da cidade onde está para um lugar melhor. O personagem-título é interpretado por Daniel Giménez Cacho, que empresta seu semblante e trejeitos a fim de convencer o público da história que será contada.

    A reconstrução de época bem desenvolvida, faz um retrato detalhado do período, digno de filmes como Barry Lyndon de Stanley Kubrick. Os detalhes em cenários e maquiagens são belíssimos, assim como o uso de locações campestres e praianas, essa imersão ajuda o espectador a se ambientar não só com a época, mas também com o contexto histórico existente. Além disso, soa bastante acompanhar o homem fardado transitando em meio a uma terra que transborda sexualidade.

    Zama é um sujeito asqueroso, distante demais do ideal que se espera dos servidores da realeza. A questão é que grandes tramas ameaçam acontecer mas jamais chegam a ser concluídas. A rotina do homem é enfadonha, fato que tenta justificar a falta de ação e de eventos que minimamente chamem a atenção dos espectador. Os anos passam e a mensagem do rei nunca chega.

    No terço final uma nova trama aparece graças a morosidade das ordens reais. Após ser rejeitado por praticamente todos os governantes e demais pessoas da cercania. Seu nome cai em desgraça e correm boatos de que sua cabeça está a prêmio. Ao se aventurar com um grupo de soldados, ele sai em definitivo do estado incômodo em que estava para basicamente abraçar um estilo de vida muito diferente e repleto de provações diárias.

    A tentativa de movimentar a história é bastante tímida, e nos momentos finais a fotografia de Rui Poças passa a ser ainda mais valorizada graças as cenas externas. O advento do misterioso personagem de Matheus Nachtergaele, de identidade não definida é um sopro de carisma, mas é ainda mais tardia do que a virada que ocorre com o protagonista. Seu destino trágico se assemelha um pouco a proposta do filme, que pesa muito em seu caráter hermético.

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  • Crítica | A Serpente

    Crítica | A Serpente

    Adaptado a partir da obra de Nelson Rodrigues, e tendo seu elenco capitaneado pela mesma Lucélia Santos que anos antes havia feito Engraçadinha e Bonitinha Mas Ordinária ou Otto Lara Rezende, ambos de 1981, o filme de Jura Capela procura uma versão mais lírica da peça A Serpente, inclusive pegando emprestado sua estrutura narrativa.

    O longa de pouco mais de 70 minutos é todo registrado em preto e branco, o que busca captar a poesia e o lirismo da obra de Rodrigues. O cenário de início é hermético e contém elementos de uma linha do tempo bastante confusa entre passado e presente, ainda que as roupas e o estilo que procuram contar sua trama remetam claramente ao pretérito. Ademais, as paisagens demonstram uma intimidade enorme com a natureza e uma decadência moral vista nas ferrugens e na destruição que envolve os personagens.

    A trilha de rock faz diferenciar o filme de outras tantas adaptações de Rodrigues, jogando-o em uma esfera de modernidade poucas vezes vista neste tipo de exploitation. Os personagens Paulo (Matheus Nachtergaele) e as gêmeas Guida e Lígia (ambas vividas por Lucélia) protagonizam os arquétipos típicos rodriguianos, envolvendo em suas relações o incesto, relações proibidas, frigidez sexual e não rigidez em relação ao compromisso matrimonial.

    O filme proporciona em quem é aficionado pela carreira de Nachtergaele, e em especial de Santos, uma sensação de nostalgia e alegria pela boa performance de ambos, visto que Lucélia é pouco vista no audiovisual atualmente. Sua forma e talento seguem intactos e o desempenho da atriz é simplesmente magnético. Apesar de ser uma produção muito barata e de conter mais elementos teatrais do que cinematográficos, a direção de Capela soa inventiva e inteligente, conseguindo marcar em seus poucos minutos de tela todo o conjunto de sentimentos presente na obra original, reunindo ciúme, tragédia, amor e descontentamento sexual  de forma harmoniosa, causando em quem assiste a curiosidade para futuras obras de seu realizador.

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  • Crítica | Cidade de Deus

    Crítica | Cidade de Deus

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    As primeiras cenas do potente filme de Fernando Meirelles e Kátia Lund mostram uma galinha assistindo uma confraternização em forma de churrasco, na Cidade de Deus que daria título ao filme. A adaptação do livro homônimo de Paulo Lins é resumida a maestria nas sensações do animal que está prestes a ser abatido. As reações flagradas pela câmera intrusiva são praticamente as mesmas vividas por Buscapé, vivido por Alexandre Rodrigues, um morador da comunidade que serve de narrador e testemunha do crescimento, avanço ou retrocesso da comunidade carente.

    O roteiro de Bráulio Mantovani é prodigioso, e a estratégia de contar os dramas e causos cômicos por meio de pequenos contos é interessante. O primeiro deles, sobre o Trio Ternura serve não só  para mostrar os primórdios da comunidade, como também para mostrar como o destino cai sobre os personagens. A tragédia é apresentada logo após um assalto comandado por Cabeleira (Jonathan Hageensen), acompanhado de Alicate e Marreco e também dos meninos Dadinho (Douglas Silva) e Bené (Michel Gomes) . Um deles retorna a vida religiosa, longe dos infortúnios da vida de bicho solto, outro perece de maneira misteriosa e mostrada somente à frente, e outro morre à plena luz do dia, num combate com a polícia, a fim de servir de exemplo para todo e qualquer jovem da comunidade que buscasse na vida de bandido uma alternativa.

    As lições serviram para Buscapé, mas não para o cenário de comunidade carente em que se inseria a CDD. Os próximos dois capítulos falam sobre A História da Boca dos Apês, que por sua vez introduz a dupla que antes era criança e que cresceu, com Bené vivido por Phelipe Hageensen e o antigo Dadinho, que mudou sua alcunha para Zé Pequeno, sendo por sua vez interpretado de maneira icônica por Leandro Firmino. A Zé, restaria também um capítulo inteiro mostrando sua trajetória, falando não só sobre os primórdios da favela como também a fúria assassina dele mesmo quando ainda criança.

    A escolha por utilizar um personagem orelha serve muito bem ao intuito do ditatismo, ainda que as explicações sejam muito mais fluídas do que o visto nos engessados documentários corriqueiros. Há agilidade mesmo quando se informa e o rico detalhamento sobe a manufatura, linha de montagem e hierarquia do tráfico soam verossímeis, mostrando tudo em ricos detalhes, além de servir de denúncia por exibir o modo como a conivência da polícia convive com o cotidiano da comunidade.

    Grande parte do mérito de Cidade de Deus reside em seus diálogos cortantes e o espectro de realidade. Essa construção ocorre não só pelo estudo de texto que Mantovani fez, mas também o intenso trabalho com um elenco de não atores ou atores estreantes. A peça fundamental para que isso ocorresse foi Fátima Toledo, que se dedicou a tornar os interpretes naqueles personagens que viviam, a fim de que não houvesse qualquer possibilidade de suspensão de descrença nas pouco mais de duas horas de duração.

    Mesmo mostrando os marginais sob um ponto de vista humano e condizente com a realidade, o texto não cai na falácia de tornar os traficantes em pessoas heroicas. Zé Pequeno é um estuprador sanguinário e assassino, tão egoísta que é capaz de pôr perigo até o seu grande amigo Bené, enquanto o Mané Galinha (Seu Jorge) que começa como um sujeito íntegro e honesto, passa a financiar as fileiras do bando do Cenoura (Matheus Nachtergaele), instaurando assim uma guerra entre as duas turmas.

    O confrontamento presente nos vinte minutos finais de filme soa forçado em questão de oportunidade, por parecer muito conveniente diante de toda a aura de crueza com que o filme é conduzido, mas ainda consegue soar plausível diante da interessante mistura de fantasia com a dura realidade até atualmente em grande parte das favelas cariocas. Os estereótipos falaciosos são driblados por um roteiro dinâmico e a condução moderna e estilosa de Lund e Meirelles poriam Cidade de Deus em um patamar poucas vezes visto nas produções cinematográficas  brasileiras, ajudando também a inaugurar uma nova fase da retomada do cinema nacional pós Ditadura Militar ajudando a pavimentar o estilo alcunhado de favela movie.

  • Crítica | Mãe Só Há Uma

    Crítica | Mãe Só Há Uma

    Mãe Só Há UMa

    Após trazer um filme interessante e inclusivo, que tinha discussão presente em Que Horas Ela Volta?, a diretora Anna Muylaert volta sua carga dramática novamente para a duplicidade e para mensagens mais abertas, como antes trabalhado em Durval Discos. O título americano de Mãe Só Há Uma talvez faça mais justiça ao plot escolhido pela diretora – Don’t Call Me Son ou Não me Chame de Filho – já que até o título em português é um mcguffin, o que não é necessariamente um demérito, afinal tal aspecto acrescenta muito charme ao longa.

    A história narra a vida de Pierre (Naomi Nero), um adolescente no alvorecer de sua sexualidade, que passa seus dias entre as atividades comuns a um menino na puberdade, estudando, tocando em um banda de rock e descobrindo sua libido, bem como sua identidade de gênero. Em meio à construção do caráter enquanto adulto, e sem ligar para qualquer tentativa de bullying e de cerceamento de suas liberdades, o menino se vê envolto em uma trama de rapto, quando descobre que Aracy (Daniela Nefussi) havia sequestrado-o de sua família original, situação semelhante ao famoso Caso Pedrinho, que chocou a opinião pública, em 2002.

    Mãe Só Há Uma consegue se equilibrar entre dois adjetivos dissonantes, sendo tocante e aterrador simultaneamente: tocante por tratar de sentimentos profundos e caros de seu protagonista, muito bem enquadrado por Muylaert, e ainda mais inspirado na interpretação de Nero, que consegue resgatar nuances pouco comuns em tão pouco tempo de tela; e aterrador por mostrar a inclusão, tanto do rapaz em um mundo conservador e que certamente não o aceitaria em condições ditas normais, quanto de sua família nova, um ente que sempre foi querido, mas jamais conhecido. O choque de realidades se assemelha à colisão de dois mundos totalmente distinto, que levariam eras para se adequarem um ao outro, o que não impediria a relação forçosa entre as partes.

    Além da direção primorosa, que busca, através de planos tão longínquos quanto aproximados, resgatar toda a confusão sentimental ocorrida dentro da identidade de Pierre com a inclusão de um novo nome civil – Felipe -, fator este que faz tudo se confundir ainda mais, há um cuidado extremo do roteiro em não demonizar parte alguma. A nova família, governada por Matheus (Matheus Nachtergaele), Gloria (também vivida por Nefussi) e seu irmão Joca (Daniel Botelho), encontra no ansioso retorno do filho pródigo uma gama de emoções completamente distintas para cada um, incluindo afronta, rejeição pura e empatia, com cada uma dessas sensações trabalhadas muito profundamente e em tempo recorde, mesmo com a curtíssima duração do filme, de apenas 82 minutos.

    As reações dos personagens são plenamente cabíveis, ainda mais no mundo contemporâneo, onde há o embate do grito por representatividade, de quem sempre foi posto à força dentro do armário, contra a onda de conservadorismo vigente e crescente inclusive na política. A agressividade de Matheus não é dada como certa por parte do julgamento da câmera, mas é naturalizada, uma vez que há muitas pessoas que pensam e vivem como este personagem, assim como é plenamente justificável a rebeldia causal do menino em questão, que não perde somente sua figura materna primordial, mas também sua irmã, retirada de seus braços e de suas vidas para talvez nunca mais reencontrar seu fraterno.

    Levando-se em conta o tema proposto, Mãe Só Há Uma consegue evocar uma construção de identidade bastante sólida, com um personagem de idade breve, que ainda está buscando seu ethos, mas que ainda assim é muito forte em suas decisões e seguro em relação às manifestações de quaisquer de suas animosidades. O personagem mostra um instinto de sobrevivência enorme ao sobrepujar a crise em que vive, crescendo a despeito dos reclames daqueles que deveriam e poderiam ser seus mentores. Pierre se mostra um rapaz em constante evolução, mas que não muda nem suas raízes, nem as companhias habituais, mudando de habitação mas sempre ligado à mesma tribo. O desfecho ainda conta com uma cena singela e acalentadora que fecha com primazia todo o drama em volta da nostalgia e saudade que o menino sente, colocando-o merecidamente na posição de mentor, e não mais como aluno.

  • Crítica | Big Jato

    Crítica | Big Jato

    Big Jato

    Localizado em Peixe de Pedra, cidade fictícia do interior de Pernambuco, Big Jato é a nova empreitada de Claudio Assis, após quatro anos de seu último e elogiado filme Febre do Rato. O longa, que estreou em 2015 ainda no Festival de Brasília, conta a história baseada no livro homônimo de Xico Sá e adaptada, mais uma vez, por Hilton Lacerda (diretor de Tatuagem), antigo colaborador de Assis. A história é focada no menino Chico (Rafael Nicácio), rapaz jovem que tem pretensões de ser poeta ao lado de duas figuras mentoras, seu pai Francisco, chamado de velho por seus hábitos turrões, e seu tio Nelson, um bon vivant nato, ambos vividos por Matheus Nachtergaele.

    A câmera de Assis emula a trajetória do caminhão, trêmula como o balanço do veículo a percorrer as estradas maltrapilhas e sem asfalto do interior. O amor do menino por esse tipo de vida contradiz de certa forma seus sonhos de arte, já que representa um estilo de vida mais bruto, semelhante ao trabalho de seu pai, um desentupidor de fossas, com as quais se habitua a viver em meio ao forte cheiro. Além disso, referencia o tempo todo a poesia que habita o ideal de Chico por meio da participação de Jards Macalé, que interpreta o viajante Príncipe.

    O argumento brinca de referenciar opostos, mostrando o trabalho como caminhoneiro em oposição à divulgação da arte pelo Nelson e contrapondo o trabalho do esgoto e a máquina de escrever do filho, que representa o viver do artista e o asco do patriarca pelo estilo de vida bonachão. Entre o trabalho braçal e o amor pela boemia em paralelo, as duas características representam a alma tipicamente brasileira, que carrega uma liturgia religiosa e conservadora, ao mesmo tempo que dá vazão ao comportamento despreocupado como resposta para o stress diário de uma rotina em busca de dinheiro.

    A filmografia de Assis brinca com a imagética, e Big Jato não é exceção, apresentando dois lados distintos até mesmo dentro da casa do clã principal. Enquanto o velho Francisco realiza o trabalho braçal no esgoto, sua esposa, vivida por Marcela Cartaxo, vende perfumes, mostrando um choque de ideais em seu seio familiar. A intriga está no cerne do pensamento do protagonista e biografado, inclusive pela diversidade de modos, maneiras, sexualidade e vocações entre os seus irmãos.

    Há uma rejeição ao nome e a filmografia do diretor, graças especialmente às polêmicas em que se meteu, principalmente em 2015, no incidente em que ofendeu Anna Muylaert, diretora de Que Horas Ela Volta?. No entanto, a exemplo de Amarelo Manga, este longa não possui as falhas de caráter de seu realizador, ao contrário, transparece sim uma tocante sensibilidade, que consegue poetizar temas pragmáticos como a economia moderna em colapso, trazendo, através de lirismo, uma trajetória bela e prosaica.

    Big Jato habita o mesmo limbo dos filmes anteriores de Claudio Assis, reunindo a contemplação típica do novo cinema pernambucano, representando a cena de seu estado por meio de uma mistura entre ardor verborrágico e fantasia moderada, arte e vida simples do trabalhador ordeiro. Obra que trata de maneira interessante o ideário de Sá através de poemas, trovas e versos.

  • Crítica | Trinta

    Crítica | Trinta

    Trinta

    Uma das maiores festas populares no Brasil, o Carnaval se consagrou como um típico produto de nossa cultura, representado em diversas manifestações pelo país. Símbolo de nossa nação, as festividades, principalmente os desfiles das escolas de samba no Rio de Janeiro, são um atrativo para turistas de várias partes do globo, que vêm assistir a esse espetáculo visual e musical. A representação histórica e cultural do carnaval afeta até os não-carnavalescos que reconhecem sambas-enredo populares, como Chiquinha Gonzaga e seu “abre alas”, ou recordam-se de nomes das escolas mais consagradas, uma parte de nossa cultura inegável.

    Aos apreciadores que ainda têm paciência para assistir, noite adentro, às transmissões de cada escola – ou aqueles que se dedicam à tarefa de ver in loco as apresentações – sabem que cada desfile é trabalhado com cuidado, em cada ato de sua composição, na tentativa coerente de unir música, imagem e teatralidade. Durante a evolução dos carnavais, a tecnologia adentrou a passarela, e consequentemente um investimento cada vez mais alto foi necessário para as realizações dessas apresentações repletas de cores e adereços.

    O carnaval como objeto de uma cultura também passou por transformações e aprimoramentos. Nas visões de profissionais que visavam o lado mais belo dessa celebração; personagens que dedicaram uma vida à passarela e foram capazes de marcá-la pela inovação.

    A produção Trinta biografa a vida de um dos carnavalescos mais conhecidos pelo público. Joãozinho Trinta se tornou um dos grandes inovadores do carnaval, com uma capacidade criativa de misturar culturas diversas na passarela e promover rupturas nos contornos tradicionais da época. O roteiro de Joana Mariani, Matias Mariani e Paulo Machline é bem amarrado e concentra-se em dois períodos temporais que apresentam a trajetória de João, um recorte bem delineado que evita os excessos de biografias que abarcam a vida toda da personagem central.

    Como parece tradicional em roteiros baseados em vidas reais, uma cena chave abre a história em um momento de transição na vida de Trinta, quando aceitou ser o carnavalesco da Salgueiro. Porém, diferentemente de outras biografias que apresentam apenas uma cena e retornam a um início cronológico, há um ato breve que antecipa as tensões que promoveram o artista ao cargo citado. E, assim, a trama retorna à década de sessenta, quando João vai ao Rio de Janeiro tentar a carreira de bailarino. Mesmo selecionado para o Corpo de Baile do Teatro Municipal, o dançarino de pouco mais de um metro e cinquenta sentia-se inferiorizado por não ser a estrela dos espetáculos. A ausência de destaque é o primeiro passo para adentrar os bastidores e, ao lado do cenógrafo Fernando Pamplona, iniciar uma carreira na cenografia e nos figurinos, onde poderia brilhar de outra maneira.

    O teatro deu a experiência base para Trinta, um fracasso que o levou ao carnaval, em 1973, escolhido para produzir o desfile da Salgueiro. Selecionar seu primeiro desfile como desenvolvimento narrativo é suficiente para apresentar a personalidade do biografado e, ao mesmo tempo, retratar as tensões de produzir um evento de grande porte. Em cena, Matheus Nachtergaele retrata a delicadeza natural e a fúria perfeccionista deste homem desacreditado por boa parte da comunidade local, vivendo na pele o preconceito por ter sido bailarino, mas ciente de sua própria capacidade inovadora. O personagem João revela-se um homem erudito, que não via a festividade do carnaval somente como uma manifestação popular: comparava-o a ópera, produzia acessórios com profunda pesquisa de outras épocas e temas, criando figurinos, adereços e afins que apresentavam facetas múltiplas pelo jogo intertextual. No desfile escolhido para este filme, Trinta retomava as histórias orais afrobrasileiras em meio a um universo da corte francesa. Uma mistura que se tornou inovadora na época e, em futuros anos, foi superada pelo próprio autor em outros famosos desfiles, tanto pela Salgueiro quanto pela Beija-Flor.

    A tensão de realizar um bom carnaval excede a figura do biografado e, mesmo sutilmente, demonstra que por trás da beleza há sistemas duvidosos que sustentam financeiramente o carnaval quanto um grupo dedicado em produzir arduamente um espetáculo, que será apresentado em um breve espaço de tempo. Uma concisão também presente neste filme, que seleciona um excelente recorte da vida da personagem, no espaço de transição entre João, um bailarino frustrado e aderecista, para o carnavalesco Joãosinho Trinta. Uma obra que narra uma boa história e demonstra a popularidade do carnaval.

  • Crítica | Serra Pelada

    Crítica | Serra Pelada

    80 - Serra Pelada

    Depois do fracasso de 12 Horas (Gone) em Hollywood, o cineasta Heitor Dhalia volta ao Brasil com o longa Serra Pelada, que conta a história, de dois amigos, situada dentre a loucura desencadeada pela descoberta de ouro no interior do Pará. No início da década de 1980, o complicado Juliano (Juliano Cazarré) e o professor Joaquim (Júlio Andrade) decidem sair de São Paulo e ir atrás da riqueza do ouro em Serra Pelada logo quando há a descoberta do metal na região, na tentativa de enriquecerem e mudarem de vida, mas logo verão que as condições para isso acontecer serão mais complicadas do que pensavam.

    Partindo de uma perspectiva intimista e situando dois personagens comuns em meio a uma história recente e de drama social do país, Dhalia se utiliza de toda a qualidade técnica que o cinema nacional agora dispõe, desde a captura de som, que chega a incomodar tamanho o volume do som ambiente, (como alguém engolindo um líquido, tão alto quanto a conversa no local) até a ambientação, o set, o figurino e a locação, passando um realismo que confere bastante credibilidade ao espectador. O uso da narração também é questionável, pois as informações apresentadas (como os nomes dados a cada etapa e responsável pela produção do ouro) poderiam ser inseridas no contexto de outra forma, menos direta. Porém, parece que a escola Tropa de Elite ainda é muito forte e deixou marcas nesse aspecto.

    Quanto às atuações, os maneirismos dos protagonistas são contidos e poucos estereótipos são usados, o que vale um ponto extra em se tratando em uma produção filmada na região norte. Com exceção dos homens feminizados e tratados como as mulheres do acampamento de forma muito simplista. A participação de Wagner Moura como um dono de “barrancos” de exploração de ouro também é interessante. Excelente ator que é, consegue garantir boas participações, mas às vezes exagera nos maneirismos na tentativa de caracterizar seu personagem, como em uma cena em que mastiga compulsivamente, com uma captação de som altíssima, prejudicando o entendimento de suas falas.

    Porém, o desenvolvimento da história e dos protagonistas, que no início é cativante, passa a ser cansativa pela excessiva vontade do diretor em nos mostrar cada detalhe de cada transição, deixando de lado a interpretação, em um vício muito comum do cinema nacional, que tem dificuldade em separar-se da narrativa novelesca da televisão. Com isso, as duas horas do filme soam desnecessárias, já que o segundo ato perde muito tempo em montar situações repetidas para estabelecer fatos que já soam claros ao espectador, o que prejudica a narrativa final e o desfecho.

    Também faltou uma caracterização maior do restante da população trabalhadora de Serra Pelada. Não os paulistas de classe média como os protagonistas, mas também o miserável, explorado que não consegue sucesso e não consegue enriquecer tão fácil como o filme pode deixar enganar. Faltou um espaço maior a esse cidadão comum, que é retratado de forma simplista, sob uma perspectiva do sudeste e do asfalto, que não entende o drama desse povo, que é mais do que um mero coadjuvante tendo destaque somente em cenas de brigas de bar.

    De maneira geral, Serra Pelada inicia bem, introduz personagens reais em uma situação real, mas foca demais em duas pessoas e suas tragédias pessoais, que pouco a pouco vão fazendo o tal realismo do filme se perder em meio a tantas reviravoltas que soam artificiais, enquanto a questão social do garimpo, focada timidamente no início, vai sendo deixada cada vez mais de lado. Apesar de uma iniciativa interessante, ainda falta maturidade ao cineasta em saber criar narrativas menos maniqueístas e com personagens mais profundos.

    Texto de autoria de Fábio Z. Candioto.