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  • Crítica | Cidade de Deus

    Crítica | Cidade de Deus

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    As primeiras cenas do potente filme de Fernando Meirelles e Kátia Lund mostram uma galinha assistindo uma confraternização em forma de churrasco, na Cidade de Deus que daria título ao filme. A adaptação do livro homônimo de Paulo Lins é resumida a maestria nas sensações do animal que está prestes a ser abatido. As reações flagradas pela câmera intrusiva são praticamente as mesmas vividas por Buscapé, vivido por Alexandre Rodrigues, um morador da comunidade que serve de narrador e testemunha do crescimento, avanço ou retrocesso da comunidade carente.

    O roteiro de Bráulio Mantovani é prodigioso, e a estratégia de contar os dramas e causos cômicos por meio de pequenos contos é interessante. O primeiro deles, sobre o Trio Ternura serve não só  para mostrar os primórdios da comunidade, como também para mostrar como o destino cai sobre os personagens. A tragédia é apresentada logo após um assalto comandado por Cabeleira (Jonathan Hageensen), acompanhado de Alicate e Marreco e também dos meninos Dadinho (Douglas Silva) e Bené (Michel Gomes) . Um deles retorna a vida religiosa, longe dos infortúnios da vida de bicho solto, outro perece de maneira misteriosa e mostrada somente à frente, e outro morre à plena luz do dia, num combate com a polícia, a fim de servir de exemplo para todo e qualquer jovem da comunidade que buscasse na vida de bandido uma alternativa.

    As lições serviram para Buscapé, mas não para o cenário de comunidade carente em que se inseria a CDD. Os próximos dois capítulos falam sobre A História da Boca dos Apês, que por sua vez introduz a dupla que antes era criança e que cresceu, com Bené vivido por Phelipe Hageensen e o antigo Dadinho, que mudou sua alcunha para Zé Pequeno, sendo por sua vez interpretado de maneira icônica por Leandro Firmino. A Zé, restaria também um capítulo inteiro mostrando sua trajetória, falando não só sobre os primórdios da favela como também a fúria assassina dele mesmo quando ainda criança.

    A escolha por utilizar um personagem orelha serve muito bem ao intuito do ditatismo, ainda que as explicações sejam muito mais fluídas do que o visto nos engessados documentários corriqueiros. Há agilidade mesmo quando se informa e o rico detalhamento sobe a manufatura, linha de montagem e hierarquia do tráfico soam verossímeis, mostrando tudo em ricos detalhes, além de servir de denúncia por exibir o modo como a conivência da polícia convive com o cotidiano da comunidade.

    Grande parte do mérito de Cidade de Deus reside em seus diálogos cortantes e o espectro de realidade. Essa construção ocorre não só pelo estudo de texto que Mantovani fez, mas também o intenso trabalho com um elenco de não atores ou atores estreantes. A peça fundamental para que isso ocorresse foi Fátima Toledo, que se dedicou a tornar os interpretes naqueles personagens que viviam, a fim de que não houvesse qualquer possibilidade de suspensão de descrença nas pouco mais de duas horas de duração.

    Mesmo mostrando os marginais sob um ponto de vista humano e condizente com a realidade, o texto não cai na falácia de tornar os traficantes em pessoas heroicas. Zé Pequeno é um estuprador sanguinário e assassino, tão egoísta que é capaz de pôr perigo até o seu grande amigo Bené, enquanto o Mané Galinha (Seu Jorge) que começa como um sujeito íntegro e honesto, passa a financiar as fileiras do bando do Cenoura (Matheus Nachtergaele), instaurando assim uma guerra entre as duas turmas.

    O confrontamento presente nos vinte minutos finais de filme soa forçado em questão de oportunidade, por parecer muito conveniente diante de toda a aura de crueza com que o filme é conduzido, mas ainda consegue soar plausível diante da interessante mistura de fantasia com a dura realidade até atualmente em grande parte das favelas cariocas. Os estereótipos falaciosos são driblados por um roteiro dinâmico e a condução moderna e estilosa de Lund e Meirelles poriam Cidade de Deus em um patamar poucas vezes visto nas produções cinematográficas  brasileiras, ajudando também a inaugurar uma nova fase da retomada do cinema nacional pós Ditadura Militar ajudando a pavimentar o estilo alcunhado de favela movie.

  • Crítica | Cidade de Deus: 10 Anos Depois

    Crítica | Cidade de Deus: 10 Anos Depois

    Cidade de Deus 10 Anos Depois 1

    Com a mesma faca usada na morte da galinha que abre o filme original de Fernando Meirelles, Cidade de Deus: 10 Anos Depois inicia-se. A narração de Alexandre Rodrigues, comum em documentários e na ficção, explora como foi o desenrolar da carreira artística de cada um dos integrantes do elenco e a produção do sucesso Cidade de Deus, focando nos moradores do complexo comunitário da Zona Oeste do Rio de Janeiro, em quem permaneceu no mesmo local.

    Leandro Firmino da Hora é o primeiro “personagem” analisado, muito além do seu Zé Pequeno, quilos mais pesado e anos mais velho. A confissão de que jamais sonhou seguir carreira artística é surpreendente, especialmente por sua condição de negro e morador de favela. A situação de que a comunidade era uma questão cult se deu a partir de 2002 com o lançamento da obra, passando a nortear a enorme diferença entre a realidade dos envolvidos, do sucesso meteórico, e a volta para suas casas paupérrimas, realidade, segundo os depoentes, digna de choro.

    A crueldade do meio artístico é flagrada na fala de Roberta Rodrigues e de Jonathan Haagensen, que lembram as terríveis dificuldades que tiveram ao tentar solidificar a carreira como atores, algo raro mesmo dentro do talentoso elenco do clássico instantâneo. A crueza da fama é ainda melhor mostrada na face de Alexandre Rodrigues, quase sem maquiagem, onde cada sinal de imperfeição é muito bem pontuada, e que em cujas falas mais se demonstra o arrependimento por não ter aproveitado, como deveria, a fama repentina.

    Os contatos dos diretores Cavi Borges e Luciano Vidigal fizeram possível o encontro com astros como Seu Jorge, mas os esforços são muito melhores vistos ao investigar como a rotina de pessoas absolutamente anônimas, como o ex-ator Felipe Paulino, cujo papel pequeno, o do menino que tem o pé alvejado por Zé Pequeno. Felipe fala timidamente sobre suas cenas, intercalando com os momentos de seus trabalhos e bicos como servente de um hotel. Confuso, o jovem faz fortes declarações a respeito de sua aposentadoria, inclusive uma polêmica envolvendo o dinheiro que recebeu e quem supostamente o gastou. Apesar dos reclames, de fato se demonstrou que o cachê dos atores foi muito pequeno, variando entre os quatro dígitos de reais para os personagens secundários e pouco mais de dez mil para os protagonistas e antagonistas.

    Apesar de louvar carreiras promissoras como as de Alice Braga, os depoimentos mais interessantes são os que revelam o drama de Rubens Sabino, que fez o personagem Neguinho e sofreu enormes dificuldades na vida, ficando conhecido um ano após o lançamento mundial. O motivo da “re-fama” foi devido a um assalto que cometeu e que, claro, deu errado, causando sua prisão e a reputação de contraventor.

    As filmagens, realizadas no começo dos anos 2000, aparecem como introdução a discursos emocionantes dos meninos que foram obrigados a amadurecer muito rápido, passando na maioria das vezes a serem os provedores de renda de suas casas. O momento de Darlan Cunha e Douglas Silva após o longa-metragem e o seriado Cidade dos Homens, que foi ao ar entre 2002 e 2005, também é focado. Um efeito semelhante ao tencionado por Linklater em Boyhood – Da Infância à Juventude, com a trajetória de Douglas, que teve de se reinventar e que nadou contra a corrente de seus companheiros, visto que a maioria não teve qualquer sucesso nem em carreira artística, nem em vínculo empregatício.

    O rumo das falas lembra a pouca abordagem sobre a vida do negro sendo contada por pessoas negras, quase sempre representados por estereótipos de bandidos desorganizados, como uma inversão do conceito de bom selvagem, um ser irracional, desorganizado e agressivo. A condição de apartheid é comum entre as seleções de casting, raramente contemplando papéis comuns em profissões como advogados, médicos e engenheiros. A fuga do arquétipo de envolvido no “movimento” reflete-se no drama de muitos negros, entre eles Jefechander Suplino, que viveu Alicate, curiosamente invertendo o estigma de conversão do seu personagem, tornando real a ficção que viveu, visto que está desaparecido até a produção do documentário. A realidade do ator é a mesma de muitos outros jovens negros, quando não, chacinados pelo poder paralelo ou pelo Estado.

    A ideia de reunir as falas dos que fizeram parte de fenômenos que mudaram completamente o panorama da favela de asfalto é ímpar por resgatar os momentos não contados, até então, dos que não tiveram tanta sorte quanto os famosos “globais” e conhecidos internacionalmente. É no drama que mora o principal adjetivo positivo deste Cidade de Deus – 10 Anos Depois, uma realidade que ainda exclui o preto e o pobre, mesmo quando o indivíduo teve seu momento ao sol. Nem os lembretes textuais das iniciativas de praças artísticas oriundas das favelas cariocas conseguem mudar a sensação de que falta oportunidades a essa classe, exemplificada na demora em distribuir o documentário em questão para o circuito comercial, fazendo deste um evento de quebra da quarta parede, que retrata o tema discutido no roteiro.