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  • Crítica | Marighella (2019)

    Crítica | Marighella (2019)

    Marighella é um projeto envolvido em polêmica desde sua concepção. Por contar a história do revolucionário Carlos Marighella, refletindo certa censura por parte dos atuais governantes, o filme teve adiamentos, dificuldades para programar sua estreia em terras brasileiras e, por fim, o longa de Wagner Moura acabou sofrendo um mal semelhante ao de Tropa de Elite, vazando antes da estreia. Independente da programação, o filme finalmente pôde ser apreciado pelo espectador brasileiro.

    O início do filme não nega a necessidade de ser um produto comercial, sedutor para as massas, fácil de digerir como Cidade de DeusTropa de Elite 2: O Inimigo Agora é Outro. Para isso, as primeiras cenas mostram de um roubo de trem, um resumo das ações de guerrilha urbana, que davam conta de expropriar o que era do povo e o que era utilizado para fortalecer o regime militar. O simbolismo do roteiro é bem explícito, uma vez que o assalto ocorre ao som de Monólogo ao Pé do Ouvido de  Chico Science, que dá a dimensão de quem é o personagem, colocando Marighella ao lado dos Panteras Negras, Lampião, Carlos Zapata e outros libertadores do povo latino americano. Nesse aspecto, texto de Moura e Felipe Braga acerta. A dimensão é rapidamente transmitida e o filme não tem qualquer receio em poetizar a intimidade do ativista.

    A linha do tempo é repleta de idas e vindas, especialmente no começo. A montagem de Lucas Gonzaga emprega uma ritmo que prima pela modernidade, semelhante a que fez em 2 Coelhos, embora não seja tão estilizada. A aura de homem com habilidades sobre humanas é bem enquadrada, assim como a visão de Marighella como terrorista por seus opositores, apresentando as visões da época sobre o personagem central.

    A questão do vazamento é curiosa e oportuna. Um dos produtores, Fernando Meirelles, pediu para que as autoridades se mobilizem para investigar o fato. Porém, em tempos de popularidade alta para obras como Os 7 de Chicago e Judas e o Messias Negro, ambos com heróis pretos vencendo adversidades e sendo crucificados pelo sistema, seria natural também apreciar o drama protagonizado por Seu Jorge, aliás, está bastante inspirado. Ainda assim, os filmes citados estão longe de ser tão incisivo, direto e realista quanto esta produção, que além de fugir da representação vazia de um revolucionário, ainda levanta o viés marxista como a alternativa para a ascensão do povo como soberano, especialmente em relação a um governo fascista que paga com sangue a revolta justa de seu povo.

    O filme foi acusado de parecer posado com frases feitas em excesso. De fato, há momentos mais estéticos. Seus personagens são arquetípicos da época, mas a entrega do elenco aplaca essa sensação. Bruno Gagliasso, por exemplo, faz um agente da repressão absurdamente cruel e crível ao mesmo tempo. Seu Lúcio, apesar de fictício, lembra bons momentos dos interpretes de Sérgio Fleury, o famoso agente do DOPS que já foi retratado tantas vezes no audiovisual. Ainda assim se  percebe um ineditismo na abordagem, pois ele parece de fato um idealista, um sujeito escroque, mas guiado por uma ideologia vil e que se torna ainda mais perigosa por se achar correta.

    As cenas do revide revolucionário são certeiras. Não só dão oportunidade aos atores Humberto Carrão, Henrique Vieira, Herson Capri e Luiz Carlos Vasconcelos, como mostram uma maturidade na direção de Moura que consegue prender a expectativa em uma história que equilibra o real e escapismo. Mesmo que se apele um pouco para teatralidade,  a jornada dos companheiros do herói é, na maioria das vezes, de dar nó na garganta. boa parte disso se dá pelo trabalho da preparadora de elenco Fátima Toledo, que mais uma vez dá dimensões reais a uma história tipicamente brasileira.

    O desfecho de Marighella o mostra não como um herói ou como protagonista da luta pela democracia no país. e sim como uma ideia imortal da ascensão do proletariado.  Através desse filme, a questão é apresentada de maneira popular, conduzida em uma estética universal e também voltada para o mercado internacional. Enfim, o legado do personagem recebe a justiça que lhe foi tirada por escroques aproveitadores que se diziam defensores da pátria e que, na verdade, foram vendidos desonestos que se lambuzaram na lama e no poder. Finalmente é feita justiça, ainda que só em tela, na inspiradora cena final do elenco cantando o hino brasileiro, como um grito entalado na garganta, um bradar que mira a justiça e a preocupação com um país que sofreu calamidades nos anos sessenta e que ainda sofre com outros agravantes e outros cenários. Ter um filme tão bem produzido e de fácil acesso é ótimo para desmistificar as mentiras ditas pelos que mereciam estar na sarjeta da história.

  • Crítica | Pelé: O Nascimento de Uma Lenda

    Crítica | Pelé: O Nascimento de Uma Lenda

    O filme dos irmãos Michael  e Jeffrey “Jeff” Zimbalist começa com uma narração em inglês, a respeito de um jogo decisivo da Copa do Mundo de 1958, a primeira conquistada pelo escrete canarinho, em que um jogador de apenas 17 anos estava prestes a entrar, Edson Nascimento, interpretado por Kevin de Paula, e que viria a se tornar a lenda dos gramados Pelé, o eterno camisa dez do Santos e seleção.

    Os próximos momentos mostram uma sequência em Bauru, com garotinhos fazendo bagunça no meio de uma comunidade carente, onde os menininhos falavam inglês, enquanto se distraiam durante o dia da final entre Uruguai e Brasil em pleno Maracanã. A tentativa dos diretores é de reconstruir o passado do atleta do século por meio de pequenos contos que valorizam a humildade do povo pobre brasileiro, o problema é que isso tudo é extremamente caricatural. O jogo de várzea entre Kings x Shoeless Ones (sim, o nome dos times compostos por crianças é em inglês também) é mostrado de maneira bastante grosseiro e o pretexto de Waldermar de Brito (Milton Gonçalves) estar lá como olheiro do Santos Futebol Clube é explorado de maneira pouco realista. É nesse momento que o apelido pejorativo de Pelé pega no menino, que antes era chamado de Dico, executado por Leonardo Lima Carvalho.

    Há participações pontuais de atores brasileiros como Seu Jorge, Bruce Gomlevsky, André Mattos, Fernando Caruso, entre outros. Todos esses atores estão lá basicamente para acenar para a plateia, uma vez que suas participações na trama são bastante dispensáveis.

    Felipe Simas interpreta Mané Garrincha e tenta entregar um desempenho que passe além da caricatura, mas o texto entregue não colabora com o esforço interpretativo. Igualmente fraca é a causa pessoal que envolve a motivação do rapaz em substituir Mazzola (Diego Boneta), que na juventude humilhava o jovem, sendo ele o responsável pelo apelido de “Pelé”. Obviamente que essa cisma jamais ocorreu de fato, tampouco a presença de Pelé entre os suplentes, fato que é uma mentira tratada como fato tantas vezes que entrou nos anais históricos como se de fato tivesse ocorrido. Essa mudança não seria algo necessariamente ruim caso houvesse uma função narrativa minimamente inteligente para essas alterações, contudo não é o que acontece.

    Ao longo da projeção o filme passa uma mensagem de que a ginga brasileira seria o elemento catalisador do futebol arte que traria o êxito à seleção brasileira. Em uma sequência próxima dos minutos finais os jogadores do plantel de Vicente Feola dão vazão a alegria de jogar futebol, basicamente tabelando com os bastidores do hotel onde estão. Por mais ridícula que seja toda a sequência, incluindo aí uma aparição rápida do real Pelé, esse é um dos poucos momentos em que os atores parecem ter qualquer rastro de brasilidade, e infelizmente, esse momento é cortado por um discurso de Vincent D’Onofrio, que encarna Feola, para basicamente nos lembrarmos que se trata de um filme inteiramente americano sobre a maior lenda do futebol brasileiro.

    Os narradores estadunidenses chamam o craque de Nascimento, e é bem possível que ele fosse chamado assim pela audiência dos Estados Unidos. Essa forma de chamar o rei do futebol talvez seja o maior símbolo do quão equivocada é essa produção, que tenta faturar em cima de uma figura cara ao esporte mais popular do mundo. Pelé: O Nascimento de Uma Lenda falha como cinebiografia e também como registro histórico da final do primeiro título brasileiro, assim como as representações de Mauro, Didi, Garrincha, Bellini, Zito, Zagallo e companhia são nulas de qualquer carisma.

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  • Crítica | Cidade de Deus

    Crítica | Cidade de Deus

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    As primeiras cenas do potente filme de Fernando Meirelles e Kátia Lund mostram uma galinha assistindo uma confraternização em forma de churrasco, na Cidade de Deus que daria título ao filme. A adaptação do livro homônimo de Paulo Lins é resumida a maestria nas sensações do animal que está prestes a ser abatido. As reações flagradas pela câmera intrusiva são praticamente as mesmas vividas por Buscapé, vivido por Alexandre Rodrigues, um morador da comunidade que serve de narrador e testemunha do crescimento, avanço ou retrocesso da comunidade carente.

    O roteiro de Bráulio Mantovani é prodigioso, e a estratégia de contar os dramas e causos cômicos por meio de pequenos contos é interessante. O primeiro deles, sobre o Trio Ternura serve não só  para mostrar os primórdios da comunidade, como também para mostrar como o destino cai sobre os personagens. A tragédia é apresentada logo após um assalto comandado por Cabeleira (Jonathan Hageensen), acompanhado de Alicate e Marreco e também dos meninos Dadinho (Douglas Silva) e Bené (Michel Gomes) . Um deles retorna a vida religiosa, longe dos infortúnios da vida de bicho solto, outro perece de maneira misteriosa e mostrada somente à frente, e outro morre à plena luz do dia, num combate com a polícia, a fim de servir de exemplo para todo e qualquer jovem da comunidade que buscasse na vida de bandido uma alternativa.

    As lições serviram para Buscapé, mas não para o cenário de comunidade carente em que se inseria a CDD. Os próximos dois capítulos falam sobre A História da Boca dos Apês, que por sua vez introduz a dupla que antes era criança e que cresceu, com Bené vivido por Phelipe Hageensen e o antigo Dadinho, que mudou sua alcunha para Zé Pequeno, sendo por sua vez interpretado de maneira icônica por Leandro Firmino. A Zé, restaria também um capítulo inteiro mostrando sua trajetória, falando não só sobre os primórdios da favela como também a fúria assassina dele mesmo quando ainda criança.

    A escolha por utilizar um personagem orelha serve muito bem ao intuito do ditatismo, ainda que as explicações sejam muito mais fluídas do que o visto nos engessados documentários corriqueiros. Há agilidade mesmo quando se informa e o rico detalhamento sobe a manufatura, linha de montagem e hierarquia do tráfico soam verossímeis, mostrando tudo em ricos detalhes, além de servir de denúncia por exibir o modo como a conivência da polícia convive com o cotidiano da comunidade.

    Grande parte do mérito de Cidade de Deus reside em seus diálogos cortantes e o espectro de realidade. Essa construção ocorre não só pelo estudo de texto que Mantovani fez, mas também o intenso trabalho com um elenco de não atores ou atores estreantes. A peça fundamental para que isso ocorresse foi Fátima Toledo, que se dedicou a tornar os interpretes naqueles personagens que viviam, a fim de que não houvesse qualquer possibilidade de suspensão de descrença nas pouco mais de duas horas de duração.

    Mesmo mostrando os marginais sob um ponto de vista humano e condizente com a realidade, o texto não cai na falácia de tornar os traficantes em pessoas heroicas. Zé Pequeno é um estuprador sanguinário e assassino, tão egoísta que é capaz de pôr perigo até o seu grande amigo Bené, enquanto o Mané Galinha (Seu Jorge) que começa como um sujeito íntegro e honesto, passa a financiar as fileiras do bando do Cenoura (Matheus Nachtergaele), instaurando assim uma guerra entre as duas turmas.

    O confrontamento presente nos vinte minutos finais de filme soa forçado em questão de oportunidade, por parecer muito conveniente diante de toda a aura de crueza com que o filme é conduzido, mas ainda consegue soar plausível diante da interessante mistura de fantasia com a dura realidade até atualmente em grande parte das favelas cariocas. Os estereótipos falaciosos são driblados por um roteiro dinâmico e a condução moderna e estilosa de Lund e Meirelles poriam Cidade de Deus em um patamar poucas vezes visto nas produções cinematográficas  brasileiras, ajudando também a inaugurar uma nova fase da retomada do cinema nacional pós Ditadura Militar ajudando a pavimentar o estilo alcunhado de favela movie.

  • Crítica | Cidade de Deus: 10 Anos Depois

    Crítica | Cidade de Deus: 10 Anos Depois

    Cidade de Deus 10 Anos Depois 1

    Com a mesma faca usada na morte da galinha que abre o filme original de Fernando Meirelles, Cidade de Deus: 10 Anos Depois inicia-se. A narração de Alexandre Rodrigues, comum em documentários e na ficção, explora como foi o desenrolar da carreira artística de cada um dos integrantes do elenco e a produção do sucesso Cidade de Deus, focando nos moradores do complexo comunitário da Zona Oeste do Rio de Janeiro, em quem permaneceu no mesmo local.

    Leandro Firmino da Hora é o primeiro “personagem” analisado, muito além do seu Zé Pequeno, quilos mais pesado e anos mais velho. A confissão de que jamais sonhou seguir carreira artística é surpreendente, especialmente por sua condição de negro e morador de favela. A situação de que a comunidade era uma questão cult se deu a partir de 2002 com o lançamento da obra, passando a nortear a enorme diferença entre a realidade dos envolvidos, do sucesso meteórico, e a volta para suas casas paupérrimas, realidade, segundo os depoentes, digna de choro.

    A crueldade do meio artístico é flagrada na fala de Roberta Rodrigues e de Jonathan Haagensen, que lembram as terríveis dificuldades que tiveram ao tentar solidificar a carreira como atores, algo raro mesmo dentro do talentoso elenco do clássico instantâneo. A crueza da fama é ainda melhor mostrada na face de Alexandre Rodrigues, quase sem maquiagem, onde cada sinal de imperfeição é muito bem pontuada, e que em cujas falas mais se demonstra o arrependimento por não ter aproveitado, como deveria, a fama repentina.

    Os contatos dos diretores Cavi Borges e Luciano Vidigal fizeram possível o encontro com astros como Seu Jorge, mas os esforços são muito melhores vistos ao investigar como a rotina de pessoas absolutamente anônimas, como o ex-ator Felipe Paulino, cujo papel pequeno, o do menino que tem o pé alvejado por Zé Pequeno. Felipe fala timidamente sobre suas cenas, intercalando com os momentos de seus trabalhos e bicos como servente de um hotel. Confuso, o jovem faz fortes declarações a respeito de sua aposentadoria, inclusive uma polêmica envolvendo o dinheiro que recebeu e quem supostamente o gastou. Apesar dos reclames, de fato se demonstrou que o cachê dos atores foi muito pequeno, variando entre os quatro dígitos de reais para os personagens secundários e pouco mais de dez mil para os protagonistas e antagonistas.

    Apesar de louvar carreiras promissoras como as de Alice Braga, os depoimentos mais interessantes são os que revelam o drama de Rubens Sabino, que fez o personagem Neguinho e sofreu enormes dificuldades na vida, ficando conhecido um ano após o lançamento mundial. O motivo da “re-fama” foi devido a um assalto que cometeu e que, claro, deu errado, causando sua prisão e a reputação de contraventor.

    As filmagens, realizadas no começo dos anos 2000, aparecem como introdução a discursos emocionantes dos meninos que foram obrigados a amadurecer muito rápido, passando na maioria das vezes a serem os provedores de renda de suas casas. O momento de Darlan Cunha e Douglas Silva após o longa-metragem e o seriado Cidade dos Homens, que foi ao ar entre 2002 e 2005, também é focado. Um efeito semelhante ao tencionado por Linklater em Boyhood – Da Infância à Juventude, com a trajetória de Douglas, que teve de se reinventar e que nadou contra a corrente de seus companheiros, visto que a maioria não teve qualquer sucesso nem em carreira artística, nem em vínculo empregatício.

    O rumo das falas lembra a pouca abordagem sobre a vida do negro sendo contada por pessoas negras, quase sempre representados por estereótipos de bandidos desorganizados, como uma inversão do conceito de bom selvagem, um ser irracional, desorganizado e agressivo. A condição de apartheid é comum entre as seleções de casting, raramente contemplando papéis comuns em profissões como advogados, médicos e engenheiros. A fuga do arquétipo de envolvido no “movimento” reflete-se no drama de muitos negros, entre eles Jefechander Suplino, que viveu Alicate, curiosamente invertendo o estigma de conversão do seu personagem, tornando real a ficção que viveu, visto que está desaparecido até a produção do documentário. A realidade do ator é a mesma de muitos outros jovens negros, quando não, chacinados pelo poder paralelo ou pelo Estado.

    A ideia de reunir as falas dos que fizeram parte de fenômenos que mudaram completamente o panorama da favela de asfalto é ímpar por resgatar os momentos não contados, até então, dos que não tiveram tanta sorte quanto os famosos “globais” e conhecidos internacionalmente. É no drama que mora o principal adjetivo positivo deste Cidade de Deus – 10 Anos Depois, uma realidade que ainda exclui o preto e o pobre, mesmo quando o indivíduo teve seu momento ao sol. Nem os lembretes textuais das iniciativas de praças artísticas oriundas das favelas cariocas conseguem mudar a sensação de que falta oportunidades a essa classe, exemplificada na demora em distribuir o documentário em questão para o circuito comercial, fazendo deste um evento de quebra da quarta parede, que retrata o tema discutido no roteiro.

  • Crítica | Tropa de Elite 2: O Inimigo Agora É Outro

    Crítica | Tropa de Elite 2: O Inimigo Agora É Outro

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    Demorei cinco “longos dias” para juntar coragem em entrar numa sala de cinema que tivesse o cartaz do novo filme de José Padilha. Tentar anestesiar o monstro da ansiedade sobre o que esse diretor traria talvez tenha sido o motivo dessa minha letargia inicial.

    Vacinado com o modismo que se apropriou, no primeiro filme do BOPE e de seu fictício capitão, não me permitia acreditar nos (até o momento deste post) mais de 2 milhões de espectadores que foram, antes de mim, dar os olhos à surpresa das novas agressões que Padilha nos traria dessa vez.

    Mais que números e toda sorte de merchandising pós-filme-febre, minha reserva em ser levado pelas massas estava direcionada à dúvida sobre como os responsáveis pelo longa desenvolveriam ainda mais uma história que, desde o documentário Ônibus 174 já estava lustrada o suficiente para mostrar outros personagens que não apenas a díade de mocinhos e bandidos: nós próprios, “cidadãos de bem”, em nossa cativa passividade. Como, nessa sequência, o BOPE poderia ser mais “dissecado” do que fora anteriormente? Haveria um novo banho de sangue? Conheceríamos um novo repertório de palavrões e frases de efeito, entre fanfarrões e pedidos para sair? O que Padilha, agora associado a Mantovani (um dos nomes por trás de Cidade de Deus) teriam preparado para nós?!

    Quando a tela do cinema focou no filme, deixando para trás toda propaganda barata e efêmera, essa que pinta uma realidade rósea, bombardeando nossos sentidos dia a dia, foi projetada uma frase, que além de contrastar com o cenário habitual e comercial descrito neste parágrafo, colocava em transe não só o que as milhões de pessoas veriam a seguir, mas o próprio contexto social e político-eleitoral latente, porta do cinema afora:

    “Qualquer semelhança com a realidade é apenas uma coincidência. Essa é uma obra de ficção.”

    Pois, a “ficção” que ali se desenrolava trazia um problema de coordenação à dinâmica de quem a assistia: pensar sem respirar.

    Refletir sobre um Estado que, ao invés de coibir a violência e todos os seus derivados, está engendrado a estimulá-la por suas próprias instituições, no filme representadas pelo Poder Judiciário, na “idônea” polícia militar fluminense (tal qual aconteceu no primeiro filme), já era mote esperado nesta sequência. Contudo, Padilha fez mais: desdobrou a corrupção aos quinhões dos Poderes Executivo (representados na figura de um Governador inexistente e de um Prefeito estético e estático) e Legislativo (capaz de acomodar as mais caricatas figuras ao corpo dirigente, de um apresentador televisivo sensacionalista a um palhaço iletrado. Opa, perdão, não há palhaço iletrado na “ficção” de Padilha).

    A trama que o roteirista e diretor fez questão de mapear como irreal mostra um período posterior à saga do primeiro filme, mas que corresponde à nossa atualidade, onde o crime na “Cidade Maravilhosa” teria sido desorganizado pelo BOPE, agora mais estruturado e com maior campo de ação no combate à criminalidade carioca. Contudo, no vácuo desse poder paralelo, então supostamente erradicado, outra fonte de poder se apossou dessas fronteiras periféricas: as milícias. Constituídas e aparelhadas por policiais e políticos, fazendo com que a elite da tropa, representada na figura do, ainda, arrogante, inflexível, bad-ass-motherfucker e, acima de todas as demais características, determinado Nascimento. Esse que, de Comandante Geral do Bope à Sub Secretário de Inteligência, percebe a complexidade do sistema corrupto que assola nosso País e sua incapacidade de modificá-lo pelas vias “legais e pacíficas”.

    Os atores que dão personalidade aos personagens “cumprem a missão dada”. Enquanto Wagner Moura ratifica o principal personagem de sua talentosa carreira, Milhem Cortaz e André Ramiro mantém a maturidade de suas interpretações e reavivam a nostalgia dicotômica de seus personagens: a volta do malandro (tipicamente brasileiro) Capitão Fábio, contrastando com a severidade e disciplina militar de André Mathias. Somando esses altos patamares, outros personagens menores recebem nomes e interpretações muito além do que se esperaria desses na trama. Destaques que faço às representações de Antré Mattos, como o típico político que temos escolhido, Seu Jorge, num “Zé Pequeno” amadurecido e Irandhir Santos, que de figura secundária conseguiu elevar seu personagem a um embate paralelo na trama com Wagner Moura: as duas facetas (ou as “Duas-Caras”) da justiça.

    O desafio de respirar (asfixiado por um saco, parágrafos atrás) foi a acrobacia que todo espectador teve de realizar para refletir enquanto era esbofeteado por uma produção cara, importada e refinada, com direito a tomadas aéreas ausentes no primeiro filme, câmera dinâmica nas cenas de ação, roteiro truncado entre quem morria, como falecia e os porquês de cada “baixa”, uma fotografia propositalmente crua, oscilando entre cores fortes nas dependências abastadas, oficiais e, claro, no sangue jorrado, contrapondo com a opacidade desbotada da miserabilidade e condição rudimentar das comunidades.

    A edição, ainda que sem ineditismo algum em relação ao primeiro filme (iniciando um pouti-porri de cenas do primeiro e sucedido por uma apresentação que, tal qual em Cidade de Deus ou no primeiro Tropa, estampava uma cena-chave complementada e explicada ao longo da história), dá ritmo aos nossos fôlegos, de forma inteligente a cada salto da atividade profissional de Nascimento, assim como a cada tropeço na relação desse com seus entes: filho, ex-esposa e Mathias.

    A trilha sonora não se mostrou impactante como no primeiro. Fixar o grupo Tihuana na música tema, ainda que em nova versão, foi um voto pela preservação de uma imagem que já fora construída, assim como optar por um repertório bem conhecido entre faixas e artistas, caso de Paralamas, Marcelo D2 etc. Ademais, os efeitos sonoros ficaram bem alinhados com as cenas de ação.

    Extasiado, vi as cenas aéreas e audaciosas (não tecnicamente) finais desse filme cru, cruel e NADA fictício, com certo otimismo. Não se tratava de esperança nos dirigentes de nosso País que, ao meu ver, já estão de “pomba-gírice” há muito tempo, mas sobre o futuro da mensagem de Padilha que, tal qual fazia Sérgio Bianchi em seus filmes, mas sem arrebatar milhões de expectadores, novamente nos coloca em xeque:

    Se nada acontecer para mudar o cenário cancerígeno de nossos sistemas político e social, fodeu para todos nós. E, parafraseando Capitão Fábio (o modelo de nossa brasilidade), se “quer me foder? Então me beija!”

    Texto de autoria de Luciano Francisco.