Tag: Anna Muylaert

  • Crítica | Alvorada

    Crítica | Alvorada

    Em 2016, época do impeachment de Dilma Rousseff, parte da classe artística ligada ao cinema sentiu forte o Golpe. Cineastas como Petra Costa, Anna Muylaert, Douglas Duarte e tantos outros prometeram dedicar seus esforços a contar essa história. Eis que, Alvorada finalmente chega ao público, somente em 2021 na mostra do É Tudo Verdade 2021, se juntando a Democracia em Vertigem, Excelentíssimos, O Processo, Já Vimos Esse Filme e até Não Vai Ter Golpe, filme do MBL contando a narrativa dos opositores do PT. Muylaert retorna para o cinema documentário a fim de revelar mais uma vez a podridão dos bastidores do poder em Brasília, junto a codiretora Lô Politi, a mesma que conduziu o ficcional (e curioso) Jonas.

    As diretoras tentam  abordar o filme de  forma semelhante a que Eduardo Coutinho fez em Peões, mostrando os bastidores de baixo, os funcionários não endinheirados, assalariados baixos, que nem sequer estão com microfones. Até personagens celebres, como o ex-ministro José Eduardo Cardozo são mostrados muito de perto, chegando ao cúmulo dele ser mostrado com roupa de ciclista, já que ele pedalava até o planalto enquanto trabalhava em Brasília.

    O filme soa datado, o impeachment ocorreu em 2016. ainda há uma “desculpa” por parte de Muylaert de que o seu roteiro era profético e precisava dos fatos para se comprovar assim. Fato é que muita coisa aconteceu de 2016 até atualidade, ainda mais em tempos pandêmicos. A promessa de filme experiencial resulta em algo anacrônico.  Muylatert já foi mais inspirada, mesmo em suas  obras ficcionais ela conseguiu tocar em assuntos mais sensíveis, em Mãe Só Há Uma e Que Horas Ela Volta? se falou no papel da maternidade, também foram abordadas questões de identidade de gênero, abandono parental e ascensão da Classe C, temas caros a qualquer pensamento progressista, aqui, o que se assiste é apenas repetição. Alvorada até tenta tratar de alguns desses assuntos, e é muito bem vindo que sua câmera acompanhe os trabalhadores braçais e o proletariado, mas o intuito de entender o que o Brasil se tornou e como o povo foi iludido ao ponto de aderir a um discurso fascista não é sequer arranhado.

    Possivelmente se o filme tivesse sido lançado antes, como era previsto, teria outra digestão, mas se torna quase uma piada em 2021 verificar isso, uma vez que ele é preso num pedaço do tempo completamente diferente de seu lançamento, e não faz questão nenhuma de aplacar essa sensação, ao contrário, soa pretensioso ao extremo.

  • Crítica | Mãe Só Há Uma

    Crítica | Mãe Só Há Uma

    Mãe Só Há UMa

    Após trazer um filme interessante e inclusivo, que tinha discussão presente em Que Horas Ela Volta?, a diretora Anna Muylaert volta sua carga dramática novamente para a duplicidade e para mensagens mais abertas, como antes trabalhado em Durval Discos. O título americano de Mãe Só Há Uma talvez faça mais justiça ao plot escolhido pela diretora – Don’t Call Me Son ou Não me Chame de Filho – já que até o título em português é um mcguffin, o que não é necessariamente um demérito, afinal tal aspecto acrescenta muito charme ao longa.

    A história narra a vida de Pierre (Naomi Nero), um adolescente no alvorecer de sua sexualidade, que passa seus dias entre as atividades comuns a um menino na puberdade, estudando, tocando em um banda de rock e descobrindo sua libido, bem como sua identidade de gênero. Em meio à construção do caráter enquanto adulto, e sem ligar para qualquer tentativa de bullying e de cerceamento de suas liberdades, o menino se vê envolto em uma trama de rapto, quando descobre que Aracy (Daniela Nefussi) havia sequestrado-o de sua família original, situação semelhante ao famoso Caso Pedrinho, que chocou a opinião pública, em 2002.

    Mãe Só Há Uma consegue se equilibrar entre dois adjetivos dissonantes, sendo tocante e aterrador simultaneamente: tocante por tratar de sentimentos profundos e caros de seu protagonista, muito bem enquadrado por Muylaert, e ainda mais inspirado na interpretação de Nero, que consegue resgatar nuances pouco comuns em tão pouco tempo de tela; e aterrador por mostrar a inclusão, tanto do rapaz em um mundo conservador e que certamente não o aceitaria em condições ditas normais, quanto de sua família nova, um ente que sempre foi querido, mas jamais conhecido. O choque de realidades se assemelha à colisão de dois mundos totalmente distinto, que levariam eras para se adequarem um ao outro, o que não impediria a relação forçosa entre as partes.

    Além da direção primorosa, que busca, através de planos tão longínquos quanto aproximados, resgatar toda a confusão sentimental ocorrida dentro da identidade de Pierre com a inclusão de um novo nome civil – Felipe -, fator este que faz tudo se confundir ainda mais, há um cuidado extremo do roteiro em não demonizar parte alguma. A nova família, governada por Matheus (Matheus Nachtergaele), Gloria (também vivida por Nefussi) e seu irmão Joca (Daniel Botelho), encontra no ansioso retorno do filho pródigo uma gama de emoções completamente distintas para cada um, incluindo afronta, rejeição pura e empatia, com cada uma dessas sensações trabalhadas muito profundamente e em tempo recorde, mesmo com a curtíssima duração do filme, de apenas 82 minutos.

    As reações dos personagens são plenamente cabíveis, ainda mais no mundo contemporâneo, onde há o embate do grito por representatividade, de quem sempre foi posto à força dentro do armário, contra a onda de conservadorismo vigente e crescente inclusive na política. A agressividade de Matheus não é dada como certa por parte do julgamento da câmera, mas é naturalizada, uma vez que há muitas pessoas que pensam e vivem como este personagem, assim como é plenamente justificável a rebeldia causal do menino em questão, que não perde somente sua figura materna primordial, mas também sua irmã, retirada de seus braços e de suas vidas para talvez nunca mais reencontrar seu fraterno.

    Levando-se em conta o tema proposto, Mãe Só Há Uma consegue evocar uma construção de identidade bastante sólida, com um personagem de idade breve, que ainda está buscando seu ethos, mas que ainda assim é muito forte em suas decisões e seguro em relação às manifestações de quaisquer de suas animosidades. O personagem mostra um instinto de sobrevivência enorme ao sobrepujar a crise em que vive, crescendo a despeito dos reclames daqueles que deveriam e poderiam ser seus mentores. Pierre se mostra um rapaz em constante evolução, mas que não muda nem suas raízes, nem as companhias habituais, mudando de habitação mas sempre ligado à mesma tribo. O desfecho ainda conta com uma cena singela e acalentadora que fecha com primazia todo o drama em volta da nostalgia e saudade que o menino sente, colocando-o merecidamente na posição de mentor, e não mais como aluno.

  • Crítica | Que Horas Ela Volta?

    Crítica | Que Horas Ela Volta?

    Que Horas Ela Volta 1

    Pensado em sua essência para estabelecer o diálogo com o público, que é representado por seus personagens principais, Que Horas Ela Volta? apresenta um drama real e comum, cuidadosamente orquestrado pela diretora Anna Muylaert, a mesma do surpreendente Durval Discos, e do simpático Obrigado Por Fumar. O filme, protagonizado por Regina Casé, representa um passo à frente na carreira de todos os envolvidos na produção do longa-metragem, resultando em um texto sólido e uma atuação assustadoramente sóbria da apresentadora global.

    Val é uma retirante que no início do filme é enquadrada em cenas turvas ou de costas, numa representação que une a impessoalidade de sua profissão, como cuidadora e babá, e um modo de fugir da dificuldade em maquiar Casé para simular uma drástica passagem de tempo. Já nos primeiros minutos é estabelecida uma profunda carência, tanto da protagonista quanto da criança da qual esta cuida, o jovem Fabinho – que na fase moderna seria representado por Michel Joelsas –, ambos sem as figuras de adulação que gostariam de ter por perto: a mulher sentindo falta de Jessica, sua filha que ficou no Nordeste, enquanto o rapaz pergunta a que horas sua mãe voltaria.

    Na fase atual, Val é tratada a priori com muito respeito por parte de seus dois patrões Barbara (Karine Teles) e Carlos (Lourenço Mutarelli), um casal de condições financeiras abastadas, que tem um ideário bastante diferente: a esposa histriônica e esnobe profissional de moda, e o marido um homem rico, depressivo e de gostos artísticos refinados. A construção das personagens é baseada em homens e mulheres comuns e seus arquétipos, algo que para o espectador mais ranzinza pode significar simplismo. No entanto, essa representação tenta atingir avatares universais para alcançar o maior denominador comum, uma ponte de fácil travessia para o público retratado, facilitando a compreensão para o espectador mais simples, mas sem subestimá-lo.

    A chegada de Jéssica (Camila Márdila) a São Paulo, para prestar vestibular para uma faculdade muito concorrida, mexe com a rotina de todos, especialmente com o ideário de Val. A herdeira é o exato oposto de sua matriarca, uma moça inteligente, contestadora, que não aceita a divisão de classes, algo que faz obviamente entrar em rota de colisão com o pensamento de Bárbara, estabelecendo uma relação que se deteriora a cada momento, de modo gradativo e fluído.

    Os temas discutidos são maduros, mas seu discurso não possui qualquer intenção de parecer panfletário ou gratuitamente culposo para as figuras da classe média alta brasileira. O estabelecimento da hierarquia é realizado com uma certa dose de crueldade, no entanto é pouco ácido, visto que não é necessário vilanizar ou demonizar as figuras que exploram o proletariado, para não desumanizar os que se valem do esforço alheio mal remunerado para ter seu conforto. Os abusos são muito mais emocionais e certeiros do que os dos folhetins mexicanos, com causas, brigas e efeitos bastante condizentes com a realidade.

    Que Horas Ela Volta? é um singelo conto de solidão, submissão e subversão de conceitos, onde o instinto de sobrevivência é louvado, mas ainda assim bastante discutido. A trajetória de Val, Jéssica e tantas outras mulheres é mostrada de um modo simples, tocante, emocional e realista, referenciando em tela o universo de tantos brasileiros da parte norte e produzindo alguns pequenos momentos de vingança. A obra apresenta uma trajetória edificante e de franca evolução, a despeito de um breve apelo à suspensão de descrença, o que evidentemente não compromete a ternura da história.