Tag: cinema argentino

  • Crítica | Sueño Florianópolis

    Crítica | Sueño Florianópolis

    Coprodução argentino-brasileira, Sueño Florianopolis é um filme sobre encontros e reencontros, focado em um casal argentino, Pedro (Gustavo Garzón) e Lucrécia (Mercede Lorán), casados há mais de vinte anos e estão em meio a uma crise. No começo da década de 1990 eles viajam em um carro simples para o Brasil, atrás das praias, em uma tentativa de nas férias reavivar as paixões, e claro, curtir o tempo livre com a família. No caminho eles encontram uma família brasileira, chefiada pelo casal Marco (Marco Ricca) e Larissa (Andrea Beltrão).

    A família viajante não tem muita estrutura ou dinheiro, quando se hospedam no hotel pegam um quarto que cabe duas pessoas e colocam colchões no chão para os filhos, ao ponto de precisar fazer sexo no banheiro, a fim de ter alguma privacidade. Isso muda quando reencontram Marco, e se hospedam em uma casa que ele aluga próxima da praia.

    O modo como a diretora Ana Katz conduz o filme é leve, tal qual o estilo de vida que Marco tem, despreocupado com o tempo e com obrigações, onde o objetivo é só desfrutar das coisas boas da vida. O caráter do roteiro é de também não se preocupar com maiores discussões, uma viagem de férias que reflete sobre a vida exatamente contemplando e valorizando o nada.

    Até questões como choques culturais são tratado de maneira e abordagens levíssimas. Lucrécia observa o quanto os brasileiros que ficam nas margens das águas não tem tanto preocupação com o presente e com o futuro imediato, apesar de que trava com Marco uma conversa sobre o rumo acadêmico dos filhos de ambas famílias.

    A parte final se torna um pouco mais dramática, mas a subida para tal modo é bastante fluída e a narrativa faz sentido, inclusive dentro dos pecados que cada um dos personagens comete. Katz apresenta um filme onde as pessoas que a sua lente registra são falhas, cometem equívocos, tem sonhos e são humanas, por mais clichê que isso possa soar numa descrição analítica como esta, Sueño Florianopolis é assertivo por mostrar gente real.

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  • Crítica | Neve Negra

    Crítica | Neve Negra

    Neve Negra estreou em 2017 com expectativa por ser um dos filmes argentinos mais bem criticados do ano, além é claro de ser estrelado por Ricardo Darin.

    Marcos e sua esposa Laura retornam à Patagônia para enterrar as cinzas do pai na propriedade da família administrada pelo irmão mais velho, o sinistro Salvador, e um segredo do passado ressurge no meio da discussão sobre a venda da propriedade.

    O roteiro escrito pelo diretor Martin Hodara e Leonel D’Agostino tenta discutir a brutalidade humana. A Patagônia fascina o imaginário popular mundial por ser um lugar selvagem, mas na Argentina, que se orgulha tanto do seu viés civilizatório perante os vizinhos sul-americanos, como se dá essa relação? O choque entre o selvagem, o bruto e a emoção contra o civilizado, o refinado e a razão permeiam a premissa do roteiro ao colocar Marcos, o único de quatro filhos que conseguiu sair de lá, em choque com Salvador, o primogênito e único filho que ficou para administrar as terras da família, já que a irmã foi internada e o caçula morreu na infância.

    A discussão a cerca da venda da propriedade milionária se torna um reflexo do trauma do passado. Marcos se sente culpado ao pedir que o irmão mais velho aceite vender o lugar que ele cuidou por anos como se o próprio Marcos não tivesse direito, já que no passado Salvador foi responsabilizado pelo pai por conta da morte do caçula.

    O sempre bom Ricardo Darin dá vida ao sombrio Salvador. Com poucos diálogos e ações contidas, a sua construção denota um personagem ainda mais ameaçador do que descrito nos diálogos entre os outros personagens. Laia Costa está bem como Laura, uma esposa preocupada, mas que tem a sua própria visão dos fatos. Leonardo Sbaraglia poderia ter se saído melhor como um culpado Marcos, já que seus vacilos destoam das demais atuações, soando em certo momentos um tanto canastrão.

    A direção de Hodara busca os tempos mortos o tempo todo em uma tentativa forçada de mostrar o bruto enquanto estado natural, seja da passagem do tempo com as ações completas dos personagens ou as carcaças de bichos mortos no meio da neve. A opção estética de mostrar as cenas do passado em paralelo poderiam ter sido melhor trabalhadas e não tem o impacto que se pretendia. Se a edição de Alejandro Carrillo Penovi não tivesse tantos tempos mortos, o filme ganharia em fluidez. Assim como, a fotografia naturalista de Arnau Valls Colomer poderia ter um toque diferenciado nas cenas do passado, uma dose onírica traria ainda mais drama e peso ao filme.

    Neve Negra deve agradar aos fãs do cinema argentino e de Darin, mas pode cansar devido ao problemático ritmo do filme.

    Texto de autoria de Pablo Grilo.

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  • Crítica | Kóblic

    Crítica | Kóblic

    Novo filme dirigido por Sebastián Borensztein – de Um Conto ChinêsKoblic mistura drama e ação, contando com Ricardo Darín como o protagonista da produção. O premiado ator vive o personagem título do filme, um ex-capitão das forças armadas que coordena operações aéreas conhecidas como voos da morte, onde se eliminam os inimigos da ditadura militar argentina nos anos setenta, ao jogar os corpos dos opositores do governo diretamente ao mar.

    As primeiras cenas já dão vazão ao talento de Darín, mostrando-o em discussões com pessoas próximas, sendo esse sempre resignado apesar da alta patente que possuía e do livre trânsito entre os poderosos da sua pátria. Os motivos que o fazem sentir assim são explicitados em cenas com outros personagens, onde um jovem alistado trata com uma das maiores figuras de autoridade do filme, chamado Velarde, interpretado por Oscar Martínez. O rapaz, de certa forma, representa uma versão mais nova de Koblic, mostrando que o processo de lavagem cerebral começava desde cedo, com muita pressão psicológica, abuso de autoridade e assédio moral, ajudando a formar nos colaboradores uma cabeça mais obediente e facilmente manipulável.

    As cenas de Velarde com Luiz são normalmente muito expositivas, atrapalhando um pouco as conclusões do público, que acaba tendo toda a questão de background muito mastigada. No entanto, as questões envolvendo outra face da história, ainda mais a questão que envolve Nancy (Inma Cuesta), amante de Koblic, que sofre abusos físicos de seu atual cônjuge, é melhor realizada. A demonstração de um relacionamento abusivo ocorrendo tão próximo a um agente do governo é uma boa metáfora do quão hipócrita e ignorante era a lógica dos defensores da ditadura militar e de tantos outros regimes, que se preocupam em controlar o povo sem prestar a mínima atenção em suas necessidades.

    A duração de Koblic é curta, com pouco mais de noventa minutos, e é econômica em questões sentimentais. A dor que o protagonista sente e a culpa por ser um herói falido é sentida somente pelas expressões do ator e pelas cenas muito bem construídas dos despejos dos flagelados, com cores escurecidas tomando o ambiente, servindo como símbolo de todo o passado negro ocorrido na Argentina. A cena final em que Koblic ruma para o horizonte é poderosa e igualmente metafórica, sendo portanto a síntese das sensações que o personagem tem dentro de si, representando também tantos colaboradores forçados de governos tirânicos, sem descuidar também da culpa própria desses mesmos entes.

  • Crítica | Paulina

    Crítica | Paulina

    paulina-posterBaseado em uma inversão de paradigma bastante polêmica, Paulina – novo longa de Santiago Mitre (roteirista de Abutres e Elefante Branco) – inicia-se exibindo uma discussão política acalorada pela fala da personagem-título com seu pai, Fernando (Oscar Martínez), sobre o futuro de sua carreira acadêmica. O motivo é que a mulher decide ir para uma cidade interiorana violenta, deixando para trás uma carreira em Direito bastante promissora.

    O mundo em que Paulina (Dolorez Fonzi) adentra é completamente diferente do universo com que está acostumada, e o seu discurso progressista é posto à prova a todo momento quando ocorrem tropeços enquanto leciona, graças à falta de convívio com uma população interiorana. A dificuldade em “falar” o linguajar do excluído serve de paralelo à dificuldade que alguns segmentos de esquerda têm ao estabelecer contato com o mesmo proletário que estes defendem.

    Apesar de conter uma direção interessante e um roteiro repleto de alegorias, todos os motes giram em torno da conversa inicial de Paulina e Fernando, com um conjunto de situações graves que redundam apenas na questão sobre até aonde o engajamento da mulher deve ir. As aulas de retórica não evitam a deseducação dos residentes do gueto, tampouco a salvaguarda da terrível situação de violência sexual.

    Quando um plot twist se aproxima, o argumento simplesmente dribla a possibilidade de se tornar um filme-denúncia para, ao invés disso, fortificar a ideia de um pensamento do evoluído e defensor do oprimido acima das necessidades pessoais. Paulina vive seu discurso, não permite que as contradições a deixem se aproximar de qualquer possibilidade de reacionarismo, evoluindo da simples questão da segurança financeira, elevando a discussão para a violação emocional e corporal.

    A sede por vingança não provém da violentada, mas dos homens que a cercam, e nem mesmo em uma posição vulnerável a mulher larga o protagonismo, tampouco permite uma solução que tenha qualquer resquício de machismo ou moralismo.

    A discussão que encerra o filme é didática e resume toda a emoção visceral que se viu a partir de todo o processo de aceitação da mulher, mostrando desde a intensa dor do estupro, até a dificuldade em conviver com um trauma impingido pelo mesmo alvo de proteção de toda uma vida ideológica e pragmática. A força em Paulina está nas atuações emocionantes de Fonzi e Martínez, mas também na atualidade de seus temas, tecendo um comentário agressivo para os ditames esquerdistas, expondo uma hipocrisia que normalmente encontra eco na atitude de muitos ditos marxistas.

  • Crítica | O Segredo dos Seus Olhos

    Crítica | O Segredo dos Seus Olhos

    Segredo dos Seus Olhos 1

    O premiado filme de Juan José Campanella começa com um misto de sensações terríveis, primeiro através de um bloqueio de escritor de seu protagonista, mostrando Benjamin Espósito (Ricardo Darin) não conseguindo passar suas emoções conflitantes para o papel, depois traçando paralelos entre esse incômodo e a natureza de seu trabalho, tanto em fases passadas quanto no presente. O Segredo dos Seus Olhos conta uma história de desejos e de fugas a partir da experiência do recém-aposentado jurista e servidor público que tenta escrever um romance baseado em uma história de um caso antigo, não resolvido até o presente da fita.

    A proximidade de casos violentos envolvendo mulheres se faz presente como principal fato de inconivência para o sujeito que a câmera persegue, tanto na atualidade quanto em seus sonhos acordados, frutos de sua re-memória sobre o ocorrido durante as fracassadas tentativas de escrever.

    Com o passar da película, Espósito se vê cada vez menos capaz de passar para o papel as suas ideias. Revisitar sua própria literatura torna-se um estorvo, ao contrário do trabalho de pesquisa que começa a exercer, perseguindo suas lembranças como se sua vida dependesse disso. De modo bastante obcecado, o sujeito começa a ir atrás das pistas em torno do julgamento ainda em aberto, apoiado por seu amigo Pablo Sandoval (de um irreconhecível Guillermo Francella). José consegue adentrar ambientes que claramente não são os seus, em cenários onde ocorrem cenas dantescas, em especial uma perseguição em um estádio de futebol que faz do templo esportivo o palco de corridas entre bandidos e vigilantes nos filmes policiais normativos, em uma cena bem construída na qual a câmera diz mais em poucos segundos do que todo o texto escrito.

    O roteiro de Campanella e Eduardo Sacheri não aponta para clichês comuns a outros tantos filmes sobre crime. Não há tiro, assassinatos mostrados em tela, tampouco violência gráfica. O apelo é mais sentimental e visceral, tocando no âmago dos personagens, expondo suas almas como se estivessem desnudss, em uma transparência emocional sui generis que revela o asco pelos problemas jurídicos do país, nas expressões tanto do personagem principal, como de sua chefe Irene Menéndez (Soledad Villamil), que assistem impassivos ao sistema se dobrar diante da corrupção.

    Irene captura a atenção de seu subalterno em muitos níveis, e o modo com o fascínio ocorre é apresentado no campo das sugestões. Mesmo quando ambos encaram o sentimento, há um cuidado de manter a sensação em um nível suspenso, tão velado que beira a irrealidade. A aura em torno do filme faz apontar outros tantos pontos lúdicos, fazendo do cotidiano de Espósito um misto de vida comum com leves toques do realismo fantástico pensado por Gabriel García Márquez em seus livros.

    Os atos finais são um mergulho dentro do processo detetivesco com mortes, perseguições e outras irregularidades, mostrando que na construção de uma nação, não há espaço para uma existência sem crimes e pecados. Campanella tenta falar sobre a alma e natureza humana, alcançando êxito em alguns pontos e soando desengonçado em outros tantos, deixando em muitos momentos o formato superar seu conteúdo, fator que faz os problemas de ritmo piorarem demais aos olhos do espectador mais atento. O Segredo dos Seus Olhos é um filme correto, sobretudo por seu caráter comercial bem-sucedido, e por explanar ao mundo o boom que sofreu o cinema argentino nos últimos anos, curiosamente conduzido por um diretor competente e presente no ideário audiovisual dos Estados Unidos.

  • Crítica | O Clã

    Crítica | O Clã

    O Clã 1

    Novo suspense do excelente diretor argentino Pablo Trapero – o mesmo de Elefante Branco e Abutre – e baseado em fatos conhecidos e famosos na Argentina sobre a gangue Puccio, família conhecida por sequestrar e matar várias pessoas, O Clã é uma história sobre obsessão e disputa familiar, que se situa historicamente em um período turbulento da história de seu país, com o lento e gradual retorno da democracia aos moldes normais, sem o abuso das ações militares sobre a população, ao menos em um nível liminar.

    A trama é contada sobre dois olhares, a de Alejandro (Peter Lanzani), filho homem, que seria o herdeiro natural das atividades, e o patriarca e responsável por ser o cérebro da operação, Arquimedes Puccio (Guillermo Francella), um homem frio, como a natureza de seu trapalho de sequestros exige.

    O  roteiro de Trapero, Julian Loyola e Esteban Student explora a contradições morais, tanto dentro do âmbito familiar pseudo religioso (e hipócrita), até a questão do envolvimento de homens poderosos e ligados a um governo repressor em algo que destrói o ideário do conservador, fazendo pouco da sensação de segurança, debochando da vida  dos homens, só por serem as vítimas pessoas abastadas, sem graves problemas financeiros.

    Quase todos os seres que habitam este mundo tipicamente masculino, apresentam defeitos terríveis para quem deveria ser prioritariamente frio, deixando a insegurança transparecer a todo momento. Exceção a regra é Arquimedes, um homem intransponível, resoluto e que não se permite ter maiores sensações além das que o dever lhe chama. Suas demonstrações de carinhos são igualmente ríspidas. O modus operandi precisava disso, e quando o pai cede aos caprichos emocionais que lhe são impostos, começa a derrocada dos Puccios, a despeito até da chegada de reforços externos, como na liberação da prisão de Maguila (Gastón Cocchiarale) seu outro filho, mais experiente que Alex.

    As personagens femininas não praticam qualquer ação de comando, remetendo aos tempos de filmes mafiosos em voga, na esteira de O Poderoso Chefão, onde o papel feminino é completamente subalterno, em que os pecados são exclusividades dos homens ativos. Tal aspecto pode ser encarado como problemático para plateias atuais, mas representam bem a realidade opressora da época, ainda mais comum em um âmbito familiar machista.

    A demonstração do fracasso das operações representa também o engessamento das operações, frágeis em essência, fadadas ao fracasso, já que só eram certeiras quando não apresentava-se qualquer revés a sua frente. A trajetória de declínio se anuncia a partir da primeira cena, e a escolha de Trapero por começar seu drama a partir de um momento onde isso fica explícito é um enorme acerto, funcionando como denúncia, mas sem demonizar os envolvidos passionalmente na série de crimes. A cena final também carrega uma tremenda força visual, violenta, real, fazendo um resumo sentimental de todo o restante da fita, louvando a vontade de não existir diante de um egoísta panorama familiar, que sepulta qualquer ideia de união diante da aproximação da guilhotina, em uma representação real do quanto o instinto de sobrevivência faz demonstrar o real caráter do sujeito ordinário.

  • Crítica | Relatos Selvagens

    Crítica | Relatos Selvagens

    Uma coisa é verdade: A versão pós-moderna de Amarcord não faz feio, pelo contrário, faz rir quem suspeitava que o cinema argentino fosse invejável ao do Brasil. Essa colcha de retalhos toda empolgada é uma heterogênea visita, às vezes sem qualquer consciência de expressões peculiares a determinada história, mas com noções muito fortes de impacto e narrativa em blocos, ao clássico de Fellini, ou melhor, a partir do clássico, sem nenhuma responsabilidade com o cânone italiano em questão, nesta crítica.

    Relatos Selvagens é uma viagem histérica de um sociólogo que esqueceu seu remédio tarja preta em casa no embarque de um trem que atravessa a Argentina, recolhendo histórias (não tão diferentes assim) de seus conterrâneos. Assim, o filme encontra sua apoteose sumária em duas passagens diferentes mas que se completam na missão de sintetizar o filme: a inicial e hilária reunião coletiva em um avião, onde todos se encontram sem saber como nem por onde, e a rebeldia do personagem de Ricardo Darín diante de um sistema corrupto, enfatizando – em analogia – a insatisfação do cidadão comum perante a conjuntura política do país. Se melhor tratadas, essas e mais uma ou duas exaltações poderiam ser as únicas do filme, tamanha é a força e o forte destaque em meio a outras nem tão favoráveis ao saldo inegavelmente positivo da obra.

    Uma iniciativa corajosa, apoiada pelo já lendário Pedro Almodóvar, que produz um material equilibrado, fragmentado por excelência, conduzido pelas peculiaridades de cada história às suas próprias, enquanto uma peça única, mas que consiste de glória e lembrança mais pela iniciativa do que pelo quadro geral e reunido. É a moldura de algo abstrato que uma perspectiva objetiva denuncia – feito pulga atrás da orelha, seja nas conclusões dos blocos ou em certa lucidez incompatível ao todo – não encontrar verniz, caso a peça venha a ser tratada como uma só, sem seus fragmentos. Relatos Selvagens, além de ter aberto a 38ª Mostra de Cinema Internacional de SP, é o típico filme que tenta se encontrar de várias formas, e atira para os lugares certos sem qualquer exagero ou aspecto digno de reprovação, mas, sabe a história do sujeito que de identidade em identidade esquece quem é, de fato? Então…

    Ainda sobre paralelos e resgates sensoriais de nível atemporal, a loucura orquestrada por Fellini celebra os vários tipos de esgotamento comportamentais do animal social, sempre em grupo, em constante mudança deste social, sem especificar, contudo, se o mudar consiste em melhoramento ou atraso. Em Magnólia e Babel, de Paul Thomas Anderson e Alejandro Iñárritu, obras bem mais recentes, nota-se a antítese relativamente bem-sucedida aos esgotamentos nervosos de uma das comédias mais tradicionais da Itália, esbanjando nestes dois filmes, e agora em Relatos Selvagens, então, o também nobre exercício de expor os traços mais imutáveis do ser humano (compaixão, raiva, bom-senso – ou a falta dele –, instintos primitivos de todos os tipos) em um contexto bem mais realista e de caráter emergencial, como se o mundo fosse acabar após qualquer decisão que qualquer representante das menções acima possa vir a tomar.

    Em 2014, com meia dúzia de situações absurdamente reais, ou sonoramente absurdas, o satírico cinema dos irmãos Coen casa com o cínico de Haneke na América Latina, e a boa – ótima – recepção das audiências e críticas mais diversas só pode revelar uma coisa: esse é o mérito de uma produção que contém, entre seus altos e baixos, entre o limite e o não limite, em tempos de politicamente correto, momentos de orgulho de certas fontes históricas, que o filme de Damián Szifron se apropria de atualizar, e se apropria muito bem; um antônimo bem construído de qualquer leveza que possa existir na sobrevivência humana de cada dia – ou noite.

  • Crítica | Sétimo

    Crítica | Sétimo

    setimo

    A vista aérea sobre a capital Buenos Aires já evidencia que Sétimo (Séptimo) será um filme sobre a urbanidade, sem necessidade de fala alguma. Os informes de rádio servem à história como uma espécie de narração, mostrando o quão megalomaníaca e cruel pode ser a paisagem cinza e o quanto ela é poderosa, esmagando sem dó os homens que a habitam. Patxi Amézcua dirige seu segundo filme, tendo o onipresente Ricardo Darín encabeçando o seu elenco.

    Darín faz Sebastián, um sujeito ordinário, com problemas conjugais mas que ama absurdamente o seu casal de filhos. A disputa pela atenção dos infantes com sua ex é enorme, e ganha através de um simples aviso da amarga mulher, que pediu para que não deixasse eles correrem na escada do prédio, por motivos banais, destes não se ferirem. No entanto as crianças somem e Sebastián começa a procurá-las. Nas ruas, as câmeras de segurança filmam a vigilância do pai, que aos poucos vai perdendo a paciência e vai vendo este sentimento tornar-se temor.

    Tentando não se apavorar, Sebastián procura pelo prédio, onde fala com os funcionários e o síndico. Neste momento o personagem dá mostras de que não é uma pessoa tão “querida”, já que teve um entrevero com o síndico, mas mesmo com isto, o senhor, que é policial, o auxilia, chamando a atenção do departamento para o caso e aconselhando o protagonista a arrumar dinheiro, pois podem te-los raptado. Gradativamente o desespero do pai vai aumentando e tomando-o de assalto, ele passa a agir violentamente, sem muito pudor ou gracejos, chegando até a invadir a casa de seus adjacentes. A situação piora quando seu superior liga para ele exigindo sua chegada, ameaçando-o com um “tudo acabará caso se perca este caso”.

    Ao saber do desaparecimento, Delia (Belén Rueda), a mãe dos meninos, chega ao edifício em polvorosa, primeiro preocupada, depois, acusa uma conhecida de cooptar as crianças, as acusações sobram até para seu ex-marido. A desolação leva a dupla a se sentir impotente, quanto mais o tempo passa maior é a tortura e o destempero da alma, decorrente da desolação de nada poder fazer para reaver a segurança de seus filhos.

    A paranoia toma conta do comportamento do inconsolado pai, à procura por qualquer possibilidade de um responsável pelo ato. Ele vasculha cada possibilidade, por mínima que seja, a fim de achar seus rebentos, e dado um momento as suas suspeitas recaem até sobre o policial. Suas atitudes são drásticas e quase o põem em uma situação de cárcere, mas mesmo aqueles a quem agride entendem o seu drama e seu nervosismo. Os momentos em que Sebastián precisa suplicar por ajuda são filmados de modo diferente, com a lente viajando pelo ambiente com uma movimentação contínua, de um lado para o outro, como se seu pedido fosse negado antes mesmo de ser concluído.

    O desalento de Sebastian é enorme após se dar conta de quem foi o mandante do sequestro. O que antes era apreço e amor torna-se em desprezo, ainda que a urgência por agarrar o vilão improvável seja muito maior que qualquer desesperança e decepção. O desencantamento de Sebastian rapidamente dá lugar a vontade de restituir sua família, e claro, seu direito de guarda dos pequenos. Ele segue inabalável, até o instante anterior a entrar em seu carro, já de posse dos meninos, onde ele até ensaia uma ação mais emotiva, para ficar somente na ameaça, já que ele volta a austeridade, a cabeça fria do homem moderno, do fruto da cidade cinza e das luzes vermelhas, que tomam a cidade enquanto a noite se aproxima.

  • Crítica | O Médico Alemão

    Crítica | O Médico Alemão

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    Apesar de não conter em si um caráter tão explícito, logo no início de O Médico Alemão (Wakolda) a diretora argentina Lucia Puenzo utiliza os olhares sutis dos personagens para demonstrar que algo não está de acordo com a regra e a ordem. O cenário árido é incômodo às vistas dos personagens, tal como o calor que insiste em queimar a epiderme dos viajantes que cortam a estrada da Patagônia.

    A trama acompanha a verídica história da família que atravessou o caminho de Josef Mengele (Àlex Brendemühl), conhecido como Todesengel, “O Anjo da Morte“, médico responsável pela área de Auschwitz-Birkenau e que fazia terríveis experimentos com crianças judias durante a Segunda Guerra Mundial. A lenda sobre ele reza que seu fim de vida foi peregrinando pela América do Sul. A trajetória do clã acaba tendo a verossimilhança aplacada graças à iluminação chapada, ao estilo de folhetins televisivos. Os tons de cor clara passam a ser um incômodo. A tentativa de guardar o mistério para a parcela do público que não conhece a história poderia ser um artifício melhor construído, e não o é graças a um descuido excessivo por parte da realizadora.

    Pela natureza do seu trabalho de geneticista, Josef se vê na obrigação de indagar a mãe da família, Eva (Natalia Oreiro), sobre a condição da falta de crescimento da pequena Lilith (Florencia Bado). Além de ser o elemento catalisador da discussão dentro do filme, a garota também é a figura de mais fácil identificação com o público, por ser uma menina indefesa, injustamente presa a um estado de saúde precário. As figuras responsáveis por Lilith são reticentes quanto ao estudo de sua condição, não tendo qualquer receio de declarar isto ao médico – mesmo sem saber de sua história pregressa. Quando dá-se início aos exames, a desconfiança fica estampada no rosto dos membros do clã.

    O vislumbre para a possível solução da crônica deficiência da menina não ilude muito os seus pais, mas faz a menina sonhar, de modo intenso, o desenvolvimento de seu corpo. A fabricação de bonecas pelo patriarca serve de paralelo para a construção de membros que são postos em seu lugar de modo mecânico, remetendo à artificialidade com que se “constrói” o novo corpo de Lilith. As cenas no interior dos armazéns, com mulheres montando os brinquedos de modo industrial, têm um tom um pouco macabro se comparado com o modo deveras otimista que a moça enxerga o mundo ao seu redor.

    Apesar da premissa interessante, o roteiro de Puenzo pouco envolve o público, até por não haver crença de que Mengele pudesse ser um alguém livre de suspeitas ou um benfeitor. As atitudes da família em deixá-lo tratar a caçula são estranhas, considerando a paranoia do pai. O modo como tais questões são conduzidas tornam-se incoerentes, dado que a atitude e a postura do personagem não coincidem. Nem mesmo a justificativa de um possível desespero, que faria a família procurar soluções drásticas, torna a história mais palatável.

    Nos instantes finais, Lilith é quem percebe que algo está enormemente errado consigo. Há mais atitude nela do que em seus predecessores familiares, mas sua reação é tardia. O médico prossegue seus experimentos e, ao final do filme, foge, tendo apenas uma mensagem pré-créditos que discorre um pouco sobre como Mengele prosseguiu usando crianças como cobaias de seus temíveis testes genéticos, cujos boatos apontam uma praia brasileira como última passagem do assassino incógnito. O filme falha em propor um caráter conspiratório ao público e tampouco comove, graças à fraca composição de background dos protagonistas. O Médico Alemão torna-se algo descartável principalmente quando comparado com o que poderia ter sido.

  • Crítica | O Que Os Homens Falam

    Crítica | O Que Os Homens Falam

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    A sutileza narrativa presente em diversas produções de língua espanhola sempre produz dúvida quanto ao gênero pertencente ao filme. Se a história de O Que Os Homens Falam fosse produzida por um grande estúdio americano, com elenco de estrelas e de estética perfeita, haveria a possibilidade da trama reduzir-se a uma série de cenas cômicas, entrecortadas por um roteiro que não alcança o drama desejado.

    A linha cômica que atravessa a produção dirigida por Cesc Gay não produz o riso fácil, mas corrói pela ironia que desperta no desencontro do homem adulto e contemporâneo, através de seis pequenas histórias que recortam as mesma metrópoles.

    No filme, homens na casa dos 40 anos que há muito perderam o viço da juventude e a credulidade de uma vida madura mantida com estabilidade. Vivem a crise do homem da meia-idade que se descobre imaturo e sozinho. Os diálogos travados em cena são francos. Amigos que se encontram por acaso e que, em razão da antiga intimidade, abrem seu coração. Desaguam mágoas contidas por esposas que foram embora, por traições, e, pouco a pouco, destroem a imagem viril do homem contemporâneo capaz de dominar a própria vida.

    Sem nomes estabelecidos na película, os personagens se despem emocionalmente sem vergonha de suas próprias desgraças. Nas primeira cenas, o personagem vivido por Leonardo Sbaraglia sai da terapia às lágrimas e encontra-se com um antigo colega (Eduard Fernández). Os amigos demonstram um carinho afetuoso um pelo outro mas, com o passar de suas histórias de vida, parecem desencantar-se com a própria trajetória. São homens que tiveram planos e falharam. Retornam a um momento anterior em que tentam se reconstruir, mesmo que de volta à casa da mãe. Unidos por um passado em comum, tentam resgatar a amizade, mesmo sem revelar explicitamente que ela está morta.

    A sinceridade em cena espanta por sua naturalidade. Javier Cámara interpreta um ex-marido que, ao levar o filho para a casa da antiga esposa, deseja reatar com ela. Através da porta de um banheiro, declara seu amor. Assume os erros pela traição mas, ainda assim, sente que uma chama permanece. Pouco se sabe sobre a relação do casal, exceto o término e a sensação de um homem ainda entorpecido pelo erro. Desesperado para reconstruir a própria história.

    A traição é vista sob a ótica, oposta na história, do personagem de Ricardo Darín, obcecado em frente a um apartamento que sabe ser o do amante da esposa. “Ela nunca soube mentir”, diz para um amigo que ele reconhece na praça onde está situado. De maneira franca, sem o julgamento violento de um homem traído, procura compreender a esposa, suas razões para traí-lo, e se a conduta dela foi errônea.

    Em outra trama, focando o ambiente de trabalho, Eduardo Noriega é um homem interessado em uma colega. Após anos trabalhando juntos sem trocarem uma palavra, estão preparados para um diálogo afiado entre atração física e sexual. São histórias de indivíduos à margem de si mesmos, ainda que sem o próprio reconhecimento. Possuem uma vida a qual não imaginaram no passado. O desgaste do papel masculino revela toda a fragilidade do homem contemporâneo.

    A última história reúne quatro personagens em dois diálogos que se espelham. Há uma simbólica troca de casais em cena. Enquanto A. e Maria se encontram ao acaso e decidem ir juntos de carro a uma festa, seus respectivos cônjuges, Sara e M., estão em um mercado comprando bebidas para a festa em questão.

    A intimidade demonstra o desgaste das relações e o desconforto de ambas as esposas com a falsa virilidade criada por seus maridos, e a dificuldade de fazerem-nos aceitar os próprios problemas para modificá-los. São homens vivendo a negação consigo mesmos mas ainda dispostos a dar conselhos e ajudar o próximo, como se fossem invencíveis.

    O título brasileiro da produção apoia-se na frase do pôster original: o que pensam os homens quando não estão conosco? Uma frase que parece aproximar-se de uma comédia machista cujo enfoque seria o homem em seu estado mais bruto. Porém, resulta em uma sensível narrativa onde o cômico é patético, centrando em homens que perderam as próprias amarras e estão à deriva.

    O excelente elenco sustenta cada uma das seis histórias de maneira talentosa. O onipresente Ricardo Darín tem destaque maior tanto no cartaz brasileiro quanto no espanhol. Porém, sua presença em cena é a mesma de outras personagens, ainda que sua figura como ator seja sempre um atrativo aos olhos do público, o que explica sua projeção um pouco mais acima nas imagens de divulgação.

    Um drama irônico sobre a imagem do homem viril em contraposição ao seu frágil interior. O Que Os Homens Falam é uma dessas pequenas histórias cotidianas que conquistam pelo bom elenco e pela relação sincrônica com o contemporâneo.

  • Crítica | Querida, Vou Comprar Cigarros e Já Volto

    Crítica | Querida, Vou Comprar Cigarros e Já Volto

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    Bodes em cima de árvores – em Marrocos qualquer coisa pode acontecer – e é com essa sentença nonsense e completamente insana que a película de Gastón Duprat e Mariano Cohn começa. Querida Voy a Comprar Cigarrillos y Vuelvo é um de exercício surrealismo certeiro, ufano e muito competente. Flerta com um realismo fantástico e apresenta um universo próprio.

    Baseado no conto homônimo do escritor argentino Alberto Laiseca, o roteiro conta a história de um sujeito ordinário – Ernesto, personificado por Emilio Disi – que vê a possibilidade de voltar no tempo e reaver sua juventude, mas com a mente envelhecida que tem naquele momento. A forma como ele “retrocede” é através do poder de um sujeito atingido por um raio – Eusebio Poncela – que ganhou poderes de um mini-deus (ou mini-diabo de acordo com a preferência do público). O Imortal em questão tem poderes telepáticos, e consegue controlar as ações dos humanos em volta de Ernesto, e em determinados momentos, ele veste a máscara de mentor e inspira o protagonista.

    O filme traz metáforas interessantes, como a extrapolação da vida real e retorno às memórias, revivendo as boas e más sensações vividas pelo homem, mas também toca em temas menos “açucarados”, como tentativas fracassadas de redenção – quando Ernesto percebe isso, cede aos seus reais desejos – fama, dinheiro e mulheres. Daí em diante começa um show de horrores, com o protagonista se valendo de seu conhecimento do futuro para conseguir lucro próprio, mas quase nunca com êxito.

    “Meu pai que sabia das coisas, dizia que a vida é uma torta de merda, e que cada dia, temos que comer um pedaço!”

    A ótica exposta pode parecer pessimista num primeiro momento, mas analisando de forma atenta, o espectador constatará que não é. A história é de um humor estúpido, às vezes, mas absurdamente fino e cruel em outros. Um recurso interessantíssimo é a narração, ora feita por Ernesto, ora por Alberto Laiseca, o que garante um caráter metalinguístico e raro. As tiradas e os diálogos são um dos pontos fortes também, como este: “O desgraçado (Ernesto) acredita na justiça, como se morasse na Suíça, pobrezinho!” – é verborrágico em alguns pontos e completamente silencioso em outros, e ainda assim, bastante equilibrado e comedido.

    Querida, Vou Comprar Cigarros e Já Volto é uma comédia sobre apatia e a dificuldade de se quebrar a rotina, utilizando-se do conceito de multiverso para provar seu ponto. É uma crítica ao tédio e à mediocridade, leva o conceito de Deus Ex-Machina a uma história ordinária e despreocupada em passar uma mensagem profunda, o que não é demérito algum.

  • Crítica | Tese sobre um Homicídio

    Crítica | Tese sobre um Homicídio

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    Analisemos o pressuposto seguinte: mesmo que cada obra de arte contenha uma intenção clara de seu artista, haverá interpretações subjetivas. A condição se justifica por elementos diversos e define a opinião de cada um que intenta produzir uma análise crítica de uma obra.

    O pretexto subjetivo em que me apoio é o apreço pelas narrativas policiais que tenho desde minha formação como leitor. Um motivo que me deixa em alerta quando vejo uma história que apresenta um mistério, seja ele tema central da história ou periférico.

    Tese Sobre Um Homicídio deve seu prestígio ao carisma talentoso de Ricardo Darín. O representante máximo do cinema argentino há mais de dez anos, onipresente em diversas produções, em parte porque tem reconhecimento internacional, e suas produções, sem exceção, ganham boa distribuição. Dando-nos a impressão de que somente o ator trabalha no mercado dos hermanos.

    A presença do ator e a história envolvendo um assassinato foram os responsáveis pelo sucesso em seu país de produção, com destaque para a personagem de Darín que se destaca desde sempre pela competência e entrega com que o argentino realiza.

    Roberto Bermúdez (Darín) é um advogado que, devido ao prestígio da carreira, realiza seminários no curso de direito da faculdade, escreve livros sobre a doutrina jurídica e possui laços com a polícia para consultas em casos que necessitam de maior atenção.

    Em sua primeira aula do novo curso, um assassinato ocorre no estacionamento da faculdade. Ao inserir na sala de aula a realidade do crime recém ocorrido, faz com que a suspeita recaia sobre Gonzalo Ruiz Cordera, aluno que chega atrasado no dia em questão

    A história se constrói ao redor destas personagens: Bermúdez, como grande advogado admirado desde a infância por Gonzalo, que esteve em seu seio familiar devido à amizade com o pai. As poucas aproximações entre professor e aluno produzem um discurso oposto sobre a força da justiça, a punição e a morte. Nascendo uma sombra de dúvida no advogado-mestre que o faz investigar de forma informal o homicídio.

    Se a margem da dúvida faz parte da investigação criminal, há outros fatores e procedimentos que determinam a investigação de um crime. A lacuna da suspeita é o espaço para que se compreenda que o crime em si se desenvolve a margem da história, como o gatilho para as dúvidas do advogado.

    A personagem de Darín foi comparada por alguns críticos a um clássico personagem noir por sua perdição. Mas vejo proximidade somente quando se observa que a personagem é maior do que a história em si, maior que o crime. Semelhante a muitas histórias do gênero citado, que fazem da morte apenas uma prerrogativa para apresentar um ambiente dúbio.

    Reconhecemos este elemento quando observamos que o advogado bem sucedido sente-se deslocado do curso natural da vida. Perdeu a esposa, não tem filhos, não vê mais planos futuros na carreira e passa a maior parte do tempo sozinho em sua casa bem decorada, bebendo e fumando.

    No vazio existencial nasce o jogo obscuro da dúvida alimentada pela obsessão de descobrir certa noção da verdade, suspeita que se volta para o aluno sem suspeita aparente. Tudo que vemos é modificado aos olhos do advogado. O elemento parcial convence o espectador de uma certeza não provada, cativada pela composição da personagem, induzido pela dúvida uma certeza.

    De maneira equilibrada, a decupagem trabalha a favor das inferências apresentadas pela dúvida. Em diversas cenas, a câmera passeia por espelhos, reflexos, vidros distorcidos, revelando que nem sempre observar um objeto é vê-lo da maneira como é, sendo impossível vê-lo com olhos imparciais ou, pressupondo-se que não há uma verdade absoluta, vendo da maneira mais fiel possível.

    Mediando a dúvida está o espectador, tão heroico como o personagem central, que deseja descobrir e acreditar que a suspeita da personagem é verdadeira. Ainda que, a parte a subjetividade, não há nada de concreto.

    A tese é apenas a enumeração de possíveis acontecimentos, cabíveis de interpretação pelo público. Um roteiro construído para equilibrar-se na dúvida.

  • Crítica | O Dia em que Eu não nasci

    Crítica | O Dia em que Eu não nasci

    O Dia em que Eu não nasci

    Logo no início do filme somos apresentados a Maria Falkenmayer (Jessica Schwarz), uma garota alemã que, em escala no aeroporto de Buenos Aires em sua viagem pela América do Sul, ao ouvir uma canção de ninar desaba em lágrimas sem sequer saber o motivo. Compelida a descobrir o que significava aquele sentimento misterioso que havia surgido dentro de si, Maria resolve se aventurar na capital argentina sem nem ao menos perceber que está entrando em uma jornada perturbadora de autoconhecimento.

    O inexplicável leva a protagonista a descobrir que seus pais biológicos na realidade são argentinos e que eles foram vítimas da ditadura no país, ocorrida em meados dos anos 80. Anton Falkenmayer (Michael Gwisdek) tenta convencê-la a aceitar a realidade e desistir de sua busca pelo seu passado, mas não encontra êxito, pois Maria está obstinada em saber a verdade.

    Um filme que explora a obscuridade da verdade do começo ao fim. O espectador está tão perdido quanto a protagonista do filme, que também se atrai em querer saber a verdade. Jessica Schwarz ganha destaque em sua atuação, cujo expressivo semblante consegue carregar as emoções que estão contidas por toda a extensão da projeção. As filmagens sempre feitas próximas ao corpo da atriz ajudam a fazer com que o espectador se apegue cada vez mais aos sentimentos e à forma que Maria age.

    Não é possível falar de O dia em que eu não nasci sem dar grandioso destaque para a ambientação de suas filmagens, mescladas com uma trilha sonora melancólica que ,por mais clichê que seja em filmes do gênero, se encaixa perfeitamente na atmosfera do filme dirigido por Florian Micoud Cossen.

    É perceptível uma certa crítica à falta de informações que muitos países possuem (inclusive o próprio Brasil) em períodos de autoritarismo por que passam. Fantasmas desses tempos obscuros que são carregados por várias pessoas no mundo todo, incluindo Maria.

    O dia em que eu não nasci é um filme encantador que faz com que nos percamos nas ruas da Argentina junto com a protagonista do filme. Uma verdadeira imersão ao desconhecido.

    Texto de autoria de Pedro Lobato.