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  • Crítica | Meia Hora e as Manchetes que Viram Manchete

    Crítica | Meia Hora e as Manchetes que Viram Manchete

    Fazendo da piada a sua maior pauta, tentando alcançar o público popular: este é o resumo da linha editorial do jornal Meia Hora, o tabloide do grupo comunicacional O Dia. Encabeçado por Angelo Defanti, o documentário resgata as origens da publicação desde a proposta de resgatar o cunho de populacho que a antiga publicação tinha.

    Por vezes, a editora do Meia Hora foi acusada de não ter sensibilidade. O caso da briga de Dado Dolabella e Luana Piovanni foi por este viés, com uma brincadeira de trocadilho típica do jornal. Segundo Humberto Tziolas – atual editor-chefe – e Henrique Freitas, antigo editor da publicação, são “ossos do ofício, uma vez que o chamariz era valioso. O diferencial que capturava a atenção do leitor logo de cara teria de ser inédito, e não meia-boca.

    Para o teórico Muniz Sodre, o jornal popular pode fazer troça com a notícia, pois usar uma parte engraçada para evidenciar a verdade faz parte do comunicar, ainda que isso fuja um bocado do ideal, como é o caso dos noticiários populares.

    O folhetim ficou famoso por suas notórias homenagens póstumas e obituários. O gosto, ou desgosto, pelo artifício diverge de pessoa a pessoa, e o fato disto ser polêmico faz parte do modus operandi do Meia Hora. A trajetória do O Dia variou muito: de jornal conhecido pela máxima “se espremer, sai sangue” à rival do O Globo, a gazeta praticamente se tornou o único jornalzão após a queda do Jornal do Brasil. Com a adição de O Extra, que desbancou grande parte dos órfãos leitores do O Dia, o grupo encabeçado por Gigi Carvalho resolve recontratar Eucimar de Oliveira, antigo editor-chefe do jornal e criador dos formatos de O Extra.

    Pensando em algo de baixíssimo preço e voltado para o boy, para o cozinheiro, para o garçom e para toda a classe C, nascia o Meia Hora. Apesar da máxima parecer preconceituosa, o público abraçou a publicação, com as vendas caracterizando o maior diferencial para desbancar o argumento de que o leitor é subestimado.

    A base da discussão para as capas prima por fofoca, ação policial, os quatro times grandes do Rio, prestação de serviços, como anúncios de oportunidades de emprego e, claro, fofocas de famosos; a desgraça dos famosos faz o luxo do leitor.

    Outro estratagema é o tratamento dado à morte de bandidos, em que se confunde jocoso com comemoração das mortes dos culpados pela lei. A acusação de fascismo, inclusive, é, às vezes, justificada pelos editores logo depois da edição ser publicada. O tripé “Sangue, Sexo e Futebol” garante ibope; a ética é de difícil fusão. A lógica simplista é complicada, por vezes fazendo com que o jornal assumidamente abra mão da piada. Para os editores, as capas mais importantes são as provocativas, que cobram uma postura veemente das autoridades, especialmente das polícias. Esta é a parte séria.

    A autoria da ideia por trás do Meia Hora não é assumida por parte dos comunicadores. Enquanto a ex-dona do grupo, Gigi de Carvalho diz que foi ela a responsável, Eucimar prefere deixar para os outros depoentes falarem a seu respeito. Os méritos a respeito da paternidade da matéria são valorizados pelos números das vendas do jornal.

    Segundo a teoria da comunicação, não há uma abordagem menos ou mais ética, ao menos do ponto de vista da linguagem. O que pode ocorrer é o juízo de valor vazio ou desonestamente parcial, acusação na qual a publicação não é comumente enquadrada. O modo como o tabloide se popularizou pode ser encarado de duas formas: a primeira é mais crítica, abordando a tentativa de expressar o pensamento das classes econômicas menos favorecidas de maneira fútil e sensacionalista, o que gera um pensamento preconceituoso, de fobia ao pobre. Outra alternativa é enxergar a questão como mais uma manifestação dos marginalizados, que finalmente têm um material para ler que realmente os represente, não os tratando como estranhos, tampouco ditando a eles o que pensar.  Defanti faz toda a investigação que precisa via câmera. A abordagem ainda permite ao espectador tomar partido de acordo com o próprio repertório, salientando que o coitadismo com que a maioria do público do folhetim vê é indevido, já que não é ele digno de pena ou comiseração.

  • Crítica | O Presidente

    Crítica | O Presidente

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    O novo filme de Mohsen Makhmalbaf explora uma história fictícia cujos desígnios remetem a tragicômica veracidade do sistema político de muitos países. O início, com uma música clássica, remete a um sistema governamental deveras arcaico.  O lugarejo simulado apresentado na fita é localizado no Cáucaso, e governado com punhos de aço por um presidente totalitário, vivido por Misha Gomiashvili.

    Os dias do mandante são vividos quase na totalidade em uma frieza atroz, normalmente nos palácios e bastidores do poder. O Presidente se permite demonstrar humano e suscetível à sentimentos quando está com seu neto Dachi (Dachi Orvelashvili). Ao expor de maneira exibicionista o seu poder ao “herdeiro”, o estadista enfim nota a contestação do povo em relação à política, e observa o início de um motim.

    O modo desconjuntado como anda o menino emula a dificuldade em governar de seu antecessor. O fogo flagrado pela câmera mostra a violência das manifestações e a tomada de poder contrária aos personagens focados pela lente de Makhmalbaf . A tentativa é de mostrar as vidas, tanto a do ditador por trás da figura de poder, quanto dos mártires assassinados pelo autoritarismo exacerbado.

    As cenas que se seguem após a fuga da família do soberano misturam elementos de horror e thriller. O receio é passado ao público e a troca de poder é rápida. As forças armadas mudam de lado instantaneamente deixando de tocar com banda para mudar a farda e caçar seus antigos empregadores. Enquanto o presidente troca de veículo após se ver em meio a um bando de ovelhas, seres dóceis e obedientes, diferentes das recém-tomadas atitude do povo.

    O contraste entre a vida rica e cheia de luxos do outrora rei, e as condições econômicas dos camponeses fazem o antigo político sentir na pele o mau governo que realizou, incapaz de dar sustento necessário as famílias. Sem as vestes militares, é a empáfia que segue firme no caráter que o diferencia dos homens comuns.

    Aos poucos a trajetória do ex-mandatário o dobra, fazendo se arrepender – ao menos de ter sido tão teimoso ao não fugir com o resto de sua família – pondo em risco a vida de seu progênito. A rotina muda até os nomes das personagens, em consequência a isto. Saem os títulos oficiais para alcunhas menos pomposas, o rei posto se mostra penitente, ele chega até a assumir seu péssimo gênio, antes de seguir em seu teatro pessoal, fingindo ser um músico nomadista.

    Ao viver alguns dias na miséria, o ex-governante observa uma outra visão. Ao perceber o flagelo de uma mulher injustiçada, o Presidente prefere fechar os olhos, provando que algo mudou em si. O dilema moral que sofre não se iguala a queda vertiginosa de conduta de grande parte do povo, que em meio a selvageria sem liderança, regride e agride os seus iguais, o que prova que a malignidade não habita somente o coração do Líder, mas também dos concidadãos que residem no país. A companhia que resta ao antigo poderoso é composta por presos políticos. Homens que sofreram por suas péssimas ações governamentais, cujos posicionamentos são variados, uns sendo revanchistas e outros mais conciliatórios. Ali ele reparte tudo o que tem, e até confronta os “terroristas” que mataram parentes seus.

    O quadro ultrarrealista pintado por Makhmalbaf é pior que qualquer imaginação de um ficcionista, por escrutinar um lado recorrente das repúblicas não democráticas de países periféricos ao cenário da elite mundial. Os ecos de terceiro mundo são vistos em cada cenário, paisagem, vestimenta, na fome e nos corpos das vítimas conterrâneas do desolado lugar, causados pelas baixas da guerra civil.

    As partes finais são em descenso, quase sem alívios cômicos, degradantes como a existência dos populares do fictício país, podre como a alma do seu antigo mandatário. Apesar de uma cena epilogar um pouco aquém do plot de fuga – mas absurdamente emocionante e trágica -, o rei se faz parte do povo, o que não o exime da culpa e nem da fúria dos explorados e desmazelados. A ânsia pelo sangue do tirano é tanta que uma morte só é pouco, e o modo da execução muda de acordo com os vitimados secularmente por seus anos de domínio. Para não esquecer a abordagem dos olhos de um menino, o destino do ancião não é mostrado, mesmo após as quase duas horas que tentam fazer o público se afeiçoar, mas sem permitir que o salário do protagonista seja finalmente cobrado, tendo como fim seu irremediável destino.

  • Crítica | Blind

    Crítica | Blind

    Tomando por base a privação do (talvez) mais importante e notório sentido básico humano, Blind, do norueguês Eskil Vogt, narra a história de Ingrid (Ellen Dorrit Petersen), em adaptação muito recente a sua perda da visão. Até o preto, predominante na maior parte dos anúncios cinematográficos de créditos serve a narrativa, antecipando alguns detalhes típicos do costume visual, e da observação minuciosa das particularidades e pormenores do cotidiano em meio a cidade grande.

    O modo de contar a história, com uma relato direto de Ingrid empresta uma pessoalidade enorme a fita, maximizada pela experiência de seu diretor em estabelecer roteiros onde o drama do recomeço é presente – como em Começar de Novo e Oslo, 31 de Agosto. A reinvenção de Ingrid passa por todas as outras sensações inerentes aos quatro sentidos que lhe restam, o que faz com que seus toques sejam mais profundos, na tentativa de intensificar o tato, e que os sons predominem bastante na sua rotina, fato que naturalmente exige uma mixagem e edição de som.

    É engraçada como a movimentação da observação e do julgamento do mundo e daqueles que o habitam é muito mais sereno pelos “olhos” de quem não mais vê. As conclusões de Ingrid a respeito de Einar (Marius Kolbenstvedt), seu parente, por exemplo, não são amenizadas por nada: Ela o enxerga como um coitado, ao se deparar com a pornografia e com o desejo a todas as mulheres existentes, como uma ode ao corpo feminino sem fim, mas que esbarra no platonismo intransponível, não transgredido apesar de toda a vontade contida em seus movimentos e em seus olhares. A vagina e tudo que a acompanha é exibida em um pedestal, que se torna ainda mais alto graças a culpa que ele sente ao não conseguir agir além da masturbação e da culpa por não fazê-lo, já que até o desejo a outras mulheres é tecnicamente pecado, ou um movimento no mínimo antiético.

    Outra história exibida pelo julgamento fugaz de Ingrid é o de sua vizinha, Elin (Vera Vitali), que mesmo morando a poucos metros dela, existe em uma realidade muitíssimo distante da protagonista, especialmente por sua vida familiar ser conturbada e repleta de sofrimentos, impingida pelas ações egocêntricas de seu ex-marido, que consegue afastar dela o que é mais importante – seu filho. O vazio do seu espírito e a tristeza de sua alma são muito bem classificados dentro da fita.

    O modo como Ingrid analisa vidas alheias é bastante evasivo, com cotações morais e um enorme juízo de valor, ainda que isto sirva mais para catalogar as vidas do que para achar soluções para aqueles dramas. Ingrid tenta a todo custo ser invisível em sua própria história, esboçando uma neutralidade de quem aparentemente desistiu da própria vida, já que grande parte dela se foi com a perda de um bem elementar.

    Logo, essa insensibilidade é justificada e mostrada como a resposta a rejeição que sofreu por parte de seu ex-parceiro, Morten (Henrik Rafaelsen), que não tinha qualquer receio de flertar com outras mulheres via internet ao lado de sua recém cega esposa, que entregava sua bela nudez a ele, não tendo em troca sequer uma mínima atenção sexual. A autoestima dela conhecia cada vez mais o sentimento de recusa e até de repudio, por uma categoria de “invalidez” não escolhida por ela. Dadas as condições, é natural que prefira somente tecer comentários sobre a vida alheia.

    Os destinos manifestados em tela se confundem próximo ao final, mostrando uma vitimização das personagens femininas, não mais somente de Ingrid. Os ecos deste reclame vão desde ao machismo a uma profunda misoginia, intensificada pela vulnerabilidade das personagens estrogênicas, sepultadas ante a predominância do mandamento masculino, que até as faz sentir como inferiores diante do poderio destes. A sensação de auto-culpa acabar por injustamente predominar, fazendo da fuga antes citada uma boa maneira de agir ante a uma auto-comiseração.

    Blind consegue abranger muitos assuntos, ainda que sua ótica seja parcial, de entrega e de um temível conformismo ante a um paradigma praticamente imutável, seguindo a lógica da trajetória de sua protagonista.

  • Crítica | Trash: A Esperança Vem do Lixo

    Crítica | Trash: A Esperança Vem do Lixo

    Rafael (Rickson Tevez) treme com um revólver na mão, uma ânsia de fazer ou não justiça com as próprias mãos. O drama certamente seria melhor aceito caso não predominasse na retórica de Trash: A Esperança Vem do Lixo uma abordagem artificial, em uma das menos inspiradas fitas de Stephen Daldry. O tema da violência urbana, com uma perseguição de policiais a pessoas de classes menos favorecidas e secularmente marginalizadas surge com dois dos atores brasileiros com mais sucessos comercias no currículo.

    Wagner Moura vive José Angelo, um morador do subúrbio, perseguido por ter informações importantes sobre um poderoso político. Ao se livrar de sua carteira, ele condena o menino Rafael, que acha a bolsa com dinheiro e outros objetos misteriosos. O lado repreensivo do filme começa por apresentar arquétipos muito estereotipados dos moradores da favela, que embalam seu trabalho no lixão ao som do sugestivo Rap da Felicidade, cujo conteúdo é ofensivamente óbvio. A situação piora com as crianças da comunidade nadando em um rio imundo, repleto do mesmo lixo que os moradores de lá coletam, como se entre os meninos e homens não houvesse qualquer noção de saúde ou civilização. A postura de um dos garotos é de completa subserviência com a polícia, fundamentado em cima de um vocábulo pobre, baseado em gírias que mais taxam pejorativamente os jovens do que os faz parecer reais e com voz ativa.

    A sucessão de preconceitos segue, apresentando personagens sem profundidade, pessoas que moram no subterrâneo de uma estação de trem (Central do Brasil), semelhantes aos Morlocks das revistas mutantes da Marvel, mas com a pretensão de mostrar uma história real, mas que evita a todo custo o uso de palavrões, já que seria esta uma história para toda a família. Demonstrar mazelas sociais e delinquência juvenil com uma abordagem conservadora só piora o escopo do filme, que simplifica todas as relações com soluções muito fáceis.

    O Brasil para exportação exibe a civilização dentro da comunidade para os estrangeiros, vividos por Rooney Mara (Olivia) e Martin Sheen (Padre Julliard), que são os únicos dentro do complexo com acesso a internet, o que não impede os meninos de acessarem o Google como se fossem especialistas nisto, mesmo não tendo acesso a internet em casa. A verossimilhança não parece ser a pauta principal do filme, já que não há a mínima preparação de background dos personagens, ou uma maior preocupação com os cenários envolvidos. A concepção de República das bananas é a base para a maioria das ações dentro do cenário do país.

    Uma vez que o entorno é mal construído, nem os atos ultra violentos de tortura conseguem retornar a fita a uma séria abordagem. As injustiças sociais mostradas no país são tão pueris como eram em Velozes e Furiosos 5, tendo em comum com o filme de assalto até a ingerência de estadunidenses como os portadores máximos da justiça, arautos de uma civilização que a subdesenvolvida nação jamais conseguiria alcançar sozinha.

    A ótica das crianças talvez seja a maior desculpa para as incongruências, falhas de concepção e falta de lógica, mas até isto esbarra na tacanha narrativa, que é cortada pelas falas dos meninos, que quebram a quarta parede e ajudam a revelar ainda mais os problemas da história. Para alcançar o vilão e deputado Santo (Stepan Nercessian), os meninos agem como miquinhos amestrados, que invadem casas e passeiam pelos esgotos da cidade; na cadeia, mais parecidas com as dos filmes americanos do que com a realidade dos presídios de Bangu. Tudo isso para exibir uma mensagem emocional, de cunho redentor, de luta pelo povo, ainda que retratar bem a população mazelada não fosse a prioridade de Daldry.

    A tentativa de explicar tudo por meio de um documentário filmado por Olivia é o tiro de misericórdia nas motivações e intenções do filme em se levar a sério, já que convenientemente consegue registrar não só as palavras dos meninos, mas também um dos muitos pecados de Frederico (Selton Mello), um policial que faz da justiça a justificativa para qualquer miséria que pense em impingir aos personagens. Nem mesmo ante a destruição de seu mísero patrimônio os jovens conseguem se emocionar de um modo que pareça real. A triste realidade brasileira que tencionava ser finalmente exposta é risível ante toda a fantasia presente no guião de Richard Curtis.

    O costume de habitar a sujeira é comum aos personagens infanto-juvenis, uma máxima tão torta quanto a ideia genial de que o dinheiro puro e simples resolveria os problemas sociais de um país tão atrasado que permite os mandos e desmandos de estrangeiros em sua própria terra. O modo estúpido como a renda é redistribuída só é superada em tosquice pela ingênua noção de que basta a boa vontade para vencer o mal da corrupção instaurada no país. Trash revela muito de como a opinião pública internacional vê o brasileiro, de maneira xenófoba, evidenciando o quanto subestimam a inteligência do cidadão médio, se valendo de uma trama fraca sobre uma realidade que não pode ser modificada, tampouco reavivando as manifestações de Junho de 2013 através deste viés tão simplista, e pueril.

  • Crítica | O Cordeiro

    Crítica | O Cordeiro

    Centrado nas montanhas da Anatolia, uma região da Turquia onde é exigida a circuncisão de seus meninos, que logo é seguida por uma festa de celebração, O Cordeiro (Kuzu) conta a trajetória de uma família que tem muitos problemas, tentando manter a estabilidade entre seguir as rígidas tradições do local e o equilíbrio emocional da família.

    A história é bifurcada, mostrando essencialmente os dramas adultos, que variam nas trajetórias dos pais, em que o homem não tem condições de sustentar seu lar, tornando-se assim um ser inseguro, sem perspectiva de uma auto-estima saudável ou algo que o valha. Nem mesmo para repreender seus filhos com pequenas broncas ele consegue.

    A história paralela mostra a visão agridoce e essencialmente fantasiada de Mert (Mert Tastan), o caçula da família, que vive sua infância em um lugar árido, mas que ainda guarda uma imaginação fértil, capaz de levá-lo às paragens mais incomuns e nonsense possíveis. Motivado por uma anedota contada por sua irmã mais velha, ele acredita correr perigo de morte caso seu pai não consiga um carneiro para realizar a festa que comemoraria a sua circuncisão, crendo piamente que caso eles não consigam, o próprio menino seria o prato principal do banquete referente ao rito de passagem.

    Os preconceitos sociais típicos do vilarejo são tratados de modo anedótico, pelos olhos de uma doce criança, que ainda não tem autonomia para pensar sozinha, somente repetindo os maus pensamentos que ouve. O menino sofre na pele a diferenciação social entre as classes. Experimenta a estrada como uma criança Kerouac, sofrendo do vento, da fome, da neve e do bobo medo de ser sacrificado, após a brincadeira da irmã. Apesar de sofrer ações indiretas em sua rotina, o menino sequer tem noção de que ele e sua família sofrem uma exclusão social por méritos da desgraça de seu patriarca.

    A lente de Kutlug Ataman é feita em grande parte da película no recurso de câmera na mão, no intuito de imitar a realidade presente nos gêneros documentários, e em quase toda a duração do filme ela acerta, uma vez que a verossimilhança é a tônica dos dramas mostrados em tela. O espectador é convidado a experimentar as mesmas sensações dos personagens, desde a depressão do pai, Ismail (Cihat Gök), o desespero da mãe Medine (Nesrin Cavadzade) e a docilidade de Mert, tendo em toda a sua ingenuidade e sinceridade as melhores tiradas, tanto as sérias quanto as cômicas, repletas de escapismo pueril e balanceado.

    O desespero de Medine a faz recorrer a ações temerárias, que visam mudar o quadro em que vivem a custos altíssimos, quase nunca logrando êxito, tendo até sua ética discutida pelos circunvizinhos, piorada mais por ser aquela uma sociedade paternalista e que liga a honra às posses.

    A volúpia pela ostentação junto aos vizinhos faz o casal correr atrás de dinheiro de modos nem sempre dignos, com a mulher penhorando seus bens e o homem pondo a venda o seu corpo, rediscutindo o conceito de mais valia. A humilhação paira sobre a cabeça da mãe, que se põe em posições dificílimas, assim como aos seus filhos, indo ao encontro da infiel, implorar que deixe seu marido.

    O desespero de Ismail é tanto que ele chega a ficar foragido, sem dar qualquer sinal de vida ou assistência aos seus. A fuga dele é motivada por insegurança e vergonha, conceitos ligados demais ao machismo e chauvinismo típicos do lugarejo. O roteiro insiste em retomar o assunto a todo o momento.

    Quando o fatídico dia chega, a vergonha maior é evitada com o serviço de banquete regado ao carneiro, bulgur e ayran. O ritual joga uma fina e frágil camada de hipocrisia sobre a igualmente frágil estrutura familiar, que por sua vez é sabiamente registrada pela câmera de Ataman. O final demonstra uma ruptura que se via necessária há muito, e que finalmente ocorre após os escândalos sexuais daquele que deveria ser o protetor da família, mas que na prática só fez envergonhar e maldizer os seus. O destino de Medine e Mert teria qualquer chance de não ser trágico, uma vez que estava longe daquele que impingiu temor e inseguridade em suas vidas.

  • Crítica | La Sapienza

    Crítica | La Sapienza

    A definição da palavra sapiência refere-se ao excesso de conhecimento, algumas vezes relacionado a onisciência, típica do Divino. O novo filme do francês Eugène Green apresenta esta sensação, se valendo de arquétipos que a priori são vazios e frios, mas que ao longo da fita exibem curvas dramáticas atrozes e vidas repletas de angústias e anseios, quase sempre não alcançados.

    A câmera de Green em La Sapienza contempla monumentos europeus, artes barrocas e clássicas, antecipando o ideal arquitetônico dos personagens que mais tarde serão explorados pela lente inconformista do diretor. As relações mostradas a partir do casal Alexandre (Fabrizio Rongione) e Aliénor (Christelle Prot Landman), cuja aproximação está claramente deteriorada graças a rotina de anos lado a lado, uma postura vinda de ambos os lados, o maior catalisar dessa condição.

    As relações frias, formais, rígidas e distantes seguem por todo o roteiro, especialmente quando a dupla resolve mudar para a Itália. A troca de país os faz discutirem a respeito da rigidez da língua francesa que serve mais como uma alegoria à insensibilidade do casal médio francês. O enquadramento de fala individual mais uma vez remete à distância entre as linguagens, onde microcosmos tão distintos teimam em se tocar.

    A rotina insossa do par é cortada por uma dupla de irmãos, cuja menina desmaia em meio a rua, tendo em Aliénor o seu socorro. Agradecidos, Goffredo (Ludovico Succio) e Lavinia (Arianna Nastro) oferecem a hospitalidade do estabelecimento comercial de sua mãe para que a dupla se instale. Ali há uma convergência entre duas gerações distintas, separadas por um abismo de interesse totalmente diferente, ainda que tenham nos dois homens – Goffredo e Alexandre – a mesma paixão pela arquitetura.

    Depois de “discutir” de um modo tão civilizado que mal parece uma briga, dada a quietude de ambos, Aliénor manda seu marido viajar com Goffredo, para estimular o rapaz nos estudos do ofício em ser arquiteto. O homem de meia-idade prefere ainda manter uma longitude segura, encerrado em sua autossuficiência discutível, mas aos poucos começa a se afeiçoar ao rapaz, revelando até os motivos que o fizeram se apartar de sua esposa, levantando até a hipótese de um herdeiro indesejado como catalizador de uma reaproximação.

    O pupilo e o mestre finalmente se encontram e se aceitam dentro de seus arquétipos, após longas divagações e negações, que remetem a uma profunda reflexão de suas vivências separadas e mais tarde, conjuntas. A troca de experiências entre os amantes da arte é como uma relação, não sexual, mas de emoção e sentir, que consegue fechar o seu ciclo, dentro da relação entre o jovem e o ancião, e entre as partes do par focado desde o início, levado por um roteiro que se fecha assaz poético.

  • Crítica | Sétimo

    Crítica | Sétimo

    setimo

    A vista aérea sobre a capital Buenos Aires já evidencia que Sétimo (Séptimo) será um filme sobre a urbanidade, sem necessidade de fala alguma. Os informes de rádio servem à história como uma espécie de narração, mostrando o quão megalomaníaca e cruel pode ser a paisagem cinza e o quanto ela é poderosa, esmagando sem dó os homens que a habitam. Patxi Amézcua dirige seu segundo filme, tendo o onipresente Ricardo Darín encabeçando o seu elenco.

    Darín faz Sebastián, um sujeito ordinário, com problemas conjugais mas que ama absurdamente o seu casal de filhos. A disputa pela atenção dos infantes com sua ex é enorme, e ganha através de um simples aviso da amarga mulher, que pediu para que não deixasse eles correrem na escada do prédio, por motivos banais, destes não se ferirem. No entanto as crianças somem e Sebastián começa a procurá-las. Nas ruas, as câmeras de segurança filmam a vigilância do pai, que aos poucos vai perdendo a paciência e vai vendo este sentimento tornar-se temor.

    Tentando não se apavorar, Sebastián procura pelo prédio, onde fala com os funcionários e o síndico. Neste momento o personagem dá mostras de que não é uma pessoa tão “querida”, já que teve um entrevero com o síndico, mas mesmo com isto, o senhor, que é policial, o auxilia, chamando a atenção do departamento para o caso e aconselhando o protagonista a arrumar dinheiro, pois podem te-los raptado. Gradativamente o desespero do pai vai aumentando e tomando-o de assalto, ele passa a agir violentamente, sem muito pudor ou gracejos, chegando até a invadir a casa de seus adjacentes. A situação piora quando seu superior liga para ele exigindo sua chegada, ameaçando-o com um “tudo acabará caso se perca este caso”.

    Ao saber do desaparecimento, Delia (Belén Rueda), a mãe dos meninos, chega ao edifício em polvorosa, primeiro preocupada, depois, acusa uma conhecida de cooptar as crianças, as acusações sobram até para seu ex-marido. A desolação leva a dupla a se sentir impotente, quanto mais o tempo passa maior é a tortura e o destempero da alma, decorrente da desolação de nada poder fazer para reaver a segurança de seus filhos.

    A paranoia toma conta do comportamento do inconsolado pai, à procura por qualquer possibilidade de um responsável pelo ato. Ele vasculha cada possibilidade, por mínima que seja, a fim de achar seus rebentos, e dado um momento as suas suspeitas recaem até sobre o policial. Suas atitudes são drásticas e quase o põem em uma situação de cárcere, mas mesmo aqueles a quem agride entendem o seu drama e seu nervosismo. Os momentos em que Sebastián precisa suplicar por ajuda são filmados de modo diferente, com a lente viajando pelo ambiente com uma movimentação contínua, de um lado para o outro, como se seu pedido fosse negado antes mesmo de ser concluído.

    O desalento de Sebastian é enorme após se dar conta de quem foi o mandante do sequestro. O que antes era apreço e amor torna-se em desprezo, ainda que a urgência por agarrar o vilão improvável seja muito maior que qualquer desesperança e decepção. O desencantamento de Sebastian rapidamente dá lugar a vontade de restituir sua família, e claro, seu direito de guarda dos pequenos. Ele segue inabalável, até o instante anterior a entrar em seu carro, já de posse dos meninos, onde ele até ensaia uma ação mais emotiva, para ficar somente na ameaça, já que ele volta a austeridade, a cabeça fria do homem moderno, do fruto da cidade cinza e das luzes vermelhas, que tomam a cidade enquanto a noite se aproxima.