Tag: cinema turco

  • Crítica | Milagre na Cela 7

    Crítica | Milagre na Cela 7

    Costumo dizer que se um filme causa diversas sensações naquele que assiste normalmente significa que a película cumpriu com o seu papel de entreter. Desde que as sensações, obviamente, sejam condizentes com a proposta apresentada. Se você riu em um filme de comédia, vibrou em um filme de ação, morreu de medo em um filme de terror, bem, a missão foi cumprida. Milagre na Cela 7, uma produção turca que fez um sucesso estrondoso na Netflix, fará você chorar com quase toda certeza, seja de tristeza, seja de raiva ou seja de alegria (ainda bem).

    De tempos em tempos somos apresentados a um específico tipo de filme em que o protagonista é especial mas sempre tem alguma coisa a nos ensinar, como é o caso de Rain Man, Forrest Gump: O Contador de Histórias e À Espera de Um Milagre. Filmes certeiros na combinação de roteiro, direção e atuação de seus protagonistas, que levaram os espectadores às lágrimas.

    Em Milagre na Cela 7 acompanhamos a história de Memo. Vivido pelo astro turco Aras Bulut Iynemli, Memo possui uma deficiência mental e é quase tão criança quanto sua filha Ova (Nisa Sofiya Aksongur). O personagem é dotado de uma inocência e ingenuidade que o torna não só incapaz de entender algumas coisas da vida, mas incapaz, também, de fazer qualquer tipo de mal. Tanto Memo quanto Ova moram juntos da avó Fatma (Celile Toyon Uysal) e vivem uma vida muito simples em um vilarejo.

    Assim como toda criança, Ova é fanática por uma personagem de desenho animado e fica alucinada com uma mochila que está sendo vendida em uma loja da cidade. Memo, junto de Fatma, resolvem fazer quitutes para vender em um desfile que será realizado na cidade, o que faz com que o rapaz consiga dinheiro suficiente para comprar a mochila para sua querida filha. Porém, para a tristeza de todos (o espectador incluído nessa), o personagem chega tarde demais e a mochila acaba sendo vendida para a filha de um militar.  Não demora muito para tempos depois a menina ser encontrada morta após ter interagido com o protagonista. O protagonista é levado para a prisão, mais precisamente para a cela de número 7, e é a partir daí que sua vida muda para sempre junto com a vida das pessoas que estão ao seu redor.

    O filme guarda muitas semelhanças com o clássico À Espera de Um Milagre, mas tem algo na produção turca que faz com que o espectador se entregue muito mais às emoções e podemos dizer que isso é mérito da direção competente de Mehmet Ada Öztekin, que traz uma fotografia totalmente inspirada nos filmes do diretor Terrence Malick. Mas ainda que não tivesse uma beleza estética, a performance dos atores presentes no longa é um destaque. Não há uma atuação ruim e a química de Aras Bulut Iynemli com os demais atores (que não são poucos), principalmente com aqueles que estão em sua cela, é incrível. Sem contar que quando Ova está em cena, a menina não fica para trás. Vale também destacar que a produção é praticamente uma refilmagem de um filme coreano, além de também contar com outras adaptações cênicas do cinema estrangeiro.

    Podemos dizer com certeza que, além de ser lindo, o filme cumpre com aquilo que promete. A jornada de Memo é emocionante em muitos sentidos. A carga dramática é alta, forte e implacável, o que talvez não seja recomendável a todo tipo de público.

    Texto de autoria de David Matheus Nunes.

  • Crítica | Milagres do Amor

    Crítica | Milagres do Amor

    Milagres do Amor é o novo drama turco do cineasta Mahsun Kirmizigül. Localizado na sociedade conservadora do país, o longa mostra a diferenciada história do casal Mizgin e Aziz. O filme é narrado por Mizgin (Biran Damla Yilmaz), que anteriormente havia se casado com Azis (Mert Turak), um homem de condição especial, com claras dependências físicas.

    Este longa é a continuação de outro filme, e em seu início há um espaço para rememorar os fatos do primeiro filme, Mucize (lançado com o nome original, veiculado no Brasil somente ao serviço de streaming), indicando a fase romântica onde os dois personagens se conheciam, partindo então para um tomo dois, mais leve e engraçado, misturando elementos entre casamento com lua de mel na cidade grande, com um casal que tenta construir uma nova vida juntos, mesmo em um cenário diferente do habitual.

    Apesar de toda a carga dramática existente, graças a condição de um dos seus protagonistas, o filme soar leve, mesmo com toda estética e abordagem típica dos romances folhetinescos. O dramalhão e a melancolia são bastante explorados, e normalmente a variação entre os aspectos de humor e drama não são tão fluídos.

    O filme guarda algumas surpresas, mostrando um homem que apesar de ser excluído e escrachado por crianças, ainda consegue ter traços de heroísmo, superando seus próprios defeitos, para se tornar uma espécie de salvador. Esse caráter messiânico é um dos fatores que torna o filme ainda mais desinteressante, traço que se agrava ao longo do desenrolar dos fatos, com uma ascensão e recuperação física de Azis que de tão meteórica faz perguntar se não houve interferência do Divino.

    A escolha do nome Milagres do Amor apesar de piegas, faz sentido, afinal o modo como o casal se posta ao final da história justifica a condição miraculosa. Os valores conversadores da sociedade turca é normalizada e envernizada em uma estética que claramente tenta emular os filmes românticos dos Estados Unidos e Inglaterra, sendo portanto um produto para exportação pensado com esse intuito, o que torna a normalização desses conceitos ainda mais complicados. É evidente que demonizar os costumes de um povo não é o ideal, mas tratar condições de opressão como algo romantizado se torna algo problemático, e mesmo excluindo isto da equação, a execução que Kirmizigül emprega também não ajuda, soando fraca até em comparação com outras abordagens mais novelescas.

  • Crítica | Um Grito de Liberdade

    Crítica | Um Grito de Liberdade

    Um Grito de Liberdade, drama turco dirigido por Mustafa Kotan, começa de forma melancólica ao retratar a despedida de um casal. A partir de então, acompanhamos a vida de Nazli  (Özge Gürel), que viaja de trem para seu novo/velho destino, o lugar interiorano onde seus pais moram. A trama mostra uma história de resgate às origens, frustrações e sonhos.

    A trama do longa mostra essa despedida como um retorno da moça ao seu lugar de origem, sem revelar o motivo, se ela foi para matar a saudade que ela teria de seus pais ou se é por conta de dificuldades financeiras. A trama familiar é retratada de forma piegas, com uma mãe extremamente carinhosa e cuidadosa, mas que não tem qualquer receio em se anular para fazer com que todos ao seu redor sejam felizes. Esse aspecto é maximizado de forma tola pela música incidental, e piorado ao mostrar os conflitos entre gerações.

    Por mais que as ações de Ayze pareçam tiradas de um catálogo de estereótipos, existe algum um cuidado por parte do cineasta de denunciar o conservadorismo vigente na comunidade retratada, fato que já é amplamente discutido e debatido em centros urbanos como Istambul – local para onde a protagonista vai, e que pioram demais ao longo das estradas para o interior. Na zona rural essa condição é ainda pior, e se torna mais gritante por essa ser uma história contemporânea.

    Não há muita audácia do filme em relação aos aspectos de linguagem, o realizador faz um filme bastante antiquado. A narrativa segue a mesma tônica, mostrando um choque entre famílias quando a protagonista resolve se casar com um rapaz da faculdade. Neste ponto, após a primeira hora de exibição o roteiro se assume como um pastiche das novelas mexicanas melodramáticas, com clichês da moça do interior que procura o rapaz rico. Um Grito de Liberdade tenta emular uma trajetória épica, focada na vida de uma personagem de intimidade trágica, que vai agravando todo seu caso ao se aproximar de seu final, resultando um uma obra que tenta soar pesada, mas que esbarra em um sensacionalismo tacanho e incômodo.

  • Crítica | Sono de Inverno

    Crítica | Sono de Inverno

    sono

    Na segurança de um(a) cineasta que sabe o que precisa enquadrar, e o que não precisa estar num plano para contar a história, que nascem filmes como Sono de Inverno, vencedor da Palma de Ouro em Cannes, edição 2014. Nuri Bilge Ceylan reproduz a mesma essência do Cinema que Glauber Rocha e Alberto Cavalcanti rodaram no saudoso nordeste do Brasil, e que Ingmar Bergman registrou em preto e branco na lenitiva ilha de Fårö, na Europa: um cinema de regiões, voltado a expor o que de melhor e pior as veredas de um lugar escondem, incluindo seus habitantes. Desses personagens, o mais indispensável é o ambiente onde a aventura se configura, o “ao redor” feito de panela de pressão ao povo que lá está inserido, vivendo ou morrendo.

    Seja no visceral Deus e o Diabo na Terra do Sol ou no soberbo O Canto do Mar, duas esferas que resumem historicamente o que é o conceito de qualidade de vida para grande parte dos brasileiros, ou ainda em Persona, suspense metido a drama, sente-se à flor da pele o apuro da poesia visual, da natureza que compõe o quadro, da linguagem que despreza as palavras para obter o que é necessário, e da maestria que faz com que um bando de imagens aleatórias se juntem, formem um sentido, e bem diante de nós, nos encantem – nos impressionem. Tudo isso é Cinema, foi Era Uma Vez em Anatólia, e é o que Ceylan faz como poucos hoje em dia.

    Uma câmera não fala sozinha: é preciso dar-lhe voz e injetar-lhe narrativa. Uma montanha tampouco se expressa, senão no espaço entre suas mudanças geológicas quando deixa, ainda, como prova temporal, seus fósseis, pó e outros sinais de outros tempos. Congelar um pôr do sol reafirma a fé entre o natural e a tecnologia, sem jamais o primeiro depender da segunda para ser lembrado; o próprio natural crava sua relevância no amanhã com ou sem o advento da fotografia, mas Ceylan pouco se importa: faz da região seu livro de memórias, como Sebastião Salgado fez do mundo uma coleção de cliques em O Sal da Terra, em paralelo exato com a história de uma sociedade específica, como se as pessoas de Sono de Inverno vivessem num outro universo, em um clima frio e violento, onde o calor humano, como um sorriso, custa ser honesto nas relações de amigos e família. Tudo é tenso, denso, glacial, petrificado, definições típicas de um brasileiro acostumado ao caos emocional de um cenário tropical.

    Traduzir os valores e o ambiente que os influencia é uma tarefa digna de aplausos, mas nada arrebata uma reflexão maior que atestar como esse ambiente – um mundo tão gelado, tão emocionalmente abissal – e quem vive lá, seres à beira da rivalidade ética, com suas emoções perdidas e caladas nessa profundidade moral que suas tradições sustentam desde sempre, são conectados e equilibrados para compor um longo mural de três horas, repleto de contradições propositais que gritam, no silêncio e na licença poética, para se fazer valer, num tempo e espaço melancólico muito bem construído e explorado, aberto a divagações brilhantes e contextuais sobre como a vida é afetada pelo local onde floresce, se constrói e decai.

    Nos temas mais diversos, como poder, riqueza, casamento, sociologia e religião, o ser humano e o chão onde pisa viram um só a favor de nossa interpretação artística, adaptada em partes do tenso conto A Esposa, do escritor Anton Tchecov. Tudo o que Ceylan não consegue falar da obra, usando aspectos teatrais mais compatíveis às cenas, ou nos diálogos íntimos e filosóficos da dialética, joga o dever para a imagem dos vales cobertos da neve que preenche a tela passiva, em panorâmicas de cair o queixo, onde a trilha-sonora é o vento, e o sol cortando a neblina o alento para almas condenadas à desolação ambiental e individual – o externo e o interno num furacão existencial, afinal, assistir a Sono de Inverno é mergulhar com paciência nesse vendaval.

    Um filme de mensagens universais, seja nas relações do ser com o âmbito onde sobrevive, seja ao expor, leve e amplamente, nos confins da floresta emocional de cada um, boa parte do que lá se esconde. Ceylan já tinha feito isso em Anatólia, tinha ensaiado essa maturidade em Nuvens de Maio, mas devido a sua segurança no desenvolver de Sono de Inverno, parece ter descoberto o esquema para desbravar essa mata e fotografar tudo como se fosse Cinema, ou melhor, Cinemão de grande escala. Por isso mesmo, numa tática de mestre, o artista turco não procura escanear e aproveitar toda a enorme dimensão que seu filme poderia ter, economizando potencial na tela para ser imaginado depois pelo público – lição de casa. Mata que é desbravada perde seus mitos.

  • Crítica | O Cordeiro

    Crítica | O Cordeiro

    Centrado nas montanhas da Anatolia, uma região da Turquia onde é exigida a circuncisão de seus meninos, que logo é seguida por uma festa de celebração, O Cordeiro (Kuzu) conta a trajetória de uma família que tem muitos problemas, tentando manter a estabilidade entre seguir as rígidas tradições do local e o equilíbrio emocional da família.

    A história é bifurcada, mostrando essencialmente os dramas adultos, que variam nas trajetórias dos pais, em que o homem não tem condições de sustentar seu lar, tornando-se assim um ser inseguro, sem perspectiva de uma auto-estima saudável ou algo que o valha. Nem mesmo para repreender seus filhos com pequenas broncas ele consegue.

    A história paralela mostra a visão agridoce e essencialmente fantasiada de Mert (Mert Tastan), o caçula da família, que vive sua infância em um lugar árido, mas que ainda guarda uma imaginação fértil, capaz de levá-lo às paragens mais incomuns e nonsense possíveis. Motivado por uma anedota contada por sua irmã mais velha, ele acredita correr perigo de morte caso seu pai não consiga um carneiro para realizar a festa que comemoraria a sua circuncisão, crendo piamente que caso eles não consigam, o próprio menino seria o prato principal do banquete referente ao rito de passagem.

    Os preconceitos sociais típicos do vilarejo são tratados de modo anedótico, pelos olhos de uma doce criança, que ainda não tem autonomia para pensar sozinha, somente repetindo os maus pensamentos que ouve. O menino sofre na pele a diferenciação social entre as classes. Experimenta a estrada como uma criança Kerouac, sofrendo do vento, da fome, da neve e do bobo medo de ser sacrificado, após a brincadeira da irmã. Apesar de sofrer ações indiretas em sua rotina, o menino sequer tem noção de que ele e sua família sofrem uma exclusão social por méritos da desgraça de seu patriarca.

    A lente de Kutlug Ataman é feita em grande parte da película no recurso de câmera na mão, no intuito de imitar a realidade presente nos gêneros documentários, e em quase toda a duração do filme ela acerta, uma vez que a verossimilhança é a tônica dos dramas mostrados em tela. O espectador é convidado a experimentar as mesmas sensações dos personagens, desde a depressão do pai, Ismail (Cihat Gök), o desespero da mãe Medine (Nesrin Cavadzade) e a docilidade de Mert, tendo em toda a sua ingenuidade e sinceridade as melhores tiradas, tanto as sérias quanto as cômicas, repletas de escapismo pueril e balanceado.

    O desespero de Medine a faz recorrer a ações temerárias, que visam mudar o quadro em que vivem a custos altíssimos, quase nunca logrando êxito, tendo até sua ética discutida pelos circunvizinhos, piorada mais por ser aquela uma sociedade paternalista e que liga a honra às posses.

    A volúpia pela ostentação junto aos vizinhos faz o casal correr atrás de dinheiro de modos nem sempre dignos, com a mulher penhorando seus bens e o homem pondo a venda o seu corpo, rediscutindo o conceito de mais valia. A humilhação paira sobre a cabeça da mãe, que se põe em posições dificílimas, assim como aos seus filhos, indo ao encontro da infiel, implorar que deixe seu marido.

    O desespero de Ismail é tanto que ele chega a ficar foragido, sem dar qualquer sinal de vida ou assistência aos seus. A fuga dele é motivada por insegurança e vergonha, conceitos ligados demais ao machismo e chauvinismo típicos do lugarejo. O roteiro insiste em retomar o assunto a todo o momento.

    Quando o fatídico dia chega, a vergonha maior é evitada com o serviço de banquete regado ao carneiro, bulgur e ayran. O ritual joga uma fina e frágil camada de hipocrisia sobre a igualmente frágil estrutura familiar, que por sua vez é sabiamente registrada pela câmera de Ataman. O final demonstra uma ruptura que se via necessária há muito, e que finalmente ocorre após os escândalos sexuais daquele que deveria ser o protetor da família, mas que na prática só fez envergonhar e maldizer os seus. O destino de Medine e Mert teria qualquer chance de não ser trágico, uma vez que estava longe daquele que impingiu temor e inseguridade em suas vidas.