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  • Crítica | Dois Dias, Uma Noite

    Crítica | Dois Dias, Uma Noite

    Situado em uma cidade da Bélgica, que emula um lugar qualquer, dadas as características universais de sua locação, Dois Dias, Uma Noite, dos irmãos Jean-Pierre e Luc Dardenne, opta por analisar o viés da depressão, usando uma figura humana e deveras falha para expor o quão séria é a situação de quem convive com a doença, além de expor de modo cru o quão acachapante pode ser a rotina de quem sofre deste mal.

    Sandra, interpretada belamente por Marion Cotillard, é uma mulher comum, cujo salário ajuda a equilibrar as contas de sua casa; seu marido, o sempre presente Manu (Fabrizio Rongione) possui um trabalho cuja remuneração é baixa, frutos da crise econômica que acometeu o continente europeu. Diante do drama já instaurado, pelo diagnóstico de depressão, Sandra vê no chamado à aventura uma oportunidade para se afundar ainda mais em seu inferno mental, já que sua demissão do serviço que presta é quase certa, mudada em última hora pela possibilidade de seus colegas a salvarem, caso abram mão do bônus de mil euros a que cada um tem direito.

    O chamado da aventura ocorre a despeito dos muitos remédios controlados que Sandra ingere, sem qualquer discriminação ou bom senso, recriminado o ato somente por seu preocupado cônjuge, que, com medo, não insiste muito em criticá-la. Convencida por uma das poucas pessoas que votaram a seu favor, Sandra passa a caminhar pela cidade em busca de seus companheiros e fazê-los mudar de ideia, para não só salvar seu salário, como também sua conturbada estabilidade mental. A busca da personagem não é só por visitar cada um dos operários ou para convencê-los a aderir a sua causa, mas também vai de encontro à fuga para entrada no estado de desespero.

    Após três recusas, Sandra prossegue consumindo a droga dos tempos de doença, símbolos de uma ansiedade mal tratada junto à negligência de um vício. Os sinais da problemática são notados em seu rosto, os olhos fundos fazem até da bela Marion Cotillard uma figura digna de pena e comiseração, distante demais do usual arquétipo de musa que ocupa fora das telas.

    O preço da cura de Sandra teria que ser pela miséria de muitos. A Escolha de Sofia seria obviamente um desmando do patronado, mas a câmera convém explorar o lado de baixo da pirâmide, com dilemas da base. Os motivos de tais condições parecem não só financeiros, mas também ligados à reabilitação da personagem. A balança ora pesa para a crise financeira, ora para a doença de Sandra, exibindo um triste quadro em que os números sobrepujam as necessidades e a saúde humana.

    Após quase alcançar a meta, é feita uma proposta a Sandra, que prontamente recusa em virtude da queda de um dos seus colegas. Sua escolha é tomada pela ética, moralmente certa. Se este último ato fosse um objeto isolado, possivelmente a escolha dela teria sido encarada como um ato piegas ou cafona, mas dada toda a angustiante trajetória que fez, é natural que a opção tenha sido esta, o que condiz com todo o discurso que ela fez no decorrer de seu intenso drama, dando uma sobrevida e alento a sua lamuriosa existência. A compleição da moça muda completamente, como se o fechamento do ciclo colaborasse para a vitória sobre sua condição, a prova de que conseguiria lutar contra as adversidades que se sobrepõem a ela, aceitando a condição de que eventualmente sofrer faz parte da experiência de viver.

  • Crítica | La Sapienza

    Crítica | La Sapienza

    A definição da palavra sapiência refere-se ao excesso de conhecimento, algumas vezes relacionado a onisciência, típica do Divino. O novo filme do francês Eugène Green apresenta esta sensação, se valendo de arquétipos que a priori são vazios e frios, mas que ao longo da fita exibem curvas dramáticas atrozes e vidas repletas de angústias e anseios, quase sempre não alcançados.

    A câmera de Green em La Sapienza contempla monumentos europeus, artes barrocas e clássicas, antecipando o ideal arquitetônico dos personagens que mais tarde serão explorados pela lente inconformista do diretor. As relações mostradas a partir do casal Alexandre (Fabrizio Rongione) e Aliénor (Christelle Prot Landman), cuja aproximação está claramente deteriorada graças a rotina de anos lado a lado, uma postura vinda de ambos os lados, o maior catalisar dessa condição.

    As relações frias, formais, rígidas e distantes seguem por todo o roteiro, especialmente quando a dupla resolve mudar para a Itália. A troca de país os faz discutirem a respeito da rigidez da língua francesa que serve mais como uma alegoria à insensibilidade do casal médio francês. O enquadramento de fala individual mais uma vez remete à distância entre as linguagens, onde microcosmos tão distintos teimam em se tocar.

    A rotina insossa do par é cortada por uma dupla de irmãos, cuja menina desmaia em meio a rua, tendo em Aliénor o seu socorro. Agradecidos, Goffredo (Ludovico Succio) e Lavinia (Arianna Nastro) oferecem a hospitalidade do estabelecimento comercial de sua mãe para que a dupla se instale. Ali há uma convergência entre duas gerações distintas, separadas por um abismo de interesse totalmente diferente, ainda que tenham nos dois homens – Goffredo e Alexandre – a mesma paixão pela arquitetura.

    Depois de “discutir” de um modo tão civilizado que mal parece uma briga, dada a quietude de ambos, Aliénor manda seu marido viajar com Goffredo, para estimular o rapaz nos estudos do ofício em ser arquiteto. O homem de meia-idade prefere ainda manter uma longitude segura, encerrado em sua autossuficiência discutível, mas aos poucos começa a se afeiçoar ao rapaz, revelando até os motivos que o fizeram se apartar de sua esposa, levantando até a hipótese de um herdeiro indesejado como catalizador de uma reaproximação.

    O pupilo e o mestre finalmente se encontram e se aceitam dentro de seus arquétipos, após longas divagações e negações, que remetem a uma profunda reflexão de suas vivências separadas e mais tarde, conjuntas. A troca de experiências entre os amantes da arte é como uma relação, não sexual, mas de emoção e sentir, que consegue fechar o seu ciclo, dentro da relação entre o jovem e o ancião, e entre as partes do par focado desde o início, levado por um roteiro que se fecha assaz poético.