Tag: cinema belga

  • Crítica | Grave

    Crítica | Grave

    Destoante de catarses que o gênero do horror, e suas linhas menores, apresenta em seu universo, as camadas subjetivas de um filme apoiado nesse estilo visual e narrativo ganham contornos maiores e possuem uma relevância mais significativa. Em Grave (Raw), filme franco-belga dirigido por Julia Ducournau­, há uma conexão entre diversos subtextos que ao passar por um processo de transmissão de metáforas, permitem que o filme se evolua não somente dentro do molde de gênero.

    A obra utiliza a perspectiva da personagem principal, a recém-estudante de medicina e vegetariana Justine (Garance Marillier), que ingressou em uma renomada faculdade, onde sua família – irmã mais velha, pai e mãe – também estudaram medicina. Esse ponto narrativo é muito importante para entender todos os desdobramentos que sucederão a Justine após o trote, em que ingeriu carne pela primeira vez.

    Não somente um thriller compassado a pequenos manifestos sobre autoconhecimento juvenil e vegetarianismo – mesmo esse sendo mera especulação interpretativa -, Grave é um gráfico e explícito estudo sobre a aquisição de um vício. O canibalismo está ligado a diversos fatores, cultural; social e no caso do filme, sugestiona-se até uma hipótese hereditária, mas nada que realmente seja comprovado. O que é interessante para a narrativa do filme não se prender a este núcleo, justamente dando evidências para analisar e passar uma base questionável em relação às causas e consequências da situação nas relações entre as personagens.

    A principal delas é entre Justine e a irmã Alexia (Ella Rumpf), que também se relacionam como caloura e veterana, por ambas fazerem o mesmo curso. Enquanto a mais nova é mais introvertida, a mais velha é propensa a situações explícitas sobre sua personalidade, mais explosiva e arrogante, mas sem deixar de manifestar uma certa proteção para com a mais nova, mesmo que isso seja baseado em uma convenção social estipulada pela universidade.

    Como explicado anteriormente, o filme discorre sobre diversas situações de cunho mais social: a descoberta da sexualidade e orientação sexual, um olhar às vezes cínico e moral para com essa juventude, como se estivessem à par de um cenário mais externo e conflitante e de certa forma exigindo uma compreensão mais madura e neutra por parte de quem está à margem. E dentro desses filtros, ele manifesta uma coesão desses tópicos mesmo que há uma certa falha em caracterizar exacerbadamente suas personagens em algumas situações, contudo, sua linha narrativa segue naturalmente, sem buscar uma dissipação ou um exagero alegórico dentro.

    Grave é um filme com aspecto e cerne juvenil, inserido dentro de um gênero bastante proveitoso a esse campo de narrativa que sucede no objetivo de ser bastante intimista dentro de uma análise mais individual, porém quando se retrai a uma visão mais subjetiva e externa às vezes perde um pouco o equilibro, faltou uma dosagem melhor do argumento mais claro. Ainda assim, seu choque visual é importante e instigador, o que dá ao público a possibilidade de sentir inquietude e aflição, sentimentos característicos e inerentes ao gênero do qual o filme se mescla.

    Texto de autoria de Adolfo Molina Neto.

    https://www.youtube.com/watch?v=KExM6S-AxMY

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  • Crítica | A Economia do Amor

    Crítica | A Economia do Amor

    Produção franco-belga de 2016, A Economia do Amor estreou no Festival de Cannes do mesmo ano com a temática recorrente de Joachim Lafosse sobre a dificuldade de se manter um relacionamento parental. O título equivocado pode induzir a uma comédia romântica quando se trata de um drama denso.

    Após a separação, Marie e Boris são obrigados a conviver juntos com as duas filhas gêmeas enquanto acertam os detalhes financeiros da venda da casa.

    O roteiro escrito a quatro mãos pelo diretor Joachim Lafosse (Os Cavaleiros Brancos), em parceria com Fanny Burdino, Mazarine Pingeot e Thomas van Zuylen, acerta na simplicidade da história. O casal aos poucos vai mostrando ao espectador a sua falta de sintonia, as rusgas do relacionamento vão aparecendo em um diálogo, um olhar, a forma de andar, e, principalmente, como os dois lidam com as filhas.

    A narrativa simples se constrói em sua maior parte em torno dos diálogos. Como o casal já inicia o filme separado, nada mais interessa a não ser mostrar a gigantesca discussão que os levou até aquele ponto e que tenta terminar na partilha da casa, a tal “economia do amor”. Entre uma recaída e outra, o casal ainda tenta uma convivência, mas as rusgas existentes não deixam, como na boa cena em que Marie recebe seus amigos no pátio da casa e Boris aparece e azeda o clima.

    O fato do filme se passar quase em sua totalidade na casa tenta passar reforçar a premissa ao espectador de que a convivência entre as pessoas é complexa quando não há sintonia entre os envolvidos. A única parte do roteiro em que se sai da casa é para demonstrar como o deslize de um dos dois quase causou um acidente fatal com uma das filhas.

    A atuação da sempre ótima Bérénice Bejo é um dos pontos altos do filme. Cédric Khan cumpre o seu papel, porém a química entre os dois poderia ser melhor. As irmãs gêmeas Jade e Margaux Soentjens não comprometem como os filhos do casal.

    A direção de Lafosse é direta, bruta e seca. Como o diretor preza pelo realismo dos tempos mortos em excesso, não há a construção de uma curva dramática, a mise-en-scène que reflete o embate entre os dois protagonistas acontece desde o início do filme e não denota evolução. A escolha por uma única locação em mais de 90% do filme chega a ser claustrofóbica, uma obviedade desnecessária do diretor em manter o foco do espectador para o que acontece sob o teto de um casal. A casa caiu, mesmo permanecendo lá.

    A fotografia naturalista de Jean-François Hensgens está em sintonia com a proposta realista de Lafosse, no entanto, ela poderia se destacar em mais partes além da boa cena de interação com o casal de amigos. A edição do filme de Yan Dedet poderia privilegiar menos alguns dos tempos mortos para deixar o filme com um ritmo melhor e menos cansativo, o que não iria atrapalhar em nada a proposta do diretor.

    A Economia do Amor deve interessar a quem busca temas pesados sobre a dificuldade de um relacionamento adulto.

    Texto de autoria de Pablo Grilo.

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  • Crítica | A Garota Desconhecida

    Crítica | A Garota Desconhecida

    Obra dos irmãos Jean-Pierre e Luc Dardenne, A Garota Desconhecida mergulha na intimidade de Jenny (Adelle Haenel), uma médica que tem uma rotina estressante no hospital onde trabalha. Sua vida repleta de infortúnios tem mais um revés ao descobrir que uma moça sem qualquer identificação desfaleceu próxima à porta de sua casa, e a partir daí começa uma jornada para descobrir quem era esta pessoa misteriosa.

    Ao contrário do visto em Dois Dias, Uma Noite e O Garoto da Bicicleta, o método usado no filme é moroso, especialmente no que tange a parte emocional do roteiro. Há uma dificuldade considerável em sentir empatia pelos personagens, e isso inclui também a protagonista, uma mulher com dificuldades em demonstrar os sentimentos que habitam seu interior. As expressões faciais de Haenel não compensam o esforço que as cenas exigem, até mesmo quando ela tem que convencer outras pessoas.

    Mesmo quando trata de temas pesados, como delinquência juvenil, suicídio e depressão há um aprofundamento bem raso, deixando que a superficialidade tome a temática, principalmente ao se levar em conta os trabalhos anteriores dos cineastas.

    A Garota Desconhecida tenciona ser tocante e sentimental, mas soa tedioso e desimportante. A utilização de Haenel é sub aproveitada e não há qualquer importância nas ações dos personagens secundários. Nem mesmo a metalinguagem narrativa de associar o desaparecimento da moça com o encontro da protagonista com sua própria identidade salva o argumento da mediocridade, tornando a dinâmica do filme ainda enfadonha e decepcionante.

  • Crítica | Dois Dias, Uma Noite

    Crítica | Dois Dias, Uma Noite

    Situado em uma cidade da Bélgica, que emula um lugar qualquer, dadas as características universais de sua locação, Dois Dias, Uma Noite, dos irmãos Jean-Pierre e Luc Dardenne, opta por analisar o viés da depressão, usando uma figura humana e deveras falha para expor o quão séria é a situação de quem convive com a doença, além de expor de modo cru o quão acachapante pode ser a rotina de quem sofre deste mal.

    Sandra, interpretada belamente por Marion Cotillard, é uma mulher comum, cujo salário ajuda a equilibrar as contas de sua casa; seu marido, o sempre presente Manu (Fabrizio Rongione) possui um trabalho cuja remuneração é baixa, frutos da crise econômica que acometeu o continente europeu. Diante do drama já instaurado, pelo diagnóstico de depressão, Sandra vê no chamado à aventura uma oportunidade para se afundar ainda mais em seu inferno mental, já que sua demissão do serviço que presta é quase certa, mudada em última hora pela possibilidade de seus colegas a salvarem, caso abram mão do bônus de mil euros a que cada um tem direito.

    O chamado da aventura ocorre a despeito dos muitos remédios controlados que Sandra ingere, sem qualquer discriminação ou bom senso, recriminado o ato somente por seu preocupado cônjuge, que, com medo, não insiste muito em criticá-la. Convencida por uma das poucas pessoas que votaram a seu favor, Sandra passa a caminhar pela cidade em busca de seus companheiros e fazê-los mudar de ideia, para não só salvar seu salário, como também sua conturbada estabilidade mental. A busca da personagem não é só por visitar cada um dos operários ou para convencê-los a aderir a sua causa, mas também vai de encontro à fuga para entrada no estado de desespero.

    Após três recusas, Sandra prossegue consumindo a droga dos tempos de doença, símbolos de uma ansiedade mal tratada junto à negligência de um vício. Os sinais da problemática são notados em seu rosto, os olhos fundos fazem até da bela Marion Cotillard uma figura digna de pena e comiseração, distante demais do usual arquétipo de musa que ocupa fora das telas.

    O preço da cura de Sandra teria que ser pela miséria de muitos. A Escolha de Sofia seria obviamente um desmando do patronado, mas a câmera convém explorar o lado de baixo da pirâmide, com dilemas da base. Os motivos de tais condições parecem não só financeiros, mas também ligados à reabilitação da personagem. A balança ora pesa para a crise financeira, ora para a doença de Sandra, exibindo um triste quadro em que os números sobrepujam as necessidades e a saúde humana.

    Após quase alcançar a meta, é feita uma proposta a Sandra, que prontamente recusa em virtude da queda de um dos seus colegas. Sua escolha é tomada pela ética, moralmente certa. Se este último ato fosse um objeto isolado, possivelmente a escolha dela teria sido encarada como um ato piegas ou cafona, mas dada toda a angustiante trajetória que fez, é natural que a opção tenha sido esta, o que condiz com todo o discurso que ela fez no decorrer de seu intenso drama, dando uma sobrevida e alento a sua lamuriosa existência. A compleição da moça muda completamente, como se o fechamento do ciclo colaborasse para a vitória sobre sua condição, a prova de que conseguiria lutar contra as adversidades que se sobrepõem a ela, aceitando a condição de que eventualmente sofrer faz parte da experiência de viver.

  • Crítica | Bistrô Romantique

    Crítica | Bistrô Romantique

    Bistrô Romantique

    Saudade é um termo encontrado somente no dicionário brasileiro, e que, cada vez mais, sofre tentativas de ser equiparado por outras culturas em línguas estrangeiras. Marcada pelo nostálgico sabor que a vida tem, provado ao lembrar das emoções que um dia fizeram bem, ou que ainda fazem falta, essa sensação conflita com a realidade e pode provocar frustração ou raiva no coração de quem sofre. Joël Vanhoebrouck faz uma sábia escolha ao eleger um bistrô para representar essa impressão nostálgica e para contar suas histórias em Bistrô Romantique.

    O cenário do filme toma forma como um personagem ativo dentro da rotina daqueles que o frequentam. O bistrô, chamado de Brasserie Romantiek – como no original belga – pertence a Pascaline (Sara de Roo), uma resignada mulher de meia idade que demonstra estar muito incomodada com o misterioso retorno de alguém do seu passado, Frank, vivido por Koen De Bouw e cuja presença é incapaz de reconstruir uma intimidade que não existe mais.

    Um dos momentos mais peculiares e tragicômicos do filme é o drama de Walter (Mathijs Scheepers), um sujeito inseguro e que se considera “o mais maçante dos homens da Europa Ocidental, pelo menos“. Ao marcar um encontro às escuras, Walter não imagina que a mulher que conheceria pudesse ser tão estonteante quanto ele jamais imaginou, além de direta em suas intenções. A surpresa do encontro com Sylivia, genialmente interpretada por Tine Embrechts, faz com que ele saia correndo até o toalete para se encher de coragem, consultando a única pessoa que conhece, o espelho, onde mora a sua segunda personalidade, muito mais contundente e direta.

    No eco de seu anseio por tornar-se alguém mais forte, Walter não encontra resposta, dialogando somente com sua própria solidão. Para sua surpresa, e também do espectador, seu único e enfadonho assunto causa volúpia na mulher, fazendo com que ele entre em um pânico legítimo, lentamente diluído graças à necessidade de romper com a sua timidez, mesmo que a contragosto. É curioso como a ambiguidade atua na psiquê de Walter, mostrando duas facetas de um mesmo homem e da musa que está a sua frente.

    O pequeno ambiente compartilhado do bistrô comporta um multiverso, uma porção de mundos que coexistem no mesmo espaço físico, desafiando a máxima de que dois corpos não podem ocupar o mesmo lugar. Por ser um ponto de encontro comum para tantos casais, o bistrô é visto como um clichê que incomoda a personagem Roos (Barbara Sarafian), que vive uma crise conjugal silenciosa e unilateral desconhecida por seu marido, Paul (Filip Peeters), um homem muito mais preocupado com as suas conquistas profissionais do que com qualquer outra situação.

    A indiferença de Paul faz que com que ela experimente um misto de inveja e desprezo pelos pares mais jovens, questionando, de modo pessimista, o futuro desses relacionamentos, e descobrindo que algo que antes era tão valioso, não possui mais vida ou substância. Ela está desiludida e desacreditada no futuro da sua relação conjugal, o que a faz perder o medo e o respeito próprio ao contar suas indiscrições com tanta sinceridade. Sua jornada mostra que há coisas muito mais flagrantes que a infidelidade conjugal, especialmente no que toca o orgulho ferido de uma mulher.

    Apesar da força das histórias paralelas, o drama de Pascaline ainda conquista a atenção do público. A sua história amorosa foi interrompida por décadas, e bate à porta de modo repentino. Com uma proposta tentadora, mas também inconsequente, Pascaline não consegue abandonar as responsabilidades de seu cotidiano, o que a impede de pensar em vôos mais distantes. Mais do que isso, tanto para Pascaline, quanto para as outras personagens que se mostram mesa a mesa, dói mexer no passado e revirar o porão da alma, o que prova que esse não é um exercício de fácil acesso, tampouco de agradabilidade garantida.

    Talvez, a mais catastróficas das historietas seja a de Mia (Ruth Becquart), que pensa diretamente em suicídio e no fim de sua triste existência. Apesar do pouco que se sabe sobre seu passado, ela representa a coragem que nenhuma das outras mulheres sofredoras têm. Nem Pascaline consegue prosseguir em sua jornada, nem Roos consegue ir em frente e desfazer o enlace matrimonial que a martiriza tanto. É a mais jovem delas que, munida da possível ingenuidade de seus poucos anos de vida, tem a presença de espírito de assumir o desejo impraticável.

    Embora quisesse dar vazão ao seu desejo, Pascaline é inibida por aqueles que precisam dela, especialmente Angelo (Axel Daeseleire), seu irmão, sócio e também chef do Romantiek, que tem pela irmã um apreço muito grande, além de uma dependência emocional e profissional exacerbada, já que foi Pascaline quem o ajudou quando tornou-se viúvo e responsável por cuidar de sua família. Ao saber da vontade da irmã, ele entra em desespero e larga seu posto no meio da noite que deveria ser a mais romântica do calendário.

    Rooss, Walter e Mia falham em criar expectativas e em construir castelos de areia, pois não se sujeitam ao risco de serem submersos pelo natural movimento das ondas no mar. Eles acabam se escondendo em suas próprias fantasias, em uma fuga da realidade, que, de certa forma, os permite buscar um meio de subsistir e encontrar as soluções para as perguntas da vida. Possivelmente, essas não são as respostas mais otimistas, mas são as mais acertadas e condizentes com a realidade. Cada um a seu modo supera os seus próprios demônios e temores, enterrando-os no lugar que lhes é de direito.

    Pascaline também confronta seu par, fazendo a pergunta que estava presa em sua garganta por intermináveis vinte e três anos. Seu grito é liberado e bradado aos quatro ventos, porém não consegue transformar a realidade que a cerca.

    Talvez, a maior magia de Bistrô Romantique seja a sensibilidade com que Vanhoebrouck consegue equilibrar sentimentos como piedade, resignação, abandono, pena, perda, luto, ciúmes, medo da solidão e claro, sem descuidar de contar, em tão pouco tempo de filme, uma gama de histórias ricas em detalhes.