Tag: Michel Gondry

  • Crítica | Micróbio & Gasolina

    Crítica | Micróbio & Gasolina

    Microbio e Gasolina

    Fugindo um pouco do estereótipo de sua filmografia – ao menos da mais conhecida – Michel Gondry produz um filme interessante sobre a tenra infância, flertando com os melhores e mais inspirados momentos de Chris Columbus. Micróbio & Gasolina conta a história de dois meninos marginalizados, no colégio e em suas casas, vividos por Théophile Baquet e Ange Dargent, uma dupla cuja química é invejável, funcionando em praticamente todos os momentos escapista que lhe ocorrem.

    A trama gira em torno do desajuste da dupla, que convive com o cruel panorama comum escolar, no qual qualquer diferença, mínima que seja, é motivo para exclusão e bullying. Os motivos que levam os dois a serem marginalizados são diferentes, já que Theo Leoir (Baquet) tem um forte cheiro de combustível graças à natureza do trabalho de seu pai, mecânico de automóveis, enquanto Daniel Guerrét (Dargent) é maltratado apenas por ter feições ainda andrógenas, frutos de uma pré-puberdade complicada. O caos instaurado em suas casas os faz tencionar criar um carro improvisado, disfarçado de casa, e partir em uma aventura pitoresca que começa na dificuldade de manter o foco na construção do veiculo.

    Apesar do tema infantil, o roteiro de Gondry abraça questões comuns também à fase da vida adulta. O uso da família de Guerrét é bem explícito em relação a isso, especialmente no drama de sua mãe, Marie Therese, vivida por Audrey Tautou, que sofre de um infortúnio. Porém, a obra não é tão focada em detalhes, por se tratar de um texto leve que prima pela experiência de vida de um infante, mas que também não deixa de ser grave por isso.

    Todos os obstáculos apresentados na jornada escapista de ambos fazem lembrar valores pouco em voga em um mundo globalizado, como a soma de forças pelas vias da amizade e do companheirismo representada pelos personagens, dois “fracassados”, apelidados pejorativamente de Micróbio e Gasolina, vencendo difíceis situações.

    A versão mirim de road movie inclui o desapego extremo pelos bens materiais das duas crianças – fator comum dentro do comportamento inocente – e um modo muito belo de encarar as agruras da vida e da viagem, mesclando juventude e romantismo, com uma sensibilidade que destoa inclusive dos outros personagens da fita. A sensação de cooperação mútua não é vista, fora do círculo interno de Daniel e Theo, por mais ninguém como algo tão vivo. Tampouco se nota a mesma paixão por explorar novos mundos e novas experiências como se vê no desejo do ideário dos dois amigos, argumento utilizado como um belo modo de contrapor a crescente depressão de todos os adultos da obra.

  • Crítica | A Espuma dos Dias

    Crítica | A Espuma dos Dias

    L'écume des jours

    A estranheza revestida de “cool” é um dos traços característicos de Michel Gondry: o cineasta ficou famoso dirigindo clipes em que Björk passeia por uma floresta encantada, os Chemical Brothers visitam os pesadelos de uma menina, e um stop motion feito de lego para o The White Stripes. Com a ajuda de Charlie Kauffman (roteirista de A Natureza Quase Humana e Brilho Eterno de uma Mente Sem Lembranças) o diretor fez uma boa transição para o cinema e sua tendência a estranhezas se traduziu em histórias incômodas, com pitadas de fantasia e ficção científica. Mas parece que ao ser seu próprio roteirista e perder as amarras que um baixo orçamento representavam, Gondry começou a patinar.

    A Espuma dos Dias e todo do diretor francês: ele participou da adaptação do romance de Boris Vian e é um dos produtores do longa; para a França, onde seu status de celebridade é muito maior que nos Estados Unidos, o filme é quase uma super-produção. Livre de constrangimentos, o cineasta pode se empenhar em criar o universo de imaginação que sempre habitou, mas ele o faz às custas da história.

    O filme conta a história de Colin, um jovem parisiense que tem a sorte de ter “nascido rico o suficiente para não precisar trabalhar para os outros” e alguns de seus amigos, o obcecado Chick, que recolhe tudo que se relacione ao filósofo Jean-Sol Partre, e o criativo cozinheiro/advogado Nicolas. Um dia, em uma festa, Colin se apaixona por Chloé e, após um breve passeio em um veículo-nuvem, os dois se casam. Já na lua-de-mel, Chloé começa a passar mal e descobre-se que a moça tem uma flor de lótus crescendo em seu pulmão direito e para curar-se precisa estar sempre rodeada de flores vivas. O tratamento drena as finanças de Colin e, após a operação que retira a primeira flor de lótus, os médicos encontram uma em seu pulmão esquerdo.

    Trata-se de uma tragédia, mas Gondry nunca a aborda como tal. Ele retrata muito bem a alegria infantil e fantasiosa dos personagens na primeira parte do filme, mas falta sensibilidade e envolvimento na dor que os consome na segunda parte. A direção de arte e a fotografia fazem um bom trabalho ao representar esse sofrimento: tudo decai, decompõe, os tons tornam-se cinza e a casa dos protagonistas literalmente apodrece, mas esse cuidado visual não se reflete em cuidado narrativo.

    O cuidado com a estética, em detrimento da história, é o principal problema de A Espuma dos Dias. Cada geringonça citada por Vian em seu livro aparece aqui, em detalhes e com alguma explicação de seu funcionamento, há uma longa sequência para o pianococktail, e outra para o bizarro método de casamento criado pelo autor. Por outro lado, falta tempo para que o espectador se envolva com os personagens. Tudo é corrido, apressado e os atores parecem incapazes de sair da “felicidade festejante” que criaram na primeira parte da história, talvez porque seus personagens não tenham personalidade, sejam apenas figuras que enunciam o que sentem, mas sem qualquer vida interior.

    Chick talvez seja o personagem mais bem construído de todos, sua obsessão é genuína e convincente, ainda que Gondry deixe de explorar o papel de “anúncio” que o personagem poderia ter. Deixar de explorar o potencial da história é o segundo grande problema do filme: a história é comovente, uma bela metáfora sobre o amor e sobre como organizamos nossas vidas em torno de sonhos que, ao se desfazerem, levam tudo com eles. Mas essas coisas aparecem apenas muito levemente.

    É uma pena que o responsável por Brilho Eterno de uma Mente Sem Lembranças seja incapaz justamente de infundir humanidade em seu filme, mas é justamente essa a grande falha de A Espuma dos Dias. É tudo muito bonito, mas vazio, fruto de um diretor fascinado com a própria estética e que se esqueceu de contar uma história.

    Texto de autoria de Isadora Sinay.