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  • Crítica | O Capital

    Crítica | O Capital

    O Welfare State surgiu em meados de 1942, na Grã-Bretanha, mas passa por um forte desenvolvimento após a Segunda Guerra Mundial também nos EUA e boa parte da Europa Ocidental, sendo um modelo exportado pelo mundo todo. O Welfare State, ou Estado de Bem-estar Social, ficou conhecido por ser uma medida de política pública intimamente relacionada às áreas de direitos sociais, além de intervir diretamente na política econômica de seus Estados de modo a assegurar uma regulamentação dos capitais a fim de realizar uma tentativa de diminuição das desigualdades sociais.

    Difícil conceber a razão da criação desse tipo de política pública, que é atualmente uma das bandeiras levantadas por boa parte dos partidos de esquerda, por governos declaradamente capitalistas. Talvez tenha sido motivada por razões altruístas, ou mais provavelmente, pela tensão política causada pelos sindicatos e pela crescente ascensão do Socialismo na Europa Oriental. Ocorre que, nos anos 1970, esse modelo político passa a entrar em colapso, e os governos de Margaret Thatcher e Ronald Reagan representam o desmonte histórico do sistema, seguidos por regimes de outros países, dando lugar ao neoliberalismo e sua campanha contra o intervencionismo estatal.

    O Capital, de Constantin Costa-Gavras, não trata necessariamente deste período histórico, mas um pouco adiante, já que o filme se passa durante o clima de crise europeia, ainda vivido, fruto do neoliberalismo que colhemos diariamente. O cineasta mais uma vez se mostra incisivo, e até mesmo obsessivo (ainda bem), em retratar o poder político, uma assinatura temática de sua filmografia. Aqui, Gavras constrói – para em seguida desconstruir – o complexo modelo reestruturado do Capitalismo e a barbárie social e financeira causada por ele.

    O longa se inicia com uma partida de golfe; de modo metafórico, o diretor dá sinais do que veremos adiante, e claro, do que vemos cotidianamente no mercado financeiro: um jogo. Gavras repetirá isso dezenas de vezes ao longo do filme através de figuras metafóricas, mas não à toa isso ocorre de maneira brilhantemente colocada pelo diretor ao explicar a lógica do jogo do capitalismo globalizado.

    Marc Tourneuil (Gad Elmaleh) é um escritor e homem de confiança do então presidente de um dos maiores bancos da Europa, que o considera talentoso para assumir a presidência em seu lugar após descobrir-se acometido de câncer nos testículos. Tourneuil assume, mas sua nomeação é temporária, já que o conselho quer usá-lo apenas como marionete para uma verdadeira transição e que ajudará o banco a sair da crise em que se encontra. Dali em diante, veremos a rápida ascensão de Tourneuil como banqueiro e sua decadência moral advinda de suas escolhas. Sua ambição maquiavélica pelo poder e dinheiro, como uma tentativa de obter respeito pelos seus pares, denota a importância do dinheiro no mundo atual, o que fica claro em um dos diálogos da personagem com sua esposa; ao ser indagado sobre o que quer, ele diz apenas que deseja o dinheiro para ser respeitado, pois quanto menor o salário, menor o respeito. Observação dura, mas facilmente vista em nossa sociedade do consumo.

    As pérolas metafóricas espalhadas por Gavras demonstram um pouco do pensamento do autor, ou seria mera coincidência o afastamento do antigo presidente em decorrência de um câncer nos testículos? Claro que não. A esterilidade do ex-presidente é também a esterilidade do mercado de capital. A perda de virilidade é a crise e a ruína desse modelo político. Não à toa, essa mensagem é reforçada através de relações humanas artificiais mostradas no filme, ou o desejo não consumado de Marc pela modelo.

    Em contrapartida, Gavras mantém uma visão bastante pessimista quanto a essa possível ruína do capital financeiro, o que deixa claro, inclusive, na escolha do nome do banco: Phenix. Assim como o capitalismo, que sempre se renova, para o bem ou para mal. Ainda assim, o cineasta greco-francês não deixa de realizar suas críticas e colocar o dedo na ferida, indo ao cerne do mundo político e econômico, retratando a desfaçatez desse mundo ao utilizar os ensinamentos da figura do líder socialista chinês Mao Tse-Tung como estratégia para realizar uma demissão em massa e ainda aumentar os lucros do banco. Uma completa inversão de valores.

    O Capital é uma leitura esmiuçada sobre os aspectos perversos do neoliberalismo. A síntese desses males é bastante clara em dado momento, quando o tio do protagonista questiona: “Seu banco obtém benefícios e você demite as pessoas. Como lida com isso?”, ao que Marc diz: “Muito mal, tio. O Banco estava afundando. Tive que salvá-lo. E tive que despedir para salvar 100 mil empregos.” A indignação de seu tio explode, e ele responde: “Não me venha com isso. Cansei de ouvir isso. Vocês sangraram as pessoas três vezes: primeiro, a bolsa quer sangue. Você realoca, funcionários perdem emprego; segundo, você os sangra como clientes; terceiro, pressiona os Estados endividados e quem paga é o cidadão. E como o funcionário é cliente e cidadão, você o fode três vezes. O dinheiro contamina tudo.”

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  • Crítica | A Espuma dos Dias

    Crítica | A Espuma dos Dias

    L'écume des jours

    A estranheza revestida de “cool” é um dos traços característicos de Michel Gondry: o cineasta ficou famoso dirigindo clipes em que Björk passeia por uma floresta encantada, os Chemical Brothers visitam os pesadelos de uma menina, e um stop motion feito de lego para o The White Stripes. Com a ajuda de Charlie Kauffman (roteirista de A Natureza Quase Humana e Brilho Eterno de uma Mente Sem Lembranças) o diretor fez uma boa transição para o cinema e sua tendência a estranhezas se traduziu em histórias incômodas, com pitadas de fantasia e ficção científica. Mas parece que ao ser seu próprio roteirista e perder as amarras que um baixo orçamento representavam, Gondry começou a patinar.

    A Espuma dos Dias e todo do diretor francês: ele participou da adaptação do romance de Boris Vian e é um dos produtores do longa; para a França, onde seu status de celebridade é muito maior que nos Estados Unidos, o filme é quase uma super-produção. Livre de constrangimentos, o cineasta pode se empenhar em criar o universo de imaginação que sempre habitou, mas ele o faz às custas da história.

    O filme conta a história de Colin, um jovem parisiense que tem a sorte de ter “nascido rico o suficiente para não precisar trabalhar para os outros” e alguns de seus amigos, o obcecado Chick, que recolhe tudo que se relacione ao filósofo Jean-Sol Partre, e o criativo cozinheiro/advogado Nicolas. Um dia, em uma festa, Colin se apaixona por Chloé e, após um breve passeio em um veículo-nuvem, os dois se casam. Já na lua-de-mel, Chloé começa a passar mal e descobre-se que a moça tem uma flor de lótus crescendo em seu pulmão direito e para curar-se precisa estar sempre rodeada de flores vivas. O tratamento drena as finanças de Colin e, após a operação que retira a primeira flor de lótus, os médicos encontram uma em seu pulmão esquerdo.

    Trata-se de uma tragédia, mas Gondry nunca a aborda como tal. Ele retrata muito bem a alegria infantil e fantasiosa dos personagens na primeira parte do filme, mas falta sensibilidade e envolvimento na dor que os consome na segunda parte. A direção de arte e a fotografia fazem um bom trabalho ao representar esse sofrimento: tudo decai, decompõe, os tons tornam-se cinza e a casa dos protagonistas literalmente apodrece, mas esse cuidado visual não se reflete em cuidado narrativo.

    O cuidado com a estética, em detrimento da história, é o principal problema de A Espuma dos Dias. Cada geringonça citada por Vian em seu livro aparece aqui, em detalhes e com alguma explicação de seu funcionamento, há uma longa sequência para o pianococktail, e outra para o bizarro método de casamento criado pelo autor. Por outro lado, falta tempo para que o espectador se envolva com os personagens. Tudo é corrido, apressado e os atores parecem incapazes de sair da “felicidade festejante” que criaram na primeira parte da história, talvez porque seus personagens não tenham personalidade, sejam apenas figuras que enunciam o que sentem, mas sem qualquer vida interior.

    Chick talvez seja o personagem mais bem construído de todos, sua obsessão é genuína e convincente, ainda que Gondry deixe de explorar o papel de “anúncio” que o personagem poderia ter. Deixar de explorar o potencial da história é o segundo grande problema do filme: a história é comovente, uma bela metáfora sobre o amor e sobre como organizamos nossas vidas em torno de sonhos que, ao se desfazerem, levam tudo com eles. Mas essas coisas aparecem apenas muito levemente.

    É uma pena que o responsável por Brilho Eterno de uma Mente Sem Lembranças seja incapaz justamente de infundir humanidade em seu filme, mas é justamente essa a grande falha de A Espuma dos Dias. É tudo muito bonito, mas vazio, fruto de um diretor fascinado com a própria estética e que se esqueceu de contar uma história.

    Texto de autoria de Isadora Sinay.