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  • Entrevista | Flavia Castro, diretora de Deslembro

    Entrevista | Flavia Castro, diretora de Deslembro

    Deslembro foi uma das boas surpresas do Festival do Rio 2018, talvez um dos mais tocantes entre as ficções nacionais. Entrevistamos a diretora Flávia Castro sobre seu filme e o cenário cultural no Brasil.

    Vortex Cultural: Qual a gênese de Deslembro, de onde surgiu a ideia de fazer um filme nessa toada de ternura e com uma história contada pelos olhos de uma personagem na fase da puberdade e das descobertas da vida?

    Flavia Castro: Comecei a escrever quando estava montando o meu documentário Diário de uma Busca. De certa forma, um filme nasceu de outro. Eu queria ir mais longe em um trabalho sobre a memória, e o desejo de ficção veio disso. No início, Deslembro se chamava “A memória é um músculo da imaginação”, que é uma citação do Nabokov. Como e o quanto lembramos ou reinventamos o que vivemos? Isso foi o ponto de partida, o que me movia.

    Vortex Cultural: Lembro que depois de Diário de Uma Busca, o formato de filmes documentais muito pessoais tem se popularizado – levando em conta que Hércules 56 também já tinha alguns elementos dessa natureza, antes até mesmo do seu filme. Qual a conexão de Deslembro com seu filme anterior?

    Flavia Castro: No Diário, eu foco na trajetória do meu pai, militante e exilado, até o seu retorno ao Brasil. Nas entrelinhas, tem um pouco da minha infância e a do meu irmão. Em Deslembro, é o contrário: o foco está nas crianças, e sobretudo em Joana, a adolescente que volta do exílio para o país do qual mal se lembra. Mas tem uma cena em particular no Diário de uma Busca, que existe em Deslembro, que é o elo dramatúrgico, digamos assim, entre os dois filmes.

    Vortex Cultural: O filme já tem data de estreia?

    Flavia Castro: Primeiro trimestre 2019.

    Vortex Cultural: Há algum outro projeto em mente para o futuro, em especial mais ficções?

    Flavia Castro: Estou trabalhando num projeto que é uma ficção, mas é também documentário. É bem difícil defini-lo no atual estágio. Chama-se Retrato de um Homem Invisível.

    Vortex Cultural: Na sessão em que eu estava, o elenco de crianças sentou-se na fileira atrás da minha, e ouvi muitos comentários com elas, inclusive na cena do trem, uma delas falou: “não dá medo, não”. Como foi a experiência em tratar de um assunto que em teoria é tão pesado, com um elenco formado em boa parte por crianças?

    Flavia Castro: Foi um desafio mas também um prazer enorme trabalhar com o elenco e ver essa família se formando. Teve um processo de preparação antes das filmagens que foi fundamental, durante o qual o elenco que forma a família passou um tempo junto. Foi intenso e bonito, porque quando começaram as filmagens existia uma relação ali, entre os atores e seus filhos na ficção, a Sara Antunes e o Julián Marras, “os adultos” foram muito generosos nessa construção da família. A Jeanne trabalhou com o roteiro, leu, estudou, tomou para si a história e o personagem. Eu contei a história do filme para eles, expliquei a situação em que se encontravam seus personagens, mas sem muito detalhes porque queria deixa-los imaginar, viver aquilo livremente. Eu me lembro da surpresa do Hugo quando eu expliquei para ele o que era um golpe militar. Eu acho que as crianças entendem tudo sempre, ainda que não acessem todas as camadas de uma informação. O meu papel era compartilhar com os os meninos, elementos que fossem úteis para que eles pudessem imaginar-se nessa história e se sentirem a vontade nela.

    Vortex Cultural: A questão das multi-línguas no seu filme, ao menos para mim, conversou muito com a questão da busca por identidade de Joana. Qual é a sua intenção primordial ao mostrar a trajetória dela, de alguma forma ela se conecta com a sua história?

    Flavia Castro: Faz parte da minha história e de muita gente que eu conheço. E você tem razão, a busca da identidade passa também pela língua na qual a gente tem a possibilidade de se expressar. Quando meus pais foram exilados, eu tinha 6 anos, meu irmão 2, fomos para o Chile, eu me alfabetizei em espanhol. Depois fomos para Bélgica e França, e aprendi francês, quando voltei para o Brasil na adolescência, o francês era a língua na qual eu me sentia mais segura. Eu não sabia gírias em português, não sabia expressões tipicamente cariocas, mas não é só isso: eu vivi o bilinguismo ao longo da vida toda, pois adulta voltei a morar na França, meus filhos nasceram la, o pai deles é francês. Voltei para o Brasil com eles pequenos, eles foram para escola francesa, e continuei vivendo essa mistura de línguas no cotidiano com eles, e até hoje vivo.

    Vortex Cultural:  As pessoas saíram emocionadas do seu filme na sessão em que eu estava. Você acha que isso se dá pelo conteúdo da história ou também por conversar com a apreensão de muita gente com o vindouro?

    Flavia Castro: É perturbador o filme ficar pronto e estrear no Brasil quando ainda estamos catatônicos com a eleição de um presidente de extrema-direita. E é nesse momento, em que grupos cada vez maiores de pessoas negam que houve uma ditadura militar no Brasil, e que “Deslembro” traz à tona uma história de quem sofreu com a ditadura, e são adolescentes, crianças. Então sim, acho que o momento político do país, provocou uma camada maior de emoção nas pessoas que viram o filme nessas primeiras sessões no Brasil. Mas no Festival de Veneza e depois em Biarritz, onde o filme passou em salas gigantes de 1400 e 1200 lugares, a emoção dos espectadores italianos e franceses também era muito palpável e não tinha uma conexão direta com o nosso presente.

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  • Crítica | Deslembro

    Crítica | Deslembro

    Filme emotivo de Flavia Castro, responsável pela direção do documentário Diário de Uma Busca (esse também um filme sobre a época da Ditadura Militar), Deslembro é a primeira ficção em longa-metragem da cineasta, e começa mostrando uma família em colapso, a começar pelos filhos, com crianças e com a adolescente Joana, vivida por Jeanne Boudier. As crianças, que conversam normalmente em francês recebem a notícia de que vão para o Rio de Janeiro, e isso aflige especialmente a primogênita, que perdeu seu pai durante a repressão.

    É curioso a forma que Castro escolher contar a história. O roteiro tem tons agridoces, mistura uma abordagem via olhos infantis com o despertar da puberdade, embalados normalmente pelos clássicos da banda The Doors, cujo vocalista e principal símbolo morreu bastante jovem, tal qual boa parte dos reprimidos da época do regime ditatorial, entre eles, o pai de Joana, que é feito por Jesuíta Barbosa.

    Durante a exibição, em todo tempo se nota um caráter e uma vontade de soar emocional e terno, e o filme realmente consegue acertar muito nesses tons e ainda sem descuidar do registro histórico. A forma como é mostrada uma família que sofreu com a perda de entes queridos durante os anos de chumbo é bastante avassalador, e nesse ponto, destacam-se Sara Antunes, que faz a mãe de Joana, uma mulher que possui uma distância bastante comum entre gerações que não tem tanta diferença de idade entre si, e também Eliane Giardini, que vive a vó de Joana e a mãe do rapaz que morreu. Aqui se vê uma intimidade em que o sentido gira em torno do saudosismo de quem elas perderam, e Giardini brilha demais, não só roubando a cena como fazendo uma escada para Boudier brilhar, apesar desse ser um dos seus primeiros grandes papéis no cinema.

    O sufoco e a espera pela morte funcionam quase como entidades, como espíritos que assombram as mulheres e homens apresentados em tela. O clima de confessionário do destino também impera, já que Joana busca se culpar pelo que aconteceu ao seu pai para talvez impedir seu padrasto de seguir em uma missão onde não sabe se voltará vivo. Aqui se repara em uma das idéias mais presentes no texto de Castro, que é a repetição de ciclos, das figuras paternas de Joana, assim como as semelhanças não só físicas, mas também emocionais e de caráter entre filha, mãe e avó.

    É impressionante como Deslembro funciona perfeitamente como uma ode a ausência. As incertezas de Joana, de sua mãe e avó sobre o destino final de Guilherme/Eduardo (que tinha um nome duplo por conta dos disfarces) sobre como aconteceu sua queda e sobre a questão emocional dele ter sofrido ou não nos últimos momentos é impressionante, pois cada geração absorve isso de uma forma, e Castro traz um resultado muito bom dessa exploração, pois todas fazendo sentido, e tocam a alma de quem assiste a obra.

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