Tag: Ditadura

  • Crítica | Os Arrependidos

    Crítica | Os Arrependidos

    Baseado no livro O Terror Renegado de Alessandra Gasparotto, Os Arrependidos é um filme da dupla Ricardo Calil e Armando Antenore que conta  a historia dos ex-guerrilheiros que quando jovens, sofreram tortura para se assumir como arrependidos, inclusive indo a imprensa afirmar que mudaram de ideia em relação a ideologia que antes professavam, classificando assim seus antigos atos como um “terrorismo” que pertence ao passado. O filme conversa com algumas dessas pessoas, Gustavo Guimarães Barbosa, Marcos Vinicios Fernandes, Celso Lungaretti, Marcos Alberto Martini, Rômulo Moreira Fontes. além de falar com alguns parentes desses ex-presos.

    O documentário não tem pressa, as entrevistas são francas e eles falam sobre como entraram nos grupos revolucionários, assumindo que não tinham muito como ocupar o tempo ocioso de sua juventude, que diversão era um artigo de luxo e raro na época, então o lugar contra o reacionarismo e a falta de liberdade eram um caminho óbvio, os movimentos secundaristas e estudantis eram a alternativa mais correta.

    Calil e Antenores variam entre os depoimentos recentes e as gravações antigas de qualidade visual ruim, condizente com os poucos registros de imprensa da época. O conteúdo dessas conversas impressiona, pela crueldade que foi imposta a eles. A curadoria da dupla de diretores é ótima, há cuidado em deixar legendas nas conversas para que o entendimento do público seja completo.

    Os tais “arrependidos” já estão na meia idade, mas nota-se que eles parecem mais velhos do que realmente são, como se a Ditadura roubasse deles os bons anos de sua vida. Chega ao cúmulo de uma irmã mais velha de um dos torturados parecer mais jovem, quase como se fosse ela uma filha de idade, cuidando do pai já bem idoso. Eles não se consideram traidores, cada um tem seus motivos para falar, e alguns, até seguem o pensamento ligado a esquerda, mas aceitavam falar sobre seus arrependimentos para ter liberdade, obviamente. Gustavo Barbosa por exemplo afirma que dentro dos seus limites, falava que a luta armada não era boa, mas não que concordava com o Regime.

    A edição é bem pensada, entre as falas dos entrevistados são colocados comerciais da época, fato que reforça a sensação de incômodo. Tanto a música dessas propaganda  quanto a falta de qualidade sonora das peças publicitárias, fica uma impressão de que os comerciais são curtas de terror.

    É de partir o coração quando se fala dos arrependidos já falecidos, ainda mais no que se fala a respeito dos arrependimentos, das mentiras e das torturas que passavam do físico e destruíam as pessoas em níveis de caráter, sentimentos e moral. Acompanhar toda essa historia, ainda mais atualmente quando ocorre um movimento político que defende práticas tão vis quantos essas é pesado. Um dos momentos mais chocantes do filme reside nas falas das parentes de um dos arrependidos já morto, Manuel Henrique Ferreira. Abaixo, um trecho da carta que Ferreira enviou, claro, resumido, já que a correspondência tinha 21 páginas:

    Ao final de Os Arrependidos, se dá o destino dos ex-militantes, alguns se tornaram jornalistas do veículo ligado a direita, A Folha da Tarde, alguns migraram para o movimento ultra direitista como O Integralismo , outros nem quiseram falar sobre seus arrependimentos porque as lembranças eram muito duras, e Massafumi Yoshinaga é tratado como uma das principais vítimas desse tempo, pois foi símbolo “positivo” para os milicos, por ter sido um dos mais notórios arrependidos, e depois, se suicidou. É uma historia dilacerante e uma vez publicado o filme, a obra ganha contornos de documento histórico, que brilha bastante por desvelar mais uma das muitas mentiras do Regime Militar brasileiro, que não foi nada brando com esses homens, que eram meninos a época.

  • Resenha | Corredor Polonês – Alfredo Sirkis

    Resenha | Corredor Polonês – Alfredo Sirkis

    “Nesse frio, circo nenhum pega fogo. Circo gela.”

    Naturalmente, há poucas semelhanças entre Brasil e Polônia. O primeiro, conhecido por suas praias, festas e outros elementos tropicais; o segundo, por seu passado impiedoso e um gelo que parece impregnar a tudo, e todos. Dois universos díspares dentro de um mesmo planeta marcado por grandes conflitos cujas marolas, praticamente, não chegaram com força nem mudaram os rumos no maior país da América Latina. Entretanto, durante a segunda guerra mundial, no longínquo ano de 1939, os poloneses serviram de berço oficial ao conflito, e assim, conheceram na pele a crueldade humana que pode se esconder naquelas suas gélidas veredas que os calorosos brasileiros não conseguem nem imaginar, palco, certa vez, de uma frieza muito mais aguda que quaisquer temperaturas abaixo de zero que o homem já teve de enfrentar.

    Sabendo da neutralidade brasileira diante de quaisquer eventos da história polonesa, e da nossa total falta de identificação sobre o passado ainda latente de um país tão distante, em tudo, do nosso, o escritor, jornalista e político carioca Alfredo Sirkis arquiteta seu Corredor Polonês em torno do humanismo, e do humanitarismo pós-guerra. Ou seja, temos em voga uma obra na qual seu mais sincero fervor, e a sua brilhante capacidade biográfica, e em formato de crônica, dentro do contexto cultural de qualquer sociedade, se dá através de uma compreensão universalmente acessível quanto ao drama de ter a sua vida, sua família e sua pátria devastadas por invasões, combates intermináveis, e um infinito de crimes contra a humanidade. Mesmo assim, no seio de uma família destroçada pela partida de seu patriarca, o Dr. Binek, o que sobram a suas filhas (e à memória de todos os envolvidos no processo árduo de sobrevivência dos poloneses) são os valores de uma gente que encontrou na decência aprendida em família, e no nacionalismo, a chave para uma utópica e desesperada resistência.

    O livro da editora Record é fruto de uma longa pesquisa de Sirkis, dono de uma prosa irresistível, e que revira os ecos dos imigrantes poloneses no Brasil cujo DNA para sempre será fortalecido pelos traumas deste povo, quase exterminado, com suas mulheres enviadas ao sofrimento no frio e miséria absolutos no norte da Ásia (o “fim do mundo”, como apelidam as filhas de Binek), enquanto o resto da masculinidade polonesa morria contra a Alemanha de Adolf Hitler, ou tentava o milagre da fuga pelas florestas do país. Em meio a desolação branca manchada de vermelho, Sirkis injeta poesia e lirismo em uma trama intimista que se debruça no real para poder existir – o tema do fascismo é por vezes presente, aqui, tal um espectro sombrio e atemporal, em várias passagens que se destacam por expor a espetacular sagacidade e sensibilidade do autor. Afinal, eis uma sociedade perdida no meio de um furacão nazista, e se engana quem acha que Corredor Polonês, numa clara alusão a faixa de terra que Hitler tanto sonhava em recuperar para a Alemanha, seja apenas sobre o percurso de uma guerra arrasando este belíssimo país europeu.

    Tudo mudou naquela invasão a Polônia, e os fantasmas desta sociedade também. Exércitos não marcham sem deixar pegadas eternas para trás, muitas vezes internas, carregadas em um mundo globalizado nos corações dos mártires, e algozes – ninguém escapa. Se há uma questão mais pertinente aqui do que a injustiça histórica que se abate ao soldado polonês que nunca chegou a testemunhar o retorno da paz a sua sagrada Polônia, pois morreu para conquistá-la, ainda que indiretamente, para que suas filhas e netas pudessem um dia entrar e sair com liberdade do país, fica sendo então: “e o Brasil, com tudo isso?”. Um país sempre visto como o novo mundo, no imaginário popular: uma árvore frondosa, virgem de grandes tempestades, com espaço o suficiente para todos se alojarem, e lá fazerem os seus tão sonhados ninhos de segurança, e de prosperidade. Mas e quanto ao passado, coloca-se na gaveta e o esquece? Ele mesmo não permita que façamos isso com ele, e o livro é justamente sobre isso. Uma grande leitura que merece uma republicação após tantos anos esgotado.

  • Resenha | Ditadura no Ar: Coração Selvagem

    Resenha | Ditadura no Ar: Coração Selvagem

    “Em uma São Paulo noir, o amor está enterrado pela crueldade dos homens.”

    Não importa, certas frases publicitárias nunca perdem o encanto. Algumas, como a de cima, ainda encaixam-se em boas histórias como se delas tivessem saído, espontaneamente, em uma noite fria de outono, com suas ruas geladas e os portões úmidos de uma cidade mergulhada em vultos e faces anônimas. Este é o clima cruel de Ditadura no Ar, uma minissérie independente ganhadora do prestigiado troféu HQMix, em 2013, que reúne quatro partes de uma mesma história de perseguição e sobrevivência no auge da ditadura militar brasileira, em uma São Paulo sessentista e sem amor – como muitos supõe que seja, mesmo.

    O ano é 1969, e quem não coopera com a normalidade ditatorial pós-AI-5 é torturado pelo poder vigente. Simples assim, com o cidadão mais encurralado que nunca pela mão invisível do governo. Nisso, a namorada do fotógrafo Félix Panta, a militante e durona Lenina (numa alusão bem-humorada ao famoso comunista russo), é raptada durante um protesto ao som de Caetano Veloso, Chico Buarque e outros símbolos da resistência popular, destes idos. Inabalável em sua caçada, Félix se vê envolto em sua busca quase que impossível, mesmo tendo que trabalhar para o jornal sensacionalista O Pastiche, em perigosas entrevistas no submundo paulistano com sobreviventes de torturas físicas, e psicológicas tão típicas desses anos.

    Félix tem a alma do detetive particular Sam Spade, interpretado pela lenda de Hollywood Humphrey Bogart, no clássico O Falcão Maltês – considerado por muitos o primeiro e o melhor filme noir já produzido (ou seja, obras de contexto urbano e do gênero policial que se misturam ao gênero do suspense, fortemente influenciadas pela estética do expressionismo alemão da década de 1920). Por essa vibe de mistérios e segredos, Félix se arrisca pelo Pastiche, se arrisca por sua namorada que, no fundo, sabe que nunca mais irá (re)ver, e coloca as mãos no fogo para ajudar uma amiga de Lenina que vem sendo perseguida por ter andado com a amiga revolucionária. Félix não é egoísta, e prova isso com atos, colocando sua paz antes das vidas que considera valerem muito mais, que a dele.

    Vale destacar que a tensão e a impotência das pessoas em um cenário de total perigo institucionalizado no país é transmitida, em Ditadura no Ar, não somente pela sua dinâmica trama investigativa, ou pelo drama dos jornalistas que ousam trabalhar com a verdade no auge do absolutismo no Brasil pós-colonial, mas principalmente pela parte gráfica do álbum, em especial pela escolha de cores mórbidas e tons frios e obscuros a retratar a sensação perturbadora de se viver sem liberdade ou conceitos de bem-estar social, senão sob a brutal chibata da ditadura militar já constituída. Se é de fato a verdade que nos liberta neste mundo, tanto o Félix jornalista quanto o Félix apaixonado vão até os porões da ditadura para descobri-la, dispondo de um coração selvagem e uma noção suicida para defrontar-se com a realidade das coisas.

    Distribuído desde 2016 pela editora Draco, Ditadura no Ar é quadrinhos adulto brasileiro da melhor estirpe, fruto do esforço criativo da dupla Raphael Fernandes, e do ilustrador Rafael Vasconcellos. A partir de uma ambientação sólida, e de um enredo repleto de surpresas e fruto de uma extensa pesquisa histórica, a engrandecer os mais curiosos sobre este difícil período da história nacional, palco para tantos heróis, algozes, e as vítimas que ainda lutam para não serem esquecidas nas areias do tempo, temos uma obra cuja qualidade da romantização dos fatos pode surpreender e entreter a todos.

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  • Crítica | Pastor Cláudio

    Crítica | Pastor Cláudio

    Filme de Beth Formaggini, Pastor Claudio começa com um letreiro que traz a memoria um tempo de desesperança, ligado ao Golpe Civil Militar de 1964. Seu filme/entrevista se foca no ministro que dá nome ao longa, sobre a época em que ele funcionário do governo e da pátria, e o sujeito, já idoso, de compleição bonachona e ouve o entrevistador Eduardo Passos (psicólogo e ativista dos direitos humanos) como se os fatos ditos durante o monólogo que descrevia o trabalho dele.

    Cláudio apesar da idade avançada fala abertamente sobre algumas pessoas que ele executou, entre as vítimas algumas que foram incineradas. Em alguns pontos, o enquadro esconde o rosto através das sombras provenientes do projetor que colocava fotos dos presos políticos “recebidos” pelo religioso.

    Claudio é bem lúcido, fala bem e abertamente sobre seus serviços prestados e sobre sua vida particular em Minas Gerais, onde passou a dever favores a policia local, graças a terem permitido que ele executasse um desafeto, e esses favores foram cobrados. Sua convocação aconteceu sobre o pretexto de que a esquerda e os comunistas se levantavam e precisavam ser freados. A partir daí ele transitaria entre Minas, Viória-ES e Campos dos Goytacazes -RJ.

    Entre o detalhamento das operações e da chegada das pessoas ao lugar em Vitoria onde ocorriam sessões de tortura e onde Claudio Guerra era administrador, se notam dois fatores primordiais, o primeiro é que ele não tem pudor em falar dos mortos que carregava ou que tinha contato direto, no entanto ele dizia durante os depoimentos ele fala que não assistia as sessões de tortura, mas sabia que ocorria ali. O segundo fator são os nomes das vitimas que saltam a tela, repetidamente e esse artifício pode parecer redundante, mas a ideia de mostrar ao espectador quem sofreu naquelas ações é importante, visto que uma lista com dezenas de nomes não teria síntese para dar nome a um filme, livro ou qualquer obra de registro, e o documentário apesar de ter o nome do entrevistado, serve de biografia dos mortos e do processo triste que sofriam, inclusive no processo -igualmente massificado no filme- incinerar os corpos.

    Em todo momento ele dizia ser frio nas execuções, não havia emoção, ao mesmo tempo que recebia benesses pelos atos que praticava. Ele parecia saber detalhes também de presos famosos, como o caso de Zuzu Angel, que segundo ele era bem incomoda e inconveniente aos poderosos, assim como Vladimir Vlado Herzog, inclusive verbalizando que a morte do jornalista foi um tiro no pé. Segundo os comentários que ouviu houve um exagero por parte dos torturadores, que supostamente não tinham intenção de matar Herzog.

    Guerra diz se arrepender do que fez, sobretudo pela questão de ter se associado ao poder nesta época, uma vez que lideranças mundanas seriam naturalmente pecaminosas segundo os preceitos de sua atual religião. Ele considera seus atos como errados mas a frieza com que fala segue impressionante, e ele culpa a falta de punição por ainda existir tortura no país, falando abertamente que elas ainda existem, nas favelas e cadeias, com os pobres, pretos e qualquer pessoa confundido com infratores da lei, e sua leitura da atualidade é bem sóbria, pois tudo o que diz condiz com o real, é um sujeito que viveu muito, que fez parte de uma pagina nefasta da historia brasileira e que tem consciência disso tudo.

    O apoiador confesso de processos de tortura tem um medo, receio de ser pego pelo grupo que ele chama de Irmandade, e ainda que não detalhe muito as operações do grupo, se nota o quanto ele respeita a tal organização. Passos é um belíssimo entrevistador, consegue permanecer impassível a qualquer sentimento e sensações, pois é dele a função de fazer ele falar, e mesmo que não consiga desenvolver muito este assunto em especifico todo o depoimentos de Claudio é esclarecedor e aterrador, fazendo de Pastor Claudio um belo exemplar de um cinema jornalistico preocupado com a historia e também com o futuro, uma vez que em 2019 quando ele chega ao circuito o governo federal seja formado por simpatizantes do Coronel Ustra e outros tantos torturadores e apologistas da Ditadura Militar.

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  • Entrevista | Beth Formaggini, diretora de Pastor Claudio

    Entrevista | Beth Formaggini, diretora de Pastor Claudio

    Filmes sobre a Ditadura rendem uma boa discussão, ainda mais nos últimos tempos, e Pastor Claudio é um documentário de Beth Formaggini que é cirurgico ao analisar uma figura controversa, Claudio Guerra, o Pastor Claudio,  que participou das sessões de tortura e para discutir o processo do filme conversamos com a diretora, com exclusividade;

    Vortex Cultura: Desde quando o projeto foi pensado e quando começou a ser produzido?

    Beth Formaggini: Quando saiu o livro Memórias de uma Guerra Suja, de autoria de Rogério Medeiros e Marcelo Netto, com depoimentos do ex-delegado do DOPS Cláudio Guerra em 2012, comecei a pensar em Ivanilda. Cláudio confessa no livro ter assassinado e ocultado corpos de militantes mortos na Operação Radar e no meu longa anterior Memória para Uso Diário Ivanilda Veloso procurava o marido desaparecido, Itair José Veloso, assassinado na Operação Radar. Então, pensei que ele talvez pudesse esclarecer o paradeiro de Itair e resolvi fazer o filme. Para mim Ivanilda encarna um dos “gritos” dentro do filme, ela pergunta para Cláudio, através de uma projeção, onde está seu marido, um dos poucos momentos que faz o pastor gaguejar. Fazer aparecer, dar visibilidade e “dizibilidade” aos agentes invisíveis e até hoje impunes que agiram nos porões da ditadura é gritar de outra maneira, porque é dar a ver e a ouvir essas ações por si mesmas gritantes e escondidas debaixo do tapete.

    VC: Em outras tantas entrevistas de Cláudio Guerra se mostra como um sujeito frio, calculista e repleto de detalhes são seus relatos, no entanto, em seu filme foi ao meu ver o melhor depoimento dele. Foi difícil pra você enquanto cineasta e para Eduardo Passos enquanto entrevistador conversar com ele? Em algum momento ele esboçou alguma reação diferente do que se vê dele em tela?

    BF: Cláudio foi um assassino responsável pela morte e incineração de pessoas desaparecidas que se opunham à ditadura brasileira apagando as marcas da violência do estado. Na volta à democracia, trabalhou na segurança pública replicando os métodos do passado e cometeu ainda outros assassinatos comuns. Suas motivações variam entre o orgulho em ser um cumpridor de ordens competente, um servo leal da luta contra o comunismo, o prazer de ser temido e o amor ao poder e ao dinheiro. Ora é um cristão arrependido, ora um assassino orgulhoso de seu trabalho.

    Neste filme me propus a enfrentar o que para mim era claramente o inimigo, criando um dispositivo que permitisse a ele se confrontar com sua própria história. Propus uma conversa entre Cláudio e Eduardo, um psicólogo clínico durante a qual se projetam imagens de seus parceiros e vítimas nos permitindo ver a vinculação de Cláudio com a violência do estado praticada naqueles anos, além de perceber a sua frieza aterradora. Tratar o tema da violência do Estado entrevistando um agente da repressão foi uma tarefa muito difícil. Quando chamei o psicólogo Eduardo Passos para conversar com Cláudio Guerra queria alguém que fosse capaz de escutar, mas também que fosse um militante dos direitos humanos. Queria que ele trouxesse o personagem para dentro do filme e o convidasse a construir conosco o seu retrato, mas que tivesse uma posição a favor dos direitos humanos. Também optamos por não colocar Guerra no paredão, mas em nenhum momento Guerra ou o público deixaria de saber o lugar de onde falávamos. Em sua entrevista ao Forumdoc, Jean-Louis Comolli, autor de Ver e Poder nos orientou: “É preciso odiar o inimigo, sem dúvida, e combatê-lo sem piedade, mas para isso é preciso compreendê-lo e poder contar a história que é dele e que ele não conta.” Que nenhum deles conta. E não foi nada fácil essa convivência.

    VC: Imagino que a época que foi exibido Pastor Cláudio nos festivais, não se tinha noção completa de como seria o rumo das eleições federais. Como você acha que seu filme conversa com o futuro e presente político e que tipos de repressões descritas por Claudio Guerra poderiam se repetir na atualidade tendo em vista que os anos 2010 são diferentes de 1960/70?

    A grosso modo a mesma elite brasileira que forjou o Golpe de 64 e o sustentou por mais de 20 anos está hoje no poder. É claro que o que vivemos hoje é muito mais complexo e que mais de 50 anos se passaram mas não caberia me estender aqui. Não é por acaso que o atual presidente homenageia Ustra, um dos maiores assassinos e mais cruel torturador do regime militar. Nosso filme deixa claro que o que ocorreu em 64 foi um golpe civil, empresarial e militar que contou com o apoio de ruralistas, banqueiros e empresários, mas também de grande parte da sociedade que fingia não ver os crimes que eram cometidos. Quando Cláudio fala no filme que estes grupos são os mesmos de ontem e que estão se articulando para voltar ao poder o filme ganha uma atualidade impressionante, ele prenuncia o que virá a ocorrer dois anos depois.

    VC:  Como foi a preparação de Passos para conversar com Cláudio? Ele fez algo diferente ou especial?

    BF: Jean Louis Comoli nos ensina que se você quiser filmar o inimigo deve trazê-lo para dentro do seu filme. Nós nos preparamos muito para enfrentá-lo. Assistimos e debatemos muitos filmes junto com Marcia Medeiros, a montadora que depois somou-se a Julia Bernstein na montagem com a consultoria de Marta Andreu. Assistimos a documentários como Teodorico, O Imperador do Sertão, de Eduardo Coutinho, onde ele “cede a palavra” para um “coronel” nordestino dono de terras, de gentes e da política local. Os filmes Duch, Le Maîtres Des Forges De L’enfer e S21, de Rithy Panh também foram muito importantes para a construção de um ethos da entrevista no filme. Neles o documentarista cambojano Rithy Panh dá passagem à narrativa dos violadores de direitos humanos no Camboja trazendo à tona uma visão aterrorizante da história. Eduardo destaca a importância de fazer aparecer estas violações enunciadas pelo próprio violador também como uma forma de resistência.

    Assistimos muitas entrevistas dos agentes da Ditadura no site da Comissão Nacional da Verdade, lemos Hannah Arendt e os estudos sobre a ditadura nos anos 70, discutimos muito as entrevistas anteriores de Cláudio e preparamos uma pauta muito precisa. Mas ao meu ver a prática da psicologia clínica de Eduardo teve um papel muito importante.

    VCDepois de ter trabalhado em um filme cujo foco narrativo é na fala de um homem que colaborou demais com o regime civil militar, e de ter tido contato pessoal com o mesmo, como você pessoalmente enxerga a digestão que ele fez do passado? Acredita que ele está realmente arrependido ou que é algo da boca para fora, movido por obrigações religiosas?

    A conversão de Cláudio e sua decisão de contar a sua versão dos fatos não foi assunto de nossas conversas. Nosso foco foi realmente a recuperação da memória sobre a repressão que se abateu sobre o Brasil naqueles anos e a sua repercussão nas práticas de desrespeito aos direitos humanos no período de exceção até os dias de hoje. O resultado do dispositivo criado pelo filme é nos colocar em presença não só de Cláudio mas de toda uma engrenagem que atuou na Ditadura Civil Militar e continua ativa até hoje, usando as milícias e esquadrões da morte como ferramenta, vide casos como a assassinato de Marielle e Anderson, ou o desaparecimento de Amarildo, além das inúmeras lideranças indígenas e camponesas assassinadas no país.

    Este jogo de cena que Cláudio concorda em jogar conosco nos permite não só reconstruir este período terrível da história do Brasil, mas também ver a vinculação de Cláudio com a violência de Estado praticada na ditadura militar. Também vemos a sua frieza aterradora. O filme nos faz sentir que este terror faz parte de nossa vida cotidiana dentro de uma total normalidade. O que ocorre em Pastor Cláudio é algo inesperado. O que me passou e que acho que poderá passar com o público é surpreendente. Nos damos conta que o monstro também é uma pessoa. Esperava ver um monstro com chifres e rabo e encontrei uma pessoa e este fato nos faz pensar na banalidade do mal como algo que vivemos cotidianamente. Assim, vemos diariamente notícias das mortes de jovens assassinados pela polícia e a sociedade não se rebela contra esse genocídio. Sabemos que presos são torturados e poucos se importam e se mobilizam. O mais grave é que estas poucas vozes estão cada vez mais em risco nos dias de hoje. A violência dos homens e do Estado continua a nos assombrar no Brasil e no mundo onde a vida humana já não vale mais nada. O filme nos faz viver esta experiência aterradora pois também nos põe um espelho diante dos olhos.

    VC: Qual é a sua visão particular sobre o personagem que é o Pastor Claudio? Você acha que há alguma criação consciente do personagem ou você acha que Claudio Guerra é realmente quem aparece no seu filme?

    Com este filme decidi enfrentar o que para mim era claramente o inimigo. Para isto encontrei um dispositivo forte que permitisse que Cláudio se encontrasse com sua própria história. Lhe propus uma conversa com um psicólogo durante a qual projetava imagens de arquivos da Comissão da Verdade, fotos de jornais, notícias e filmes relativos à sua trajetória.

    Quando um personagem depara-se com um dispositivo fílmico ele se transforma não só num ator mas também em um autor que cria o seu autorretrato para o filme desenvolvendo uma narrativa sobre si próprio, uma performance. Seria ingênuo acreditar em verdades neste caso, mas às vezes no discurso, nas palavras e nas suas frestas aparece alguma coisa próxima do real. Embora ele tenha criado este personagem frio e monocórdio, Cláudio reage com orgulho dos seus atos quando fala que tem mais credibilidade do que seu opositor que o contradiz porque o outro apenas ouviu falar dos crimes de ocultação de corpos, mas ele – Cláudio – foi o autor destes crimes. Chega a repetir três vezes: “Eu, eu, eu fiz!” Para nós o momento fílmico é o que importava, o “jogo de cena”, como diria Coutinho, que é jogado naquele momento. O filme capta esse “tempo presente” de interação entre Cláudio com o psicólogo e com as imagens projetadas.

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  • Resenha | O Longo Adeus a Pinochet – Ariel Dorfman

    Resenha | O Longo Adeus a Pinochet – Ariel Dorfman

    O Longo Adeus a Pinochet (Companhia das Letras), de Ariel Dorfman é um livro que mistura momentos de jornalismo literário e crônica política sobre a História chilena. O ponto de partida é a informação sobre a prisão do ex-ditador chileno Augusto Pinochet, em Londres, em 1998. A partir daí, o autor, que trabalhou para o ex-presidente Salvador Allende antes do golpe, agora exilado, percorre meio-mundo para recontar a memória do Chile e exigir justiça contra o ditador.

    A narração é ágil, mistura elementos do presente e do passado, e a impressão que temos é que Dorfman quer explicar muita coisa em pouco espaço porque algo impressionante irá acontecer. A escrita é ansiosa; como se o escritor estivesse a segundos de Pinochet e quisesse mostrar ao leitor a face mais profunda da ditadura chilena para que o motivo alegado pelo ex-general (insanidade mental), não cole para aliviar a pena dele. Dorfman é um participante da História do Chile.

    Como ex-assessor do ex-presidente Allende, primeiro presidente socialista eleito democraticamente na América Latina, o escritor viu a ditadura engolir os seus amigos e outros milhares de chilenos; Dorfman viu pessoas desaparecerem, bairros desaparecerem e, acompanhou, com a esperança de um exilado aos dezessete anos, que o crime do ex-general finalmente fosse julgado. Com a prisão do genocida, Dorfman quer observar e exigir justiça da primeira fila. Para isso, não cai no mérito legal do caso, coisa que poderia tornar o texto labiríntico e de difícil compreensão, ao invés, o autor se atém aos significados políticos e simbólicos dessa condenação.

    O passado perpassa o presente. A todo o momento temos flashbacks de uma história que ainda se repete: repressões, mortes, desaparecimentos, violência de todo o tipo, atrocidades, tudo documentado pelo escritor. Por isso a escrita de Dorfman é urgente, um grito que demorou anos para ganhar o mundo. O escritor acompanha o processo e, em uma narração que beira o autobiográfico, nos entrega um relato forte sobre a necessidade que os crimes cometidos contra a humanidade possam ser julgados em outros países.

    Texto de autoria de José Fontenele.

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  • Resenha | Memórias do Esquecimento – Flávio Tavares

    Resenha | Memórias do Esquecimento – Flávio Tavares

    Memórias do Esquecimento - Flávio Tavares

    Narrado em primeira pessoa pelo ativista, preso político em três oportunidades, comunista “subversivo” e banido junto ao grupo de 15 prisioneiros trocados pelo embaixador americano que foi raptado pelo movimento MR-8, Memórias do Esquecimento serve como desabafo literário do escritor que só retornaria a sua terra natal dez anos depois de exílio, só angariando coragem para escrever suas memórias após 30 anos de todos os acontecimentos e sofrimentos impingidos a si. Flávio Tavares não poupa seu leitor da crueza e crueldade dos torturadores e nem salva seus colegas de expor as suas tolas e irreais ilusões de mudar o mundo.

    Antes de começar seus capítulos, falando franca e diretamente ao leitor, ele se preocupa em sempre deixar uma citação de algum pensador ilustre, para embasar e testificar o seu testemunho. Já na introdução ele contesta qual a real necessidade de retomar as memórias daquela vivência marginal, e a resposta para tal indagação é respondido ao longo dos capítulos. Parte do que ele lamenta é ter de enfrentar toda a avalanche de emoções, pela qual ele passa, em silêncio absoluto, sem voz ativa, castrada da possibilidade de contestar seu estado.

    A imersão no cotidiano de Tavares é muito fácil de ser estabelecida, pois sua escrita é docemente envolvente, repleta de situações rotineiras que facilitam a identificação, além de demonstrar facilidade do autor em transmitir sentimentos e sensações. Seu sofrimento é passado ao leitor, e um exemplo disto é como Tavares descreve uma tremedeira, não causada pelo frio, mas pela temeridade em repetir os maus agouros que já tinha vivido. Rememorar era exercício de dor e a empatia gerada por seu “relatório” é muitíssimo exitosa em causar desconforto no analista. A temeridade e o medo são tão grandes que qualquer som estranho o faz remeter aos torturantes momentos de cárcere, os quais viveu e dos quais jamais esquecerá, mesmo com o título da publicação – o esquecimento certamente seria um alívio para a mente cansada e para a sua alma aflita. Tais episódios servem de aliterações, nas quais o autor conta, em detalhes desagradáveis e por vezes escatológicos, os meandros de suas estadias na prisão política, assim como os detalhes das sessões de tortura que sofreu. A ideia das torturas, segundo o jornalista, era triturar física e emocionalmente o preso, destruí-lo e chegar muito perto da morte, mas sem alcançá-lo, de um modo que o sujeito envolvido até desejasse que sua vida findasse.

    Os detalhes do embate ideológico que viria a rachar o PCB (Partido Comunista Brasileiro) são explicitados, inclusive sendo citadas as saídas de Carlos Marighella e Joaquim Câmara Ferreira por estes optarem pela luta armada ao invés do engajamento mais teórico.

    Apesar de muitas dificuldades em conseguir informações dentro dos presídios, havia formas de conseguir ouvir os noticiários, que davam conta do rapto do embaixador americano Charles Elbrick. A fonte de informações também trazia maus agouros, como a morte de companheiros de luta. Mesmo com toda a truculência e violência que sofriam e que os tornava mais cascudos, os militantes ainda sentiam demais a queda de seus semelhantes, também por temerem que aquele destino fosse o deles..

    Por estar entre o grupo de libertados, chamados de os “15”, ele tinha informações privilegiadas sobre os segredos e meandros do rapto do embaixador. As informações registradas evidenciam o baixo nível de organização dos grupos, além da clara falta de estrutura destas células. O embaixador declarou que foi muito bem tratado pelos capiturantes e que eles eram “jovens idealistas”. Nas entrelinhas há uma afirmação de que os militantes estavam muito mais preparados para morrer do que para matar. Esse ponto de vista certamente não era somente dele, mas de muitos dos analistas da ação dos revoltados.

    A segunda parte começa com duas citações das mais emblemáticas no sentido da luta entre esquerdistas e militares: “Aquele que se opõe a uma ditadura tem de aceitar a guerra civil como meio de derrubar a ditadura. Aquele a quem repugna a guerra civil deve desistir da oposição e aceitar a ditadura” a frase de Arthur Koestler mostra como funcionava a cabeça de muitos opositores do governo, a outra, “Um dia vai haver uma guerra grande neste sertão. Uma guerra sem a cegueira de Deus e do Diabo“, do cineasta Glauber Rocha seria profética. Em Brasília, Tavares acompanharia em 1964 a saída de Jango do Palácio do Planalto sem conseguir sequer preparar suas malas decentemente, amedrontado e sem o mínimo de dignidade. Suas afirmações vai na direção de desmentir o argumento de que a tomada do poder foi leve e tranquila, afirmando que já de início o tratamento dado para quem discordava destes era truculento, violente e sem espaço para dignidade. Depois disso, “a rosca do parafuso enroscaria ainda mais”, segundo o autor. O cerco aumentava cada vez mais, gradativamente as reprimendas tornavam-se mais e mais humilhantes e agressivas.

    Com 30 anos de idade, o autor não via nenhuma saída que não incluísse uma postura contestadora mais firme, chamada por este de “reação moral”. O capítulo Os Conspiradores ganha como introdução uma emblemática frase de Gaston Bachelard: “Querer o esquecimento é a maneira mais aguda de se recordar“. O escritor discorre sobre a ideia, ainda em 1964, de derrubar o recém instituído poder, mas todo o planejamento era tosco, mal organizado e nada profissional. Os militantes deveriam viajar para a URSS, para fazer cursos – de alcunhas curiosas como Curso Stálin e Curso Lênin – mas não o faziam até por falta de verba. Os contatos com os exilados eram complicados: Jango no ano de 1965 residia em Montevidéu e somente se envolveu na militância ajudando a alocar os exilados. Leonel Brizola manteria uma granja onde os rebeldes plantariam tomates e receberiam uma preparação psicológica para mais tarde serem instruídos em combate. Implantar o foco guerrilheiro consumiu dois anos.

    A tortura é relembrada em muitos momentos, e no capítulo O Atentado é discorrido o absurdo de tratar tal postura como invenção e em incorrer a culpa desta aos vitimados, que receberiam o tratamento graças a sua insubmissão. A lógica seria “destruir o prisioneiro e tornar natural o medo”. Primeiro se tortura ou se ameaça, o que vai contra o atual discurso de alguns de que os militares só teriam “quebrado umas unhinhas” dos comunistas.

    A parte em que Flávio descreve a dor de sua filha Isabela é absolutamente emocionante. A dor causada pela separação do exílio só não era maior que a dúvida a respeito de qualquer retaliação a si que envolvesse a sua herdeira, visto que, em uma das torturas, tal possibilidade foi cuspida por seus agressores. A distância entre uma bravata dita simplesmente para amedrontar, em comparação com uma séria ameaça, não era totalmente clara na cabeça de Tavares, já que a situação mexia com a parte passional de sua mente, combalida demais para raciocinar tranquilamente a despeito de toda essa situação.

    O exílio marcou muito a vida  do autor, desde o início deste período e a vontade de retornar a sua terra, até o sequestro que sofreu em terra estrangeira. Apesar de todo o cunho pessoal em seu livro, o jornalista diz que em seus últimos capítulos não tentou fazer qualquer julgamento meritocrático nas ações suas e de seus “inimigos”; seu papel era só relatar suas vivências.

    Em determinado ponto ele assume que a sua linha de pensamento era utópica demais, e que a luta dos manifestantes jamais viria de encontro à realidade. Já terminando o livro, o autor assume que a sua revolta começou ao conhecer Che no Uruguai, em 1961. Lá em Punta Del Leste, ele fotografaria um frágil asmático que trajava uma jaqueta verde-oliva e que teria em seu semblante muito significado, mais do qualquer tanque do regime brasileiro. Seria naquele mesmo Uruguai que o jornalista “cairia” e consequentemente veria sua primeira morte, e onde começaria as memórias que ele tanto queria esquecer.

    Compre: Memórias do Esquecimento – Flávio Tavares

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  • VortCast 36 | O Que Restou da Ditadura

    VortCast 36 | O Que Restou da Ditadura

    Bem-vindos a bordoFlávio Vieira (@flaviopvieira), Filipe Pereira e Fábio Candioto (@fabiozcan) se reúnem para debater sobre o impacto do golpe aplicado pelos militares, em 1964, e a herança nefasta que insiste em se perpetuar não só na figura do Estado, mas também em todos os desenlaces na sociedade civil brasileira. Para tanto, Filipe teve a oportunidade de entrevistar o militante, jornalista, professor e político, Cid Benjamin, autor de Gracias a la vida, para um retrato conjuntural do que foi o regime, a esquerda e a luta armada e o cenário político atual.

    Duração: 103 min.
    Edição: Victor Marçon
    Trilha Sonora: Victor Marçon
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    Bruno Gaspar

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  • Resenha | As Ilusões Armadas: A Ditadura Envergonhada – Elio Gaspari

    Resenha | As Ilusões Armadas: A Ditadura Envergonhada – Elio Gaspari

    As Ilusões Armada - A Ditadura Envergonhada vol 1

    Em 1984, o ítalo-brasileiro Elio Gaspari, agraciado com uma bolsa de estudos na Wilson Center for International Scholars, desenvolvia um artigo sobre a ditadura brasileira, destacando a atuação dos generais Ernesto Geisel e Golbery do Couto e Silva no processo; um ensaio cuja estimativa era alcançar a média máxima de 100 páginas. Conforme avançava nas pesquisas, percebeu que seria impossível manter tal número e imaginou um texto de maior fôlego, inicialmente, dividido em duas partes. Em 2002, o fruto de sua pesquisa chegava às livrarias em dois volumes lançados pela Companhia das Letras de um total de quatro que seriam lançados posteriormente.

    Relançada pela Editora Intrínseca, As Ilusões Armadas e O Sacerdote e o Feiticeiro, uma quadrilogia formada por estes pares de nomes distintos (As Ilusões Armadas: A Ditadura Envergonhada e A Ditadura Escancarada, respectivamente volume 01 e 02 e O Sacerdote e o Feiticeiro: A Ditadura Derrotada e A Ditadura Encurralada, volume 03 e 04), é um denso e precioso documento narrativo que exibe em qualidade impecável boa parte dos 21 anos os quais o Brasil esteve sob regime da ditadura. Os quatro volumes formam um panorama geral desde os dias que antecederam o golpe, até 1977 e a demissão do general Sylvio Frota, ministro do Exército durante o governo Geisel.  Os quatro volumes foram revistos pelo autor contendo um novo prefácio, fotos inéditas, eventuais correções da edição anterior e novos documentos revelados recentemente pelo Arquivo Nacional, como uma ata de julho de 1968 que apontava a intenção de decretar estado de sítio cinco meses antes do AI-5 e gravações que comprovavam que John F. Kennedy discutiu a possibilidade de uma ação militar no país contra o comunismo.

    Utilizando o ensaio como narrativa, Gaspari mantém entrelaçado o desenvolvimento histórico ao mesmo tempo em que desenvolve uma voz literária para apresentar nossa história. A fluidez pela qual pontua os acontecimentos é pautada em sutilizas narrativas que fazem do texto um objeto além de um mero registro historiográfico, produzindo um ritmo fluído que nunca perde a fidelidade história e a voz autoral. Fundamentado por Michel de Montaigne e Francis Bacon, o ensaio é considerado a forma mais livre da literatura, pela ausência de formalidades obrigatórias para sua execução. Um espaço que permite o desenvolvimento de certa lírica ou narrativa sem que se perca a fidelidade da informação em seu conteúdo.

    A pesquisa do autor é intensa, apoiando-se em uma literatura anterior de grandes livros sobre o tema, tanto de estudiosos, com biografias de homens que viveram sob o golpe, quanto de documentos oficiais do país, além de notas e diários íntimos que formam um panorama concreto destes acontecimentos, focando diversos polos diferentes. Além disso, o escritor desenvolveu uma pesquisa direta promovendo entrevistas com personagens centrais, como o general Geisel. Todo este longevo trabalho de pesquisa e fidelidade aos fatos resultou em um excelente livro de não-ficção que intenta ser uma voz definitiva de parte de nosso passado histórico.

    Este primeiro volume abarca o espaço temporal antes do golpe, nas tensões que o presidente Jango Goulart causavam em parte da sociedade, e se encerra na composição do Ato Constitucional nº5. Um fato que, além de explicitar este momento como um ponto de transição da ditadura, promove um gancho narrativo para a segunda parte do ensaio. É brilhante a maneira pela qual o autor conduz este momento final, fazendo da fundamentação do AI-5, no capítulo A Missa Negra, um registro de conflito interno do governo sem perder a vertente narrativa. Gaspari se baseou na transcrição da reunião feita pelo governo, tanto a escrita quanto a sua gravação, para criar uma ambientação que insere o leitor na cena, mostrando as discrepâncias do governo Costa e Silva sem nenhum julgamento, entregando ao leitor os fatos e evidenciando que, neste caso, a verdade dos acontecimentos é mais forte do que qualquer composição literária.

    A obra observa em seu todo tanto o movimento militar quanto os levantes contra o regime, reconfigurando uma difícil linha histórica em um relato coerente que ilumina o período. Não à toa, recebeu o Prêmio Ensaio, Crítica e História Literária de 2003 da Academia Brasileira de Letras, em 2003, e se mantém como uma narrativa brilhante e bem equilibrada entre os aberrantes fatos históricos do país e uma voz talentosa para narrar tais acontecimentos.

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    Elio Gaspari

  • Resenha | As Veias Abertas da América Latina – Eduardo Galeano

    Resenha | As Veias Abertas da América Latina – Eduardo Galeano

    As Veias 1

    A leitura de um manuscrito – no caso, um livro – é para Eduardo Galeano um exercício tão raro quanto o encontro de uma mensagem engarrafada, jogada ao oceano, com mínimas chance de ser cooptada por alguém. Passeando pelos territórios latino-americanos de um modo coloquial, As Veias Abertas da América Latina é um exercício de estudo do autor, que exibe algumas das figuras mais importantes no continente e que comumente são esquecidas, incluindo o sistema educacional brasileiro.

    O início da narração é lúdico, passando pelos percalços de Colombo e pela inspiração de Marco Polo, em terras onde ainda não haviam visto a dita civilização dos brancos/europeus, os “donos do mundo” daquela época. O desejo por bens perecíveis, como noz-moscada, gengibre, cravo e canela era enorme, só não superando o desejo por metais preciosos.

    A aura em volta dos colonizadores ganhou uma interpretação semidivina, graças a uma terrível mistura, na qual se juntou o misticismo de alguns locais e o modo como os exploradores pousaram naquelas terras habitadas. O “endeusamento” favoreceu o trabalho de escravização, invertendo o que deveria ser pautado pela empatia e transformando isso, de modo vil, em uma obediência sem discussões ou critérios. Os “paladinos” que desfilavam pelos Eldorados de Potosí (atual Bolívia) e Cuzco (Peru), tinham na ostentação um dos modos de coagir quem quer que fosse, com lendas que atravessaram as gerações ao afirmar que até os pisantes de seus cavalos eram de prata. Havia o bochicho que, se fosse somada toda a prata que havia sido transportada de Potosí à Espanha, daria para “fazer uma ponte de prata, desde o cume da montanha até a porta do palácio real do outro lado do oceano. Os exorbitantes lucros dos espanhóis são expostos em números gritantes, que se tornam ainda mais aviltantes e dignos de revolta quando se é analisada a condição miserável em que os colonos subsistem, sem qualquer sinal de retribuição às especiarias que migravam e atravessavam o oceano.

    O comércio de caráter moral discutível se agravou com o comércio de mão de obra aborígene, tendo na justificativa religiosa da “ausência de alma” dos índios a maior prerrogativa do comportamento. Mesmo após o gradual processo de desescravização, permaneceu um residual e incômodo modo de encarar a população indígena, com um claro desprezo racial pelos que permaneceram no seu país e constituíram família e vida. Mesmo a classe que não a explorava os via com bons olhos, igualando aqueles que deveriam ser os herdeiros legítimos daquelas terras e de seus bens a párias, objeto de rejeição do povo que deveria ser seu cúmplice.

    A primeira contribuição de contos brasileiros ocorre ainda pela corrida de exploração de metais, exemplificando como a febre do ouro em cidades de Minas Gerais deu vazão ao torpor relacionado ao regime escravagista, e a quanto os servos de pele negra entretinham os senhores de engenho, fosse por trabalho braçal, como em apostas esportivas, ou por mulatas que se prostituíam, se entregando a inúmeros prazeres proibidos pela religião, o que não impedia sequer a igreja de lançar mão do dinheiro e benefícios provenientes de mercado de escravos. O lucro que o império britânico e a Holanda faziam com o ilícito tráfico de carne negra só não era maior que o enriquecimento via acúmulo de ouro e especiarias que estes faziam. Pelos anos 1700, o transporte de metais favoreceu demais a existência econômica da Inglaterra, lotando suas fileiras.

    O apogeu da América Central é muito bem retratado, primeiro ao exibir os contornos do imperialismo norte-americano, ao considerar a parte baixa do continente como seu território – nem o “justo” Lincoln fugiu das comparações – até a segunda independência, o grito extravasado pelas quebras das amarras do segundo explorador, o país que não os colonizou, mas que prosseguia fazendo dos seus bens, a base barata de seu mercado.

    O modo como as antigas colônias sofriam exploração é mostrado em detalhes, com número precisos, que assustam o público pela forte crueldade dos países matrizes. O autor não deixa qualquer dúvida em relação ao seu posicionamento político, explorando ao máximo os defeitos que o culto ao capital gera nos países subdesenvolvidos, reforçando a ideia de que o sistema falhou mais do que a implantação do socialismo.

    Galeano inicia um minicapítulo afirmando que qualquer chance de desenvolvimento sustentável foi completamente aniquilada pela chamada guerra da Tríplice Aliança contra o Paraguai, onde Brasil, Argentina e Uruguai, apoiados financeiramente pela Inglaterra, praticaram o genocídio no país afrontado. O presidente Francisco Solano Lopez resistiu até onde conseguiu, tendo de se entregar para que o morticínio de homens não fosse tão grande. Os motivos do embate são discutidos até hoje, com uma grande adesão de teorias da conspiração; no entanto, o país em frangalhos após o confronto é um fato irrefutável, pois até rodízio de genitores masculinos foi uma das atitudes emergenciais tomadas, dada a quantidade de “machos” assassinados.

    A declaração de Simon Bolívar sintetiza toda a obra de Eduardo Galeano: “Nunca seremos afortunados”. A sina dos latino-americanos não era causada por caprichos do destino, mas sim por uma intensa e desonesta exploração de suas riquezas naturais e mão de obra, que geraram um povo cujo engajamento varia de país a país, tendo no Brasil talvez o povo mais alienante e pouco combativo ao comportamento opressor e recrudescido, refletido até nos resultados das eleições de 2014, com a elevação popular de defensores do regime ditatorial militar instituído dos anos 60 a 80.

    O autor usa suas últimas páginas para grafar a diferença entre as colonizações de exploração, predominantes no sul dos EUA e em todo o continente latino, e as de habitação, na parte dos Estados Unidos que dominou todo o território, não esquecendo claro, dos aspectos herdados de um comportamento fascista, que ignora ferozmente aspectos de cunho social para supervalorizar o capital. Para Galeano, o legado a seguir na América Latina era sim o social, na tentativa de frear o alastramento do “progresso”, que tem suas aspas justificadas pelo corrimento também da miséria nos pedaços de terra conquistados pelo primo rico, localizado mais ao norte.

    A intenção presente em As Veias Abertas da América Latina de discutir fatos normalmente ignorados pela história oficial é alcançado. O fato do livro ter sido proibido de circular no Uruguai – país do autor – Argentina e Chile causaram no escritor uma alegria tremenda, de que suas palavras não foram emudecidas, e a certeza de ser a presunção, dita pelos soberanos a respeito do tom narrativo, findar-se na verdade como uma semente de esperança de revidar o golpe que o povo recebia por parte dos que secularmente o agrediam, claro, contado de uma maneira não acadêmica e sim poética, fluida e dramática.

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    Eduardo-Galeano

  • Resenha | 1968: O Ano Que Não Terminou – Zuenir Ventura

    Resenha | 1968: O Ano Que Não Terminou – Zuenir Ventura

    A história que Zuenir Ventura audaciosamente conta é iniciada num réveillon, símbolo do calendário que representa mudança. A modernidade que chegou parecia fazer desta temporada seu início; não o seria em virtude das referências aos estudantes franceses, que já haviam lutado por ideais muito semelhantes, libertários. A crônica da alma das pessoas é o que trata o livro/relato.

    O escritor visava trazer um relato historicamente fidedigno da época, com entrevistas pontuais e material de pesquisa vasto. A busca de Ventura foi a de não retocar absolutamente nada do pretérito, passando por cima de qualquer tentação revisionista ou de aplacar o sofrimento da lembrança. O ideal era fugir da passionalidade barata, dando vazão a sentimentos, mas sem perder de vista o cunho de análise temporal e condicional.

    A tranquilidade e ilusão típicas do 31 de dezembro eram a tônica da festa na “casa de Helô”, mas logo essa falsa paz seria quebrada pelas mãos mais inesperadas. Dali veio o primeiro tapa do dia, o primeiro golpe do ano, um símbolo do que viria a atormentar a classe artística, os que pensavam e discutiam política e qualquer cidadão que somente parecesse debater os rumos econômicos ou sociais daquele novo Brasil.

    Após o murro, inicia-se um conto ameno que reflete sobre a revolução sexual e sobre quanto é difícil se adequar a ela, uma vez que compreende nuances nem sempre pensadas pela parcela mais popular da sociedade. Quase todos os presentes na festa se viam obrigados a fazê-lo, mas a aceitação estava longe de ser um movimento automático ou banal. Os resquícios de uma criação paternalista e calcada na moral se viam em muitas das manifestações corriqueiras, como o ciúme e o enlace matrimonial.

    Os contornos agridoces da história narrada são deixados de lado. A pecha de “ame ou deixe-o”, que fazia referência ao zerado nível de tolerância à oposição, começava a fazer sentido, deixando de ser um slogan para tornar-se uma praxe.

    O radicalismo e conservadorismo dos ditos revolucionários são discutidos, inclusive estabelecendo os posicionamentos de indivíduos famosos, como Alfredo Sirkis, Fernando Gabeira e Ziraldo. Enquanto os filiados ao PCB eram chamados de Partidão, havia uma boa parcela pouco pragmática e mais idealista, que não tomava uma posição mais certeira ora pela imaturidade, ora pelo desconhecimento sobre qual seria o mais adequado modo de combate ao regime vigente. O grave erro da esquerda à época é o mesmo da atual, o de não conseguir reunir-se em torno de um mesmo paradigma, de uma mesma bandeira ou ideal, tendo nenhuma unicidade em seu modus operandi, tornando-se, portanto, mais fraco e mais fácil de se dissipar em qualquer discussão. Mesmo os que defendiam a luta armada adoravam um discurso, e em seus brados acabavam munindo seus inimigos das armas que eram necessárias para manietá-los. A previsibilidade deles era enorme.

    O radicalismo era tamanho que José Celso afirmava: O objetivo é abrir uma série de Vietnãs no campo da cultura, uma guerra contra a cultura oficial de consumo fácil. O sentido de eficácia do teatro, hoje, é o sentido de a guerrilha teatral ser travada com as armas do teatro anárquico, cruel, grosso como a grossura e apatia em que vivemos.

    Vladimir Palmeira, líder da UME, dizia que não havia qualquer espetáculo quando houve o enterro de um jovem assassinado – Edson Luís – pela truculenta ação dos poderosos, dos mandantes: Não é a morte de Édson Luís, não é a Passeata dos Cem Mil, nem o congresso de Ibiúna, mas a assembleia no Teatro de Arena da Faculdade de Economia, na Praia Vermelha, que deu origem a toda essa degradante repressão do campo do Botafogo. Nessa manifestação, nós quebramos o laço dominante entre o professor que manda e o aluno que aprende. Era uma velharia com postos vitalícios. Ela não estava adaptada talvez nem ao século, quanto mais à década. Queríamos quebrar a dominação dos catedráticos e arejar a universidade.

    O fato consumado era de que a oposição existente era muito distante da realidade do cidadão comum. Foi pensando nisto que o ex-governador Carlos Lacerda buscou apoio de seus antigos desafetos, Juscelino Kubitschek – rival há quinze anos – em Lisboa, e também de João “Jango” Goulart, no Uruguai. A chamada Frente Ampla teve no Pacto de Montevidéu seu maior expoente, mas nem foi livre de críticas, uma vez que o então ex-governador do Rio Grande do Sul, Leonel Brizola, criticava veementemente a postura de Lacerda, chamando-o de sofista, denunciando que seria somente uma manobra de Lacerda para continuar influindo “perniciosamente” nos destinos do país.

    O fator que faz de 1968 mais singular é a sua forma, que em cada capítulo contempla um novo entrevistado, mostrando múltiplas visões da mesma história. A multiplicidade de vozes é uma plataforma plural bem urdida, quase inédita.

    Zuenir destaca que, mesmo antes da implantação “oficial” do AI-5, já havia um movimento de censura e forte repressão dias antes do anúncio, com invasões de redações de jornais e controle forçado das pautas de televisão e afins. Nem mesmo o Correio Braziliense, único jornal a circular na capital federal, podia cobrir as votações nas câmaras do Legislativo. Mesmo figuras que nada tinham a ver com qualquer movimentação ligada à esquerda socialista sofreram repressão unicamente por levantar a voz. Os ânimos estavam à flor da pele. A exemplo disso, o já idoso Juscelino era assim tratado, jogado às traças em algum porão e deveras mal alimentado, a despeito até de sua saúde debilitada. As sensações dos que viveram aquele tempo eram múltiplas, e em comum havia uma dor tremenda, um sentimento de impotência de quem queria lutar, mas que via qualquer chance de resistência ruir. Esse infeliz viver deixou um gosto azedo em Zuenir e nos outros entrevistados, daí a impressão de que aquele ano jamais acabou.

  • Review | Anos Rebeldes

    Review | Anos Rebeldes

    anos rebeldes

    O piloto do seriado, exibido em 1992, recebe o apelido de Anos Inocentes, ainda na época da possibilidade de posse de Jânio Quadros após a renúncia de Jango Goulart. Um grupo de quatro estudantes é formado por João Alfredo (Cassio Gabus Mendes), Edgar (Marcelo Serrado), Galeno (Pedro Cardoso) e Waldir (André Pimentel) que em aula discutem a rivalidade entre comunistas e capitalistas, e a paranoia a respeito da onda vermelha.

    Há inúmeras demonstrações de que os militares ouviam “rumores” de uma invasão dos simpatizantes brasileiros com o socialismo. Como era de se esperar, os diálogos não são das melhores construções, especialmente quanto à veracidade dos fatos, mas também não destoam dos produtos da época. O mais engraçado é a Rede Globo fazer tal produção e obviamente não mencionar o apoio que prestou ao Regime à época, e que obviamente a impulsionou ao apogeu da hegemonia nas comunicações. Este mea culpa não aconteceu.

    A ideia de João, líder dos estudantes e idealizador da maioria das ações entre os alunos, é convidar profissionais para palestrarem: todos profissionais de ponta, mas ligados à esquerda pensante do país, entre eles Orlando Damasceno (Geraldo Del Rey), pai de Maria Lúcia (Malu Mader). Mas o golpe realizado pelos milicos piora a situação por completo: perseguição aos comunistas. Os vermelhos tem de sair correndo para fora do país, e a caça às bruxas gradativamente cresce e evolui de algo brando até a coação de qualquer suspeito de ser ligado ao marxismo ou associado a qualquer prática que vá contra o conservadorismo, como a orientação sexual homossexual — “eles estão caçando comunas e bichas dentro do quartel”. A perseguição ocorre também dentro dos órgãos públicos oficiais.

    A personagem de Suzana Vieira, Mariana, relata um depoimento que deu às autoridades, e que logo depois teve de repetir, em outra entrevista muita mais dura e cínica, em que afirma que sofreu agressões físicas unicamente por não ter as informações que procuravam. Tal fala atrapalha os planos de João publicar seu jornal estudantil junto com Damasceno, e toda a parafernália é movida para a casa do jornalista afim de rodar os folhetos ideológicos. A situação sentimental do casal de protagonistas é atravessada pelo engajamento dos rapazes. Toda a situação piora para os garotos, que resolvem protestar pichando muros com dizeres como “Abaixo a Repressão” e “Grêmios Livres”, exatamente como ocorria no ano de 1964.

    O medo e o receio de serem pegos fazem com que alguns fugitivos tenham de se esgueirar e fazer contato com seus conhecidos em lugares secretos e pontos de encontro absolutamente seguros e completamente isentos da presença dos militares. Juarez, um personagem secundário, tem que pedir asilo e pular por cima do enorme muro da embaixada para não chamar a atenção da polícia repressora.

    A personagem Heloísa (Cláudia Abreu) é uma menina jovem, mimada, filha de um empresário dos mais influentes da vida pública carioca — Fábio (Zé Wilker) — que decide pôr em prática uma vertente da rebeldia, que não a política, mas igualmente anti-conservadora: a jovem escolhe finalmente perder a virgindade antes de se casar, como num grito de revolta para a sua própria liberdade. Ela recebe uma reprimenda de suas amigas, ainda que estas sejam tão jovens quanto ela. A tentativa de romper com o tabu do corpo é freada até por seus pretendentes.

    Os métodos da “diligência policial” deixam de ser meramente citados e passam a ser mostrados em tela, com toda a truculência típica das autoridades da época. O modus operandi grosseiro, invasivo e completamente desrespeitoso somente piora com o decorrer dos capítulos. Demonstrações da ignorância por parte do braço operante das autoridades são largamente mostradas, como a entrada forçada ao domicílio do professor Damasceno e consequente apreensão do livro A Capital de Eça de Queiroz, numa confusão com O Capital de Karl Marx. Outras anedotas, como o confisco de um livro sobre o cubismo, temendo a apologia ao governo de Castro, também são mostradas.

    O romance entre João e Maria Lúcia é engraçado pelas idas e vindas, e pela semelhanças entre João e Damasceno. A impressão da garota é a de repetir toda a ladainha do pai neste relacionamento. A tentativa de fuga desta situação mostra a óbvia referência ao conceito de atração, pensado por Freud, que envolve a menina por seu pai. No entanto, mesmo com a recusa, a relação ganha ares de imponderabilidade e inexorabilidade do romance em questão. As coisas se agravam depois da prisão do professor esquerdista.

    As partes registradas em preto e branco variam entre cenas históricas nacionais e internacionais, inclusive de embates ideológicos, mescladas com filmagens dramatizadas protagonizadas pela juventude da UNE resistindo ao regime à altura, ainda que com a instituição do AI-3. Mesmo com tom novelesco e caricatural da maior parte do roteiro, as imagens de apoio usadas ajudam o espectador a absorver toda a atitude e revolta dos ditos revolucionários, o que obviamente faz discutir a forma de agir da juventude atual ante as suas próprias reivindicações. Outro ponto interessante são as discussões por parte dos protestantes a respeito da resistência através da conscientização do cidadão incauto ou por meio da luta armada.

    A segunda fase do seriado foi chamada de Anos de Chumbo, e já começava a toda velocidade, tornando a militância de João ainda mais ativa e muitíssimo mais perigosa. A discussão entre Edgar e João mostra um outro lado de quem resiste, pois o personagem de Marcelo Serrado não enxerga com bons olhos a luta armada, acreditando que tal postura piora a repressão — o que não deixa de ser uma verdade. Sua crítica também engloba o asco por ditaduras, sejam elas de direita ou esquerda. Mas o que realmente o preocupa são seus sentimentos por Maria Lúcia, pois vê-la sofrendo reabre a possibilidade da amizade dos dois se findar. O efeito disto ganha um capítulo importante com a promessa (não cumprida) de eles assistirem juntos à chegada do homem à Lua.

    Os Anos de Chumbo são muitíssimos devastadores para o casal de protagonistas, especialmente quando Maria Lúcia tem um aborto devido a uma briga e depois é diagnosticada com depressão profunda.  A opção pela clandestinidade dos guerrilheiros faz com que tudo piore; a cadeia de eventos e engajamentos faz com que João Alfredo tenha de abandonar a sua vida civil e se alocar no interior, em aparelhos dos quais só sairia para cometer suas ações. Para não magoar a sua amada, ele finge uma infidelidade com o objetivo de libertá-la do relacionamento e conseguir fugir sem que esta continue amando-o.

    O entrave entre Heloísa e Fábio torna-se mais agressivo com o tempo após ela ser presa por ter sido confundida com uma das envolvidas com o sequestro do embaixador americano. A moça mostra as marcas de cigarro em sua pele e, ainda assim, seu pai não consegue entender o seu lado, tampouco seu ativismo, e a discussão entre os dois ganha troca de farpas e acusações das mais sérias, inclusive sobre a exploração de serviço em regime semi-escravo. A situação entre os dois se agrava ao ponto deles nem mais se falarem, graças, claro, à decisão da filha. A única vez em que eles rompem o silêncio não impede que as coisas acabem mal para Heloísa. Mais uma vez, Fábio opta por manter seus ideais retrógrados acima do bem estar de sua própria filha e essa parte da história tem um fim trágico.

    Apesar da evolução de alguns dos personagens, como Maria Lúcia, que muda radicalmente de postura e de figurino ao casar-se com Edgar e finalmente tornando-se mulher, o modus operandi das células de subversivos é deveras infantil, sem qualquer preocupação em esconder a identidade dos sequestradores de um embaixador suíço. Algo entre o roteiro de Gilberto Braga e a direção de Dennis Carvalho se perdeu, talvez tal pecado seja devido a velha máxima de que o público noveleiro não engoliria uma trama tão rebuscada. Um dos poucos pontos que demonstram veracidade consiste na dúvida entre matar ou não o refém, após a desmoralizante recusa da soltura de algumas dezenas de presos entre os exigidos pelo grupo.

    Alguns outros aspectos da época são mostrados de forma bem fiel, como a censura a programas midiáticos, utilizando um personagem como avatar da postura radical – Galeno seria escritor de uma novela, que sofreria mudanças drásticas nas falas e nas sinopses. Após a anistia, gritada a plenos pulmões para ser geral e irrestrita, os exilados voltaram finalmente à pátria, e entre eles, veio João a fim de dar um destino exato a sua relação com Maria Lúcia.

    Após promessas feitas e depois de perceberem que ambos não mudariam seu modo ideológico de agir, o casal entende que é fútil a tentativa de domar um ao outro. João se vê sem sua alma gêmea e sem seu melhor amigo. As únicas coisas que lhe restam é a sua luta e sua marcha. Seu estilo de vida seria mantido mesmo com a abertura política, o que gera uma conclusão não ponderante. Seu DNA era de total contestação e não valia a pena demandar esforço para negar esta natureza.

  • Crítica | Léo e Bia

    Crítica | Léo e Bia

    leo e bia

    Dirigido pelo músico Oswaldo Montenegro, Léo e Bia é um filme bem complicado, mesmo com toda sua simplicidade. Se passa em Brasília, no auge da ditadura militar (anos 70), onde um grupo de jovens faz teatro. O Filme se passa praticamente todo em um cenário: o galpão onde os jovens ensaiam. O que parece ser limitado, acaba impressionando, quando esse galpão se transforma em casas, instituições, palcos, etc…

    O objetivo do diretor é mostrar as dificuldade e limitações da liberdade de expressão e cultural na Ditadura militar e ele faz isso misturado com um excelente drama.

    O enredo principal consiste na história de amor entre Léo e Bia, um casal estranho. Léo é o diretor e o líder do grupo de teatro e Bia, mesmo com problemas familiares, a melhor atriz. O relacionamento deles é bem complicado. Bia tem ciúmes da Marina (Melhor amiga de Léo), que por sua vez, ama o rapaz também.

    Todos os personagens tem seu destaque, sua história, suas angústias e tristezas e tudo isso é misturado ali, na nobre arte de atuar. Oswaldo usa da ingenuidade e inteligência da esquerda festiva para criar suas falas. Todos eles ao longo do filme tem ao menos uma frase marcante.

    – Aonde houver mulatas, não haverá nazismo
    – É, mas o Brasil “tá” cheio de mulatas e o nosso governo é fascista pra caralho.

    Durante os ensaios, simultaneamente, é contada também a história de Bia, que tem problemas com sua mãe obsessiva. Durante todo o longa são mostrados diálogos entre as duas e aí que entra o ponto mais importante de todos: A excelente atuação.

    Como já era de se esperar, a trilha sonora é toda de Oswaldo Montenegro. Apesar de cansativa, gostei dessa escolha. As letras se encaixam perfeitamente na trama e a edição é impecável. Como eu disse, é complicado na simplicidade. Léo e Bia sai do comum, é ousado, crítico e romântico.

    Texto de autoria de Jean D’angelo.