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  • Resenha | 1968: O Ano Que Não Terminou – Zuenir Ventura

    Resenha | 1968: O Ano Que Não Terminou – Zuenir Ventura

    A história que Zuenir Ventura audaciosamente conta é iniciada num réveillon, símbolo do calendário que representa mudança. A modernidade que chegou parecia fazer desta temporada seu início; não o seria em virtude das referências aos estudantes franceses, que já haviam lutado por ideais muito semelhantes, libertários. A crônica da alma das pessoas é o que trata o livro/relato.

    O escritor visava trazer um relato historicamente fidedigno da época, com entrevistas pontuais e material de pesquisa vasto. A busca de Ventura foi a de não retocar absolutamente nada do pretérito, passando por cima de qualquer tentação revisionista ou de aplacar o sofrimento da lembrança. O ideal era fugir da passionalidade barata, dando vazão a sentimentos, mas sem perder de vista o cunho de análise temporal e condicional.

    A tranquilidade e ilusão típicas do 31 de dezembro eram a tônica da festa na “casa de Helô”, mas logo essa falsa paz seria quebrada pelas mãos mais inesperadas. Dali veio o primeiro tapa do dia, o primeiro golpe do ano, um símbolo do que viria a atormentar a classe artística, os que pensavam e discutiam política e qualquer cidadão que somente parecesse debater os rumos econômicos ou sociais daquele novo Brasil.

    Após o murro, inicia-se um conto ameno que reflete sobre a revolução sexual e sobre quanto é difícil se adequar a ela, uma vez que compreende nuances nem sempre pensadas pela parcela mais popular da sociedade. Quase todos os presentes na festa se viam obrigados a fazê-lo, mas a aceitação estava longe de ser um movimento automático ou banal. Os resquícios de uma criação paternalista e calcada na moral se viam em muitas das manifestações corriqueiras, como o ciúme e o enlace matrimonial.

    Os contornos agridoces da história narrada são deixados de lado. A pecha de “ame ou deixe-o”, que fazia referência ao zerado nível de tolerância à oposição, começava a fazer sentido, deixando de ser um slogan para tornar-se uma praxe.

    O radicalismo e conservadorismo dos ditos revolucionários são discutidos, inclusive estabelecendo os posicionamentos de indivíduos famosos, como Alfredo Sirkis, Fernando Gabeira e Ziraldo. Enquanto os filiados ao PCB eram chamados de Partidão, havia uma boa parcela pouco pragmática e mais idealista, que não tomava uma posição mais certeira ora pela imaturidade, ora pelo desconhecimento sobre qual seria o mais adequado modo de combate ao regime vigente. O grave erro da esquerda à época é o mesmo da atual, o de não conseguir reunir-se em torno de um mesmo paradigma, de uma mesma bandeira ou ideal, tendo nenhuma unicidade em seu modus operandi, tornando-se, portanto, mais fraco e mais fácil de se dissipar em qualquer discussão. Mesmo os que defendiam a luta armada adoravam um discurso, e em seus brados acabavam munindo seus inimigos das armas que eram necessárias para manietá-los. A previsibilidade deles era enorme.

    O radicalismo era tamanho que José Celso afirmava: O objetivo é abrir uma série de Vietnãs no campo da cultura, uma guerra contra a cultura oficial de consumo fácil. O sentido de eficácia do teatro, hoje, é o sentido de a guerrilha teatral ser travada com as armas do teatro anárquico, cruel, grosso como a grossura e apatia em que vivemos.

    Vladimir Palmeira, líder da UME, dizia que não havia qualquer espetáculo quando houve o enterro de um jovem assassinado – Edson Luís – pela truculenta ação dos poderosos, dos mandantes: Não é a morte de Édson Luís, não é a Passeata dos Cem Mil, nem o congresso de Ibiúna, mas a assembleia no Teatro de Arena da Faculdade de Economia, na Praia Vermelha, que deu origem a toda essa degradante repressão do campo do Botafogo. Nessa manifestação, nós quebramos o laço dominante entre o professor que manda e o aluno que aprende. Era uma velharia com postos vitalícios. Ela não estava adaptada talvez nem ao século, quanto mais à década. Queríamos quebrar a dominação dos catedráticos e arejar a universidade.

    O fato consumado era de que a oposição existente era muito distante da realidade do cidadão comum. Foi pensando nisto que o ex-governador Carlos Lacerda buscou apoio de seus antigos desafetos, Juscelino Kubitschek – rival há quinze anos – em Lisboa, e também de João “Jango” Goulart, no Uruguai. A chamada Frente Ampla teve no Pacto de Montevidéu seu maior expoente, mas nem foi livre de críticas, uma vez que o então ex-governador do Rio Grande do Sul, Leonel Brizola, criticava veementemente a postura de Lacerda, chamando-o de sofista, denunciando que seria somente uma manobra de Lacerda para continuar influindo “perniciosamente” nos destinos do país.

    O fator que faz de 1968 mais singular é a sua forma, que em cada capítulo contempla um novo entrevistado, mostrando múltiplas visões da mesma história. A multiplicidade de vozes é uma plataforma plural bem urdida, quase inédita.

    Zuenir destaca que, mesmo antes da implantação “oficial” do AI-5, já havia um movimento de censura e forte repressão dias antes do anúncio, com invasões de redações de jornais e controle forçado das pautas de televisão e afins. Nem mesmo o Correio Braziliense, único jornal a circular na capital federal, podia cobrir as votações nas câmaras do Legislativo. Mesmo figuras que nada tinham a ver com qualquer movimentação ligada à esquerda socialista sofreram repressão unicamente por levantar a voz. Os ânimos estavam à flor da pele. A exemplo disso, o já idoso Juscelino era assim tratado, jogado às traças em algum porão e deveras mal alimentado, a despeito até de sua saúde debilitada. As sensações dos que viveram aquele tempo eram múltiplas, e em comum havia uma dor tremenda, um sentimento de impotência de quem queria lutar, mas que via qualquer chance de resistência ruir. Esse infeliz viver deixou um gosto azedo em Zuenir e nos outros entrevistados, daí a impressão de que aquele ano jamais acabou.

  • Crítica | Muito Além do Cidadão Kane

    Crítica | Muito Além do Cidadão Kane

    Contestatório desde o início, com falas de algumas personalidades conhecidas do grande público, a narração sensacionalista do filme foca na vivência e poderio de Roberto Marinho, idealizador do grupo Globo de Comunicação que tem na sua rede de televisão homônima o seu maior expoente. Produzido pelo Channel Four britânico, Muito Além do Cidadão Kane teve sua exibição proibida dentro do Brasil, mesmo que seu lançamento tenha sido originalmente em 1993, após a abertura política da democracia.

    O foco narrativo do início da fita centra-se na disparidade social e na quantidade exorbitante de analfabetos do país. Quase tão gritante quanto a distância financeira entre os ricos e pobres é a diferença de televisores ligados quase exclusivamente na Vênus Platinada, que até então, eram de 78% da totalidade das casas brasileiros, atingindo o grande público com anúncios publicitários luxuosos extremamente diferentes da realidade econômica dos típicos brasileiros. O consumo era apenas das imagens, já que apenas um terço dos espectadores poderiam comprar qualquer dos produtos mostrados em tela. Apesar disso, o conteúdo ideológico por trás de toda mensagem veiculada é sempre compartilhado.

    As concessões das redes de canais são denunciadas, inclusive aventando-se até a possibilidade de políticos terem poder de controlar uma empresa comunicacional no Brasil, o que obviamente vai ao encontro da maior rede televisiva. O destaque dado ao Fantástico é quase tão execrada quanto as polêmicas aquisições de filiais, criticando o otimismo exacerbado e total falta de conteúdo relevante, que encontra paralelos com a pauta atual do programa.

    A trajetória de Roberto Marinho é reconstruída, desde a fundação do jornal O Globo, feito por seu pai. Uma vez no poder, o grupo se expandiu, primeiro para o rádio e depois para a TV, ganhando concessões dos presidente Juscelino Kubitschek (apoiado por Marinho) e João Goulart (político que seria deposto antes de assumir a presidência, tendo a sua “renúncia” apoiada pelo empresário/jornalista). As falas de Armando Falcão vão muito ao encontro do pensamento do documentarista, que acreditava ser escusos os meios de obter seus licenciamentos mil.

    Em paralelo à transmissão da Copa de 70, aconteceu um boom econômico que permitia ao povo comprar televisores por meio de crédito, um artigo caríssimo, o que obviamente facilitou muito a propagação do canal da família Marinho. A audiência se dividia entre o futebol e os festivais de música, sendo o primeiro algo que fomentava a calada do regime militar, onde não se pronunciava nada sobre política, enquanto o segundo, exibido na Rede Record, mostrava a nata artística brasileira, que tentava, através de suas mensagens subliminares, falar do holocausto político que ocorria.

    Os detalhes da derrocada da Rede Excelsior e da TV Tupi são abordados. Os principais rivais pela audiência, chegando ao ponto dae causar o fim da concessão do primeiro canal, único que havia manifestado descontentamento em o assumir do Regime Militar. Mesmo os que apoiaram a Ditadura eram proibidos de noticiar qualquer situação que causasse a menor possibilidade de frisson nos que dominavam o poder e, segundo alguns dos entrevistados, a emissora ratificava a censura e perseguição a artistas supostamente condenáveis.

    Outro fator focado era a ascensão das novelas desde Selva de Pedra, que foi a primeira novela com 100% de audiência, até Gabriela, que exibia as curvas de Sônia Braga numa reimaginação do conto de Jorge Amado. A influência era tamanha que ditava moda até para aspectos comportamentais, como o advento de discotecas em cidades minúsculas, que sequer tinham tradição no consumo de música disco, mas que, por influência de Dancing Days, precisavam montar espaços assim em sua extensão territorial. Para muitos, o poder do canal se igualava ao de um Estado dentro do Estado.

    Apesar de mostrar o quão promíscuas são as inter-relações da Globo com os governos, até de interdependência dos políticos com os comunicólogos, o roteiro não toma partido de modo resoluto, nem mesmo ao exibir o modo raso como o Jornal Nacional tenciona emitir a comunicação para o Brasil inteiro, dando curtos segundos para notícias políticas, enquanto minutos preciosos são dedicados a parte de exibição de celebridades, sem qualquer cunho informativo maior.

    O cúmulo da manipulação da informação se daria nos episódios com Luiz Inácio Lula da Silva, desde a época de seus serviços com metalúrgicos e líderes sindicais, com negação de muitos dos argumentos das classes até sonegação dos mais básicos, em que se escondia até a quantidade correta de adeptos, sob a alegação de que a ordem viria de cima, da presidência militar. Semelhante a isso foi a não comunicação da eleição de Leonel Brizola, que acabava de voltar ao país e que ganharia a cadeira máxima do estado do Rio. Mais flagrante ainda seria a edição do resumo do debate de seis minutos, entre Fernando Collor e Lula, três dias antes do segundo turno, favorecendo o governador de Alagoas, onde a manipulação que se assemelhava a um informe publicitário causou um furor até dentro da rede, cuja reclamação ocorreu até de membros muito antigos da central de jornalismo como de Armando Nogueira e Wianey Pinheiro, que seriam aposentado e exonerado, respectivamente.

    Os últimos momentos do filme são pautados em mais reclames que discutem o valor da imprensa na formação da opinião pública e na moralidade de uma nação, especialmente em um órgão com tanto alcance como é com a Rede Globo, condizente com a realidade do início de suas transmissões até os anos noventa, com destaque até para o seriado Anos Rebeldes, onde se falaria sobre o hediondo regime, excluindo o papel do canal na legitimação dos anos de chumbo. A mensagem final questiona se o povo deveria se libertar dessa influência, ou ao menos contestá-la, com a trilha de Televisão, dos Titãs, que remete à burrice proveniente de quem assiste ao aparelho de vídeo. A imagem de Marinho é tomada por baratas, na expressão simbólica mais explícita da rejeição da figura do magnata das telecomunicações, por parte dos realizadores do filme.

  • Crítica | Brizola: Tempos de Luta

    Crítica | Brizola: Tempos de Luta

    brizola

    Tabajara Ruas é o responsável por contar o relato biográfico do político e ativista gaúcho Leonel Brizola. Desde a infância muito humilde, passando pela obsessão de sua mãe pela educação e instrução do filho, e também grafando o passado de lutas do povo gaúcho, Leonel também levantou-se como ativista. Sempre esteve muito presente em eventos de contestação, mas sem se descuidar do trabalho, visto que precisava dele para garantir o seu sustento. A narrativa é linear e muito parecida com a estética do cinema clássico americano, reunindo muitos depoimento do próprio Brizola e de muitos de seus colegas, como Antônio de Pádua, Flávio Tavares, Vieira de Cunha, etc.

    A reunião com estudantes interessados em política, já no Rio de Janeiro, mostrava o biografado como um dos mais atuantes nos grupos de discussão, além da fundação do PTB (Partido Trabalhista Brasileiro). Ele foi eleito deputado estadual com quase quatro mil votos. Nesses grupos ativistas conheceu Neusa Duarte, a Dona Neusa, sua companheira para toda a vida e amada esposa e namorada, que segundo o próprio, apesar da aparente fraqueza, sempre foi muito forte.

    O viés político que influenciou Brizola era ligado a Vargas, com quem teve estreitas relações e dividia ideologias: o trabalhismo. Após a morte de Getúlio Vargas, haveria dois ilustres herdeiros, o próprio Leonel, que seria consagrado prefeito de Porto Alegre e conhecido por fortes investimentos em educação, e claro, João Goulart, vice-presidente dos tempos de Juscelino Kubitschek. Entre os feitos mais notáveis de Brizola era a apropriação e nacionalização da empresa de telefonia do Rio Grande do Sul, ação dita como de vanguarda contra o monopólio americano no Brasil pela ainda não presidente Dilma Rousseff.

    O debate político aumentou devido a Guerra Fria, a ocupação cubana de Fidel Castro e a corrida espacial. Mesmo que Brizola dissesse que entendia que a propriedade privada era importante para a nação, seu discurso era acusado de ser associado aos ideais de Karl Marx, muito graças ao seu alinhamento com o argentino Ernesto Che Guevara. A proximidade de Che com Jango traria consequências graves em um futuro próximo.

    A renúncia de Jânio Quadros surpreendeu o político gaúcho, por Jânio ser um presidente proativo e rápido. A possibilidade de João Goulart assumir causou o furdunço que se concretizou no maior exemplo de paranoia militar. O estado de perplexidade tomou o país e Leonel declarou que ficaria no país para lutar. Uma república parlamentarista seria articulada sem a presunção de ter Goulart dentro do país. Brizola queria o retorno de Jango ao poder, mas era uma voz solitária na resistência. A subida dos militares para o poder marcou o político gaúcho, que até tentou ficar no país, variando de lugar a lugar por um mês e meio, até que teve de ir em definitivo para o Uruguai. O exílio deixou-o muito triste, mas sua postura ainda era a de resistir, apoiando os ativistas para treinar os militantes no esquema de guerrilhas.

    Aos poucos, o nacionalismo do político seria acompanhado pelo socialismo. O retorno de Brizola ao país calharia com o rompimento com o PTB e fundação do PDT (Partido Democrático Trabalhista), além de sua reinvenção na política, candidatando-se a governador do estado do Rio de Janeiro e vencendo uma tentativa de fraude e manipulação de votos. Construiu os Cieps, que teria o intuito de alocar as crianças oito horas por dia na escola, focando a educação e fazendo essas obras sem o apoio financeiro e político do governo federal. Outro episódio interessante foi a construção do sambódromo e o imbróglio com a Rede Globo, que se recusou a transmitir o carnaval. A manobra do governador foi a de entrar em contato com Arnaldo Bloch, presidente da Manchete, que ultrapassou a Globo em audiência no período. A campanha de Diretas Já foi muito motivada por ele, assim como a primeira eleição direta, em 1989, na qual se candidatava ao cargo máximo do executivo, com discursos inflamados e muito bem construídos. Por muito pouco ele não passou para o segundo turno, mas manifestaria seu apoio a Lula no segundo, obviamente tendo perdido. No ano seguinte, seria reeleito governador do Rio, mostrando sua inabalável força política.

    Os entraves entre o político e a Rede Globo ganharam capítulos de intensa batalha, difamações e toda sorte de troca de farpas, inclusive ganhando um direito de resposta em rede nacional, no horário nobre, com narração de Cid Moreira no Jornal Nacional. O conteúdo do manifesto é deveras corajoso e não poupa seus declarados inimigos.

    Pouco antes do fim de sua vida, ele se lançou em mais uma eleição, como vice-presidente da chapa de Lula, muito mais como figura simbólica do que como candidato de fato. Sua despedida teve muito apelo popular e a presença maciça do povo. Brizola se despediria da vida ovacionado pelo eleitorado e pelo homem comum, e até por alguns de seus antigos rivais políticos. Seu discurso poderia não ser completamente compreendido pelo povo, mas seu trabalho foi reconhecido por seus iguais, pela população. O trabalho de Ruas e Sergio Gonzalez em homenagear o político é muito belo e afetuoso, e apesar de deixar de lado muitos dos defeitos do biografado, ainda é um bom retrato da figura do velho e sempre inconformado caudilho.