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  • Crítica | O Outro Lado do Paraíso

    Crítica | O Outro Lado do Paraíso

    poster-do-filme-o-outro-lado-do-paraisoEm 1981, Luiz Fernando Emediato publicou o conto autobiográfico O Outro Lado do Paraíso, que narra a trajetória de uma família mineira sob a ótica de um menino de 11 anos. O conto é um excelente retrato sobre a transição do governo democrático e o golpe militar. Três décadas depois, o diretor André Ristum aceitou o desafio de adaptar o romance para os cinemas.

    Na trama, assim como no livro, a história é narrada sob o ponto de vista de Nando (Davi Galdeano), que relata as aventuras de seu pai, Antônio (Eduardo Moscovis), um garimpeiro sonhador que se encanta com as propostas de reforma do Presidente João Goulart e decide abandonar o interior de Minas Gerais para começar nova vida em Brasília junto com sua família. A capital ainda estava em obras, proporcionando a possibilidade de prosperidade para diversas famílias que para lá se mudavam.

    A mudança, a princípio, proporciona ao garoto um sentimento doloroso, pois, ao se mudar para Brasília, Nando deixa seu primeiro amor, Alice (Tais Andrade), no interior de Minas. Suas tardes se resumem a escrever cartas para sua amada com juras e declarações de amor e relatos sobre a cidade de Taguatinga – cidade onde moram os trabalhadores responsáveis pela construção de Brasília – e sua família. Aliás, a família é um ponto bastante interessante desenvolvido na obra original, como também no roteiro adaptado de Marcelo Muller. Ristum sabe muito bem o material que tem em mãos, já que a relação existente entre pai e filho é um dos pontos centrais do longa, como também um tema caro ao diretor, como podemos observar no seu filme anterior, Meu País. Interessante notar que, pouco a pouco, Nando substitui sua paixão por Alice por dois novos amores: o primeiro deles são os livros, paixão essa alimentada por sua nova professora, Iolanda (Adriana Lodi); e o segundo, a atrevida e esperta Iara (Maju Souza), filha de Iolanda.

    outro_lado_paraisoO outro tema importante do filme é sem dúvida a grande metáfora do “sonho interrompido”, já abordado pelo diretor em seu filme documental Tempos de Resistência. O clima onírico existente na película já se demonstra pela bela fotografia de Hélcio Alemão Nagamine, que utiliza uma paleta de cores vivas simbolizando as esperanças e reconstruções da família e dos habitantes de Taguatinga, mas que abruptamente se torna acinzentada com o advento do golpe militar. Apesar dos aspectos políticos serem descritos através da visão ingênua de um garoto de 11 anos, é possível traçar paralelos políticos importantes do regime por meio de questões pontuais, como a ascensão do movimento sindical durante o período do Presidente João Goulart, que se dá através do engajamento de seu pai Antônio, como também com a chegada dos generais, gerando um esmagamento violento dos sindicatos da região pelos militares, culminando na prisão e tortura de Antônio.

    O mesmo paralelo pode ser descrito com a relação de Nando pela política e seu interesse pelos livros, o que novamente acabaria de maneira trágica com a chegada dos militares ao poder, com o incêndio da biblioteca construída pelos habitantes de Taguatinga, uma referência escancarada ao clássico distópico de Ray Bradbury, Fahrenheit 451. Da mesma forma, não deixa de ser uma metáfora aos anos de chumbo e à perda intelectual após o período, seja em nível de ensino como também simbolizando a morte e o exílio de grandes pensadores brasileiros à época.

    Importante que se diga que, apesar da competência narrativa do roteiro adaptado de Muller e da direção de Ristum, um dos grandes destaques do longa-metragem é sem dúvida seu elenco. Davi Galdeano se destaca como protagonista e demonstra um nível de sensibilidade em cena que comove: sua química com Maju Souza é divertidíssima, e quando se faz necessário ambos entregam uma carga de tristeza em cena que convencem. Apesar de executar um papel sub-aproveitado, Camila Márdila se destaca. Vivendo a irmã mais velha de Nando, a jovem se envolve com um militar, e seu pai pouco a pouco ascende como um dos líderes sindicais da região, fato que promove o choque entre essas duas figuras afetivas ao longo do filme. Infelizmente o roteiro não a privilegia, no entanto a atriz demonstra uma atuação interessante, bastante diferente daquela que vimos em Que Horas Ela Volta?, em que interpreta Jéssica.

    Flavio Bauraqui, o líder sindical Jorjão, esbanja carisma assim como as aparições pontuais de Murilo Grossi como o subversivo Padre Alberto. Jonas Bloch, surge como avó de Nando, em uma atuação dura mas repleta de amor. Contudo, o destaque é sem dúvida para Eduardo Moscovis, como Antônio, que quando em tela acaba com os demais atores orbitando à sua volta ou sendo engolidos por ele.

    o outro lado do paraiso filmeO filme conta ainda com cenas de época, inclusive algumas retiradas do curta documental de Joaquim Pedro de Andrade, Brasília: Contradições de Uma Cidade Nova, de 1967, curiosamente censurado pelo regime militar por mostrar as diferentes realidades da capital e dos candangos – trabalhadores que migraram de outro Estado para a construção de Brasília, o que nos remete ao excelente trabalho de direção de arte de Beto Grimaldi e sua reconstrução de época. Por fim, a trilha sonora de Patrick de Jongh em alguns momentos anda por uma linha tênue entre o piegas e o sentimental, mas o resultado final é bastante satisfatório, contando com uma bela interpretação de Clube da Esquina 2, com Milton Nascimento, e a inédita Ventos Irmãos, também interpretada pelo velho Bituca.

    O Outro Lado do Paraíso é um filme importante sobre memórias e a dura realidade política e social do Brasil dos anos 1960 e dos dias atuais. O olhar inocente e ingênuo de uma criança é acertado mas gera questionamentos se esta seria a melhor decisão a ser tomada, já que retira um pouco do peso do período que ele procura retratar, remetendo muito ao filme de Cao Hamburger, O Ano em Que Meus Pais Saíram de Férias, e pouco ao chileno Machuca, de Andrés Wood, e o argentino Kamchatka, de Marcelo Piñeyro. A abordagem, de certa forma, nos traz reflexões se seria a melhor alternativa a ser realizada, dado o crescimento de uma juventude que apoia o golpe militar nos dias atuais ou figuras políticas atreladas a ele.

    Apesar da visão romântica, o filme cumpre o seu papel demonstrando o impacto do período militar numa família interiorana típica, desde a proibição da leitura de um livro até a prisão e tortura de um cidadão lutando por melhores condições de trabalho. Uma aventura quixotesca de um pai em busca de sua Shangri-La, admirado e amado por seu filho, apesar de toda a dor, tristeza e melancolia decorrente desta aventura.

  • Crítica | Dossiê Jango

    Crítica | Dossiê Jango

    Dossiê Jango

    Organizado por Paulo Henrique Fontenelle, Dossiê Jango traça o perfil de João Goulart. Iniciando com uma narração poetizada, a obra estabelece o histórico de Jango desde a época em que foi vice-presidente da república, em 1956, com Juscelino Kubistchek no cargo máximo da política nacional. Carlos Lyra, Cacá Diegues, Jair Krischke e outros famosos falam sobre a era dourada pela qual passava o Brasil, tanto política quanto artisticamente, com a ascensão do Cinema Novo. Quando se passa a falar dos eventos pós renuncia de Jânio Quadros em 1961, curiosamente o entusiasmo dos entrevistados é derrubado.

    Segundo o longa, a viagem de Jango para a China foi fundamental para a tomada de poder que ocorreria na disputa que duraria até 1964. Há um destaque quase didático do roteiro em explicar que a excursão era justificável, visto que o país era um mercado interessante de se tratar, tanto em importações quanto em exportações. O longa utiliza um tempo demasiado detalhando a movimentação de Leonel Brizola, então governador do Rio Grande do Sul, a fim de defender a volta ao país e subida ao planalto de Goulart, contra o recrudescimento dos militares que se iniciava ali.

    Contra as suposições de que iria implantar um regime comunista – já refutado no filme de Silvio Tendler, Jango – o documentário mostra a coalizão contraditória de Goulart em apresentar, de modo muito pacífico, as reformas estruturais e de base, além de propostas de reforma agrária, a um estilo capitalista, distante da visão socialista moderada ou não.

    O filme não tem receio em associar a interferência dos Estados Unidos, mostrando inclusive ligações do presidente Lyndon Johnson e Sr. George Ball temendo que o Brasil se tornasse uma nova Cuba, com proporções continentais. Da parte de pensadores políticos brasileiros, havia o receio de dividir o país, como se fez no Vietnã e Coreia, factoide pouco explorado em filmes documentais antigos.

    A frase do assessor de Jango, Cláudio Braga de que ‘o exilado é um morto vivo’ resume a melancolia do político, que era aos poucos deposto pela tentativa primeiro de parlamentarismo, bem-sucedida em vias práticas, depois pela tomada de poder militar, mesmo que, segundo o Ibope, as intenções de voto subissem para mais de 78%. A gravidade da situação para Jango pioraria de vez com a execução da Operação Condor e a queda da democracia uruguaia e demais nações do cone sul.

    Dossiê Jango é bem mais pessoal em relação ao biografado do que em Jango, de 1984. O mergulho na intimidade ganha importância pela distância temporal entre filme e acontecimentos. Mesmo o escritor Carlos Heitor Cony destaca que a perseguição a Goulart era só mais um eco do auge da Guerra Fria.

    O longa dá vazão a uma teoria da conspiração, logo após tratar sobre o falecimento de Jango, discorrendo sobre a morte quase seguida de Carlos Lacerda, Juscelino e do próprio personagem-título, unindo a tentativa de envenenamento de Brizola no Uruguai, o que justificaria o caráter de dossiê presente no nome oficial do filme, mostrando que um dos motivos do filme foi fortalecer a hipótese e tese de que havia uma mini chacina dos políticos influentes brasileiros, teoricamente capazes de destituir os militares do poder.

    A contestação à palavra dos historiadores ocorre especialmente por parte de seu filho, João Vicente Goulart, que destaca que são estes mesmos estudiosos que defendem a manutenção da anistia. Gasta-se um tempo demasiado, na teoria do amigo uruguaio de Goulart, Foch Diaz, que teria procurado a família do mesmo e que foi ignorado. A partir daí, um relatório seria aprovado e assinado pelo parlamentar Miro Teixeira, que associa o nome do presidente a uma lista de assassináveis, ainda que não confirme que o óbito veio por esses meios.

    A animação, vista no final do filme de Fontenelle, passeia por corredores mal iluminados, repletos de arquivos enferrujados, trancados e lotados de segredos estatais, intactos graças à decisão de não serem violados de modo algum. Dossiê Jango não expõe verdades absolutas, mas serve muito bem ao intuito de gerar discussão e expor conjecturas normalmente ignoradas tanto pelo oligopólio midiático da época, quanto pelos membros atuais da imprensa, que tendem sempre a desmerecer os argumentos a respeito dos contestáveis laudos da morte de Jango.

  • Resenha | 1968: O Ano Que Não Terminou – Zuenir Ventura

    Resenha | 1968: O Ano Que Não Terminou – Zuenir Ventura

    A história que Zuenir Ventura audaciosamente conta é iniciada num réveillon, símbolo do calendário que representa mudança. A modernidade que chegou parecia fazer desta temporada seu início; não o seria em virtude das referências aos estudantes franceses, que já haviam lutado por ideais muito semelhantes, libertários. A crônica da alma das pessoas é o que trata o livro/relato.

    O escritor visava trazer um relato historicamente fidedigno da época, com entrevistas pontuais e material de pesquisa vasto. A busca de Ventura foi a de não retocar absolutamente nada do pretérito, passando por cima de qualquer tentação revisionista ou de aplacar o sofrimento da lembrança. O ideal era fugir da passionalidade barata, dando vazão a sentimentos, mas sem perder de vista o cunho de análise temporal e condicional.

    A tranquilidade e ilusão típicas do 31 de dezembro eram a tônica da festa na “casa de Helô”, mas logo essa falsa paz seria quebrada pelas mãos mais inesperadas. Dali veio o primeiro tapa do dia, o primeiro golpe do ano, um símbolo do que viria a atormentar a classe artística, os que pensavam e discutiam política e qualquer cidadão que somente parecesse debater os rumos econômicos ou sociais daquele novo Brasil.

    Após o murro, inicia-se um conto ameno que reflete sobre a revolução sexual e sobre quanto é difícil se adequar a ela, uma vez que compreende nuances nem sempre pensadas pela parcela mais popular da sociedade. Quase todos os presentes na festa se viam obrigados a fazê-lo, mas a aceitação estava longe de ser um movimento automático ou banal. Os resquícios de uma criação paternalista e calcada na moral se viam em muitas das manifestações corriqueiras, como o ciúme e o enlace matrimonial.

    Os contornos agridoces da história narrada são deixados de lado. A pecha de “ame ou deixe-o”, que fazia referência ao zerado nível de tolerância à oposição, começava a fazer sentido, deixando de ser um slogan para tornar-se uma praxe.

    O radicalismo e conservadorismo dos ditos revolucionários são discutidos, inclusive estabelecendo os posicionamentos de indivíduos famosos, como Alfredo Sirkis, Fernando Gabeira e Ziraldo. Enquanto os filiados ao PCB eram chamados de Partidão, havia uma boa parcela pouco pragmática e mais idealista, que não tomava uma posição mais certeira ora pela imaturidade, ora pelo desconhecimento sobre qual seria o mais adequado modo de combate ao regime vigente. O grave erro da esquerda à época é o mesmo da atual, o de não conseguir reunir-se em torno de um mesmo paradigma, de uma mesma bandeira ou ideal, tendo nenhuma unicidade em seu modus operandi, tornando-se, portanto, mais fraco e mais fácil de se dissipar em qualquer discussão. Mesmo os que defendiam a luta armada adoravam um discurso, e em seus brados acabavam munindo seus inimigos das armas que eram necessárias para manietá-los. A previsibilidade deles era enorme.

    O radicalismo era tamanho que José Celso afirmava: O objetivo é abrir uma série de Vietnãs no campo da cultura, uma guerra contra a cultura oficial de consumo fácil. O sentido de eficácia do teatro, hoje, é o sentido de a guerrilha teatral ser travada com as armas do teatro anárquico, cruel, grosso como a grossura e apatia em que vivemos.

    Vladimir Palmeira, líder da UME, dizia que não havia qualquer espetáculo quando houve o enterro de um jovem assassinado – Edson Luís – pela truculenta ação dos poderosos, dos mandantes: Não é a morte de Édson Luís, não é a Passeata dos Cem Mil, nem o congresso de Ibiúna, mas a assembleia no Teatro de Arena da Faculdade de Economia, na Praia Vermelha, que deu origem a toda essa degradante repressão do campo do Botafogo. Nessa manifestação, nós quebramos o laço dominante entre o professor que manda e o aluno que aprende. Era uma velharia com postos vitalícios. Ela não estava adaptada talvez nem ao século, quanto mais à década. Queríamos quebrar a dominação dos catedráticos e arejar a universidade.

    O fato consumado era de que a oposição existente era muito distante da realidade do cidadão comum. Foi pensando nisto que o ex-governador Carlos Lacerda buscou apoio de seus antigos desafetos, Juscelino Kubitschek – rival há quinze anos – em Lisboa, e também de João “Jango” Goulart, no Uruguai. A chamada Frente Ampla teve no Pacto de Montevidéu seu maior expoente, mas nem foi livre de críticas, uma vez que o então ex-governador do Rio Grande do Sul, Leonel Brizola, criticava veementemente a postura de Lacerda, chamando-o de sofista, denunciando que seria somente uma manobra de Lacerda para continuar influindo “perniciosamente” nos destinos do país.

    O fator que faz de 1968 mais singular é a sua forma, que em cada capítulo contempla um novo entrevistado, mostrando múltiplas visões da mesma história. A multiplicidade de vozes é uma plataforma plural bem urdida, quase inédita.

    Zuenir destaca que, mesmo antes da implantação “oficial” do AI-5, já havia um movimento de censura e forte repressão dias antes do anúncio, com invasões de redações de jornais e controle forçado das pautas de televisão e afins. Nem mesmo o Correio Braziliense, único jornal a circular na capital federal, podia cobrir as votações nas câmaras do Legislativo. Mesmo figuras que nada tinham a ver com qualquer movimentação ligada à esquerda socialista sofreram repressão unicamente por levantar a voz. Os ânimos estavam à flor da pele. A exemplo disso, o já idoso Juscelino era assim tratado, jogado às traças em algum porão e deveras mal alimentado, a despeito até de sua saúde debilitada. As sensações dos que viveram aquele tempo eram múltiplas, e em comum havia uma dor tremenda, um sentimento de impotência de quem queria lutar, mas que via qualquer chance de resistência ruir. Esse infeliz viver deixou um gosto azedo em Zuenir e nos outros entrevistados, daí a impressão de que aquele ano jamais acabou.