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  • Resenha | O Golpe de 64

    Resenha | O Golpe de 64

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    “Em 31 de março de 1964, as forças militares brasileiras deflagraram um golpe de Estado contra o presidente João Goulart e instalaram no país uma ditadura que duraria décadas.”
    (quarta capa do livro)

    Oscar Pilagallo, jornalista e vencedor do Prêmio Esso em 1993 na categoria de Reportagem Especializada, juntou-se ao quadrinista, cartunista e ilustrador Rafael Campos Rocha, autor de Deus, Essa Gostosa, para transformar as chatíssimas aulas de História do Brasil numa história ilustrada que conta com riqueza de detalhes esse período conturbado da História nacional.

    A narrativa se inicia 10 anos antes, em 1954, com o suicídio de Getúlio Vargas e percorre os anos seguintes discorrendo sobre as origens e os meandros dos acontecimentos que levaram ao golpe. Com conspirações para todo lado, vilões para todos os gostos e reviravoltas mirabolantes, os fatos históricos deveriam ser um prato cheio para uma trama rocambolesca ilustrada.

    Mas infelizmente, o texto de Pilagallo é didático demais na maior parte do tempo. O leitor se sente de volta à sala de aula lendo um daqueles livros de História do Brasil, só que agora em quadrinhos. Talvez não fosse intenção do autor, mas poderia ter explorado mais a verve romanesca, quase burlesca dos eventos. Trabalhar a narrativa como se fosse ficção, aproveitando-se de aspectos e circunstâncias que parecem tirados duma narrativa ficcional (apesar de infelizmente serem reais), teria deixado a leitura bem mais envolvente.

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    Em contrapartida, Rocha teve total liberdade para ilustrar a história. Apesar de várias imagens serem ilustrações feitas a partir de fotos de acontecimentos da época, muitas delas pendem para a caricatura, enfatizando a faceta non-sense dos eventos. É o que garante o alívio cômico e certa leveza – se é que é possível – à narrativa. Rocha usa muitas metáforas e alegorias visuais para representar as ideias e conceitos expostos no texto.

    Como livro paradidático, deve funcionar muito bem, já que o apelo visual da história em quadrinhos o torna mais palatável aos alunos. Não é uma HQ de entretenimento, é uma HQ informativa. É uma ótima opção para quem tiver interesse em saber mais sobre esse período e não quiser encarar longos textos analíticos.

    Texto de autoria de Cristine Tellier.

  • Crítica | Dossiê Jango

    Crítica | Dossiê Jango

    Dossiê Jango

    Organizado por Paulo Henrique Fontenelle, Dossiê Jango traça o perfil de João Goulart. Iniciando com uma narração poetizada, a obra estabelece o histórico de Jango desde a época em que foi vice-presidente da república, em 1956, com Juscelino Kubistchek no cargo máximo da política nacional. Carlos Lyra, Cacá Diegues, Jair Krischke e outros famosos falam sobre a era dourada pela qual passava o Brasil, tanto política quanto artisticamente, com a ascensão do Cinema Novo. Quando se passa a falar dos eventos pós renuncia de Jânio Quadros em 1961, curiosamente o entusiasmo dos entrevistados é derrubado.

    Segundo o longa, a viagem de Jango para a China foi fundamental para a tomada de poder que ocorreria na disputa que duraria até 1964. Há um destaque quase didático do roteiro em explicar que a excursão era justificável, visto que o país era um mercado interessante de se tratar, tanto em importações quanto em exportações. O longa utiliza um tempo demasiado detalhando a movimentação de Leonel Brizola, então governador do Rio Grande do Sul, a fim de defender a volta ao país e subida ao planalto de Goulart, contra o recrudescimento dos militares que se iniciava ali.

    Contra as suposições de que iria implantar um regime comunista – já refutado no filme de Silvio Tendler, Jango – o documentário mostra a coalizão contraditória de Goulart em apresentar, de modo muito pacífico, as reformas estruturais e de base, além de propostas de reforma agrária, a um estilo capitalista, distante da visão socialista moderada ou não.

    O filme não tem receio em associar a interferência dos Estados Unidos, mostrando inclusive ligações do presidente Lyndon Johnson e Sr. George Ball temendo que o Brasil se tornasse uma nova Cuba, com proporções continentais. Da parte de pensadores políticos brasileiros, havia o receio de dividir o país, como se fez no Vietnã e Coreia, factoide pouco explorado em filmes documentais antigos.

    A frase do assessor de Jango, Cláudio Braga de que ‘o exilado é um morto vivo’ resume a melancolia do político, que era aos poucos deposto pela tentativa primeiro de parlamentarismo, bem-sucedida em vias práticas, depois pela tomada de poder militar, mesmo que, segundo o Ibope, as intenções de voto subissem para mais de 78%. A gravidade da situação para Jango pioraria de vez com a execução da Operação Condor e a queda da democracia uruguaia e demais nações do cone sul.

    Dossiê Jango é bem mais pessoal em relação ao biografado do que em Jango, de 1984. O mergulho na intimidade ganha importância pela distância temporal entre filme e acontecimentos. Mesmo o escritor Carlos Heitor Cony destaca que a perseguição a Goulart era só mais um eco do auge da Guerra Fria.

    O longa dá vazão a uma teoria da conspiração, logo após tratar sobre o falecimento de Jango, discorrendo sobre a morte quase seguida de Carlos Lacerda, Juscelino e do próprio personagem-título, unindo a tentativa de envenenamento de Brizola no Uruguai, o que justificaria o caráter de dossiê presente no nome oficial do filme, mostrando que um dos motivos do filme foi fortalecer a hipótese e tese de que havia uma mini chacina dos políticos influentes brasileiros, teoricamente capazes de destituir os militares do poder.

    A contestação à palavra dos historiadores ocorre especialmente por parte de seu filho, João Vicente Goulart, que destaca que são estes mesmos estudiosos que defendem a manutenção da anistia. Gasta-se um tempo demasiado, na teoria do amigo uruguaio de Goulart, Foch Diaz, que teria procurado a família do mesmo e que foi ignorado. A partir daí, um relatório seria aprovado e assinado pelo parlamentar Miro Teixeira, que associa o nome do presidente a uma lista de assassináveis, ainda que não confirme que o óbito veio por esses meios.

    A animação, vista no final do filme de Fontenelle, passeia por corredores mal iluminados, repletos de arquivos enferrujados, trancados e lotados de segredos estatais, intactos graças à decisão de não serem violados de modo algum. Dossiê Jango não expõe verdades absolutas, mas serve muito bem ao intuito de gerar discussão e expor conjecturas normalmente ignoradas tanto pelo oligopólio midiático da época, quanto pelos membros atuais da imprensa, que tendem sempre a desmerecer os argumentos a respeito dos contestáveis laudos da morte de Jango.

  • Resenha | 1968: O Ano Que Não Terminou – Zuenir Ventura

    Resenha | 1968: O Ano Que Não Terminou – Zuenir Ventura

    A história que Zuenir Ventura audaciosamente conta é iniciada num réveillon, símbolo do calendário que representa mudança. A modernidade que chegou parecia fazer desta temporada seu início; não o seria em virtude das referências aos estudantes franceses, que já haviam lutado por ideais muito semelhantes, libertários. A crônica da alma das pessoas é o que trata o livro/relato.

    O escritor visava trazer um relato historicamente fidedigno da época, com entrevistas pontuais e material de pesquisa vasto. A busca de Ventura foi a de não retocar absolutamente nada do pretérito, passando por cima de qualquer tentação revisionista ou de aplacar o sofrimento da lembrança. O ideal era fugir da passionalidade barata, dando vazão a sentimentos, mas sem perder de vista o cunho de análise temporal e condicional.

    A tranquilidade e ilusão típicas do 31 de dezembro eram a tônica da festa na “casa de Helô”, mas logo essa falsa paz seria quebrada pelas mãos mais inesperadas. Dali veio o primeiro tapa do dia, o primeiro golpe do ano, um símbolo do que viria a atormentar a classe artística, os que pensavam e discutiam política e qualquer cidadão que somente parecesse debater os rumos econômicos ou sociais daquele novo Brasil.

    Após o murro, inicia-se um conto ameno que reflete sobre a revolução sexual e sobre quanto é difícil se adequar a ela, uma vez que compreende nuances nem sempre pensadas pela parcela mais popular da sociedade. Quase todos os presentes na festa se viam obrigados a fazê-lo, mas a aceitação estava longe de ser um movimento automático ou banal. Os resquícios de uma criação paternalista e calcada na moral se viam em muitas das manifestações corriqueiras, como o ciúme e o enlace matrimonial.

    Os contornos agridoces da história narrada são deixados de lado. A pecha de “ame ou deixe-o”, que fazia referência ao zerado nível de tolerância à oposição, começava a fazer sentido, deixando de ser um slogan para tornar-se uma praxe.

    O radicalismo e conservadorismo dos ditos revolucionários são discutidos, inclusive estabelecendo os posicionamentos de indivíduos famosos, como Alfredo Sirkis, Fernando Gabeira e Ziraldo. Enquanto os filiados ao PCB eram chamados de Partidão, havia uma boa parcela pouco pragmática e mais idealista, que não tomava uma posição mais certeira ora pela imaturidade, ora pelo desconhecimento sobre qual seria o mais adequado modo de combate ao regime vigente. O grave erro da esquerda à época é o mesmo da atual, o de não conseguir reunir-se em torno de um mesmo paradigma, de uma mesma bandeira ou ideal, tendo nenhuma unicidade em seu modus operandi, tornando-se, portanto, mais fraco e mais fácil de se dissipar em qualquer discussão. Mesmo os que defendiam a luta armada adoravam um discurso, e em seus brados acabavam munindo seus inimigos das armas que eram necessárias para manietá-los. A previsibilidade deles era enorme.

    O radicalismo era tamanho que José Celso afirmava: O objetivo é abrir uma série de Vietnãs no campo da cultura, uma guerra contra a cultura oficial de consumo fácil. O sentido de eficácia do teatro, hoje, é o sentido de a guerrilha teatral ser travada com as armas do teatro anárquico, cruel, grosso como a grossura e apatia em que vivemos.

    Vladimir Palmeira, líder da UME, dizia que não havia qualquer espetáculo quando houve o enterro de um jovem assassinado – Edson Luís – pela truculenta ação dos poderosos, dos mandantes: Não é a morte de Édson Luís, não é a Passeata dos Cem Mil, nem o congresso de Ibiúna, mas a assembleia no Teatro de Arena da Faculdade de Economia, na Praia Vermelha, que deu origem a toda essa degradante repressão do campo do Botafogo. Nessa manifestação, nós quebramos o laço dominante entre o professor que manda e o aluno que aprende. Era uma velharia com postos vitalícios. Ela não estava adaptada talvez nem ao século, quanto mais à década. Queríamos quebrar a dominação dos catedráticos e arejar a universidade.

    O fato consumado era de que a oposição existente era muito distante da realidade do cidadão comum. Foi pensando nisto que o ex-governador Carlos Lacerda buscou apoio de seus antigos desafetos, Juscelino Kubitschek – rival há quinze anos – em Lisboa, e também de João “Jango” Goulart, no Uruguai. A chamada Frente Ampla teve no Pacto de Montevidéu seu maior expoente, mas nem foi livre de críticas, uma vez que o então ex-governador do Rio Grande do Sul, Leonel Brizola, criticava veementemente a postura de Lacerda, chamando-o de sofista, denunciando que seria somente uma manobra de Lacerda para continuar influindo “perniciosamente” nos destinos do país.

    O fator que faz de 1968 mais singular é a sua forma, que em cada capítulo contempla um novo entrevistado, mostrando múltiplas visões da mesma história. A multiplicidade de vozes é uma plataforma plural bem urdida, quase inédita.

    Zuenir destaca que, mesmo antes da implantação “oficial” do AI-5, já havia um movimento de censura e forte repressão dias antes do anúncio, com invasões de redações de jornais e controle forçado das pautas de televisão e afins. Nem mesmo o Correio Braziliense, único jornal a circular na capital federal, podia cobrir as votações nas câmaras do Legislativo. Mesmo figuras que nada tinham a ver com qualquer movimentação ligada à esquerda socialista sofreram repressão unicamente por levantar a voz. Os ânimos estavam à flor da pele. A exemplo disso, o já idoso Juscelino era assim tratado, jogado às traças em algum porão e deveras mal alimentado, a despeito até de sua saúde debilitada. As sensações dos que viveram aquele tempo eram múltiplas, e em comum havia uma dor tremenda, um sentimento de impotência de quem queria lutar, mas que via qualquer chance de resistência ruir. Esse infeliz viver deixou um gosto azedo em Zuenir e nos outros entrevistados, daí a impressão de que aquele ano jamais acabou.

  • Crítica | Jango

    Crítica | Jango

    Reunindo pedaços de informes oficiais da época em que o biografado era um político ativo, Jango começa com a viagem do então vice-presidente a China, que ficaria famosa por ter sido tão “longa”, que não permitiria a João Goulart assumir seu posto como o mandante máximo do país. O medo vermelho, o mesmo que predominava no gigante asiático. O filme de Silvio Tendler não tem qualquer pudor em escolher lados, assim como os que subiriam ao poder e que seriam criticados pela fita.

    Jânio Quadros, até então presidente, circulava com toda a sua ebriedade ao lado das “forças ocultas” (fala do próprio roteiro), junto aos militares, levantando uma série de teorias a respeito das origens do golpe. Enquanto corre a trilha de Wagner Tiso e Milton Nascimento, é mostrado um registro fotográfico saudosista, que remetia ao período histórico menos conturbado antes da tomada de poder e claro, a intimidade de Jango.

    A narração de José Wilker busca dar ainda mais importância a biografia do político, um homem, segundo os altos, sempre comprometido com as causas sociais. A ascensão dele é flagrada, desde o começo da carreira, muito próximo ao segundo governo de Getúlio Vargas, como também seus serviços de parlamentar, as corridas eleitorais ganhas e perdidas e claro, a assessoria que prestava a Juscelino Kubitschek. Jango seria o primeiro político mandante sul-americano a ter autorização de pisar em solo soviético, o que claramente pesaria contra ele anos depois.

    A ascensão de Jânio Quadros é destacada, especialmente os seus modos ultra-moralistas, que incluíam a proibição da veiculação de biquínis na televisão. Era um delegado no poder, alinhado com os interesses da classe média, a mesma que foi denunciada por Arnaldo Jabor em Opinião Pública. No entanto, a posta de Jânio era tão curiosa que ele condecorou Ernesto Guevara, conhecidamente ligado à esquerda vermelha, o que demonstrava o desequilíbrio das suas aspirações e comportamento político. Enquanto Goulart estava na China, fazendo o mesmo que fazia em Moscou, Jânio Quadros renunciaria, deixando Ranieri Mazzilli no poder provisório.

    O medo de que o Brasil se tornasse uma nova Tchecoslováquia seria o principal motivo do motim organizado pelas forças armadas. Mesmo com as atitudes contrárias de famosos políticos, como Leonel Brizola, era tarde, já que os governadores de grandes estados como os de Rio e São Paulo deflagaram a repressão imediatamente.

    A preocupação da direita brasileira com relação a Jango ocorria, claro, pelos contatos do presidenciável, mas foi muito agravada pela opinião declarada de John Kennedy. Além de tencionar conter a dívida externa brasileira, procurava também interferir em alguns dos seus planos econômicos, pois aos seus olhos, estes eram muito semelhantes ao ideal socialista, obviamente, quando analisados pela perspectiva do mandante da nação que era a principal inimiga da URSS.

    A narrativa varia entre os momentos contemporâneos de 1984 e a pregressa vida de Jango quando ainda não era vice, até a tomada de poder por parte dos militares. O período em que Goulart foi presidente, mas com muito menos poder do que deveria, uma vez que se implantou uma política parlamentarista que curiosamente acabou com o término de seu mandato, foi curto, para logo depois ser “convidado” ao exílio, no Uruguai.

    Já com o Regime instaurado no Brasil, e longe de sua pátria, João Goulart via as outras pátrias do Cone Sul serem dominadas por ditaduras de direita, tendo na deposição do chileno Salvador Allende o seu tiro de misericórdia. Segundo familiares, o ex-político sonhava em retornar a sua pátria, mas impossibilitado por sua débil saúde, morreu no exílio, em 1976, sabendo que poderia ser um dos alvos da Operação Condor, que estreitava as relações entre os governos latinos tirânicos e que “coincidentemente” teve muitos dos seus opositores encerrados em mortes misteriosas.

    O jornalista Carlos Castello Branco declarou em nota que Jangomorreu como um peão perdido à procura do seu galpão“, em virtude de não poder voltar ao seu lugar de origem. Somente seu cadáver voltaria a sua cidade natal, a gaúcha São Borja. O filme de Silvio Tendler acaba contando uma parte importante da história brasileira, ainda que sua ótica seja parcial, claro, sendo jamais injusta, uma vez que essa voz nunca havia sido garantida ao político, tampouco aos seus adeptos.