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  • Resenha | Como um Cavalo Salvou a Vida de um Preso Político

    Resenha | Como um Cavalo Salvou a Vida de um Preso Político

    Como um Cavalo Salvou a Vida de um Preso Político - Evaldo Novelini e Fernandes

    A política brasileira é marcada por uma série de características, a maioria delas negativa. Porém, uma das que mais me incomoda é justamente a de construir heróis completamente discutíveis (ou indiscutivelmente condenáveis) juntando-se com um certo messianismo, ou seja, aquele personagem político que viria para salvar-nos de um dia para outro. Neste sentido, Getúlio Vargas provavelmente é o que mais simboliza essa questão de transformar em herói aqueles que não deveriam merecer esse pedestal. O chamado “pai dos pobres” não foi apenas aquele ligado às leis trabalhistas no Brasil, mas também um ditador que proporcionou perseguições políticas com tortura, censura e violências físicas e simbólicas diversas.

    Esta realidade, que muito brasileiros desconhecem, é tratada na interessante história em quadrinhos Como um Cavalo Salvou a Vida de um Preso Político, com o texto de Evaldo Novelini e arte de Fernandes, no qual eles recontam a triste, e verídica, história do alemão Harry Berger e de seu advogado Sobral Pinto. Após a tentativa de levante comunista em 1935, houve uma verdadeira caça ao comunismo por parte do governo de Getúlio Vargas e seus órgãos de repressão, no qual o político alemão e sua esposa acabam presos e passam pelas mais variadas técnicas de torturas e maus-tratos. Enquanto isso, seu advogado tentava de todas as maneiras suavizar as críticas condições em que se encontrava o seu cliente. Só lhe foram concedidos uma cela e condições minimamente humanas quando Sobral entrou com um pedido baseado na lei de proteção aos animais, o que chocou a sociedade da época.

    A obra em si é por demais interessante, pela arte que se assemelha a recortes de jornais e imagens de época, o que causa uma sensação mais séria e sóbria, que combina bastante com a temática abordada. De certa forma, a leitura nos lembra um documentário relatando os acontecimentos da época, mas não só os fatos em relação ao preso, as torturas e seu advogado. Os autores nos mostram recortes de jornais em que o leitor passa a se inteirar melhor do contexto em que essas ações aconteciam, o que demonstra que o clima de ódio e intolerância não pertencia apenas ao governo, mas também a setores da sociedade civil.

    A abordagem é bastante crua, com a citação de torturas que o preso em questão passou, e também as humilhações consequentes, portanto, para alguns, pode gerar um incômodo e estranheza a leitura da HQ (aliás, se ela não gerar esse incômodo, sugiro que você procure um psicólogo, pois não é normal considerar os eventos narrados na HQ como normais). Em momento algum os autores se furtam de serem diretos e claros em relação ao que acontecia e os violentos procedimentos da época.

    Sendo assim, essa HQ contribui para mostrar uma produção nacional importante e demonstrar que diversifica em relação a temáticas e abordagens. Porém, em minha opinião, o maior valor e contribuição da história é deixar claro que não havia heróis naquele período, e que a perseguição política e tortura não eram práticas fortuitas, mas uma política de Estado empreendida com o total conhecimento do então presidente Getúlio Vargas, que pode ser considerado tão culpado quanto os torturadores. Deixa-se claro que não há herói, santo ou mesmo “pai dos pobres”, mas um ditador. Leitura que dialoga com o presente da política brasileira, uma vez que pessoas e políticos dos dias de hoje podem ler e considerar que as torturas sofridas por Berger foram justas, por ser um comunista.

    Texto de autoria de Douglas Biagio Puglia.

  • Resenha | O Golpe de 64

    Resenha | O Golpe de 64

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    “Em 31 de março de 1964, as forças militares brasileiras deflagraram um golpe de Estado contra o presidente João Goulart e instalaram no país uma ditadura que duraria décadas.”
    (quarta capa do livro)

    Oscar Pilagallo, jornalista e vencedor do Prêmio Esso em 1993 na categoria de Reportagem Especializada, juntou-se ao quadrinista, cartunista e ilustrador Rafael Campos Rocha, autor de Deus, Essa Gostosa, para transformar as chatíssimas aulas de História do Brasil numa história ilustrada que conta com riqueza de detalhes esse período conturbado da História nacional.

    A narrativa se inicia 10 anos antes, em 1954, com o suicídio de Getúlio Vargas e percorre os anos seguintes discorrendo sobre as origens e os meandros dos acontecimentos que levaram ao golpe. Com conspirações para todo lado, vilões para todos os gostos e reviravoltas mirabolantes, os fatos históricos deveriam ser um prato cheio para uma trama rocambolesca ilustrada.

    Mas infelizmente, o texto de Pilagallo é didático demais na maior parte do tempo. O leitor se sente de volta à sala de aula lendo um daqueles livros de História do Brasil, só que agora em quadrinhos. Talvez não fosse intenção do autor, mas poderia ter explorado mais a verve romanesca, quase burlesca dos eventos. Trabalhar a narrativa como se fosse ficção, aproveitando-se de aspectos e circunstâncias que parecem tirados duma narrativa ficcional (apesar de infelizmente serem reais), teria deixado a leitura bem mais envolvente.

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    Em contrapartida, Rocha teve total liberdade para ilustrar a história. Apesar de várias imagens serem ilustrações feitas a partir de fotos de acontecimentos da época, muitas delas pendem para a caricatura, enfatizando a faceta non-sense dos eventos. É o que garante o alívio cômico e certa leveza – se é que é possível – à narrativa. Rocha usa muitas metáforas e alegorias visuais para representar as ideias e conceitos expostos no texto.

    Como livro paradidático, deve funcionar muito bem, já que o apelo visual da história em quadrinhos o torna mais palatável aos alunos. Não é uma HQ de entretenimento, é uma HQ informativa. É uma ótima opção para quem tiver interesse em saber mais sobre esse período e não quiser encarar longos textos analíticos.

    Texto de autoria de Cristine Tellier.

  • Resenha | Cumbe

    Resenha | Cumbe

    Cumbe - Capa

    A melhor interpretação da canção A Carne, composta por Seu Jorge, Marcelo Yuka e Wilson Capellette, foi realizada por Elza Soares. Em tom agudo, a intérprete proclama com voz visceral: a carne mais barata do mercado é a carne negra. Uma frase pesada de tom metafórico que carrega a interpretação vinda de épocas antigas em referência ao preconceito racial.

    Retornando às origens da História do Brasil, Marcelo D´Salete nos apresenta Cumbe, uma HQ com quatro histórias passadas na época da escravidão. São relatos que evidenciam sentimentos primordiais, como amor, liberdade e fé, conduzindo os personagens centrais, escravos que desejam se ver livres de grilhões impostos pelo sistema escravocrata, infelizmente presente em diversas nações mundiais de épocas passadas, que não consideravam aberrante o uso de um povo estrangeiro, retirado à força de seu país materno, como mão de obra. Sob poder do chicote, a escravidão se difundiu no país do Brasil Colônia ao Império durante oficialmente mais de 300 anos.

    A narrativa economiza nas palavras. Transcorrem no silêncio imagético entre sinais e inferências, dando-nos a imersão àquela época em que qualquer sussurro por parte dos negros era exemplo para demonstrar o poder de seus donos, entre prisões, torturas e morte. Os traços dão a dimensão emotiva da história, representada por um grupo que fez parte da história como um povo maltratado e que, acima de tudo, desejava sair desta condição. Um retrato cruel da origem dos negros no país.

    Cumbe - destaque 01

    No livro É Isso Um Homem? do italiano Primo Levi, um judeu que viveu a experiência do campo de concentração, é mencionada a questão da identidade dentro de um sistema opressor e do quanto estas pessoas se apegam até mesmo a elementos simbólicos – no seu caso, ele menciona um botão de camisa – para continuarem com garra para sobreviver. Em Cumbe, forças sagradas ou superiores são tais referências de resistência: deuses, o amor, o mar como profecia de purificação, quilombos como esperança de um futuro livre. Um conjunto que forma maneiras diversas de projeção e proteção contra o presente agressivo. Histórias trágicas carregadas de violência e morte, um sufocamento diário que tratava os negros como párias da sociedade. As poucas cenas em que os escravocratas aparecem são motivadas pela violência, e a obra é capaz de trazer a apreensão e tensão ao leitor.

    A composição do Brasil é oriunda de origens diversas, e parte da vasta cultura do país deve-se aos índios nativos e aos africanos. Neste aspecto, a história mantém o apuro de diversas referências a expressões e tradições africanas trazidas pelos escravos. O título Cumbe, por exemplo, refere-se tanto ao quilombo de alguns países americanos como às línguas de Congo e Angola, cuja tradução da palavra significa sol, dia, luz, fogo, símbolos abstratos fundamentais para a composição da matéria da vida como metáfora simbólica. O glossário de termos, além da referência bibliográfica, demonstra o apuro de D´Salete em produzir uma obra com fidelidade histórica.

    Mesmo que o passado seja amargo, a obra lançada pela Editora Veneta é de uma triste beleza e merece ser lida tanto quanto registro histórico  como belo objeto de arte.

    Compre: Cumbe – Marcelo D´Salete

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