Tag: Editora Veneta

  • Resenha | Giovaníssima

    Resenha | Giovaníssima

    Quando Nelson Rodrigues ditou, na famosa citação do gênio brasileiro, que “toda nudez será castigada”, muitos levaram a sério sem saber o mal que estavam fazendo a eles mesmos. Mas na época dos nudes, sites picantes, e aplicativos de “encontros”, quem ainda se importa com esse castigo? Muitos e é por isso que Giovaníssima veio para acabar de vez com os que ainda resistem a libertação sexual, e assim arrastar a todos para esse microcosmo dos prazeres mundanos de se revirar os olhos, cuja punição pode ser muito mais gostosa do que Rodrigues já cogitou. Bem-vindos a dimensão de Giovanna Casotto, a ilustradora italiana que leva até o mais sisudo dos marmanjos a uivar com o simples desenho do pé feminino, da boca vermelha a salivar, e de outras partes que exclamam um desejo sobre-humano de serem deliciosamente degustadas.

    Se as lolitas de Milo Manara transbordam uma sensualidade acidental, as mulheres de Giovanna conhecem muito bem o seu poder de sedução. Assim, suas histórias expõem, sem pudor algum e absoluto refinamento gráfico (seus traços e a escolha precisa das cores são visualmente orgásticos), o quanto de malícia pode existir numa figura feminina dona de si e pronta para o êxtase. Não, elas não são apenas femme fatales: elas são tudo o que elas se permitem Ser, Obter, e Sentir. Arquétipos da libertação sexual e do rompimento da hipocrisia que rege a maioria das pessoas e seus relacionamentos. Pode-se afirmar que as mulheres de Giovanna aplicam o feminismo na entrega da carne, no gozar da vida, na aventura da libertinagem que, ao homem, quase nunca é condenada pela sociedade, mas que à mulher apedrejam há milênios.

    Em Giovaníssima, temos dez contos eróticos recheados de sarcasmo, ora flertando com uma assassina de aluguel, ora nos convidando a uma tarde de puro tesão na praia. É o jogo de se brincar com os regozijos que tantos afogam, mas que agora se tornam uma experiência ultra realista para ninguém botar defeito. Se ao leitor desavisado tudo isso é pornografia, talvez um delírio vulgar com ares de fantasia sexual traduzida em quadrinhos, a arte publicada no Brasil pela editora Veneta (para maiores de 18 anos) serve para explorar, na mais elegante das excitações visuais, a força irresistível e triunfante de uma sexualidade feminina sem amarras para irromper e se encarnar, sempre com a boca bem cheia e lábios bem encharcados, entre quatro paredes efervescentes. Por que se podar? Se as donas de casas têm medo de ser feliz, aqui elas temem o tédio.

  • Resenha | 20 Centavos: A Luta Contra o Aumento

    Resenha | 20 Centavos: A Luta Contra o Aumento

    20 Centavos: A Luta Contra o Aumento tem uma introdução feita por Marcelo Pomar, com uma explicação do  Movimento Passe Livre (MPL). O livro da Editora Veneta acaba por ser um relato contado pelos próprios manifestantes, que inclui entre seus autores também Elena Juddensnaider, Luciana Lima e Pablo Ortellado.

    O trabalho gráfico é simples, mas bastante bonito. O formato em diário facilita a leitura, por serem trechos de textos curtos. O livro é quase todo narrado pelo líder do MPL, explicando o começo de toda revolta, abordando entre outros assuntos a transformação gradual das manifestações, de questões de mobilidade urbana para pautas mais genéricas que alardeavam o combate a corrupção não só em São Paulo mas no país inteiro.

    Pomar fala como alguém que está inserido no movimento, de maneira direta e incisiva, e o formato escolhido para o livro é curioso, com capítulos curtos onde as linhas comuns tem uma narrativa e aquelas em negrito mostram falas reais, com citações à grande imprensa e a falas de autoridades. Esses trechos são importantes entre outros motivos para mostrar o quanto a imprensa tratava mal aqueles que protestavam, assim como as forças políticas que tentavam dialogar, como o prefeito Fernando Haddad. Durante os atos, uma das sedes do Partido dos Trabalhadores foi depredada, e ainda que houvesse da parte de integrantes do MPL um claro incômodo com o ataque a um partido de origem popular – usando até o termo fascista para caracterizar o ato – há também a demonstração de incômodo com boa parte das polícias petistas à frente da prefeitura paulistana.

    O livro gira em torno da questão da mobilidade urbana em 2013 e todas as ações que decorreram dessas manifestação, sempre de forma inteligente e embasada, os diferentes panoramas e forças políticas envolvidas naquele ano, em especial, se debruça de maneira crítica e incisiva ao falar da violência policial, e claro, da cobertura midiática. A publicação categoriza sem receios os agentes da comunicação. Chama Boris Casoy de tradicional defensor dos militares, e Arnaldo Jabor de jornalista reacionário.  No que toca a relação do MPL com os diferentes governos, o mergulho é profundo e acertadíssimo, e esse é o maior dos méritos de 20 Centavos, por  não só citar entes políticos que fizeram e fazem parte do cenário político da capital paulista, como também consegue ser um bom registro histórico de uma pauta que foi sequestrada por forças completamente antagonistas ao que o MPL sempre pregou.

  • Resenha | Squeak The Mouse

    Resenha | Squeak The Mouse

    Massimo Mattioli é um quadrinista italiano famoso por suas histórias humorísticas que reúnem elementos típicos dos desenhos animados americanos, contudo, com uma perversão maior. Conhecido por ser um dos fundadores das revistas Cannibale, que depois se tornou a Frigidaire, que deu origem a Squeak The Mouse, uma revista pra lá de anárquica e contestadora.

    Parte de uma geração de quadrinistas italianos que desafiavam convenções do gênero e da cultura de sua época, Mattioli faz referencias a filmes de terror clássicos, citados por meio de imagens ou nominalmente. Outro aspecto que chama a atenção é a sexualidade explícita, mostrando mulheres (reais) nuas, animais antropomorfizados em situações insalubres, ao lado de aparições de personagens de desenhos animados famosos, como Mickey, Pato Donald, Gato Felix, entre outros.

    Outro fator interessante se dá com a morte dos personagens quando são atacados. A volta dos mortos varia entre a ressurreição comum dos personagens, como em Picapau ou Tom e Jerry, e outras em que a carne dos animais é reposta como em um filme da franquia Hellraiser ou Re-Animator.

    A noção cronológica também foge do usual, como se o tempo fosse contado de um modo diferente, correndo dentro de sua própria lógica, emulando o curto período de vida dos animais de estimação. As mortes e esquartejamentos chocam tanto que não há como levar toda a trama a sério, pois a perversão moral coloca a revista num patamar de caráter contracultural que só encontra eco nos quadrinhos nas outras obras abordadas em suas revistas de origem, como Ranxerox de Tanino Liberatore ou na produção de Milo Manara e outros artistas, ao mesmo tempo, dentro da publicação não há qualquer necessidade em contextualizar o cenário de perversão ou de produzir uma crítica profunda sobre a sociedade. Existe crítica, mas ela recai sobre o consumo e o fetiche mercadológico que reside no entretenimento de massa, e em quanto a sociedade ocidental é fissurada em sexo e violência, e isso é mais que suficiente para dar estofo e inteligência à obra.

    A cronologia das histórias também serve de comentário metalinguístico, aludindo a quanto o colecionismo e apego a cronologia não faz sentido no consumo de histórias. O ritmo do roteiro é frenético, todo mundo que morre volta, mesmo entre os personagens secundários, e voltam com muita volúpia por sangue de uma forma tão violentamente extrema que o escracho causa estranhamento, e incômodo em alguns pontos.

    Squeak The Mouse foi publicado pela Editora Veneta e editado por Rogerio de Campos, o mesmo que responsável pela saudosa Revista Animal, que também publicou os quadrinhos de Mattioli entre 1987 e 1991. Campos tem por tradição trazer trabalhos que fogem da obviedade dos quadrinhos convencionais, desde seu início profissional, e no caso de Mattioli há uma fuga da lógica cultural burguesa, onde se debocha da vontade infinita dos norte-americanos em explorar um gênero ou estória até seus últimos frutos, sem pensar de maneira inteligente sobre as conseqüências dessas super-explorações.

    Compre: Squeak The Mouse.

  • Resenha | Câmera Indiscreta

    Resenha | Câmera Indiscreta

    Milo Manara é um autor polêmico, seus quadrinhos normalmente tratam de erotismo, sobretudo tomando o nu feminino ou como norte ou como algo tão natural que precisa sempre ser retratado em papel e nanquim. O compilado Câmera Indiscreta não é diferente, reunindo algumas pequenas historias que tem em comum uma brincadeira com questões fotográficas, além da obvia referencia ao nome do filme de Alfred Hitchcock, Janela Indiscreta, fazendo um comentário de metalinguagem aliando sua arte ao  fazer cinematográfico. No Brasil, o quadrinho foi trazido pela Editora Veneta, que vem trazendo algumas historias de autores italianos.

    No Prologo desta edição, Manara fala sobre o diretor italiano  Federico Fellini, que seria o primeiro personagem homenageado neste encadernado, e na dificuldade que o “grande mentiroso”  tinha com questões publicitárias.Incrivelmente, a maior parte das historietas lida com o volúvel e fútil ambiente e  cenário de bastidores da propaganda, quando não, fazem homenagens a artistas famosos.

    É engraçado o inicio fazer pouco uso do corpo da mulher como instrumento narrativo, em Publicidade e Fase Azul, mesmo 3X (que trata de libido e observação de fora, no caso, um alienígena), não há uma utilização tão larga ou alardeada da figura da mulher como um objeto. Esse certamente serve como argumento para despistar a pecha de autor tarado normalmente atribuída a Milo.

    Se nota – além claro das falas do prefácio – uma obsessão e admiração pelo também quadrinista Moebius, seja  no traço inicial dele, como na fluidez com que suas páginas correm, ainda que para Manara, não haja muito como imitar o artista francês. A compilação é formada por revistas da França e Itália, entre elas, a mesma Frigidaire onde Mattioli fez Squeak The Mouse. A sexualidade é mostrada de maneira hermética, com propósitos narrativos diversos, não é gratuita. A primeira vez que mostra sexo, brinca com questões espirituais e de tragedias.

    A historia que dá titulo a publicação é maior que as outras compiladas. A coincidência de assunto envolve o voyeurismo e o nu da mulher como alvo de critica, não pelo fato de se sentir natural sem roupas, mas a mercantilização e depravação provinda desse tipo de consumo. Aqui, abre-se a discussão sobre a pornografia, se ela se origina do desejo por ver gente nua ou se ter acesso a isso causa nas pessoas a necessidade desse tipo de fetiche em mercadoria.

    O foco em Mel (personagem protagonista da ultima historia) dá vazão a algumas manifestações bem estranhas de modos de fazer pornô, mas  mesmo que haja  muita insinuação do sexo, não há tanta exposição da relação em sim, não de forma explicita ou “hardcore”. Manara foge de pecha de só mostrar nudez gratuita, o fato de não ter vergonha de mostrar o  sexo e a lascívia não é sinônimo de perversão, e a função desses aspectos de nudez e sexo tem sentidos e intenções diferentes, compilados aqui até para agredir e desagradar a tara das pessoas, para incomodar falsos moralismos e nisso, há um acerto tremendo.

    Compre: Câmera Indiscreta.

  • Resenha | Tabloide

    Resenha | Tabloide

    Tabloide é uma novela gráfica que propõe perceber a realidade como fruto de um mundo tão absurdo, que chega a ser surreal. A mesma realidade dos jornais de todos os dias, sobre crimes e a alta do dólar. O mundano que jornalistas reviram para encontrar a próxima polêmica, o próximo escândalo, o novo crime nem tão perfeito assim que as pessoas comentam nas redes sociais, e no ônibus indo trabalhar. Quando a realidade é munição, é bom que ela seja a mais potente e incrível possível, uma vez que plantar fatos é antiético e pode dar muito mais trabalho do que ir atrás do assassino de uma mulher misteriosamente afogada.

    E trajando um vestido de noiva – alusão a Quentin Tarantino, talvez? Pode ser, já que muita violência e deliciosas ironias do destino (as vezes tenebrosas) não faltam nessa história de L.M. Melite, publicada em 2017 pela Editora Veneta, e com uma capa dura linda o bastante para dar inveja a outras publicações. Do crime cometido à moça numa São Paulo fiel a gigantesca metrópole de verdade, com muita gente estranha, assexuada, e muitos prédios antigos e sem vida onde se escondem mil histórias diferentes (e algumas podendo ser assustadoras), revela-se uma trama digna de filmes de espionagem com uma pista levando a outra, e até mesmo uma seita secreta debaixo da marginal do rio Tietê.

    E quem matou a noiva? Samantha e Horácio vão atrás da resposta, uma dupla de jornalistas de um jornal fuleiro e mofado, farejando as pistas da notícia tal uma criança atrás do doce que perdeu. Seus estímulos são primários, e sua coragem, digna de aplausos, em especial por se envolverem com gente perigosa e esquisita a ponto de duvidarmos se os possíveis envolvidos com o crime estão mortos, ou realmente vivos. Uma dupla que nada tem a ver um com o outro, pois Samantha é brutal em seu comportamento, e Horácio muito mais cometido, e mesmo assim os dois descem até as raízes de uma bizarrice urbana chocante até mesmo para quem lida com ela, dia após dia, o que rende ótimos momentos como o encontro inesperado deles com um suspeito considerado morto, mas que virou um zumbi, a ponto de atacá-los sem dó nem piedade. Repórter sofre.

    Sofre porque quem sabe do que as cidades, as relações entre as pessoas, e do que o mundo dos homens é feito, sofre – e não é pouco. Tabloide parece exclamar isso tudo, o tempo todo, enquanto evidencia por meio de boas metáforas na sua trama conspiratória de que vivemos em cima de coisas que nem sequer suspeitamos existir – e quem as conhece, dificilmente não tem a sua vida mudada. Se as coisas de fato acontecem debaixo do tapete, Samantha e Horácio são o Sherlock Holmes e o Dr. Watson que São Paulo merecia ter, indo de esquina em esquina, com seu furgão estilo Scooby-Doo, para interrogar e montar os quebra-cabeças que eles chamam de obrigação e sacrifício, e nós, de notícias a serem esquecidas. Se os agentes da informação vão sair vivos por trabalharem na linha entre a verdade, a mentira e a omissão? Eles nunca têm certeza disso, mas vale a pena segui-los nesta brincadeira para descobrir o que existe no fim da toca do coelho.

    Compre: Tabloide.

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  • Resenha | Diastrofismo Humano

    Resenha | Diastrofismo Humano

    ‘Diastrofismo: Designação geral dada aos grandes movimentos formadores da superfície terrestre e dos continentes; tectonismo.’ – Dicionário Michaelis, 2019.

    A modernidade sempre foi diastrofista, e há provas históricas disso. Quando mulheres começaram a usar calças nos anos 1910, inicialmente no Rio de Janeiro, críticos a essa nova moda diziam que a roupa se ajustava muito ao corpo marcando a forma da mulher, o que por sua vez era um atentado ao decoro que uma dama deveria manter, na rua. Em 2013, quando casais gays de homens e mulheres conquistaram o direito de uma união estável nos cartórios em todo o Brasil, mais agito e desconforto então por grande parte da população brasileira. Avanços tectônicos nas normalidades vigentes causam rebuliço em qualquer grupo social, sendo a desconfiança e até o medo forças tão naturais, quanto inevitáveis, na maioria das vezes. Ser você, já que todo o resto já se corrompeu, custa.

    Mas se esse agito que nasce com o passar das luas é promovido e alimentado geralmente nos grandes centros urbanos, onde não há tempo para se ver a lua, e espera-se que haja uma grande diversidade de identidades, de interesses individuais e coletivos, num mix de propósitos sociais, como seria esse fenômeno na pacata e distante Palomar, de Gilbert Hernandez? Assim como na excepcional coletânea de parábolas Sopa de Lágrimas, Palomar continua a ser retratada como um povoado que vive em sua própria dimensão de valores, lendas, ritmo e costumes impossíveis de resistir dentro das metrópoles agitadas – e, como sabiamente prova Diastrofismo Humano, com todo humor e sarcasmo destacáveis da HQ, ela tampouco resiste a influência do tempo; aos giros da Terra.

    Na trama, os personagens adoráveis criados pela mente revisionista de seu autor enfrentam desafios nada menos que metafóricos para a interferência externa: macacos irritantes, um assassino que parece ter brotado entre eles, a necessidade de se abandonar a terra natal, e certos costumes que nas cidades já eram lugar-comum na década de 1980, mas que em Palomar são ‘sinais dos tempos’, como anunciam os mais aflitos com algumas mudanças ainda sutis, mas que começam a tomar corpo entre os cidadãos de todas as idades. Nos anos 80, Hernandez se inspirou na cena punk de Los Angeles, Estados Unidos, na qual fazia parte, para a criação de suas pequenas zines Love & Rockets, retratando nelas uma América Latina que reflete a realidade, mas à margem de um mundo que vive, e pulsa, além das fronteiras de um povo humilde, quase que isolado.

    Essa ‘pureza’, digamos assim, é testada pelo novo, pela visão de duas mulheres andando de mãos dadas, ou a ousadia (ou seria uma espécie de libertação?) de uma novíssima geração sem os pudores já enraizados das antigas – ainda, pelo menos. Na graphic novel premiada e publicada, no Brasil, pela editora Veneta, num zeloso trabalho gráfico nesta edição nacional, nota-se claramente o uso de um realismo fantástico e sensível, seja por conta das emocionantes histórias de Palomar, quanto pelos traços ultra expressivos em preto e branco de Hernandez, a fim de impulsionar um espírito latino quente e apaixonante que rasga e atravessa os avanços, resistente como só, para se manter vivo e intacto, ainda que receptivo e até mesmo jocoso as alterações que o passar das décadas nos deixam, de legado.

    O embate entre passado e futuro é sentido aqui, como se o presente fosse o resultado do embate entre ambos, e esse choque, um evento que merecesse ser vivido pela gente comum e refletido por nós, leitores da realidade que Diastrofismo Humano discute, poetiza e reproduz de forma ímpar, em páginas de puro ouro gráfico – mais gostosas e realistas que muita novela, por ai. Ainda que se tenha, aqui, o reaproveitamento de temáticas sexuais, sociais e políticas mais bem trabalhadas por uma visão filosófica, e fortemente fabulesca antes em Sopa de Lágrimas, a obra que melhor nos apresentou esse universo caliente de mulheres e homens encantadores e que chegou até a ser comparada a Cem Anos de Solidão, a magia de Palomar permanece intacta, sentida e personificada em seus cidadãos, suas lutas e vícios e fugas, afinal, é tudo uma coisa só.

    É tudo aquele lugar, conhecido por todos nós, com diferentes nomes e endereços, que, quando alguém simbólico e intrínseco parte dali, ele fica mais triste, menos especial, e depende de suas crianças correndo por ai e de suas memórias latentes para continuar (ou voltar) a ser aquele bom lugar, de sempre, com sua velha terra servindo de base para que novas faces possam escrever novos murais. Palomar é a América do Sul já desbravada numa casca de noz. Absolutamente irresistível.

    Compre: Diastrofismo Humano.

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  • Resenha | Sopa de Lágrimas

    Resenha | Sopa de Lágrimas

    Tudo o que não é icônico, não vende, e esse é um gravíssimo problema da nossa cultura pop, desde os primórdios do século XX. Sem mais delongas, talvez seja por isso que Watchmen e Maus, HQ’s premiadas ao redor do mundo, sejam muito mais conhecidas que as igualmente laureadas Persépolis, e Sopa de Lágrimas, justamente pela falta, nessas duas obras-primas, da tão requisitada glorificação iconográfica que a grande maioria dos leitores acha necessário ter para se interessar em ler, jogar, ouvir ou assistir alguma coisa. Isso explica o motivo da massa preferir qualquer filme de super-herói que uma comédia europeia, ou prestar mais atenção numa série com guerreiros e dragões que noutra com pessoas normais, e contemporâneas.

    O icônico (quase) sempre vence, é mais chamativo – o quase fica por conta do fator publicitário que, quando bem feito, vende água suja no límpido oásis de um deserto. E lidemos com isso, mas não com o fato de Sopa de Lágrimas ainda não ser reconhecida – em especial por nós, conterrâneos do povo e da essência latino-americana que a HQ celebra. Diz-se “essência” para não apelar para o caráter mitológico que a publicação da Editora Veneta, de 2016, nos apresenta ao ser sediada no pacato município de Palomar. Espécie de cosmos que reúne os hábitos e figuras pertinentes do imaginário latino, pessoas adoravelmente comuns que, em vinte pequenas histórias, passam a ser nossos amigos ao longo de crônicas sobre as delícias e as dores de um povo sofrido e que goza da vida, apesar dos pesares.

    Tal caráter mitológico, então, é representado entre suas relações, seus embates, suas brigas e felicidades, seus escapismos, suas concorrências e as lendas locais de uma Palomar cheia de vida, criminalidade, grandes paixões, mulheres poderosas e garotos em eterno processo de amadurecimento emocional, e intelectual. Nisso, como em quase toda obra que se propõe nos inserir pra valer em sua realidade, temos um guia bom o bastante para isso: Chelo, a parteira (desenhada com traços masculinos) que também distribui banhos aos homens da cidade, e que conhece todo mundo com ou sem roupa, e tantos outros desde que nasceram pelas suas mãos fortes.

    Para nós, Chelo, a mulher mais destemida das redondezas, é porta-voz de tudo que precisamos saber sobre Palomar, trazendo consigo a história de uma gente quase que cativante demais para ser verdade – criaturas imperfeitas e confinadas em fábulas tangíveis. Compartilhamos as esquinas, as casas e os dramas de um povoado no princípio pela sua perspectiva, até que, ao longo de 250 páginas de puro deleite, vamos descobrindo cada vez mais dos corações, uns mais puros, outros mais maliciosos, que fazem o mítico local, um laboratório de sensações, ser tão divertido quanto significativo ao caldo primordial sobre o que faz a América Latina ter uma identidade própria, alimentada e ostentada, antes de tudo, pelos seus habitantes e seus adoráveis conflitos sob o bel prazer de uma trama cujo protagonismo coletivo reina, do começo ao fim.

    Acaba que nós, os leitores, somos o olhar estrangeiro (sobre nossa própria cultura) que valida a existência de Palomar, caricaturalmente verdadeira, enquanto que a nós é dada a chance de examinar os arredores e seus pormenores, tal um turista a filmar novos horizontes, experimentando novos temperos e diálogos. Eis então o principal triunfo desse clássico de Gilbert Hernandez: nos proporcionar, com totais naturalidade e irreverência, uma autorreflexão crítica e um deslumbramento apaixonante sobre nós mesmos. Sobre aquilo que nos é intrínseco, e já era para as outras gerações dos nossos queridos conterrâneos. Assim, fica inevitável estabelecer aqui comparações imediatas com o diamante mais famoso do realismo fantástico latino-americano: o mastodonte de Gabriel Garcia Márquez, também chamado de Cem Anos de Solidão.

    Se no extraordinário livro de Márquez, obrigatório para se dizer o mínimo, o colonizado povoado de Macondo é palco para o desenvolvimento de incríveis personagens que formam uma ordem de sentidos rica, harmônica, e ao mesmo tempo fragmentada, Palomar não fica atrás ao ser um ambiente de grande intensidade, formando assim uma consciência coletiva igualmente própria e que ronda Palomar, assim como rondava Macondo, onde pessoas reais resolvem seus dramas reais através da força encantadora de um regionalismo frenético e irresistível, a qualquer um. E não chega a ser incrível quando uma obra literária consegue ilustrar a nossa imaginação pela dinâmica de seus desenhos, e ainda, nos instiga a imaginar o que se passa entre um quadrinho e outro; entre páginas cujo desdobramentos narrativos imploram por uma releitura?

    Incrível, sim, e absolutamente raro. As personagens e tudo que faz parte de Sopa de Lágrimas são de uma vivacidade impressionante, uma vez que as conhecemos antes mesmo de começarmos a ler sobre elas. Seus balões de diálogo são sonoros, pois reconhecemos suas vozes, o realismo das suas ações e motivações que saltam das páginas e parecem compartilhar do nosso oxigênio. Não há preço que pague o valor dessa imersão, muito menos o talento de Hernandez em nos transportar para o sensorial de cenários tão típicos da nossa quente e efervescente América Latina, embora reconhecíveis também ao mundo exterior em que outros climas e costumes dão o tom. Veredas nas quais esse DNA tropical consegue chegar, sendo naturalmente icônico e simbólico, enfim, através de obras cultuadas e essenciais, como essa.

    Compre: Sopa de Lágrimas.

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  • Resenha | Gabo: Memórias de uma Vida Mágica

    Resenha | Gabo: Memórias de uma Vida Mágica

    Se a obra de Gabriel García Márquez foi marcada pela magia, é porque era um reflexo da sua própria vida. E essa trajetória é narrada em Gabo: Memórias de uma Vida Mágica, quadrinho biográfico que é roteirizado por Óscar Pantoja, com os desenhos de Miguel Bustos, Tatiana Córdoba, Julián Naranjo e Felipe Camargo, publicado pela editora Veneta no Brasil.

    Realizado por artistas colombianos, o quadrinho não apenas retrata a história da vida do autor, mas pega emprestado o realismo mágico para desenvolver essa narrativa. Famoso por misturar o cotidiano e o extraordinário, o estilo ficou famoso por escritores latinos na década de 60 e 70. Os impactos disso na obra são diversos, indo da falta de uma linha cronológica fixa, mas sim organizada a partir de condições sentimentais e psicológicas do autor nos períodos narrados, até na forma com que alguns elementos aparecem em alguns quadros, como as borboletas que seguem o autor durante a história.

    A escolha de dividir a obra em quatro partes não apenas torna mais fácil lidar com o desenho de quatro artistas diferentes, mas também serve como uma espécie de divisão de momentos na vida do autor colombiano. Isso acontece principalmente pela escolha de cores para retratar cada um desses períodos: o laranja traz os momentos de maior entusiasmo e criatividade, o azul os de maior dificuldade e solidão, o vermelho mostra a sua relação com a família e com o regime cubano e o verde a esperança de alcançar os seus objetivos.

    Por ter apenas um roteirista, o ritmo do quadrinho não sofre com a mudança dos artistas. Além disso, a forma com que a sua história é contada te faz querer continuar passando cada página e saber quais os rumos a vida de Gabo tomaram até que ele finalmente conseguisse chegar no que ele consideraria a sua grande obra: Cem anos de solidão.

    A edição brasileira não poupa em qualidade gráfica. Apesar da capa mole, o papel usado faz com que as cores fiquem bem delimitadas, mas não interfiram do outro lado da folha, evitando “fantasmas” durante a leitura. Pela utilização de cores intensas, esse é um detalhe que acaba tendo sua importância.

    O quadrinho é uma ótima recomendação tanto para quem já conhece do autor quanto para quem nunca teve contato com ele. Como uma pessoa que estava no meio do caminho, sabendo do papel de Garcia Márquez para a literatura, mas que só leu um livro do autor, conhecer melhor a sua trajetória só me deixou com vontade de mergulhar um pouco mais nas suas obras. Até porque já deu pra entender que o “fantástico” no nome do estilo não descreve só o surreal, mas também a qualidade do seu trabalho.

    Compre: Gabo.

    Texto de autoria de Caio Amorim.

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  • Resenha | O Livro da Lei: Liber Al Vel Legis – Aleister Crowley

    Resenha | O Livro da Lei: Liber Al Vel Legis – Aleister Crowley

    Em 1º de dezembro de 1947, Aleister Crowley morreu de bronquite crônica agravada por pleurisia e degeneração do miocárdio. Logo após seu falecimento, longas batalhas foram travadas sobre os direitos de publicação das obras do Profeta de Thelema. Porém, após 70 anos transcorridos de sua morte, suas obras finalmente caíram em domínio público.

    A edição de O Livro da Lei que tive a oportunidade de ler é a publicada pelo selo Chave, da editora Veneta, possui 208 páginas traduzidas por Marina Della ValleFernando Pessoa (sim, o poeta). Esta edição trata-se de um marco, visto que é a primeira a ser publicada legalmente desde que o período de domínio público das obras de Crowley se iniciou. Começo destacando novamente a beleza estética do livro, com grafismos em roxo e laranja na linda capa, distanciando-se das tradicionais capas vermelhas que as publicações tiveram ao longo dos tempos.

    No prefácio escrito por M.B., somos apresentados à importância que Crowley possui, tanto no âmbito do ocultismo quanto na cultura, seja ela pop ou não. Já na introdução assinada por Della Valle, temos um resumo da biografia de Crowley. A tradutora trata também sobre as peculiaridades da forma de como o livro foi escrito pelo mago e também dos desafios de sua tradução de uma forma bem didática e interessante. Ressalta-se o fato de que a edição respeita a exigência de que as traduções devem sempre vir acompanhadas dos escritos na língua original, um trabalho muito caprichado feito pela editora ao colocar os ditames originais numa página com a tradução em português na página seguinte.

    A editora esmerou-se para entregar um trabalho bem completo, pois o livro vem ainda com O Comento, o manuscrito original confeccionado pela Besta e de comentários do próprio Crowley, onde ele fala sobre o processo de transcrição do livro, suas condições pessoais e também convicções a época do fato, além de algumas análises sobre Liber Al Vel Legis. Ao final, somos apresentados por David Soares a um capítulo que relata o encontro do autor com o poeta português Fernando Pessoa, além de algumas situações curiosas sobre esse encontro e outras arquitetadas pelo mago. Ao final do livro, há ainda o Hino a Pã, com a forma original em que foi escrito e a tradução de Pessoa.

    Esta publicação da Editora Veneta foge do caráter estritamente religioso, ainda que contenha os ditames da doutrina Thelema. Tanto o prefácio quanto à introdução aguçam a curiosidade do leitor em se enveredar pelos ditames do Liber Al Vel Legis. O que vem depois, dos comentários do próprio Crowley até o texto de David Soares e a tradução de Pessoa, só enriquecem a experiência da leitura, tornando a publicação obrigatória para quem deseja compreender ou ao menos saciar a curiosidade a respeito do autor, sendo um bom complemento ao quadrinho biográfico Aleister Crowley, também publicado pela Veneta.

    Compre: O Livro da Lei – Aleister Crowley.

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  • Resenha | Aleister Crowley

    Resenha | Aleister Crowley

    Em algum momento da sua vida você já ouviu esse nome: Aleister Crowley. Seja na música de Ozzy Osbourne; na capa de Sgt. Pepper´s Lonely Hearts Club Band, dos Beatles; nos quadrinhos de Neil Gaiman ou Grant Morrison; ou ainda no Brasil, no trabalho do escritor Paulo Coelho e do músico Raul Seixas, Crowley é frequentemente lembrado pela cultura pop. Ocultista, poeta, escritor, entusiasta do amor livre e das drogas, o ocultista ganha aqui uma biografia em quadrinhos, talvez a única mídia capaz de retratar com liberdade os eventos de sua vida.

    Em uma edição belíssima da Editora Veneta, somos apresentados aos primórdios do “homem mais perverso do mundo”, desde sua penosa infância e adolescência em escolas da aristocracia inglesa até o momento em que resolve se embrenhar pelo terreno da magia e do ocultismo. A história narra ainda como Crowley combatia os preceitos burgueses e sua vida de escândalos, que o fizeram com que se tornasse alvo predileto dos tablóides ingleses na época.

    A narrativa gráfica do quadrinho é bastante intrigante. Logo em seu início, somos apresentados à frase “Essa é uma ficção… baseada em fatos reais”. De fato, o roteiro de Martin Hayes tem alguns momentos delirantes, mas que sempre procura manter o pé no chão. De modo que, soa bastante interessante a forma como ele inseriu comentários reais sobre Crowley entrecortando cada capítulo com algumas frases famosas sobre o mago. De depoimentos do diretor da escola onde estudou a falas do próprio mago e ocultista inglês, além de trechos de artigos escritos sobre ele, a obra só faz aumentar o mito em torno do fundador da doutrina Thelema. A arte de RH Stewart é uma grande aliada da narrativa, pois seu traço por muitas vezes delirante ajuda na imersão do leitor na rica história.

    Além de esteticamente linda, a edição é bastante completa, contando com um belo prefácio de Richard Kaczynski, além de anotações do próprio roteirista Martin Hayes, tornando a leitura ainda mais rica.

    Compre: Aleister Crowley.

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  • Resenha |  A Vida Secreta de Londres

    Resenha | A Vida Secreta de Londres

    Em paralelo ao reconhecimento mundial, destacado pela tradição histórica, bem como em icônicas imagens como o relógio Big Ben e diversos outros monumentos, a cidade de Londres também possui uma faceta comum em que o simples e o prosaico se apresentam diariamente. Além do sucesso dos espaços turísticos e das aparições da Rainha, a capital da Inglaterra também possui suas entranhas, os vícios e a sujeira que complementam o esplendor. É essa observação natural sobre a cidade o tema central de A Vida Secreta de Londres lançado pela Editora Veneta.

    Organizado por Oscar Zarate, quadrinista argentino que reside na cidade há mais de 40 anos, a obra reúne grandes artistas contemporâneos explorando as particularidades de Londres em uma espécie de guia alternativo da cidade. Ao todo, 24 artistas – entre eles Alan Moore, Neil Gaiman, Dave McKean, Woodrow Phoenix e Iain Sinclair – produzem narrativas sobre bairros londrinos em uma compilação que reúne diversas formas artísticas como quadrinhos, poema e prosa.

    Mesmo compartilhando um tema em comum, é perceptível a diversidade narrativa. Além da composição exposta em diferentes formas artísticas, as abordagens narrativas se alinham com uma grande cidade, formada por seres distintos, cada um percebendo e observando o local que o cerca de maneira singular. Como a análise parte de moradores da cidade, a visão é mais crua e caótica do que se vê pelos batidos cartões-postais.

    Tramas policiais se destacam abordando uma cidade sem filtro em que o desenvolvimento aquebranta parte da alma de seus moradores. A beleza da cidade é vista a partir de seus estilhaços, da dor e do sangue de suas ruas. Em certas narrativas, a sanidade é definida pela própria arte. Em outras, a crueldade parece uma tônica constante do caos. Dentre os nomes mais graúdos da coletânea, Gaiman apresenta uma história que introduziria dois personagens do livro Coisas Frágeis. Moore demonstra talento em frontes diversas colaborando em HQ, prosa e poesia. Mesmo que tais nomes consagrem a edição e chamem o público, é interessante descobrir novos autores como Alexei Sayle, Chris Webster, Carl Flint e Carol Swain, autores das melhores histórias de acordo com a preferência desse crítico.

    A edição da Veneta segue o tamanho padrão de graphic-novels lançadas no mercado, ou seja, em um formato um pouco maior que os encadernados em formato americano. O escritor Rogério de Campos assina um excelente prefácio sobre a urbanização como forma de expressão artística, bem como a edição apresenta notas explicativas sobre algumas histórias, apontando locais e referências.

    A Vida Secreta de Londres desenvolve um mapeamento alternativo de Londres, sem nenhum filtro que esconda o sangue de suas entranhas. Talvez melhor do que a leitura seja se aventurar pelos locais descritos nas narrativas, reconhecendo cada espaço disforme que, mesmo oculto das fotos famosas, compõe uma das cidades mais famosas do mundo.

    Compre: A Vida Secreta de Londres.

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  • Resenha | Wasteland Scumfucks: Terra do Demônio

    Resenha | Wasteland Scumfucks: Terra do Demônio

    Em paralelo aos lançamentos de obras internacionais como A Arte de Voar de Antonio Altarriba e Do Inferno de Alan Moore, exemplos dentre tantos outros bons lançamentos, a Editora Veneta também investe em autores nacionais ampliando o mercado editorial de quadrinhos no país. Autores como Marcelo D’ Salete, Juscelino NecoMarcello Quintanilha, L. M. Melite, entre outros, estão presentes no catálogo da editora, demonstrando que o Brasil também produz obras significativas.

    Lançando mais uma obra nacional, Wasteland Scumfucks – Terra do Demônio é o segundo trabalho de Yuri Morais. A obra segue um formato de uma aventura seriada, ainda que pela composição dos traços e a quantidade de quadros em cada página se assemelhe as tradicionais páginas de tiras dominicais, um dia em que algumas tiras de destaque ganhavam uma história completa em mais quadros.

    Na trama, GG é um jovem ex-escravo que escapou de um terrível campo de trabalho forçado. Sobrevivendo em um deserto conhecido como Terra do Demônio, o personagem tenta sobreviver ao lado de Z, um robô com problemas no circuito e uma elfa chamada Sérgio. A trama atravessa algumas referências pop, procurando subverter alguns personagens típicos de aventuras tradicionais.

    O humor é a tônica da história. Até mesmo na caracterização básica das personagens é possível observar as referências a um caldo de estilos diferentes. A obra, porém, parece trafegar de um ponto a outro da ação apenas apoiada na construção de absurdos, explicitados tanto pelos personagens quanto em situações apresentadas. Em cena, os personagens são semelhantes entre si, compartilham o mesmo tipo de humor corrosivo e cáustico, perdendo um pouco de particularidades que poderiam ser melhores exploradas.

    A trama é formalmente dividida em duas histórias mas fazem parte de uma mesma narrativa sequencial. Focado demais em situações de confronto e absurdo, o enredo permanece em segundo plano. A ideia de explorar um novo mundo colonizado e personagens marginais parece mais um pano de fundo para produzir os diálogos ácidos do que uma base que complementa-os. Bem como o surgimento de artefatos desse universo, como uma espada mágica na segunda história, entram em cena quase sem explicação. Mesmo que seja perceptível ao leitor que se trata de uma história seriada, com direito a gancho no final, evitar explicações iniciais de como funciona o mundo em que as personagens vivem retira parte da compreensão da obra. Como os personagens, os leitores são levados de ação a ação sem saber, ao certo, se há uma razão para tudo.

    Ainda que uma análise crítica se paute a partir das referências de leitura, sendo assim possível de gerar contraponto entre críticos diversos, há outro aspecto que deve ser analisado além da composição da HQ. A diagramação das letras da edição poderia ser modificada em edições futuras. A escolha de uma fonte fina e de pouco corpo causam, em algumas páginas, dificuldade para ler. Na contracapa, por exemplo, em que a fonte está em um fundo vermelho, é necessário esforço para ler as informações. Um detalhe técnico que o leitor percebe quando há incomodo. Nesse caso, em certos momentos, a imersão narrativa se perdia para que se tentasse compreender as letras miúdas.

    Wasteland Scumfucks – Terra do Demônio tenta manter uma tônica humorada, ainda que calcada em excesso em absurdos sem equilíbrio. Sem definir uma narrativa coerente aliada a personagens com personalidades semelhantes, a história não emplaca neste início.

    Compre: Wasteland Scumfucks – Terra do Demônio.

  • Resenha | Couro de Gato

    Resenha | Couro de Gato

    Lançado pela Veneta, Couro de Gato – Uma História de Samba, da dupla Carlos Patati e João Sánchez, remonta a origem do samba, a partir das famosas rodas realizadas em morros e no centro velho do Rio de Janeiro. Três histórias atravessam o tema, apresentando momentos distintos da evolução do samba como movimento cultural. Como personagem principal, um bamba fictício, Camunguelo, nome inspirado por um famoso flautista da época. É sob o olhar deste personagem que o leitor acompanha a evolução do samba.

    A primeira história que nomeia a obra, Couro de Gato, concentra-se no início do século XX. O samba era uma manifestação de pequenos grupos, reunidos em torno de matriarcas que abriam sua casa para reuniões e manifestações culturais. Distante de qualquer conceito de autoria, o samba representava uma manifestação oriunda do povo africano trazido a força ao país. Nessa época, qualquer manifestação era intitulada de batuque. Somente posteriormente que cada expressão cultural foi ganhando contornos próprios, até chegarmos no samba como um estilo musical.

    A reunião dos grupos negros do Rio de Janeiro marcavam um primeiro momento após o fim da escravidão em que muitos vieram até a capital do estado a procura de emprego, e outros que lutaram em campanhas do país, aguardando as prometidas terras que nunca vieram. De maneira sutil, a obra aponta que parte do desamparo foi fundamental para formar um grupo que começava a ficar a margem da própria sociedade.

    A segunda história, O Último Samba do Castelo, é a narrativa mais robusta. Centraliza a figura de Camunguelo por sua experiência, contando momentos importantes do Morro do Castelo que, no dia seguinte, seria destruído como uma medida de recuperação do centro da cidade. Outro momento histórico que demonstra a falta de cuidado do governo com parte da sua população.

    A história também é espaço para rememorar o início do samba e as diferenças do movimento após vinte anos. A cultura do samba havia se estabelecido e se ampliado em outros locais. Ao mesmo tempo, a trama também desenvolve um pouco mais a trajetória de Camunguelo que narra o passado a uma cabrocha que deseja conquistar. Evidenciando a postura do sambista da época como um conquistador charmoso, um malandro encantador que utilizava a mística poética também na conquista.

    A terceira parte se situa na década de 30, quando a música desce do morro, conhecendo o asfalto, bem como compositores da cidade sobem o morro para fazer samba. Uma nova era em que a autoria havia sido estabelecida e o marco de sucesso era a capacidade de vender um samba para tocá-lo na rádio. Camunguelo divide a cena com icônicos sambista da época: Cartola e Noel Rosa. Todos compartilhando um estilo de vida misto em que a malandragem e o cotidiano se transformavam em matéria de samba. Uma crônica cotidiana narrando amores, desavenças e a poesia que fundamentada os versos cadenciados.

    A escolha de João Sanchez para compor os traços busca uma interessante originalidade. A primeira parte da obra foi composta em xilogravura, a composição de traços realizados a partir da maneira, famoso nos desenhos da literatura de cordel. As duas partes seguintes foi inspirada pelo mesmo processo, um conceito que Patati chamou de xiloderivado, mantendo as características da xilogravura a procura de um formato original, mantendo a tradição do estilo mas agregando-a a uma forma mais moderna de registrar os desenhos. Tal processo amplia a sensação de imersão na obra, retratando historicamente o samba e visualmente um estilo artístico também importante na nossa cultura.

    Promovendo um resgate do nosso samba, Couro de Gato é uma HQ que aguça o leitor para conhecer parte de nossa história musical e partir para outras leituras informativas. A obra conta com uma bibliografia no final para direcionar os leitores a procura de maiores informações sobre uma dos estilos musicais mais ricos da nossa cultura.

    Compre: Couro de Gato – Uma História do Samba

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  • Resenha | Bulldogma

    Resenha | Bulldogma

    Muitas pessoas possuem um certo problema em relação à expectativa de obras e produções. De forma geral, ao assistir um bom trailer você imagina que será um bom filme, o que curiosamente, na maioria das vezes o que ocorre é o contrário ou quando algo é muito recomendado e você já espera muito da obra. Bulldogma, de Wagner Willian, consta em várias listas de melhores de 2016, logo ao lê-lo já se espera muito, e o mais gratificante é que os quadrinhos de Willian te entregam tudo aquilo que prometeu.

    A sinopse bastante simples, acompanha um momento atribulado, em vários sentidos, da vida da publicitária Deisy Mantovani e de seu cachorro. Momento esse que coincide com a compra de um apartamento que foi vendido, pois o antigo morador acreditava que alienígenas faziam abduções por lá. Há uma certa pitada de ficção-científica, de maneira quase subliminar.

    Contudo, a simplicidade acaba na sinopse, pois com o que a gente se depara em Bulldogma pode ser taxado de várias formas, menos como simples e deve ser visto em várias camadas de interpretação.

    A primeira delas é a da própria vida de Deisy, com a construção de uma realidade crua e bastante factível, onde se pode ver os problemas ligados ao mundo do trabalho e, principalmente, as sacanagens decorrentes deste. Apesar de diferentes profissões é muito fácil se identificar com pessoas sacanas que já te passaram para trás em algum momento de sua carreira. Além disso, a relação com amigos; festas e excessos; como sexualidade de uma pessoa que sente o peso do mundo, de suas escolhas e de como as coisas já não são mais tão simples quanto poderiam ser.

    Também deve se destacar uma séries de sonhos/pesadelos, como que visões que fazem parte da vida da protagonista. Difícil definir ao certo, mas soando como um tipo de surrealismo que nós acompanhamos em determinadas páginas. Inclusive, apesar de ser uma HQ bem grande é importante a realização de sua leitura mais de uma vez, já que muitos destes momentos requerem uma atenção extra e certos detalhes podem não ser percebidos em uma primeira leitura. Vale até dizer que em determinados momentos não se trata de uma leitura fácil. Pense na leitura de Bulldogma, como a leitura de um livro, um pouco de concentração é importante. Para quem já leu Sandman, essas passagens remetem bastante a sua irmã mais jovem, Delírio.

    E não poderia deixar de citar o cãozinho de estimação da protagonista, que está presente em vários momentos da estória e funciona ora como ponte de diálogo para com os leitores, ora como sensação de paranoia, como que se o animal estivesse sempre observando a protagonista nos momentos em que ela está em casa. A relação dela como o animalzinho é também bastante interessante e crível.

    Outro ponto fundamental, se não aquele que mais me chamou a atenção foi a estrutura narrativa estabelecida pelo autor. Tanto as soluções gráficas quanto as das partes escritas são bem elaboradas, com paginas interessantes e bastante originais. A forma como o uso de novas tecnologias é feito, diálogos que fogem dos balões tradicionais, e principalmente, como o autor trabalha alguns monólogos da protagonista, soando como verdadeiros diálogos com o leitor. Tudo impressiona pelo cuidado e originalidade.

    Enfim, não adianta ficar somente escrevendo sobre o gibi, comprem, leiam e tirem suas próprias conclusões!

    PS: o autor criou uma página na internet https://bulldogma.wordpress.com/ com material extra e complemento para discussões do quadrinho. Trata-se de uma obra que foge das páginas e ganha complementos em outra mídia.

    Compre: Bulldogma

    Texto de Autoria de Douglas Biagio Puglia.

  • Resenha | Coração das Trevas

    Resenha | Coração das Trevas

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    O ar denso da neblina esconde o terror do desconhecido, onde vivem criaturas sem nome e esperança, à beira da agonia. Nas margens do rio, a violência de quem sofreu a alma arrancada sem dar licença. No coração das trevas não habitam seres humanos, mas humanos que sobrevivem.

    Publicado pela editora Veneta, baseado no romance de Joseph Conrad, com roteiro de David Zane Mairowitz e ilustrações de Catherine AnyangoCoração das Trevas apresenta em uma graphic novel o diário de bordo de Charlie Marlow, capitão de um barco a vapor que conta a própria história na trama. Anos antes, viajou com destino à capital da República do Congo encarregado pelo transporte de marfim, na costa do rio Congo, cenário da aventura, relatando as impressões pessoais sobre o itinerário num misto de fascinação pelo horrendo e o medo da morte. Além do objetivo mercantil, o capitão deve encontrar o chefe de posto Sr. Kurtz, um dos funcionários mais brilhantes e lucráveis da companhia, e para isso precisa adentrar o coração da selva africana. Assim, narra a peregrinação no longo e estranho caminho.

    Como uma narrativa moldura, em que uma história encontra-se dentro da própria história, o roteiro de Mairowitz utiliza-se das descrições do local para conduzir o leitor numa aventura amedrontadora em que se divide o mesmo assombro de Marlow. Mantendo a base argumentativa da trama, o estilo do texto de Conrad, porém, é restringido a balões que retratam o percurso relatado no texto original mas sem a mesma profundidade da novela. No entanto, como adaptação em quadrinhos de um livro canônico, de linguagem rebuscada e com uso demasiado de adjetivos e descrições, além da introspecção diante de uma situação limite, o roteirista consegue transmitir um pouco do tormento do protagonista durante a viagem.

    Os desenhos fantasmagóricos dão a nuance da obra, cujo uso de sombras e tons escuros esfumados mescla dia e noite, num estilo cru, como se o relato inspirasse uma falta de acabamento nas formas e detalhes. Inspirando originalidade, o personagem-narrador é fisicamente ilustrado por Anyango como a representação do próprio Conrad, que também viajou, anos antes, ao Congo na função de capitão de um navio. A ideia de simbolizar a imagem do próprio escritor nas ilustrações demonstra o poder metanarrativo da obra, enfatizando o caráter factual da trama e fazendo uma ponte de diálogo entre autor e sua própria composição. Marlow/Conrad dividem a mesma história no coração das trevas.

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    Ao estilo de uma road trip, em que o percurso é mais importante que o destino final, o capitão avança na jornada seguido por escravos presos em correntes com armas apontadas para eles. Marlow diferencia o colonizador do colonizado, dizendo que, apesar dos estrangeiros enfrentarem toda a sorte de contrariedades no país, como o calor, a sede e a sujeira, ainda assim aqueles homens eram considerados mais dignos que o povo local. Tal é a desprezo pelos trabalhadores braçais que, ao contrário dos brancos, nenhum deles possui identidade, fala ou mesmo um retrato nas ilustrações que os remetesse a qualidade de seres humanos, mas sim a fantasmas cadavéricos perdidos e cansados.

    Ao encontrar Kurtz,  personagem lendário e famoso por seus grandes feitos, vê um homem fraco, convalecido e dominado pela loucura. O personagem é o retrato do imperialista ambicioso que busca, acima de tudo, o sucesso da companhia. A ironia se observa quando o maior funcionário, à medida que descobrem seu paradeiro, já não serve mais, visto que agora, louco e doente, não é mais rentável.

    Parte crítica, parte representação de um conceito europeu vigente no século XIX e início do século XX sobre o imperialismo e a escravidão, Coração das Trevas se traduz como um relato espectral do misticismo envolvendo locais longínquos sem a completa dominação da civilização ocidental. Através do recurso visual, a obra consegue transcender o imaginário sombrio contido no relato, demonstrando o talento da dupla Anyango e Mairowitz. Em capa dura e ótimo material gráfico, a graphic novel consegue com excelência homenagear um dos maiores cânones da literatura inglesa.

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    Texto de autoria de Karina Audi.

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  • Resenha | Sorge: O Espião

    Resenha | Sorge: O Espião

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    Falar de Richard Sorge é falar de história, de União Soviética e de Segunda Guerra Mundial. Dito isso, esclareço que qualquer resenha sobre Sorge, O Espião, publicação da Editora Veneta, seria rasteira sem um breve adendo biográfico sobre sua importância histórica.

    Filho de pai alemão e mãe russa, e nascido em Sabunchi, no Azerbaijão – até então, parte do Império Russo -, muda-se para a Alemanha quando ainda tinha três anos. Motivo pelo qual em 1914 voluntaria-se para lutar na Primeira Guerra Mundial, entrando para um batalhão da artilharia alemã. No conflito, fica gravemente ferido em março de 1916, e é promovido a Cabo, condecorado com a Cruz de Ferro, honraria militar pelo reconhecimento aos serviços prestados à nação, e depois enviado para casa.

    Em 1925, muda-se para Moscou e entra para o Partido Comunista Soviético. Apenas cinco anos depois é enviado para a China como jornalista independente, mas com o objetivo real de prestar serviço de espionagem ao Exército Vermelho e familiarizar-se com a Ásia. Três anos depois se instala no Japão, já como jornalista prestigiado e passa a reunir informações sobre as relações entre Japão e Alemanha.

    Curioso? Como de herói alemão, Sorge entra para a história como o mais importante espião de todos os tempos? Difícil saber. Os historiadores relatam que, após a dispensa militar, passou a questionar a guerra e se aproximar da literatura marxista, talvez por conta do seu tio-avô, Friedrich Adolph Sorge ser mundialmente conhecido por sua colaboração ao lado de Karl Marx, no movimento operário e abolicionista nos Estados Unidos, e secretário da Primeira Internacional Comunista. A semente havia sido plantada e o tempo tratou de germinar.

    O álbum que temos em mãos não se trata de um documento biográfico sobre a história de Sorge, mas apenas um breve período dela, mais precisamente após se instalar no Extremo Oriente no início dos anos 1930 e as relações que mantinha com a embaixada alemã no Japão.

    A autora responsável pela obra é a alemã Isabel Kreitz, eleita no Comic Festival de Hamburgo de 1997 a melhor quadrinista nacional, e infelizmente, pouco conhecida no Brasil, reconhecida apenas por sua participação no álbum Elvis, de Reinhard Kleist (também conhecido pelas suas biografias de Johnny Cash e Fidel Castro), publicada pela 8inverso Comics. Kreitz desenvolve a trama sob o ponto de vista de Sorge e personagens que orbitam à sua volta.

    De persona difícil, Sorge vivia cercado de belas mulheres, e era conhecido pela sua faceta de bon vivant e beberrão, porém dono uma integridade enorme. Difícil sabermos o quanto dessa personalidade não fazia parte de seu disfarce como jornalista internacional renomado e o que, de fato, era autêntico, contribuindo ainda mais para a típica caracterização de espiões criada por autores como Ian Fleming, Tom Clancy e tantos outros.

    Na trama, conhecemos um pouco do dia-a-dia de Sorge e sua rede de contatos a partir dos testemunhos de seus personagens, seguindo um formato documental onde a narrativa é intercalada por esses testemunhos, até culminar nos acontecimentos que provavelmente foram a maior razão que impediu a vitória dos nazistas na Segunda Guerra, segundo diversos historiadores e jornalistas.

    Os desenhos de Kreitz são duros, retrato do tempo em que a história de Sorge é ambientada, repleto de sombras constantes, como num clássico conto noir dos anos 1930 e 1940. O traço forte e branco e preto do lápis casa com a crueza histórica da personalidade contraditória de Sorge. O álbum conta ainda com uma pequena biografia do espião, escrita pelo jornalista e pesquisador Frank Gieese, além de contar com um quadro que resume o destino de boa parte da rede de colaboradores de Sorge.

    Acima de um importante relato histórico, Sorge, O Espião é uma bela narrativa sobre amor, dramas e ideias, questões comumente esquecidas atualmente.

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  • Resenha | Tungstênio

    Resenha | Tungstênio

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    Marcello Quintanilha é um dos grandes quadrinistas brasileiros da atualidade. Em 2009, recebeu o prêmio HQ Mix de melhor desenhista nacional por Sábado dos Meus Amores, publicado em 2009 pela Editora Conrad. Conhecido pelo traço elegante e o trabalho riquíssimo na construção de seus personagens, novamente o autor entrega um dos grandes álbuns de quadrinhos publicado em 2014.

    Tungstênio, metal pesado resistente a grandes temperaturas e conhecido pela sua capacidade de aumentar a resistência de ligas metálicas, se tornou uma matéria-prima fundamental para o desenvolvimento da indústria bélica.

    Assim como o elemento químico que dá nome à obra de Quintanilha, Tungstênio possui uma trama pesada, que relata pequenos momentos da vida de quatro personagens, todos retratados de maneira crua e desvendada de maniqueísmo, com as particularidades existentes em cada um de nós, sem julgamentos.

    A trama gira em torno desses personagens: um sargento aposentado, um traficante, um policial durão e a sua esposa: todos pululam ao redor de um crime ambiental envolvendo pescadores que utilizam explosivos na orla de Salvador. Este crime servirá como fio condutor para o desenvolvimento da narrativa de maneira gradual, de modo que pouco a pouco a tensão aumenta e prepara terreno para o embate entre eles em sua derradeira conclusão.

    Importante frisar que a narrativa gráfica de Quintanilha é fluida e primorosa, e utiliza enquadramentos dinâmicos sob diversos pontos de vista, além de expressões faciais riquíssimas que nos levam a compreender os pensamentos da personagem sem a necessidade de estabelecer um único balão de diálogo. Além disso, o autor demonstra pleno domínio do seu traço no desenvolvimento dessas histórias para que realize transições em momentos chave da narrativa, ditando o ritmo necessário para modular o rumo de cada núcleo de personagens.

    Se o trabalho visual do autor é irretocável, o mesmo pode ser dito do roteiro. A construção de cada personagem é feita de maneira crível e paulatinamente, utilizando flashbacks para produzir melhor credibilidade nessa construção. O trabalho de roteiro não se perde nos quatro núcleos, como costuma acontecer em histórias com vários protagonistas, e não prejudica personagens em detrimento de outros, pelo contrário: todos têm um alto nível de complexidade e camadas. Ademais, o processo de caracterização e ambientação da história em Salvador se mostra extremamente natural, captando a alma do local e de seus habitantes.

    No fim das contas, Tungstênio é um trabalho delicado de construção de personagem, e, sobretudo, um retrato da sociedade brasileira, com todas as suas idiossincrasias, injustiças e o senso comum latente tão comuns em nosso cotidiano.

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  • Resenha | Autocracia

    Resenha | Autocracia

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    Apesar da falta de conotação histórica do termo autocracia, podemos dizer que sua criação se deu para classificar um determinado sistema político, que, segundo o pensador político italiano Norberto Bobbio, se define como “um Governo absoluto, no sentido de que detém um poder ilimitado sobre os súditos”. Esta definição breve e sucinta tem muito a dizer sobre o trabalho de Woodrow Phoenix, que não trata, necessariamente, sobre sistemas políticos, como a tradução (publicada originalmente como Rumble Strips) da Editora Veneta leva a crer, mas que dialoga com o termo sob um outro viés.

    O autor utiliza os quadrinhos como meio de expressão, em forma de manifesto, sobre a sociedade moderna, o capitalismo parasitário e a sua obsessão pelos meios de consumo. Não necessariamente qualquer meio de consumo: aqui, o alvo tem endereço certo: os automóveis. A autocracia a qual o autor se refere é a obsessão da sociedade civil por seus automóveis e todo o desenlace provocado por essa relação.

    Phoenix desenvolve todo o seu trabalho para reforçar como nos dias atuais toda a evolução das grandes metrópoles se dá de maneira puramente desenvolvimentista, se refletindo na supressão, cada vez maior, de espaços para o pedestre em decorrência dos veículos. Não à toa, o debate é envolto de questões como ciclovias e redução do limite de velocidade em vias de tráfego intenso – como recentemente aconteceu em São Paulo, nas marginais. Além disso, discute-se a desativação de avenidas e elevados para a criação de espaços de lazer, e novamente cito como exemplo mais um caso de São Paulo, que envolve o destino do Elevado Costa e Silva, popularmente conhecido como Minhocão, bem como o projeto relacionado ao fechamento da Avenida Paulista para os automóveis aos finais de semana. Ambos os casos têm causado furor na sociedade civil, que tem sua liberdade restringida ao ser proibida de utilizar seus veículos aos finais de semana em pontos de lazer, apesar de amplamente abastecida de transporte público.

    Um ponto a ser observado em Autocracia é a forma como o autor trabalha com dados estatísticos e outras fontes para embasar seu ponto de vista, o que fica claro em diversos momentos. Phoenix relata como o carro é tão pouco visto como uma arma em potencial, e isso se reflete nos próprios crimes em que ele é o fator causal para uma taxa de mortalidade altíssima envolvendo acidentes de trânsito. O mesmo pode ser dito sobre a forma como a justiça vê esses crimes, quase sempre uma fábrica de sentença que institucionaliza a impunidade, causando aos motoristas apenas a perda do direito de dirigir por um período determinado, ou mesmo impondo multas pecuniárias, pouco importando a crescente taxa de mortes envolvendo automóveis.

    A autocracia como conceito político nada mais é do que um sistema onde os cidadãos não dispõem de qualquer recurso legal contra os atos da administração, diferentemente de um governo constitucional democrático, no qual este mesmo cidadão comum poderá invocar o direito diante de autoridades independentes do governo e da própria administração para obter deles a reparação de uma violação.

    Ora, será que a definição política do termo autocracia está tão distante assim do tema tratado nesta obra? Me parece que não. Repleta de pesquisa, reflexões e uma boa dose de sarcasmo, a narrativa de Woodrow Phoenix certamente não passará incólume por seus leitores, mas os atingirá em cheio.

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  • Resenha | Como Você Pode Rir de Uma Coisa Dessas

    Resenha | Como Você Pode Rir de Uma Coisa Dessas

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    Evocando a sujeira e despeito emocional, o autor islandês Hugleikur Dagsson remonta eventos cotidianos sob uma ótica ácida e completamente diversa do que se entende por politicamente correto. Como Você Pode Rir de Uma Coisa Dessas, lançado pela editora Veneta, é um pequeno compilado de tirinhas, que ataca todos os setores sociais, religiosos, econômicos e raciais.

    As ofensas proferidas não escolhem ou protegem nichos, desferindo asco, azedume e impropérios para variados estereótipos. O ódio é destilado e distribuído como o sentimento universal, ao contrário da quantidade exorbitante de poemas e músicas que propagam o amor e ternura. A misantropia é a sensação que impera nas dezenas de quadrinhos humorísticos, que brinca com dilacerações, mutilações e piadas referenciando o nazismo, por exemplo.

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    Sensações como arrependimento e remorso não abarcam a obra. Em detrimento disto impera xenofobia, conceitos de anti-família – paterna e fraterna principalmente – e piadas com deficientes em geral. Apesar do (alto) teor vergonhoso, o conteúdo das tirinhas faz rir na maioria dos momentos, por não ter qualquer pudor em chocar seu leitor, o que nos faz perguntar se suas gags humorísticas funcionam por serem de fato eficazes enquanto piadas, ou apenas choque pelo choque, superando assim a forma em detrimento do conteúdo.

    O processo de compreensão textual é demorado, graças aos soluços e dificuldade de ler as pequenas tiras e digerir todo o ódio acumulado nas páginas. Os limites transgredidos em canibalismo, incesto e assassinato servem para mostrar a podridão da alma humana,  vivida no lodo da primitividade e do riso constrangido pelos tabus sociais, mostrando que certamente há mais que se desvelar em matéria de limites do bom senso e urdição do riso. Ainda que os escritos do islandês não sectarize guetos ou contingentes raciais, fazendo qualquer ser humano como alvo de suas indiscretas adjetivações e deboche, como a representação do ideal que seria a vida sem a falsidade típica da vida adulta.

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  • Resenha | Cumbe

    Resenha | Cumbe

    Cumbe - Capa

    A melhor interpretação da canção A Carne, composta por Seu Jorge, Marcelo Yuka e Wilson Capellette, foi realizada por Elza Soares. Em tom agudo, a intérprete proclama com voz visceral: a carne mais barata do mercado é a carne negra. Uma frase pesada de tom metafórico que carrega a interpretação vinda de épocas antigas em referência ao preconceito racial.

    Retornando às origens da História do Brasil, Marcelo D´Salete nos apresenta Cumbe, uma HQ com quatro histórias passadas na época da escravidão. São relatos que evidenciam sentimentos primordiais, como amor, liberdade e fé, conduzindo os personagens centrais, escravos que desejam se ver livres de grilhões impostos pelo sistema escravocrata, infelizmente presente em diversas nações mundiais de épocas passadas, que não consideravam aberrante o uso de um povo estrangeiro, retirado à força de seu país materno, como mão de obra. Sob poder do chicote, a escravidão se difundiu no país do Brasil Colônia ao Império durante oficialmente mais de 300 anos.

    A narrativa economiza nas palavras. Transcorrem no silêncio imagético entre sinais e inferências, dando-nos a imersão àquela época em que qualquer sussurro por parte dos negros era exemplo para demonstrar o poder de seus donos, entre prisões, torturas e morte. Os traços dão a dimensão emotiva da história, representada por um grupo que fez parte da história como um povo maltratado e que, acima de tudo, desejava sair desta condição. Um retrato cruel da origem dos negros no país.

    Cumbe - destaque 01

    No livro É Isso Um Homem? do italiano Primo Levi, um judeu que viveu a experiência do campo de concentração, é mencionada a questão da identidade dentro de um sistema opressor e do quanto estas pessoas se apegam até mesmo a elementos simbólicos – no seu caso, ele menciona um botão de camisa – para continuarem com garra para sobreviver. Em Cumbe, forças sagradas ou superiores são tais referências de resistência: deuses, o amor, o mar como profecia de purificação, quilombos como esperança de um futuro livre. Um conjunto que forma maneiras diversas de projeção e proteção contra o presente agressivo. Histórias trágicas carregadas de violência e morte, um sufocamento diário que tratava os negros como párias da sociedade. As poucas cenas em que os escravocratas aparecem são motivadas pela violência, e a obra é capaz de trazer a apreensão e tensão ao leitor.

    A composição do Brasil é oriunda de origens diversas, e parte da vasta cultura do país deve-se aos índios nativos e aos africanos. Neste aspecto, a história mantém o apuro de diversas referências a expressões e tradições africanas trazidas pelos escravos. O título Cumbe, por exemplo, refere-se tanto ao quilombo de alguns países americanos como às línguas de Congo e Angola, cuja tradução da palavra significa sol, dia, luz, fogo, símbolos abstratos fundamentais para a composição da matéria da vida como metáfora simbólica. O glossário de termos, além da referência bibliográfica, demonstra o apuro de D´Salete em produzir uma obra com fidelidade histórica.

    Mesmo que o passado seja amargo, a obra lançada pela Editora Veneta é de uma triste beleza e merece ser lida tanto quanto registro histórico  como belo objeto de arte.

    Compre: Cumbe – Marcelo D´Salete

    Cumbe - Destaque 02

  • Resenha | O Processo

    Resenha | O Processo

    O Processo - Kafka - Veneta

    Calúnia, culpabilidade não comprovada, injustiça: temas universais, cuja sensibilidade alcança desde os mais engajados até os “incautos”. As máximas estão presentes no romance de Franz Kafka O Processo, no qual se notam ecos da obra kafkiana mais famosa (Metamorfose), mas com uma evolução de abordagem que prossegue anacrônica. A quadrinização de histórias clássicas visa, entre outras motivações – como a clara reverência aos autores originais -, também atingir um público que normalmente não consumiria o livro. O francês Chantal Montellier é o responsável por realizar o ato transgressor de recontar Kafka, se munindo da mesma coragem contestatória do primeiro para se expressar ao público.

    Muito do trabalho anterior de Montellier ajudou-o a reconstruir a aura presente na publicação. Seu passado como artista plástico garante um visual aterrador à publicação, e seus trabalhos pregressos em revistas de cunho esquerdista fundamentam o autor e o tornam ideal para realizar a ambientação do injustiçado Joseph K., um sujeito que é detido logo pela manhã acusado de um crime que, supostamente, não cometeu. A adaptação do texto ficou a cargo de David Zane Mairowitz, cuja intimidade com Kafka já havia se dado através da adaptação das obras canônicas para o teatro.

    O traço de Montellier é singular. Primeiro, introduz a figura de Joseph K. em uma página inteira do quadrinho, já demonstrando o ardil que seria montado para o personagem. Seu lápis é repleto de hachuras mostrando sujeiras na casa do homem e emulando todo o processo judicial que o atacaria. Nas primeiras dez páginas, raramente é retratado como se estivesse engessado, de frente, ereto, e sim como quem posa para as fotos que um preso tira pouco antes de ser encarcerado.

    A iconografia visual lembra muito a arte de Angelo Stano à frente de Dylan Dog, tanto nos cenários quanto nas referências de personagens ao colocá-los como pares reais, pois o rosto de Joseph K é parecidíssimo com a face de Franz Kafka. Quanto à disposição dos quadros que são apresentados, mostra-se uma vagareza, quase sem narrativa visual, como se emulasse o andar lento e mecânico da máquina jurídica e punitiva, com a injustiça representada por meio dos atos dos opositores do protagonista. O uso das onomatopeias intensifica o ar “encardido” e ajuda a assinalar ainda mais o equilíbrio entre a abordagem cartunesca com toques de literatura pulp.


    Os capítulos seguem com estaticidade e arte singular. Os sonhos do réu Joseph K. lembram os elementos visuais do expressionismo alemão. O tempo todo, o herói da jornada aparece oprimido por signos visuais diversos, quase todos lembrando-o de sua mortandade e do quão próximo ele está de ser tachado como culpado. Diante de tantos objetos culposos, não resta espaço, tampouco tempo para que ele seja otimista.

    A situação de injustiça que acomete Joseph é muito bem representada pela psicodelia barroca do desenhista e por sua gama de personagens maltrapilhos e surrados. O universo de culpa é mostrado com uma faceta horrenda e precária do ponto de vista da beleza. O viés escolhido pelo quadrinista para demonstrar o Estado enquanto órgão opressor sobre o homem impotente é diferente do livro, um pouco menos implacável com relação à maldade, mas visualmente aterrador por encher o quadrinho de figuras estranhas. Mas, em seu final, abre-se mão da ausência de violência para mostrar um modo agressivo de sentença.

    Chantal Montellier consegue produzir uma obra que se equilibra entre reverência a um ídolo e um trabalho autoral (ao máximo, em se tratando de uma adaptação literária). Seu modo de contar a história canônica acrescenta, e muito, à obra original, algo que não costuma acontecer normalmente em versões de clássicos em quadrinhos que, em sua maioria, não possuem alma nenhuma.

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