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  • Resenha | Fogo e Fúria: Por Dentro da Casa Branca de Trump – Michael Wolff

    Resenha | Fogo e Fúria: Por Dentro da Casa Branca de Trump – Michael Wolff

    “Meninos mimados não podem reger a nação.” – Criolo

    Ah, mas eles são mimados. Mimados ao ponto de, na simples ameaça de retirar ou extinguir qualquer um de seus privilégios com outros países, eles invadem seu país (que eles consideram inferior em quaisquer sentidos), e lhe fazem acreditar que essa é a melhor coisa a se fazer – porque sim. A direita não joga para perder, e é vingativa e manipulativa (ou persuasiva, como preferem dizer os marketeiros) de uma forma que a esquerda nunca parece querer aceitar. Marketeiros esses que não precisam de diploma, e sim, habilidades oriundas de uma vida de criar problemas, para apresentar soluções. A guinada da direita no primeiro e terceiro mundos não é à toa, e é isso que a recente obra do premiado jornalista americano Michael Wolff reitera, mergulhando de cabeça no fenômeno Donald Trump. Algo que foi fabricado as custas do ódio, do medo, da desinformação, e da (outra expressão publicitária) flexibilização da realidade. Muito chique. E oportuno.

    O mundo não é ruim, a gente que é, e na busca pelo poder vale ficar um pouco pior. Fogo e Fúria já contém um conteúdo tão sensacionalista, e explosivo, que nem precisava ter ganho esse título. Já nascido em 2018 para ser o best-seller do jornal The New York Times, a obra expõe a articulação para o nascimento e para a manutenção do governo do playboy bilionário Donald Trump, que duvidava ser eleito presidente dos EUA até o último minuto da contagem dos votos. Por trás dele, os figurões da mídia que aceitam ir para suas festas, em especial o conglomerado Fox (desmontado após sua popular compra multibilionária pela Disney), dando toda a voz e o apoio ao símbolo que o pele laranja representa aos velhos donos dos poderes. Com o mimado dos cabelos amarelos, estava assegurado que a América iria voltar a um tempo em que existiam fronteiras no mundo, evitando as possíveis consequências financeiras de uma imigração descontrolada, e foi essa dose de exclusão, desumanidade e violência que aconteceu, como prometido, para envergonhar os grandes presidentes de outrora.

    Isso porque a receita, até agora, não apresentou falhas. É criada a insegurança diante de um mundo imprevisível, e cheio de crises, e nesse meio tempo, já está devidamente vestido (como o inseguro Trump acha imprescindível estar, 24 horas por dia) um político republicano apresentando o calmante ao povo confuso: o futuro é o passado – e, junto com ele, valores ultrapassados para mascarar as novas ganâncias velhas, de sempre. Como parte inexorável aos seus planos, alguns veículos de comunicação parecem se render a eles, e os que não acreditam em suas promessas mofadas, como o já referido jornal TNYT, a eles uma guerra entre mídia e governo começa – geralmente com o primeiro fazendo seu eleitorado desacreditar do jornalismo afiado que combate suas mentiras. Ops: flexibilizações da realidade. Agora, a direita tem um novo ambiente para chamar de seu: a internet se mostrou e continua a ser uma grande frente para Trump, repleta de soldados fiéis para adorar e defender a imagem nacionalista de seu líder, enquanto ele recebe bilionários na Casa Branca que o hospeda para garantir as vontades dos verdadeiros faraós do império, cujo poder não tem prazo para acabar.

    Com um acesso invejável aos bastidores do jogo político de Washington D.C., a realidade que Michael Wolff nos revela é absolutamente não partidária ao transmitir a sensação de fato em trabalhar diretamente com um despreparado Donald Trump, e a lógica presidencial conflituosa na qual sua gestão se baseia. Afinal, o confronto com ele é sempre um prazer, e a paranoia que se instalou no período pós-Barack Obama é onipresente, jogando o país e o mundo chefiado pelos EUA (no soft e hard powers que o país exporta) a sentimentos similares, possibilitando assim a existência de outros Donald Trumps, em outros hemisférios. Não obstante, seria ilusório o fato de Fogo e Fúria não evidenciar a fonte ideológica e perturbadora do “trumpismo”. Steve Bannon, merecendo aqui um capítulo exclusivo por ser o homem da vez, é o sujeito que se infiltrou na Casa Branca dentro da mala de Trump, e camarada dos que controlam todo o establishment do país do Capitão América. Para entender um, precisamos ficar a par da história do outro, no caso, de Bannon, o portador e disseminador dos valores de quem elegeu, em 2017, e dos outros projetos de Trump espalhados por ai.

    Tal qual um Kevin Feige que cria seu próprio universo a seu modo, ele o compartilha ao redor do planeta com diversos atores sob uma única singularidade: o futuro é hostil, e o conservadorismo é a única arma contra ele – mesmo que seja preciso atacá-lo pelas costas para atender a interesses de velhas raposas. Com base num retrato verídico de um governo feito por teorias, e crises internas, a instigante publicação da Editora Objetiva nos deixa claro: é preciso reconhecer os nossos vilões enquanto eles não destruam o que sobrou da ética, e da cidadania que ainda temos, infectando a solidariedade dos grupos sociais de um estado, ou nação, e intoxicando os corações em troca do controle das nossas opiniões. Bannon é o estrategista que separa os povos para enfraquecê-los, e cirúrgico na ação, aplica o remédio através de quem ajuda a brilhar – mas sem confiar em ninguém, pois sabe que o cérebro criador de mitos é ele mesmo – enquanto que, no contexto americano, Trump, trabalhando na sala de Justiça mas desejando jogar golfe, finge reger o Titanic num mar que seus mentores e seu orientador supremo conhecem como a palma da mão. O mundo é uma farsa, e ironicamente, na era da informação, ele nunca pareceu tão fake quanto agora.

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  • Resenha | Veríssimas: Frases, Reflexões e Sacadas Sobre Quase Tudo – Luis Fernando Veríssimo

    Resenha | Veríssimas: Frases, Reflexões e Sacadas Sobre Quase Tudo – Luis Fernando Veríssimo

    O dicionário Aurélio é coisa do passado. Chegou o dicionário de Luis Fernando Veríssimo, com Veríssimas verbetes que não perdoam nada, nem ninguém, muito menos aquela mãe que faz o filho calar a boca quando este a pergunta o que é sexo. O autor de Diálogos Impossíveis não só explica a versão mais clara possível para a pergunta, como nos faz rir com sua simplicidade e objetividade a questões tão difíceis e complicadas, popularmente, quanto a nossa doce e vã filosofia. Perguntemos isso, então, ao mestre gaúcho, e não a dicionários pretensiosos que a diriam ser ‘o ato de filosofar’, e ele com certeza atiraria, com poucas e eloquentes palavrinhas: “É tudo o que você diz com o olhar parado – a não ser que você esteja dando um pum”.

    Notemos, também, que ‘Filosofia’ no dicionário de Veríssimas está bem ao lado de ‘Fragrâncias’, que por sua vez não tem nada a ver com o cheiro da bufa, e que para o escritor serve para dizer que o seu novo perfume, a colônia ‘Lenhador’ não funciona com as senhoritas, mas atrai castores que é uma beleza. Rindo da vida, e assim ele segue, como se não houvesse aposta mais ousada que essa, Veríssimo constrói uma coletânea a prova de rabugice e pessimismo de toda espécie. Inspirado pelas próprias noções acerca do zodíaco, corrupção, sexo, reencarnação e futebol, o escritor zomba do ridículo estrutural de algumas coisas, e da seriedade frágil de outras em pequenas pílulas de jocosidade e que não passam de opiniões fundadas em grandes e pequenas verdades de botequim – sua reflexão acerca dos taxistas é imperdível.

    De brinde, Veríssimo, como se para nos comprar mais ainda, nos entrega entre as letras do seu dicionário todo particular, que de particular não tem nada, mais de trinta desenhos e cartuns seus para situações surreais que mereciam passar pelo crivo irônico e/ou sarcástico do autor de A Mesa Voadora, Diálogos Impossíveis e de outros exercícios de linguagem contemporâneos imperdíveis – todos muito bem sucessos, no geral. Nada escapa das sacadas dele, para a nossa sorte e prazer, sendo este aliás outro conceito, ou melhor, outra desculpa para outra análise bastante pertinente, aqui: escrever não dá prazer, mas ter escrito sim. Concordo plenamente, quem não concorda? E se algum(a) escritor(a) descordar, que esse(a) faça sua própria versão do que lhe dá prazer. Se constar nessa lista o ato de escrever, que lhe sumam todas as palavras da ponta dos dedos. Seria merecido, e se só quem nunca escreveu nem uma cartinha de amor discorda disso.

    Com mais de 800 verbetes listados nesta ilustre publicação da editora Objetiva, todos retirados de textos, livros e entrevistas do próprio escritor ao longo da prolífera carreira, eis outra de suas obras feita para nos lembrar do lado bom da vida, pois nele habita um tipo de inteligência e sagacidade ímpares que o lado ruim não consegue corromper – mas inveja, em suma. Veríssimo gosta de ser brasileiro, do Brasil, ele ri e nos faz rir disso, mas não evita tampouco em destacar os problemas e contradições da nossa gente, evidenciando que patriotismo quando exagerado é sempre predatório – mas que quando falta, nos faz vender até as nossas roupas. Temos aqui um autor comprometido com o bem-estar do seu leitor, mas que ao ser sarcástico, consegue ser tão afiado quanto seus próprios desenhos instigantes, complementos bem-vindos e jocosos as palavras na nobre arte de fazer rir, e refletir, ao mesmo tempo. E que tempo.

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  • Resenha | Diálogos Impossíveis – Luis Fernando Veríssimo

    Resenha | Diálogos Impossíveis – Luis Fernando Veríssimo

    Se para Machado de Assis, ainda no séc. XIX, o jeito certo de começar uma crônica era por meio de uma trivialidade, indo do calor as conjeturas sobre o sol e a lua, expandindo o pensamento sobre a vida através de uma dialética extremamente elegante e, francamente, arcaica, Luis Fernando Veríssimo também usa de armas e estratégias parecidas com as do autor de Dom Casmurro, mas muito mais propícias de se ver, hoje em dia, escritas numa rede social ou ditas, em uma conversa em público. A começar que Veríssimo não tem papas na língua, um tragicômico nato, desses loucos geniais que riem do que choram, e depois, choram por ter rido.

    A isso alguns chamam de existencialismo, outros poucos de irreverência, mas uma grande parcela apenas apelida essa volatilidade como se fosse insanidade, mesmo. Digamos então que seja apenas uma inteligência emocional mais afiada que a da maioria das pessoas, uma tese que explicaria porque essa maioria não escreve crônica bem-humoradas sobre as agruras da vida, deixando essa tarefa só aos loucos geniais que conseguem, num único livro, juntar Batman, sexo e Picasso. Eu disse que isso é uma tarefa para poucos, até porque, poucos pensariam nessas possibilidades que brotam da cabeça dos que não estão vivendo, e sim, analisando o viver.

    Em Diálogos Impossíveis, Luis Fernando Veríssimo extrai do cotidiano o encantamento que muitas vezes precisamos receber, diante de uma rotina que nos joga, muitas vezes, ao tédio desenfreado das coisas. Para isso, o autor de A Mesa Voadora sabe muito bem qual remédio nos dar contra essa chatice, e normalidades incômodas: uma porção de diálogos imaginários goela abaixo, e dos mais inspirados e charmosos que (já) sonhamos em provar, alguma vez. Aqui, sua função básica é destacar a soberba dificuldade de comunicação entre dois ou mais interlocutores, tão improváveis quanto o encontro inusitado entre as estátuas de Pessoa, Drummond e Quintana, em conversas insufladas mais por tudo aquilo que não é dito, que pelos anseios e revelações utópicas que temos, um pelo outro, impossivelmente postas na impossibilidade de palavras impossíveis.

    Mas por que tão inviáveis, assim? Ora, tanto por serem palavras ainda não inventadas, quanto por, antes de sua criação, já portarem as verdades que o decoro social não nos permite dizer – como ser sincero ao ponto de revelar ao ex-alguma coisa que nos separamos pelo jeito que a pessoa chupava laranjas? Temos muito a perder, e com esta premiada publicação da editora Objetiva, Veríssimo diverte e instiga de uma maneira cada vez mais magistral e recompensadora, a leitura, num chamado delicioso a nos fazer averiguar – e constatar – que o não-dito rege, de fato, boa parte das relações humanas, irônicas e triviais por natureza, e que por mais desesperador ou acalentador que isso seja, não há muitas maneiras de mudar a situação. Exceto para o cronista. Entre o realismo e o riso, quase sempre o segundo tem um gosto bem melhor.

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  • Resenha | A Mesa Voadora – Luis Fernando Veríssimo

    Resenha | A Mesa Voadora – Luis Fernando Veríssimo

    Se comer não é um dos maiores prazeres dessa vida cheia de boletos para pagar, e gente chata para aturar, tentemos então fazer um TOP 10 das melhores coisas da vida sem o maravilhoso ato renegado pelos gulosos. Isso porque eles sempre querem mais, e comer, desde um pão a um pernil recheado do natal, não merece ser levado aos extremos mais vulgares de sua prática. Manjare é bom demais para ser vulgarizado, ou banalizado por alguma gororoba que a vida urbana nos faz comer, e é por isso que, junto de viajar, transar, ouvir nossas músicas favoritas, e fazer parte de um grupo social, o regozijo do bom comer (e de beber, não se esqueça do néctar) é tão impagável quanto todas as outras maravilhas que fazem valer a pena nossos meros cem anos, esse século de vida reservado ao ser-humano. Não a todos!

    Será que é algo que os japoneses comem? Tempo o bastante para provar todas as iguarias deste mundo, eles conseguem ter, como nenhum outro povo. E ao invés disso, alguns certamente preferem inventar robôs – o que é o certo e o errado, afinal? Fato é que cem anos não deve ser muita coisa nem para um vinho, não os de padaria, mas aqueles excelentes que melhoram com o tempo e nos fazem tomá-los de joelho, e agradecendo a Deus pelo paladar que tem a espécie. O escritor Luis. F. Veríssimo parece ser um desses casos, um sommelier natural, um glutão que nem taurino é para entender tanto assim de comidas e outros petiscos, mas que em A Mesa Voadora faz sua rendição: aqui, o prestigiado autor brasileiro revela sua ode bem-humorada a uma das melhores coisas que um homem (e uma mulher) podem fazer, sem terem a culpa de não entrarem numa calça 38.

    Afinal, bem como fica explícito em uma de suas melhores crônicas desta irresistível publicação da editora Objetiva, cujo único defeito é ser curta demais, a bem da verdade, todo prazer será castigado pelas divindades que criamos. Veríssimo degusta, e vai longe aqui no uso cronical dos prazeres degustativos, associando, assim, a comida a inúmeras situações como se esta fosse um espectro a rondar a experiência humana, e fazer parte das nossas melhores e piores horas. Ganha pontos, muitos pontos quando se depara com a hilária condição de um provador de comidas, ou ao refletir, da forma mais perspicaz possível sobre a desgraça que uma salsinha representa para qualquer receita – diz até que uma de suas leitoras aprendeu como se diz ‘salsinha’ em todos os idiomas para, nas suas viagens mundo afora, negar o tal ingrediente aonde quer que esteja.

    Antes prevenir, do que comer uma salsinha escondida, sorrateira, debaixo da carne. Além disso, Veríssimo, que provavelmente nunca irá experimentar a extraordinária canja de galinha da minha vó, e eu me sinto mal por ele e por qualquer um, nos lembra em meia-dúzia de palavras o quão triste e infantilóide são os norte-americanos. Ele pega pesado nessa análise, sempre com bom-humor, mas sendo aqui o mais ácido e corrosivo possível para falar da cultura dos hambúrgueres e dos baldes de pipoca no cinema. Devido a sua enorme sagacidade como escritor de grandes livros brasileiros, o autor de A Mesa Voadora se infiltra em mil e uma normalidades para salpicar um ingrediente extra, a cada uma delas: seja uma maçã, um champignon, um ovo, um pastel de beira de estrada (que tem o seu charme), ou até uma água mineral. Mas jamais salsinha. Isso é proibido, assim como deveriam ser os baldes de pipoca pingando manteiga. Os dedos ficam asquerosos. Se fossem só os dedos…

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  • Resenha | As Mentiras Que as Mulheres Contam – Luis Fernando Veríssimo

    Resenha | As Mentiras Que as Mulheres Contam – Luis Fernando Veríssimo

    As crônicas de Luis Fernando Veríssimo, em As Mentiras Que as Mulheres Contam (Editora Objetiva), transporta as situações-problemas-cotidianas de um dos seus livros mais famosos, a saber As Mentiras Que os Homens Contam (compre aqui), ao sexo feminino. O resultado é aquilo que o autor sabe fazer melhor: análise da vida privada com aquele toque de humor, ironia e até certas doses de estranhamento. Tudo conforme essa quimera que atende por cotidiano.

    O riso nunca é a finalidade da crônica, contudo o hilário sempre perpassa por esse estilo de texto. A explicação para esse fenômeno talvez resida no principal objeto de prazer desse gênero literário: o cotidiano desenfreado. Ao se ater às situações-problema do dia-a-dia nos mais diferentes níveis de classes sociais, a crônica isola cenas, reais ou não, do comportamento humano e desenvolve-as de uma forma inusitada, mas sem perder o toque de verossimilhança que lhe é característica.

    Resultam das cenas diárias, principalmente as captadas na longeva carreira de cronista de Veríssimo, situações irracionais que beiram o estranhamento e incitam o riso. A chave para se alcançar isso está nas corretas doses de ironia e até simplicidade que abundam nos textos. Cito a simplicidade não por conta das frases curtas, objetivas e certeiras escritas pelo autor, mas pela escalada dos acontecimentos.

    As crônicas começam ingênuas, pueris, como uma conversa de bar onde um garçom com tempo sobrando ou feito às amizades, puxa um papo despretensioso e você, talvez sem reação, ouve. Daí em diante, o autor, gradualmente, aumenta a intensidade da situação até beirar o absurdo. O mérito do escritor reside aí: na facilidade de transmitir o inusitado cotidiano.

    Em As Mentiras Que As Mulheres Contam temos flertes despropositados, amores mal resolvidos, amores bem-resolvidos, traições, aniversários e aniversariantes, paixão, sexo, o impacto da diferença de idade entre os sexos, mães, pais, surpresas, gastronomia, filhas, cunhadas, desentendimentos, etc, tudo simpaticamente bem feito. Aliás, ler cada crônica desperta sempre alguma simpatia, como se fosse algo próximo de nós.

    Leitura mais do que recomendada, Veríssimo é um dos maiores expoentes da crônica brasileira. Um exímio analista dos tipos que fazem o cotidiano nacional e, sobretudo, um mestre em contar boas e deliciosas histórias.

    Texto de autoria de José Fontenele.

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  • Resenha | Cujo – Stephen King

    Resenha | Cujo – Stephen King

    Este é o primeiro livro de Stephen King que leio. Ou melhor, que leio por completo. Comecei a ler Sob a Redoma, no Kindle, mas a leitura está parada há meses – mais adiante comento sobre os possíveis motivos. Havia lido um conto, “Milha 81”, e gostado bastante. Quando surgiu a oportunidade de ler esta edição linda de Cujo, não pensei duas vezes.

    “Frank Dodd está morto e a cidade de Castle Rock pode ficar em paz novamente. O serial-killer que aterrorizou o local por anos agora é apenas uma lenda urbana, usada para assustar criancinhas. Exceto para Tad Trenton, para quem Dodd é tudo, menos uma lenda. O espírito do assassino o observa da porta entreaberta do closet, todas as noites. Você pode me sentir mais perto… cada vez mais perto”.

    O trecho acima, que consta da sinopse oficial, não-intencionalmente gera um mal-entendido na cabeça do leitor, pois parece indicar que a história tem a ver com possessão demoníaca ou algo assim. Mas esse mal-entendido não é culpa de quem escreveu a sinopse. O próprio King, de certa forma, “desencaminha” o leitor no início da trama ao dar ênfase ao monstro no armário do pequeno Tad. Mas basta avançar um pouco mais para perceber que foi uma forma de introduzir e apresentar ao leitor os personagens da família Trenton – Vic, Donna e Tad. Pois exceto pela insinuação vaga de que talvez o espírito de Dodd tenha possuído Cujo, não há nada de sobrenatural na história, que se passa na cidade fictícia de Castle Rock, no Maine, onde moram a família Trenton, a família Camber e mais alguns personagens secundários.

    Algo sobre a escrita de King que eu já havia reparado ao ler Sob a Redoma é que ele é prolixo. Porém não num sentido pejorativo já que, diferente da maioria dos textos prolixos, o de King é agradável de ler. Parece supérfluo. Pode até ser supérfluo em alguns casos. Mas é interessante. Sempre. Neste livro, principalmente no início, há várias páginas discorrendo sobre assuntos que pouco agregam à história, mas que ainda assim se apresentam atraentes ao leitor, que dificilmente fica com vontade de saltar parágrafos. E, apesar desses trechos ou, aproveitando-se desses trechos, King vai inserindo uma tensão na narrativa que prende o leitor. Ele consegue isso, entre outras coisas, usando com muita eficiência a ironia dramática. Como Lemony Snicket explica muito bem no segundo volume de Desventuras em Série:

    “Em poucas palavras, a ironia dramática ocorre quando uma pessoa faz um comentário inocente, e outra pessoa que o escuta está sabendo de alguma coisa que faz com que esse comentário tome um sentido diferente, em geral desagradável”.
    (A sala dos répteis – pag.37)

    No que tange à literatura, trata-se daquela situação em que o leitor sabe mais do que os personagens. O autor dá ao leitor informações extras, que fazem com que ele, na maioria das vezes, tema pela segurança e pelo bem estar de um ou mais personagens. E King faz isso magistralmente ao incluir trechos em que descreve o que acontece com Cujo, o são-bernardo da família Camber. A narrativa, estrategicamente, é feita em terceira pessoa por um narrador onisciente, intercalando os dissabores da família Trenton, o cotidiano fastidioso dos Cambers e as reações de Cujo depois de ter sido mordido por um morcego infectado com raiva. O leitor vai lendo e inferindo o que irá acontecer, enquanto os personagens estão ali, inocentemente vivendo suas linhas narrativas sem desconfiar de nada. Quem lê sabe que vai acontecer alguma coisa, só não sabe quando nem como nem quem será a primeira vítima. Tem como largar o livro antes de descobrir isso?

    E chega-se a esse ponto mais ou menos ao final do primeiro quarto do livro. Quando acontece aquilo para que o autor estava preparando o leitor desde o início, não há como não se indagar: “Será que vai ficar enchendo linguiça por mais 300 páginas?”. Mas não. King cria outra expectativa. E continua fazendo o que faz de melhor – deixando o leitor na beira da poltrona de tanta ansiedade.

    “Latindo com fúria, Cujo deu início à perseguição. Embora o coelho fosse muito pequeno, e Cujo, muito grande, a possibilidade de conseguir trouxe uma dose extra de energia para as patas do cão. Cujo chegou perto o suficiente paraagarrar a presa, mas o coelho fez um zigue. Cujo se virou pesadamente, com as garras revolvendo a terra negra do prado, perdendo terreno de início, logo voltando à carga. Pássaros saíram voando ao ouvir o latido alto e ofegante. Se um cachorro pudesse sorrir, Cujo estaria sorrindo naquele momento. O coelho fez um zague e seguiu direto para o campo. Cujo partiu atrás, já suspeitando que não conseguiria ganhar aquela corrida.”
    (pag. 29)- grifo meu

    “Dormiram juntos, mas pela primeira vez a cama king-size pareceu pequena demais para Vic. Dormiram virados, e o espaço entre os dois parecia uma terra de ninguém coberta com cuidado por lençóis. Ele passou as noites de sexta e de sábado em claro, já que morbidamente percebia todas as mudanças de posição de Donna, ouvindo o som da camisola contra o corpo da esposa. Ficou imaginando se ela também estava acordada, no outro lado do vazio que separava os dois.”
    (pag. 119)

    É inevitável fazer um pré-julgamento dos livros de King baseado na referência que se tem dos filmes inspirados em suas obras. E dois pontos saltam à vista. A primeira constatação – óbvia – é que os livros são melhores que os filmes. Ok, são duas mídias diferentes que devem ser analisadas diferentemente. Mas a riqueza de informações que o livro oferece é sempre inigualável, mesmo o filme contando com o recurso adicional da imagem para narrar a história. A segunda constatação é que King é muito mais do que um expert em criar suspense. Ele faz isso realmente muito bem. Contudo como se pode perceber pelos dois trechos acima, sua escrita vai além disso. O primeiro mostra King brincando com as palavras, e há vários trechos no decorrer do livro escritos assim. Pode até soar contraditório – pois, como afirmado acima, King é prolixo – mas os dois trechos ilustram que o autor pratica muito bem o “show, don’t tell”. Há muitas coisas não ditas nas cenas acima que são explicitadas seja pelo jogo de palavras seja pelas figuras de linguagem.

    Nesta edição da Suma de Letras, ao final do livro há uma entrevista com o autor, concedida ao repórter da revista The Paris Review. Nela, há algumas pérolas que deveriam servir de guia para escritores iniciantes:

    “ENTREVISTADOR: Cujo é incomum porque o livro inteiro é um único capítulo. Você planejou isso desde o início?

    KING: Não, Cujo era um livro normal em capítulos quando foi concebido. Mas eu me lembro de pensar que queria que o livro atingisse o leitor como se fosse um tijolo jogado pela janela. Sempre achei que o tipo de livro que eu escrevo – e meu ego é grande o bastante para pensar que todo escritor devia fazer isso – devia ser uma espécie de agressão pessoal. Devia ser alguém pulando por cima da mesa, devia agarrar e intimidar o leitor. Devia provocá-lo. Devia incomodá-lo, perturbá-lo. E não só porque ele ficou com nojo. Quer dizer, se alguém me mandar uma carta e disser que não conseguiu jantar, o que eu penso é: ‘Ótimo!’”

    Em outro trecho, em que King fala sobre seus livros e a forma como ele os “separa” em dois tipos, ficou claro para mim por que Cujo me agradou tanto e Sob a Redoma, nem tanto – a ponto de a leitura não avançar:

    “ENTREVISTADOR: Quando você reflete sobre seus livros, faz alguma distinção entre categorias?

    KING: Eu tenho dois tipos diferentes de livros. Acho que livros como A Dança da Morte, Desespero e a série A Torre Negra são livros que vão para fora. E livros como O Cemitério, Misery, O Iluminado e Eclipse Total vão para dentro. Os fãs normalmente gostam ou dos para fora ou dos para dentro, mas não de ambos.”

    Interessante essa divisão dele. Eu particularmente nunca tinha pensado em thrillers sob esse aspecto. E inclusive o entrevistador o questiona sobre isso. Pois como praticamente todos os livros do autor têm terror psicológico, se não seriam classificados como “para dentro”. E King explica que leva também em consideração a quantidade de personagens. E aí está, nas palavras do próprio Stephen King, o motivo de Sob a Redoma não me agradar tanto, já que é um livro “para fora”.

    Vale reparar como King pega uma trama simples – um cão raivoso perseguindo moradores de uma cidade pequena – e a transforma em algo que mexe com o âmago do leitor. Quem disse que thrillers tem de ser apenas entretenimento?

    Texto de autoria de Cristine Tellier.

  • Resenha | 1968: O Ano Que Não Terminou – Zuenir Ventura

    Resenha | 1968: O Ano Que Não Terminou – Zuenir Ventura

    A história que Zuenir Ventura audaciosamente conta é iniciada num réveillon, símbolo do calendário que representa mudança. A modernidade que chegou parecia fazer desta temporada seu início; não o seria em virtude das referências aos estudantes franceses, que já haviam lutado por ideais muito semelhantes, libertários. A crônica da alma das pessoas é o que trata o livro/relato.

    O escritor visava trazer um relato historicamente fidedigno da época, com entrevistas pontuais e material de pesquisa vasto. A busca de Ventura foi a de não retocar absolutamente nada do pretérito, passando por cima de qualquer tentação revisionista ou de aplacar o sofrimento da lembrança. O ideal era fugir da passionalidade barata, dando vazão a sentimentos, mas sem perder de vista o cunho de análise temporal e condicional.

    A tranquilidade e ilusão típicas do 31 de dezembro eram a tônica da festa na “casa de Helô”, mas logo essa falsa paz seria quebrada pelas mãos mais inesperadas. Dali veio o primeiro tapa do dia, o primeiro golpe do ano, um símbolo do que viria a atormentar a classe artística, os que pensavam e discutiam política e qualquer cidadão que somente parecesse debater os rumos econômicos ou sociais daquele novo Brasil.

    Após o murro, inicia-se um conto ameno que reflete sobre a revolução sexual e sobre quanto é difícil se adequar a ela, uma vez que compreende nuances nem sempre pensadas pela parcela mais popular da sociedade. Quase todos os presentes na festa se viam obrigados a fazê-lo, mas a aceitação estava longe de ser um movimento automático ou banal. Os resquícios de uma criação paternalista e calcada na moral se viam em muitas das manifestações corriqueiras, como o ciúme e o enlace matrimonial.

    Os contornos agridoces da história narrada são deixados de lado. A pecha de “ame ou deixe-o”, que fazia referência ao zerado nível de tolerância à oposição, começava a fazer sentido, deixando de ser um slogan para tornar-se uma praxe.

    O radicalismo e conservadorismo dos ditos revolucionários são discutidos, inclusive estabelecendo os posicionamentos de indivíduos famosos, como Alfredo Sirkis, Fernando Gabeira e Ziraldo. Enquanto os filiados ao PCB eram chamados de Partidão, havia uma boa parcela pouco pragmática e mais idealista, que não tomava uma posição mais certeira ora pela imaturidade, ora pelo desconhecimento sobre qual seria o mais adequado modo de combate ao regime vigente. O grave erro da esquerda à época é o mesmo da atual, o de não conseguir reunir-se em torno de um mesmo paradigma, de uma mesma bandeira ou ideal, tendo nenhuma unicidade em seu modus operandi, tornando-se, portanto, mais fraco e mais fácil de se dissipar em qualquer discussão. Mesmo os que defendiam a luta armada adoravam um discurso, e em seus brados acabavam munindo seus inimigos das armas que eram necessárias para manietá-los. A previsibilidade deles era enorme.

    O radicalismo era tamanho que José Celso afirmava: O objetivo é abrir uma série de Vietnãs no campo da cultura, uma guerra contra a cultura oficial de consumo fácil. O sentido de eficácia do teatro, hoje, é o sentido de a guerrilha teatral ser travada com as armas do teatro anárquico, cruel, grosso como a grossura e apatia em que vivemos.

    Vladimir Palmeira, líder da UME, dizia que não havia qualquer espetáculo quando houve o enterro de um jovem assassinado – Edson Luís – pela truculenta ação dos poderosos, dos mandantes: Não é a morte de Édson Luís, não é a Passeata dos Cem Mil, nem o congresso de Ibiúna, mas a assembleia no Teatro de Arena da Faculdade de Economia, na Praia Vermelha, que deu origem a toda essa degradante repressão do campo do Botafogo. Nessa manifestação, nós quebramos o laço dominante entre o professor que manda e o aluno que aprende. Era uma velharia com postos vitalícios. Ela não estava adaptada talvez nem ao século, quanto mais à década. Queríamos quebrar a dominação dos catedráticos e arejar a universidade.

    O fato consumado era de que a oposição existente era muito distante da realidade do cidadão comum. Foi pensando nisto que o ex-governador Carlos Lacerda buscou apoio de seus antigos desafetos, Juscelino Kubitschek – rival há quinze anos – em Lisboa, e também de João “Jango” Goulart, no Uruguai. A chamada Frente Ampla teve no Pacto de Montevidéu seu maior expoente, mas nem foi livre de críticas, uma vez que o então ex-governador do Rio Grande do Sul, Leonel Brizola, criticava veementemente a postura de Lacerda, chamando-o de sofista, denunciando que seria somente uma manobra de Lacerda para continuar influindo “perniciosamente” nos destinos do país.

    O fator que faz de 1968 mais singular é a sua forma, que em cada capítulo contempla um novo entrevistado, mostrando múltiplas visões da mesma história. A multiplicidade de vozes é uma plataforma plural bem urdida, quase inédita.

    Zuenir destaca que, mesmo antes da implantação “oficial” do AI-5, já havia um movimento de censura e forte repressão dias antes do anúncio, com invasões de redações de jornais e controle forçado das pautas de televisão e afins. Nem mesmo o Correio Braziliense, único jornal a circular na capital federal, podia cobrir as votações nas câmaras do Legislativo. Mesmo figuras que nada tinham a ver com qualquer movimentação ligada à esquerda socialista sofreram repressão unicamente por levantar a voz. Os ânimos estavam à flor da pele. A exemplo disso, o já idoso Juscelino era assim tratado, jogado às traças em algum porão e deveras mal alimentado, a despeito até de sua saúde debilitada. As sensações dos que viveram aquele tempo eram múltiplas, e em comum havia uma dor tremenda, um sentimento de impotência de quem queria lutar, mas que via qualquer chance de resistência ruir. Esse infeliz viver deixou um gosto azedo em Zuenir e nos outros entrevistados, daí a impressão de que aquele ano jamais acabou.