Tag: História

  • Crítica | Zapata Vive

    Crítica | Zapata Vive

    Zapata Vive 3

    Investigando a origem dos movimentos que levaram à revolução mexicana ao seu apogeu, Matias Gueilburt põe à prova toda a sua experiência em registrar eventos populares pela América Latina. Zapata Vive é um pequeno retrato do México do fim do século XIX, retratando o quanto a classe rica e dominante controlava, por meio de uma escravidão velada, o mercado de trabalho no país, com seus valores irrisórios de salários e a falsa impressão de que o proletário se autossustentada.

    Com delicadeza, o realizador argentino registra o começo da vida do principal biografado, Emiliano Zapata, desde seu nascimento no bairro pobre de Morelos até a ascensão política, que o levaria a se destacar contra a ditadura de Porfirio Diaz. Os relatos de pensadores e cidadãos comuns do país reforçam o ideário de herói histórico e libertador de cativos, comum ao ativista que buscou a todo momento a luta contra a escravização de seus convivas.

    O modo como são conduzidos os relatos é diferente do modo normalmente utilizado nos documentários estadunidenses. Gueilburt não perde tempo em destacar seu lado pelo óbvio viés de sua carreira, pródiga em destacar movimentos de protesto anti-imperialista pela América Latina, como foi antes com Democracia e A Revolução Mexicana, sendo este Zapata Vive semelhante ao último citado, servindo como continuação do assunto.

    O resgate não é só ao ícone histórico, mas também à intimidade do homem e a desconstrução do mito heroico, exibindo facetas humanas e sentimentos do ativista, com declarações de seus descendentes diretos. Em suma, as entrevistas retratam a exacerbada humanidade de Zapata atribuindo a imortalidade não à condição de figura inquestionável, mas sim à capacidade de um homem de carne e osso conseguir atingir os feitos libertários e humanitários sem abrir mão do fator homem, resumindo em si todo o conteúdo que deveria estar presente no cerne do ideal da revolução.

    O intuito do diretor é focar o histórico de revoluções dentro do imaginário popular do México, diferentemente da realidade brasileira, para se ater a um exemplo próximo. Zapata tem em seu maior mérito – segundo a fita – a semeadura da luta por direitos por meio das ações da própria plebe, fazendo com que o comportamento de tomar as ruas através de protestos não seja visto como tentativas vândalas de tomadas de poder, e sim como representação legítima do cidadão. Assim, essa classificação não se dá somente quando os vieses são abraçados pela mídia popular, até porque a realidade do México é bastante diferente.

    Historiadores e religiosos convergem em opinião sobre como funciona a sociedade mexicana, que não tem tantas diferenças ou rixas entre si, entre outros motivos, por Zapata e Pancho Villa lutarem por sua pátria, ou sobre os ecos das ações do Exército Libertador nos anos 1920. A vida após a morte de Emiliano é narrada e recontada pelo emocionado documentário, que cumpre bem a função de memória afetiva e de introdução à biografia do líder político e libertário.

  • Crítica | Os Últimos Cangaceiros

    Crítica | Os Últimos Cangaceiros

    cartaz

    Em 1973, Orson Welles, de Cidadão Kane e Tudo é Brasil, lançou Verdades e Mentiras, filme-documentário onde o real e a ficção se confundem, culminando numa linguagem famosa no Cinema, a metalinguagem, que é quando a arte fala consiga mesma. Brinca, abraça e repudia seus próprios traços. Um exemplo explicado disso está num dos depoimentos de Peões, clássico de Eduardo Coutinho, onde um dos funcionários da Volkswagen, discursando sobre a empresa, aponta que quanto mais antiga a história é, mais fácil é pra convencer o outro, podendo até projetar contornos épicos, afinal, quem conta um conto aumenta um ponto. Se é malandragem ou esquizofrenia, esse papo de misturar mentira com verdade, quem garantia até 2011 que o bando de Lampião ainda tem descendentes vivos? É isso que foram investigar – e filmar.

    Hoje, falar de Lampião é falar de um mito, de Caipora e Boitatá. Sua história virou símbolo e hoje não passa disso, ícone imortal do nordeste brasileiro, lenda nessa e noutras bandas. A saber que quem fazia as estrelas de seu mítico chapéu, em forma de pastel de flango, era o próprio, e que o perfume que cheirava vinha de sua parceira, unida ao cabra por opção e fiel até a morte, Maria Bonita, são duas das curiosidades divertidas de Os Últimos Cangaceiros, a versão documentada e não encenada do clássico O Cangaceiro, filme-fantasia do mesmo cangaço lendário e aventureiro, palco de amores e horrores, cuja essência e registros reais do grupo de Lampião, sempre com sua protegida, o filme de Wolney Oliveira impõe com orgulho e satisfação, tratando quem a fama é reconhecida do Oiapoque ao Chuí, como grande figura nacional. O que acaba sendo, deveras.

    Assistir as reinações da “geração Lampião”, hoje um bando de idosos, é como ouvir no tapete da sala os contos da avó sobre uma vida inteira, vida regada a bala, correria e triunfo para poucos sortudos. Naquela aridez toda, somos convidados a andar com os filhos daquela miséria de Ariano Suassuna, Graciliano Ramos e letra de cordel, carência combatida a ferro e revolta no sangue quente da região. Nas graças do comentário é que Lampião e seus seguidores são reconstruídos, em forma e atitude, com base nos relatos que não encontram contradição, construindo um mural sobre um passado representado, que fez e faz parte de um Brasil ainda recente, de Rocha, Candeias e Nelson Pereira dos Santos, sendo jamais esquecido ou posto de lado. Difícil mesmo é não se emocionar com certas cenas, como o reencontro na velhice de duas sortudas, sobreviventes do sertão, com o tempo marcado na pele de algodão, de rugas. “Tô tão magrinha… cadê aquele bração que eu tinha? Acabou.”

    Lampião era cheiroso, sim sinhô, tanto quanto descendente. Filho do país das hipocrisias, fez da sua história rastro dos fins que justificam os meios. Ainda de acordo com um pesquisador, presente em seu discurso na obra, não há grupo social cujo traje rivaliza com o do cangaceiro, dono das veredas que inspiram seu bem-viver, mas cuja vilania não condiz com a fama, e sim sua resistência. Cangaceiro era resistente, vaso que trinca mas não quebra, enfim suportado, em especial, pelo instinto de sobreviver e o olho do urubu que à maioria fez comida, e os que não fez, se reúnem na tela e tornam Os Últimos Cangaceiros um dos manifestos sobre um período do estado brasileiro (a lenda tem contexto histórico) e sobre o mito. Símbolos do Brasil, mais que heróis e mais que vilões, e tão reais quanto a seca, seus feitos, no pesar das verdades trazidas à tona com grande consciência, sem antônimos, afinal, para atingir a essência da realidade que não mudou tanto, de lá para cá.

  • Resenha | As Veias Abertas da América Latina – Eduardo Galeano

    Resenha | As Veias Abertas da América Latina – Eduardo Galeano

    As Veias 1

    A leitura de um manuscrito – no caso, um livro – é para Eduardo Galeano um exercício tão raro quanto o encontro de uma mensagem engarrafada, jogada ao oceano, com mínimas chance de ser cooptada por alguém. Passeando pelos territórios latino-americanos de um modo coloquial, As Veias Abertas da América Latina é um exercício de estudo do autor, que exibe algumas das figuras mais importantes no continente e que comumente são esquecidas, incluindo o sistema educacional brasileiro.

    O início da narração é lúdico, passando pelos percalços de Colombo e pela inspiração de Marco Polo, em terras onde ainda não haviam visto a dita civilização dos brancos/europeus, os “donos do mundo” daquela época. O desejo por bens perecíveis, como noz-moscada, gengibre, cravo e canela era enorme, só não superando o desejo por metais preciosos.

    A aura em volta dos colonizadores ganhou uma interpretação semidivina, graças a uma terrível mistura, na qual se juntou o misticismo de alguns locais e o modo como os exploradores pousaram naquelas terras habitadas. O “endeusamento” favoreceu o trabalho de escravização, invertendo o que deveria ser pautado pela empatia e transformando isso, de modo vil, em uma obediência sem discussões ou critérios. Os “paladinos” que desfilavam pelos Eldorados de Potosí (atual Bolívia) e Cuzco (Peru), tinham na ostentação um dos modos de coagir quem quer que fosse, com lendas que atravessaram as gerações ao afirmar que até os pisantes de seus cavalos eram de prata. Havia o bochicho que, se fosse somada toda a prata que havia sido transportada de Potosí à Espanha, daria para “fazer uma ponte de prata, desde o cume da montanha até a porta do palácio real do outro lado do oceano. Os exorbitantes lucros dos espanhóis são expostos em números gritantes, que se tornam ainda mais aviltantes e dignos de revolta quando se é analisada a condição miserável em que os colonos subsistem, sem qualquer sinal de retribuição às especiarias que migravam e atravessavam o oceano.

    O comércio de caráter moral discutível se agravou com o comércio de mão de obra aborígene, tendo na justificativa religiosa da “ausência de alma” dos índios a maior prerrogativa do comportamento. Mesmo após o gradual processo de desescravização, permaneceu um residual e incômodo modo de encarar a população indígena, com um claro desprezo racial pelos que permaneceram no seu país e constituíram família e vida. Mesmo a classe que não a explorava os via com bons olhos, igualando aqueles que deveriam ser os herdeiros legítimos daquelas terras e de seus bens a párias, objeto de rejeição do povo que deveria ser seu cúmplice.

    A primeira contribuição de contos brasileiros ocorre ainda pela corrida de exploração de metais, exemplificando como a febre do ouro em cidades de Minas Gerais deu vazão ao torpor relacionado ao regime escravagista, e a quanto os servos de pele negra entretinham os senhores de engenho, fosse por trabalho braçal, como em apostas esportivas, ou por mulatas que se prostituíam, se entregando a inúmeros prazeres proibidos pela religião, o que não impedia sequer a igreja de lançar mão do dinheiro e benefícios provenientes de mercado de escravos. O lucro que o império britânico e a Holanda faziam com o ilícito tráfico de carne negra só não era maior que o enriquecimento via acúmulo de ouro e especiarias que estes faziam. Pelos anos 1700, o transporte de metais favoreceu demais a existência econômica da Inglaterra, lotando suas fileiras.

    O apogeu da América Central é muito bem retratado, primeiro ao exibir os contornos do imperialismo norte-americano, ao considerar a parte baixa do continente como seu território – nem o “justo” Lincoln fugiu das comparações – até a segunda independência, o grito extravasado pelas quebras das amarras do segundo explorador, o país que não os colonizou, mas que prosseguia fazendo dos seus bens, a base barata de seu mercado.

    O modo como as antigas colônias sofriam exploração é mostrado em detalhes, com número precisos, que assustam o público pela forte crueldade dos países matrizes. O autor não deixa qualquer dúvida em relação ao seu posicionamento político, explorando ao máximo os defeitos que o culto ao capital gera nos países subdesenvolvidos, reforçando a ideia de que o sistema falhou mais do que a implantação do socialismo.

    Galeano inicia um minicapítulo afirmando que qualquer chance de desenvolvimento sustentável foi completamente aniquilada pela chamada guerra da Tríplice Aliança contra o Paraguai, onde Brasil, Argentina e Uruguai, apoiados financeiramente pela Inglaterra, praticaram o genocídio no país afrontado. O presidente Francisco Solano Lopez resistiu até onde conseguiu, tendo de se entregar para que o morticínio de homens não fosse tão grande. Os motivos do embate são discutidos até hoje, com uma grande adesão de teorias da conspiração; no entanto, o país em frangalhos após o confronto é um fato irrefutável, pois até rodízio de genitores masculinos foi uma das atitudes emergenciais tomadas, dada a quantidade de “machos” assassinados.

    A declaração de Simon Bolívar sintetiza toda a obra de Eduardo Galeano: “Nunca seremos afortunados”. A sina dos latino-americanos não era causada por caprichos do destino, mas sim por uma intensa e desonesta exploração de suas riquezas naturais e mão de obra, que geraram um povo cujo engajamento varia de país a país, tendo no Brasil talvez o povo mais alienante e pouco combativo ao comportamento opressor e recrudescido, refletido até nos resultados das eleições de 2014, com a elevação popular de defensores do regime ditatorial militar instituído dos anos 60 a 80.

    O autor usa suas últimas páginas para grafar a diferença entre as colonizações de exploração, predominantes no sul dos EUA e em todo o continente latino, e as de habitação, na parte dos Estados Unidos que dominou todo o território, não esquecendo claro, dos aspectos herdados de um comportamento fascista, que ignora ferozmente aspectos de cunho social para supervalorizar o capital. Para Galeano, o legado a seguir na América Latina era sim o social, na tentativa de frear o alastramento do “progresso”, que tem suas aspas justificadas pelo corrimento também da miséria nos pedaços de terra conquistados pelo primo rico, localizado mais ao norte.

    A intenção presente em As Veias Abertas da América Latina de discutir fatos normalmente ignorados pela história oficial é alcançado. O fato do livro ter sido proibido de circular no Uruguai – país do autor – Argentina e Chile causaram no escritor uma alegria tremenda, de que suas palavras não foram emudecidas, e a certeza de ser a presunção, dita pelos soberanos a respeito do tom narrativo, findar-se na verdade como uma semente de esperança de revidar o golpe que o povo recebia por parte dos que secularmente o agrediam, claro, contado de uma maneira não acadêmica e sim poética, fluida e dramática.

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    Eduardo-Galeano

  • Resenha | Memória do Fogo – Vol. I: Os Nascimentos – Eduardo Galeano

    Resenha | Memória do Fogo – Vol. I: Os Nascimentos – Eduardo Galeano

    A literatura latino-americana tem como um de seus primeiros registros formais as crônicas de viagens compostas por conquistadores, catequizadores e outros navegantes que chegaram até a América como parte da colonização européia. Um conjunto definido como a primeira literatura produzida no continente, ignorando que, antes da invasão européia, a população natural do continente possuía história e legado.

    O registro feito por tais conquistadores é apenas parte dos acontecimentos. Apresenta a visão do colonizador sobre os nativos selvagens, sem deus, maltratados e sacrificados pelos colonizadores que consideravam a extinção dos povos um processo necessário para a conquista e a descoberta de ouro, prata e outros bens palpáveis para suas coroas.

    Graças ao registro de navegantes como Cristovão Colombo, Hernán Cortés, Cabeza de Vaca e de religiosos como Frei Bartolomeu de Las Casas – que defendeu a causa do índios – é possível compreender as motivações da conquista da América e como seu processo foi cruel.

    Nega-se toda cultura e a tradição indígenas existentes no continente anterior à conquista, como se as diversas tribos não tivessem suas próprias histórias, lendas e costumes. Uma tradição própria que explicava as condições da natureza, dos animais e de outros elementos que conviviam diariamente com esses povos.

    Na vasta fragmentação historiográfica e literária, Eduardo Galeano compõe uma trilogia que resgata um pouco de brilho desta cultura massacrada. Uma trilogia que parte de momentos anteriores à colonização, como uma espécie de gênese da literatura indígena até os tempos modernos.

    A intenção do autor não é meramente historiográfica, apresentando datas e acontecimentos formais através dos séculos. Mas fazer deste cenário matéria para compor uma prosa poética capaz de resgatar os elementos tradicionais destas culturas, alinhando-as e mantendo-as vivas. Sob este aspecto, nada mais coerente do que o título Memórias do Fogo como uma chama que, mesmo com a violência das conquistas, não se apagou integralmente.

    O primeiro livro, Os Nascimentos, parte da América pré-colombiana até o século 1700. Galeano utilizou mais de 200 livros em sua pesquisa para compor os microcontos que preenchem este livro. Resultou em um painel denso e descritivo de como viviam as diversas tribos antes da colonização e de como o velho Novo Mundo foi visto pelos estrangeiros.

    Dividido em duas partes, Primeiras Vozes é um compêndio de lendas sobre a criação da Terra. São interpretações ricas e variadas em uma época na qual a ciência não dominava o homem e muitas inferências sobre o funcionamento do mundo eram feitas por observações e composição imaginária de tais feitos. Cada elemento da natureza é justificado com uma história que demonstra que não só na Grécia – dito berço da civilização européia – havia espaço para deuses, lendas e histórias que deixavam lições para os ouvintes.

    Ao alinhar as diversas histórias indígenas, cria-se um gênese apócrifo que situa a América além do criacionismo bíblico, evocando tribos diferentes que foram caladas por outros povos. Uma reconquista da identidade da Latino-América, recuperando a mitologia tradicional do local, equilibrando a história oficial dos colonizadores pela história oprimida.

    A segunda parte do livro, O Velho Novo Mundo, ocupa a maior parte da narrativa, e parte desde que Colombo avistou as terras do continente e se viu maravilhado com sua vegetação e com a simpatia dos povos, até o final do século 18, com a morte do débil rei Carlos II.

    As exuberantes lendas indígenas cedem espaço para uma prosa que se aproxima um pouco da crônica sem perder a poética. Ao contrário do elemento maravilhoso da primeira parte, as viagens de colonização e exploração da América vão carregando-se, pouco a pouco, de um amargor em suas entrelinhas. O deslumbramento romântico de Colombo se dissipa em saques de ouro e prata e nas incursões dos espanhóis para dominar os índios e catequizá-los.

    Ciente de que a história das conquistas é ampla, Galeano pontua o ano e o local em que aconteceu cada momento narrado. A narrativa dramatiza as cenas e não poupa o leitor da violência sofrida pelos nativos. A queda da cidade Maia, as bulas do papa afirmando que os índios possuem alma, para situar dois exemplos, agridem pela crueldade de um época que não parecia haver limites para impor a vontade dos dominantes. Acompanhado de cada conto, há as referências originais vindas da pesquisa de Galeano para que o leitor interessado possa ampliar suas leituras com outros materiais e outras fontes além da narrativa.

    Na composição entre Literatura e História, o escritor promove um extenso panorama de uma época difícil de ser analisada devido a sua multiplicidade cultural antes das conquistas, e sua violência após estas. Pequenas narrativas de grandes momentos históricos que estigmatizaram grande parte da América e que, ainda hoje, são vistos mais comumente pelos olhos dos homens que carregavam espadas e pilharam as riquezas do local.