Tag: Literatura Brasileira

  • Resenha | O Deus das Avencas – Daniel Galera

    Resenha | O Deus das Avencas – Daniel Galera

    Após uma sequência dedicada a narrativas longas, Daniel Galera reúne três novelas em O Deus das Avencas, lançamento da Companhia das Letras. Se sua obra anterior, Meia-Noite e Vinte, radiografava a geração de 1990, nesse novo livro as narrativas se estruturam a partir do tempo presente e se deslocam a um futuro árido.

    O trabalho do último livro, resultou em um cansaço inédito em sua carreira. Na cabine de leitura do livro, promovida pela editora, o escritor mencionou um período de latência em que duvidava da própria narrativa. O natural distanciamento temporal lhe trouxe novas experiências e ideias esboçadas, culminando nas três narrativas presentes.

    Situada em um passado recente, inesquecível pelos brasileiros, a novela O Deus das Avencas, que intitula o livro, é bem executada nas angústias internas e externas. A trama contrapõe um casal cujo filho demora a nascer, em um trabalho de parto ansioso que adentra um final de semana. O mesmo final de semana do dia da eleição de 2020 culminando nos rumos atuais do país. A contraposição entre felicidade interna sobre a composição da família e um caos prestes a ser instaurado na política é preciso.

    Como seus personagens, Galera amadureceu e, nessa narrativa, versa sobre a experiência paternal levada ao extremo, analisada sob o legado parental, indagando-se qual o futuro será das próximas gerações? Não há nenhum conceito implícito nas entrelinhas. Mas sim, a tensão de um rebento que, como um mentalista metafórico, reconhecendo um futuro tenebroso, quase se recusando a nascer.

    Já na segunda novela, Tóquio, o escritor explora uma vertente nova em sua narrativa. Ao apresentar um futuro desolado, dialoga com a tradição da ficção científica mas não perde o foco sobre o Brasil e o tempo presente. O elemento mais incômodo da trama é o fator realista como se vislumbrássemos um futuro que está logo ali. Ao contrário de muitas narrativas especulativas que inserem a inteligência artificial como uma tecnologia perfeita, a narrativa aborda um futuro em que a transferência de mentes é disfuncional, mas um dos poucos contatos existentes entre famílias e o passado conhecido. Some a isso um mundo arruinado, em grande parte destruída pela estupidez humana, e o cenário está completo.

    Fechando a trinca, Bugônia prossegue em mais um passo rumo a um futuro longínquo em que a devastação mundial traz o retorno do primitivismo e reacende a importância da natureza como harmonia. Com valores reestruturados em uma sociedade tribal, porém, o medo do desconhecido ainda se mantém. De certa forma, demonstrando como, independente dos ciclos, os humanos se mantém em vício.

    As três narrativas, embora sem compartilhar o mesmo universo, seguem uma estrutura temporal evidente. Como se previsse possíveis destruições a partir das tensões atuais, tanto na falência dos ecossistemas como nas rupturas políticas.

    Além do espaço temporal, outra unidade evidente é a narrativa de Galera, madura e precisa, mantendo um bom ritmo narrativo e se aprofundando em personagens envolventes e ricas ambientações. A todo momento, o senso de realidade em suas linhas esmaga o leitor. Como um pessimista, o autor nos convida a contemplar três narrativas sobre o fim, seja o esgarçamento moral de nossa nação, a liquidez das relações sociais ou o mundo como o conhecemos. No inevitável apagar das luzes, ainda resta a ficção. Ou quase.


  • Resenha | Guia de Sobrevivência do Exilado no Próprio País – Alexandre Meira

    Resenha | Guia de Sobrevivência do Exilado no Próprio País – Alexandre Meira

    “O seu país, o nosso país, é racista, misógino, homofóbico e, principalmente, covarde”. A excelente frase faz parte do Guia de Sobrevivência do Exilado no Próprio País (Editora Penalux), do escritor Alexandre Meira, um livro com cinco potentes crônicas que destrincham as origens do cotidiano político medíocre que impera no status quo nacional. Ambicioso, Alexandre estima em suas crônicas monólogos com informações preciosas para outros brasileiros que também se sentem reféns da necropolítica federal. Além da natureza urgente do assunto em si, grande parte do sucesso do livro está na forma como o autor maneja bem a produção das próprias crônicas.

    Crônicas, por onde começar? A crônica é um gênero híbrido por excelência, engloba tanto informações de caráter não-ficcional, jornalístico, quanto momentos de beleza literária, herança da Literatura e dos primeiros cronistas nacionais que também eram escritores de mão cheia, como Lima Barreto, Machado de Assis, João do Rio, só para citar alguns. No meio desse tempero encontramos ironias, provocações, variedade de referências (Alexandre vai do Futebol a Nelson Rodrigues, de Pizarro ao tribunal da Lava Jato, por exemplo), informações históricas (sobretudo dos anos de 1990 ao tempo atual), fatos jornalísticos, tudo muito bem costurado por eloquentes e claras frases.

    Sobre as cinco crônicas, são elas: O golpe na amendoeira; O gol da Alemanha e a revanche dos vira-latas; Pizarro, cavalos, ovos e o fim da Lava Jato; Por que eu matei Marielle?; Chão de Amêndoas. Quero destacar alguns pontos de três delas. Em “O golpe na amendoeira”, o cronista toca em primeiro plano o processo de impeachment sofrido pela presidenta Dilma por conta das “pedaladas fiscais”. Mas em segundo plano, o que chama atenção é a disputa acirrada entre dois amigos que discutem se ela cometeu ou não os crimes econômicos. “Disputa” e “Discussão” porque, como o cronista bem observa neste e em outros pontos do livro, estamos em uma época que o diálogo está morto por uma corrente política que chegou ao poder pregando a polarização dos discursos. Isso não é diálogo, é discurso com a intenção de calar correntes opostas, e Alexandre explica como esses golpes duros contra o diálogo matam também a própria ideia de democracia, que pressupõe, por excelência, o espaço para todas as pessoas dialogarem pelo bem público.

    “Por que eu matei Marielle?” é outra crônica com um assunto mais evidente, a saber, a morte da vereadora Marielle Franco em março de 2018 (até hoje ainda sem mandantes conhecidos), mas com dois assuntos secundários importantes para discussão: a banalização da violência (seja ela contra as mulheres, minorias, ou por conta de sexualidades), e como há um sistema perverso no país que trabalha incansavelmente para exterminar representantes de camadas menos privilegiadas (Marielle era negra, homossexual e de pobre origem) do país. É um sistema que tem ojeriza à mudança do status quo, que luta para manter tudo como está, com elevadores de serviço e piadas homofóbicas e racistas em cada esquina. Como bem escreve o cronista: “Nunca houve nada mais perigoso para quem tem medo de uma verdadeira mudança do que algo que abra a fórceps sua estreita visão de mundo ante um futuro viável e livre de seus preconceitos. (…) Ela [Marielle] representava justamente essa verdadeira mudança.” Quem mandou matar Marielle?

    Última crônica do livro “Chão de Amêndoas” acompanha as mudanças políticas, econômicas e sociais desde a primeira eleição democrática brasileira, em 1989, pelos olhos do autor, intercalando com a própria infância e crescimento dele. Alexandre colhe fatos históricos ao seu lado, desde a TV de tubo onde acompanhou os primeiros horários políticos em 1989, às transformações no próprio bairro e no novo cotidiano do país. Uma crônica potente que abarca história nacional, o ponto de vista humano, as transformações políticas e sociais, o nascimento de um poder paralelo na Zona Oeste carioca (milícias), exemplos de fundamentalismo religioso, entre outros pontos. Um verdadeiro exemplo de narrativa, informação e texto em sincronia.

    Guia de Sobrevivência do Exilado no Próprio País consegue atingir o que almeja: um manual atualizado para quem se propõe deixar o obscurantismo de lado e dialogar com os principais acontecimentos que nos trouxeram até o pessimista momento político atual. Este livro não possui apenas crônicas, mas monólogos que buscam fortalecer diálogos nesse espaço (em tese) democrático da política nacional. Leitura muito recomendada.

    Compre: Guia de Sobrevivência do Exilado no Próprio País.

    Texto de autoria de José Fontenele

     

     

  • Resenha | O Som do Rugido da Onça – Micheliny Verunschk

    Resenha | O Som do Rugido da Onça – Micheliny Verunschk

    Na última década, a historiografia brasileira tem sido revista, derrubando a visão estreita com enfoque nos vencedores. Aos poucos, a percepção de Brasil antes do Brasil, terreno fértil, culturalmente e fisicamente massacrado pela colonização, tem sido reconhecido como as verdadeiras raízes de nossa nação.

    O Som do Rugido da Onça da historiadora e poeta Micheliny Verunschk é uma dessas narrativas que reconfigura, simultaneamente, a literatura e a história brasileira. Desloca os colonizadores para a margem e, principalmente, destaca dois índios como figuras centrais desse romance histórico, nativos sequestrados – ou salvos, como diriam os colonizadores – e levados a Europa. Em paralelo a essa ação, temos um enfoque contemporâneo  no qual uma personagem visita uma exposição artística em um museu e observa as ilustrações desses índios feitas como registros históricos da época. A conexão produz uma pergunta explícita: como lidamos com o peso histórico dos antepassados?

    Se retrocedermos o marco zero brasileiro além da descoberta, observaremos uma vasta quantidade de povos com uma ampla riqueza cultural. Ainda hoje, talvez por economia ou padronização, os povos nativos foram resumidos a uma figura, a do índio, que embora possuam elementos em comum como um belo respeito mítico a natureza, têm estruturas, sistemas sociais e religiosos distintos. Se hoje são quase marginalizados sem amparos governamentais, são povos fundamentais em nossa identidade.

    Verunshk demonstra essa riqueza brasileira através de uma das personagens centrais, Inê-ê, a nativa miranha colonizada pela expedição austríaca e posteriormente chamada de Isabella. É seu martírio de dor e incompreensão que observamos esse período de nossa história. Um contraponto diante das sempre elogiosas análises feitas a expedição do botânico Karl Friedrich Philipp von Martius e o biólogo Johann Baptist Ritter von Spix. Sem dúvida, suas pesquisas descobriram uma ampla gama de espécies registradas em nosso país, mas se por um lado observavam a natureza com beleza e harmonia, ainda consideravam os nativos indígenas como uma raça inferior em comparação a branca (em textos posteriores, Martius rejeita esse preconceito).

    Ao situar um espaço histórico em contraposição com o presente, é perceptível como as fraturas desse país colonizado a preço de sangue ainda seguem estilhaçando nossa identidade. Mantendo o eterno paradoxo de um país que a cada dois passos rumo a um progresso, retrocede um. O quanto somos conectados com nosso passado ancestral comum? Qual valor real damos aos povos nativos ou sua valia se situa apenas historicamente? Perguntas amargas que o romance suscita nas entrelinhas.

    Iñe-e, a personagem central da narrativa, é a representação dos povos massacrados. Da perda de nossa identidade primordial e da imposição vivida pelo domínio. Seus laços com a terra-mãe são apresentados com profundidade, como se os nativos compreendessem o ciclo natural como um todo. A realidade cede a um elemento mágico em que a própria personagem sente a natureza como parte integrante de si. Não a toa, é representada pela onça, um animal importante em sua infância, e que um dia foi abundante nas matas brasileiras. É por sua dor que o leitor observa a violência do exilado, a captura, o subjugo e a sensação desumana de superioridade dos povos brancos da época. Sendo uma narrativa histórica, reconhecemos que qualquer desfecho é trágico.

     O Som do Rugido da Onça faz parte de uma nova vertente da literatura contemporânea que deseja, de uma vez por todas, apresentar a multiplicidade narrativa de nossa história. Embora o Brasil insista em se manter parcialmente colonial, nossa história ancestral necessita de liberdade. Onça a onça.

  • Resenha | O Fim e o Começo – Bruno Sanches

    Resenha | O Fim e o Começo – Bruno Sanches

    A estreia de um novo autor sempre é carregada de expectativa. Uma obra inicial é um convite aos leitores rumo a um novo universo literário. Traz o carinho do autor como se desse luz a um primeiro filho e se apresenta como um cartão de visitas a procura de leitores e leituras atentas.

    O lançamento de O Fim e o Começo marca duas estreias em paralelo. Ao mesmo tempo, inicia formalmente a carreira do bauruense Bruno Sanches no universo narrativo (anteriormente participou apenas de antologias), como também é uma obra lançada no primeiro ano da recém-fundada Mireveja, de João Correia Filho. Uma expectativa em dobro.

    Nos treze contos que compõe o livro, observamos um narrador atento ao mundo contemporâneo, ciente de certa condição combativa do mundo, mesmo nos menores sinais. Como um analista da sociedade atual, Bruno destaca a selva de pedra em personagens reconhecíveis por qualquer leitor: vigaristas, mentirosos, amantes, preconceituosos, e outros conflitos infelizes de nossa sociedade. Todos compostos em um estilo narrativo que mistura um relato atual, como crônica, e intenso como conto.

    Se a estrutura do conto é evidentemente diferente do romance pelo espaço temporal, a delimitação entre conto e crônica não é tão nítida. Antonio Prata, um dos grandes cronistas contemporâneos, demonstra em seus livros a falta de definição precisa entre os relatos citados.  A narrativa de Sanches trabalha no mesmo escopo. A brevidade narrativa e a reprodução dos fatos cotidianos se alinham a crônica, a observação filosófica dos fatos vem da veia do conto, com uma narrativa que fisga o leitor nas primeira linhas. Narrativas com punch, como define Julio Cortazar em sua teoria sobre contos.

    A unidade narrativa entre eles advém de um autor atento, levemente irônico, que faz o leitor refletir se a fidelidade das situações narradas são frutos de sua criatividade ou um reflexo de suas observações pela selva de pedra. Qualquer resposta para essa pergunta é corromper uma das graças da literatura.

    Quando não observa o cotidiano, o autor também dá vazão a sua paixão pela música, não apenas nas presentes citações a títulos e trechos de canção como em dois contos especiais: O lado escuro da lua, uma viagem tão transcendental como os ácidos que a banda Pink Floyd tomava para realizar seus discos psicodélicos, apresentando uma fictícia (será?) entrevista com Alan Parsons, técnico de som da banda, para uma análise sobre teorias da conspiração e arrebatamento musical. Além dele, um dos contos mais sensíveis do livro, Silent Lucidity, mantém a tônica musical em um drama que é impossível terminar a leitura sem os olhos embargados.

    As narrativas em cada conto se alinham também com a estética da obra como livro físico: uma capa em cores fortes, viva, destacada com ilustrações de larvas e borboletas, tanto em sua capa, quanto em páginas internas. Fins e começos narrativos, registrando ciclos. Os meios ficam a cargo do leitor. Nessa jornada, o livro de estreia de Sanches tem muito a dizer, sem perder qualidade em nenhuma das narrativas.

    Compre: O Fim e o começo – Bruno Sanches

  • Resenha | Silicone XXI – Alfredo Sirkis

    Resenha | Silicone XXI – Alfredo Sirkis

    “Sou viciada pelo Rio de Janeiro […] Preciso da orla marítima, da linha do horizonte.”

    Como se já não fosse… curioso explorar um Rio de Janeiro futurista, junto a uma ambientação essencialmente distópica e naves espaciais individuais ao invés de carros de passeio, não é comum uma trama policial estilo Blade Runner na cidade maravilhosa, tal qual uma Las Vegas onde tudo acontece por debaixo dos panos e, quando um absurdo vem à tona, o poder público corre para manter a normalidade das coisas. Impiedosamente criticado nos anos 1980 por seus clichês de propósito (sendo a paródia assumida que é ao gênero de literatura criminal), o excêntrico Silicone XXI mostra-se um dos mais divertidos e inspiradores romances do escritor Alfredo Sirkis, autor de Corredor Polonês, Roleta Chilena e outros livros dos anos 80 que precisam ser redescobertos, graças a sua linguagem tida, ainda hoje, como a frente do seu tempo.

    Numa trama super dinâmica, contando com uma fluidez narrativa encantadora e típica do Sirkis, um assassinato muda a rotina chata do aerotel Olympus, um paraíso sexual da elite carioca e brasileira onde tudo é permitido em nome do erótico e seus prazeres. Após matar uma travesti e um robô presente no quarto, o “assassino da arma L” escapa e atrai à cena do crime o famoso inspetor José Balduíno, considerado um dos melhores investigadores da polícia do RJ. E se a primeira matança já não é escandalosa o bastante, o matador parece ter outros alvos sem aparente conexão e muito mais difíceis de pegar do que uma prostituta. E assim, Balduíno se depara desde o começo com um matador feroz e que parece estar sempre à frente da polícia, com uma psicopatia realmente genial – ou amparada por uma sorte imbatível. Mesmo num cenário cheio de micro câmeras e uma tecnologia onipresente para seguir os cidadãos, o “Coringa” do Rio segue fazendo a polícia metropolitana de idiota.

    Tarado por loirinhas e experiente em inúmeros casos, o bom e velho Balduíno percebe que não consegue mais pegar ninguém – nem a mulherada que cobiça, nem o psicopata bem dotado que adora transar com suas vítimas antes de liquidar esses corpos que usa, abusa e descarta. Nisso, a credibilidade do inspetor começa a ruir quando o caso vira assunto nacional, se complica sem parar, e tanto a mídia quanto o governo oficializam que o homicida virou o “inimigo público nº 1” do Rio de Janeiro, já que suas vítimas são cada vez mais diversificadas, mas sempre com o sexo agindo como o elemento irresistível que permeia todas essas mortes. Em Silicone XXI, o erotismo e a luxúria pingam das páginas sem pudor algum, personificado com um humor sádico e nos detalhes mais sórdidos desde os robôs sexuais, já aceitos pelas pessoas e presentes em orgias entre homens e máquinas, até toda a sacanagem (física e moral) que pode rolar, e de fato rola, nos lugares paradisíacos da capital carioca.

    Com uma serenidade quase cínica e constante, Sirkis une um erotismo latejante com o desejo que carregamos, insistentes, em vislumbrar um futuro tecnológico cheio de avanços, e perturbado pela desumanidade que quebra essa aura e esse sonho talvez impossível de progresso absoluto, humano ou científico. Em 2019, nesse cenário ultramoderno imaginado por um oceano de escritores de ficção científica do passado, a humanidade ainda não melhorou em nada, e a essência das pessoas continua a mesma – sempre guiados e alienados por nossos instintos naturais e pouca racionalidade, mas o romance está longe de ser uma crítica ao indivíduo e o coletivo. Por isso mesmo, o incorruptível detetive Balduíno, um dos clichês parodiados por Sirkis até mesmo por ser criolo para quebrar esse arquétipo de detetives brancos, é o protagonista perfeito para o romance, unindo tudo aquilo que faz do ser-humano um animal muito complexo, nesse cenário tropical e falsamente utópico.

    Evitando a gratuidade das polêmicas ou escatologias, Silicone XXI satiriza esse tesão idílico pelo progresso a ser conquistado, e também encarna essa sátira nos próprios desejos sexuais e profissionais de Balduíno e seus aliados de investigação, frustrados porque não há perfeição possível numa vida ou numa cidade regida por homens cheios de ambições e contradições. A ameaça do “assassino da arma L” (tarado em usar sua pistola de raio laser nas vítimas) é a desculpa perfeita para Sirkis desdobrar o seu primeiro roman noir que se leva a sério na medida certa, e se ironiza sem vergonha no decorrer de curtos e enxutos capítulos – ainda que se perca em uma série de esclarecimentos descartáveis em ‘Ramon’, a última parte de um livro cujo atmosfera é estruturada em suspense. Vale lembrar que a maioria da crítica literária, ainda em 1985, revelou-se puritana na época, bem aquém às questões levantadas por Sirkis. Eis o crítico supremo, o tempo, saudável as boas e grandes obras, e aos vinhos, também. Não vamos esquecer dos queijos.

  • Resenha | Corredor Polonês – Alfredo Sirkis

    Resenha | Corredor Polonês – Alfredo Sirkis

    “Nesse frio, circo nenhum pega fogo. Circo gela.”

    Naturalmente, há poucas semelhanças entre Brasil e Polônia. O primeiro, conhecido por suas praias, festas e outros elementos tropicais; o segundo, por seu passado impiedoso e um gelo que parece impregnar a tudo, e todos. Dois universos díspares dentro de um mesmo planeta marcado por grandes conflitos cujas marolas, praticamente, não chegaram com força nem mudaram os rumos no maior país da América Latina. Entretanto, durante a segunda guerra mundial, no longínquo ano de 1939, os poloneses serviram de berço oficial ao conflito, e assim, conheceram na pele a crueldade humana que pode se esconder naquelas suas gélidas veredas que os calorosos brasileiros não conseguem nem imaginar, palco, certa vez, de uma frieza muito mais aguda que quaisquer temperaturas abaixo de zero que o homem já teve de enfrentar.

    Sabendo da neutralidade brasileira diante de quaisquer eventos da história polonesa, e da nossa total falta de identificação sobre o passado ainda latente de um país tão distante, em tudo, do nosso, o escritor, jornalista e político carioca Alfredo Sirkis arquiteta seu Corredor Polonês em torno do humanismo, e do humanitarismo pós-guerra. Ou seja, temos em voga uma obra na qual seu mais sincero fervor, e a sua brilhante capacidade biográfica, e em formato de crônica, dentro do contexto cultural de qualquer sociedade, se dá através de uma compreensão universalmente acessível quanto ao drama de ter a sua vida, sua família e sua pátria devastadas por invasões, combates intermináveis, e um infinito de crimes contra a humanidade. Mesmo assim, no seio de uma família destroçada pela partida de seu patriarca, o Dr. Binek, o que sobram a suas filhas (e à memória de todos os envolvidos no processo árduo de sobrevivência dos poloneses) são os valores de uma gente que encontrou na decência aprendida em família, e no nacionalismo, a chave para uma utópica e desesperada resistência.

    O livro da editora Record é fruto de uma longa pesquisa de Sirkis, dono de uma prosa irresistível, e que revira os ecos dos imigrantes poloneses no Brasil cujo DNA para sempre será fortalecido pelos traumas deste povo, quase exterminado, com suas mulheres enviadas ao sofrimento no frio e miséria absolutos no norte da Ásia (o “fim do mundo”, como apelidam as filhas de Binek), enquanto o resto da masculinidade polonesa morria contra a Alemanha de Adolf Hitler, ou tentava o milagre da fuga pelas florestas do país. Em meio a desolação branca manchada de vermelho, Sirkis injeta poesia e lirismo em uma trama intimista que se debruça no real para poder existir – o tema do fascismo é por vezes presente, aqui, tal um espectro sombrio e atemporal, em várias passagens que se destacam por expor a espetacular sagacidade e sensibilidade do autor. Afinal, eis uma sociedade perdida no meio de um furacão nazista, e se engana quem acha que Corredor Polonês, numa clara alusão a faixa de terra que Hitler tanto sonhava em recuperar para a Alemanha, seja apenas sobre o percurso de uma guerra arrasando este belíssimo país europeu.

    Tudo mudou naquela invasão a Polônia, e os fantasmas desta sociedade também. Exércitos não marcham sem deixar pegadas eternas para trás, muitas vezes internas, carregadas em um mundo globalizado nos corações dos mártires, e algozes – ninguém escapa. Se há uma questão mais pertinente aqui do que a injustiça histórica que se abate ao soldado polonês que nunca chegou a testemunhar o retorno da paz a sua sagrada Polônia, pois morreu para conquistá-la, ainda que indiretamente, para que suas filhas e netas pudessem um dia entrar e sair com liberdade do país, fica sendo então: “e o Brasil, com tudo isso?”. Um país sempre visto como o novo mundo, no imaginário popular: uma árvore frondosa, virgem de grandes tempestades, com espaço o suficiente para todos se alojarem, e lá fazerem os seus tão sonhados ninhos de segurança, e de prosperidade. Mas e quanto ao passado, coloca-se na gaveta e o esquece? Ele mesmo não permita que façamos isso com ele, e o livro é justamente sobre isso. Uma grande leitura que merece uma republicação após tantos anos esgotado.

  • Resenha | F – Antônio Xerxenesky

    Resenha | F – Antônio Xerxenesky

    A dialética entre a arte do cinema, e a assim chamada arte do assassinato, em F, nunca foi tão bem explorada pela literatura brasileira contemporânea. Combinando a alma ensaística, rebelde, visionária e tresloucada de Verdades e Mentiras, com o artisticamente sedutor e charmoso mundo dos matadores de aluguel, o jovem escritor Antônio Xerxenesky une essas duas “artes” tal qual uma relação cuja intensidade e atração de cada um faz com que se choquem, de forma inesquecível, pintando o mundo de faz de conta do cinema com a realidade dura e misteriosa dos crimes encomendados pelas vozes sem rosto de quem rege o mundo detrás das cortinas. Nos anos 1980, a sociedade já havia mudado, o amor já começava a esfriar, os romances já paravam de durar. Nos anos 80, alguém queria matar Orson Welles.

    E quem desejava seu fim, pouco importa. Tudo o que Xerxenesky se interessa, em sua maravilhosa obra da editora Rocco, é com aquela menina que vai sujar as mãos com o sangue de um dos mestres supremos da sétima-arte, a mente e os esforços por trás de O Terceiro Homem, A Marca da Maldade e O Processo (três dos melhores filmes já feitos). No caso, Ana, a mulher que consegue tomar café com sua vítima em um luxuoso restaurante de Paris, minutos antes de abatê-lo, isolados num quarto de hotel. Diante da morte de seu pai, Ana é retirada do seio banal de sua família, no Rio de Janeiro, e iniciada pelo tio José no mundo das armas, dos negócios mortais, e na certeza de que a vida de alguns vale mais (muito, muito mais) que a de outros. Após treinar em Cuba com guerrilheiros que fugiram da ditadura do Brasil, Ana descobre ser ótima com facas, intimidar as pessoas, limpar sangue sem deixar vestígios, e receber uma boa grana com tudo isso enquanto cresce, sozinha, nas terras dos homens “civilizados”.

    Até que a mudança de paradigmas chegou. A busca com suas próprias mãos pelo assassinato de Orson Welles leva ana à procura de uma razão existencial, de fato, que justifique o trabalho aqui muito bem arquitetado. A medida que ele envolve a morte das pessoas (sempre sob o intuito de fazer parecê-lo um acidente, como quando a matadora se fantasia de um monstro da ficção para dar um ataque cardíaco em seu alvo, numa noite chuvosa), a não-culpa de exterminar apenas quem não presta e fez muita gente sofrer, de repente encontra uma contradição tanto moral, quanto familiar. Cada vez mais inquieta em sua consciência pela nova missão, Ana não quer matar alguém que nunca fez nada contra o mundo, como ela mesma assume em certo momento, ao voltar atrás em seu achismo de que matar o criador de Cidadão Kane, o filme-Monalisa da história do cinema, a obra-prima das obras-primas, seria o ponto mais alto de sua carreira pós-treinamento em Cuba.

    Tal constatação da jovem mulher, após vários almoços com o próprio Welles, já velho, fracassado e extremamente gordo, fantasma ambulante do grande gênio de 25 anos que já não era mais, cai por terra de forma retumbante mesmo tendo que seguir em frente com sua estratégia mortal de aniquilar o artista – tão inofensivo e interessante como o mais amável dos anciões. Soma-se a isso a questão familiar, uma vez que Ana tampouco quer seguir os passos do pai, não mais, como se a vida desse-a pelo contato com Welles a chance de rebobinar seu caminho, distanciando-a do caminho paternal daquele famoso assassino que atendia pela alcunha de Doutor Eletrochoque, algo que Ana nunca soube quando vivo, afinal tostar o cérebro de suas vítimas ainda vivas na ditadura era a especialidade daquele homem acima de quaisquer suspeitas. A fruta não cai longe da árvore, mas para Ana, antes de apodrecer, houve a oportunidade de se atingir outros horizontes.

    De posse de um clima noir tão elegante e ritmado como nos melhores romances de Agatha Christie, sem deixar de lado toda uma perturbação do ser diante de seus maiores medos e dúvidas sobre seu papel no mundo dos clássicos de Edgar Allan Poe, Xerxenesky rege com F uma breve trama cujas 200 páginas se tornam hipnotizantes desde seu início. Assim, o autor injeta sombras na colorida e efervescente década de 1980 para celebrar e questionar, com toda a poética e filosofia possíveis em sua fantástica prosa, todas as formas de arte conhecidas pelo homem, mesmo aquela que por seus agentes (do caos) também deve ser reconhecida dessa forma. Um elemento em comum entre Cinema e assassinato de aluguel, então, seria, novamente, a intensidade que ambas as artes (o que é arte?) precisam ter, em níveis diferentes, para serem consumadas. Ou ainda, o sangue e o suor que delas vertem, sem contar a paixão e o ódio que muitas vezes as permeia. Welles saberia explicar melhor. Por imagens, é claro, não por palavras.

    Compre: F – Antônio Xerxenesky.

  • Resenha | Um Romance de Geração – Sérgio Sant’Anna

    Resenha | Um Romance de Geração – Sérgio Sant’Anna

    Só a gente sabe a delícia e a dor de ser, quem se é. Essa afirmação cabe muito bem no início de uma análise do famoso Um Romance de Geração, indo assim à essência desta peça teatral transcrita em romance literário. Lançado logo no período final do regime militar do Brasil, em 1980, temos aqui uma peça de dois personagens conosco sendo o terceiro a habitar um minúsculo apartamento, num verão acachapante em Copacabana, no Rio de Janeiro. Ela, uma jornalista tentando trabalhar com seu gravador, seus pudores e suas dúvidas. Ele, um escritor bêbado com problemas existenciais e insatisfeito com sua vida insignificante, e que se prestou, foi para lançar uma espécie de best-seller e ser reconhecido exclusivamente por isso – inclusive pelas mulheres que pegou por isso, e a pouca fama conquistada, desde então.

    Compondo um panorama sobre os anseios, questionamentos e o comportamento de uma geração marcada pelo regime político imposto a ela, Sérgio Sant’Anna nos conduz através de um brilhante dinamismo literário pela aventura de uma aventura inesquecível que, inicialmente, seria sobre a literatura brasileira vivendo o impacto da ditadura. Contudo, o escritor exerce com toda sua trajetória profissional e pessoal de vida um poder incomensurável sobre os rumos desta empreitada jornalística, e Ela (como é chamada ao longo de toda a leitura) não evita em mergulhar nas palavras d’Ele (como também é assim dirigido), tal uma confidente a quem ele não consegue resistir, e desabrocha seus prazeres e angústias como se conhecesse a mulher a mais tempo que suas ex-esposas com quem casou, já prevendo o apocalipse, a seguir.

    Boêmio, o escritor narra sua vida a base de cigarros e amargura, feito um célebre conto tragicômico a transbordar, em suas confissões. Ela, mesmo priorizando as referências a seu artigo que pretendia escrever, com a ajuda dele, não resiste ao peso da vida íntima do homem, e juntos, formam um quadro de intimidades mais pessoal que muita conversa entre marido, e mulher. É claro que eles acabam transando enquanto as cortinas fecham e a luz escurecem, mas antes de Um Romance de Geração acabar, temos a certeza de que não foi por causa da garrafa de vodca, nem pelo clima quente e tropical que tanto agita os corpos, e convida ao sexo. Usando e abusando da linguagem teatral em vários momentos narrativos de pura intensidade, e emoção, Sant’Anna vai ao âmago dos seus personagens como se, para ele, fossem velhos conhecidos, tornando-os assim, também, para seus leitores.

    Reforçando o valor e a magia deste romance, substancialmente explicado no final desta edição pelo próprio autor desta publicação da Companhia das Letras, são duas mentes e dois corações vivendo e revivendo suas vidas em uma simples sala, lar de um sem número de encontros tão adoravelmente humanos quanto este livro, e isso por si só, como bem acontece aqui, já pode se tornar memorável, por natureza.

    Compre: Um Romance de Geração – Sérgio Sant’Anna.

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  • Resenha | Nunca Vai Embora – Chico Mattoso

    Resenha | Nunca Vai Embora – Chico Mattoso

    Não é mais o que se conta, mas como. Se há algo realmente valioso em Nunca Vai Embora, da editora Companhia das Letras, é a narração mais que elegante e inebriante do jovem escritor e roteirista Chico Mattoso, dono de uma habilidade ímpar na arte de desdobrar acontecimentos e tratar reviravoltas de uma forma hipnotizante, mesmo que o romance seja de curta duração, em pouco mais de 120 páginas tão adoráveis quanto possíveis. Há então curiosidade, nisso, devido ao fato de se contar, em primeira pessoa, com desamores nestas páginas que tanto amamos adorar, enquanto as mesmas alojam a tragédia anunciada de um “amor” que começa no Brasil, e talvez, termina em Cuba.

    Talvez porque ele nunca se esvai, por completo. Sem apelar para melancolias de todo gênero, Mattoso nos apresenta com grande desenvoltura, e prazer, o problemático e inseguro Renato Polidoro, menino bem educado e trabalhador, num simples consultório odontológico. Envolve-se então com Camila, estudante de cinema que, diante das reclamações do jovem e da paixão com ele, convida-o para se mudar para Havana, livrando-se de sua vida chata enquanto há tempo de mudar seu destino, sem a presença de rugas ou arrependimento, ainda. Ela, é claro, ajuda mais ele, do que o contrário, sendo que Camila não quer fugir de nada, e nutre suas paixões com mais habilidade que o garoto que vive a vida para impressionar o exigente pai. Uma vive o momento, e o outro, a procura dos finais dos seus próprios arco-íris.

    Assim, o coerente Nunca Vai Embora torna-se, desde o princípio, um romance sobre busca e fuga, em todos os sentidos. Entramos de cabeça no âmago de Renato, que topa ir com a confiante (e inocente) Camila, a rainha dos sonhos, para a efervescente e saborosa Havana, com todos os seus novos personagens, cores, lógicas e sabores da vida cubana. Nota-se como os elementos mal resolvidos de uma vida nos perseguem, à medida que tentamos ignorá-los, e olhar para frente, ou pior: para o lado. Após uma forte briga terminada em sexo e culpa violentos, Renato e Camila se separam, fisicamente, e apenas fisicamente. Sob a sombra de Camila, ele vaga com outras mulheres, em balcões de bar onde se envolve em outras vidas, e outras histórias. Sempre a procura dos finais dos arco-íris que, para ele, já se apagaram no céu.

    Sim, ela nunca irá embora para Renato, pois a chama verdadeira não se apaga, passe o tempo que for. Renato, todavia, inseguro e ainda destemido, com amigos que tentam abrir seus olhos sobre os efeitos do mundo para um homem que se compromete a enfrentá-lo, e nele viver, fica em Havana e lá estabelece suas expectativas sem fim, suas impulsividades e alegrias ocas, dessas que acabam no piscar de uma madrugada. Sua vida é a de um poeta triste, sem forças para mudar a situação, o que nos convoca a refletir: vale a pena viver do passado, por mais glorioso que este possa ter sido? Mattoso e seus personagens falam por si só, e nesta voz nos embriagamos em uma deliciosa leitura rápida, e reflexiva, em prol de possíveis releituras desta aventura “a dois”.

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  • Resenha | Sargento Getúlio – João Ubaldo Ribeiro

    Resenha | Sargento Getúlio – João Ubaldo Ribeiro

    “Mas dentro da igreja eu não atirava, porque deixava de ser igreja, não se pode matar dentro da igreja, mata-se lá fora.”

    Para quem Getúlio narra sua estória? Ninguém sabe. Talvez para seu criador, João Ubaldo Ribeiro, que nunca escreveu para si, e sim para nós. Membro da Academia Brasileira de Letras, é de um dos nossos geniais orgulhos nacionais, tendo virado lenda póstuma entre 2014, e a eternidade. Como legado, eis então a sua prosa mais consagrada, Sargento Getúlio, adaptado ao Cinema no ótimo filme de 1983, com Lima Duarte encarnando, numa entrega total do ator, como de praxe, um dos mais popularmente controversos e polêmicos personagens da literatura brasileira. Em ambas as mídias, a história de Ubaldo ignora o tempo em que acontece, aqui nos anos 40, preferindo focar-se nos principais e mais fortes e irônicos aspectos políticos, e sociais da vida nordestina, e do Brasil, enquanto país de mil facetas, lendas e valores regionais.

    Uma fábula perturbada por suas questões éticas, e políticas, que assombram cada uma das ações, e da própria voz do personagem título. Sargento da Polícia Militar em Aracaju, Sergipe, Getúlio mora no mundo, e vê o nordeste inteiro como a rua onde cresceu, casou, foi corneado, matou quem o corneou, e matou muito mais. Agora, servindo como ‘cabo eleitoral’ de um novo político de Aracaju, o velho Getúlio, já amargo e pelejado, é incumbido de escoltar um prisioneiro político sem nome (bixiguento, geralmente) do sertão de Paulo Afonso, na Bahia, até de volta a Aracaju, mais precisamente até a Barra dos Coqueiros, no litoral do estado sergipano. E no que parecia ser fácil no começo para a alma itinerante, mostra-se uma viagem de retorno ao estado de Sergipe tão custosa, e lazarenta, pra macho nenhum botar defeito.

    A cabo de levar sua entrega, a autoridade e seu inseparável amigo, Amaro, percorrem as veredas de um Brasil profundo e habitado por figuras típicas de paragens sem leis, onde primeiro vem a violência e depois a humanidade – sem jamais contar com a civilidade cínica das metrópoles. Na verdade, Ubaldo Ribeiro não promove somente, nesta obra-prima traduzida para diversos idiomas, a folclorização bruta do sertanejo, permitindo-se investigar as raízes de um povo e do seu imaginário, adoravelmente rurais, mas ainda, o choque entre um mundo agreste e arcaico com a modernização de um Brasil urbano, e em constantes mudanças sociais que não atingem facilmente seus tártaros interiores. Realidades de um mesmo estado, falando (na teoria) o mesmo idioma, mas que Getúlio desconhece. Sua língua-mãe é a faca, a bala, seu código de ética imutável. O cabra nunca que usaria uma gravata – ao bicho solto, é coleira.

    Entre as contradições, as fragilidades, as brigas e as virtudes de Getúlio, o jagunço sertanejo para quem missão dada é missão cumprida, e mesmo após a morte se necessário for, podemos analisar o retrato de um povo submetido a situações extremas, cuja responsabilidade ética por seus atos responde, na maioria das vezes, aqui, apenas a questões de sobrevivência. Pois, em terra de urubu, cangaceiro e padres perdidos em meio a violência errante, quem poderá julgar a brutalidade que os homens usam para cumprir com os seus mandatos? Getúlio não entende de política, apenas faz o seu dever e acabou. Seu primitivismo é usado como escudo aos inimigos. Como motor para dar o próximo passo. Como atestado de masculinidade. Como a resposta rústica, enfim, para o Ser ou Não Ser de Shakespeare.

    Se a Barra dos Coqueiros é o Eldorado do sargento, penando com o seu preso a tiracolo, e que chega até a ser violentado, mais de uma vez, por aquele que piedade fora de uma igreja nunca conheceu, é o próprio nordeste a figura crucial do livro. O jeito que Ubaldo descreve seus caminhos, suas pedras, seu céu, sua comida é impressionante, de cair o queixo diante de um esplendor característico estendido em uma escrita simplesmente invejável. Mas nada que se compare ao esplendor narrativo de Sargento Getúlio: construído a partir de uma espécie de monólogo de grande dinamismo e inventividade literária, em oito capítulos, formula-se assim a fala ininterrupta e criativa do protagonista e seus conterrâneos, conhecendo-se, através dela, o começo e o fim das causas e consequências dessa inesquecível odisseia pelo sertão abissal de um Brasil lendário.

    O próprio vocabulário vasto que o livro incorpora em sua linguagem, por vezes de difícil assimilação para quem não está integrado no linguajar e cultura locais, e seus vocábulos, é forjado por uma ressonância e um brilhantismo semântico sem-igual. Portanto, da mesma forma que Ubaldo não procurou vilanizar ou redimir essas figuras de um nordeste implacável, mas dar-lhes uma dimensão mais ética e política para engajar o leitor à reflexão, e ao debate que motivam e sucedem as suas ações, as palavras que o escritor usa não deixam dúvidas: há uma consciência regional aqui enorme, e explícita em todo o corpo do romance, mas principalmente, em um dos seus melhores momentos. Quando confrontado pela moralidade (questionável) de um padre a abandonar sua violenta diligência, a intensidade da resposta de Getúlio ao sacerdote é um daqueles raros momentos que não saem da memória de nenhum(a), repito, nenhum(a) leitor(a). Ubaldo não é para amadores.

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  • Resenha | Mãos Secas Com Apenas Duas Folhas – Paula Febbe

    Resenha | Mãos Secas Com Apenas Duas Folhas – Paula Febbe

    Mentira, todo mundo sabe, essa utopia praticamente impossível de, se cada um numa fila de espera escrevesse um livro sobre suas memórias ou expectativas, o mundo seria um lugar melhor – mentira. Também não é verdade que o herói não pode ser o vilão, ou os dois ao mesmo tempo, e nem por isso carece de ser chamado de “anti-herói”. Aqui, no caso do protagonista desta pequena preciosidade dramática de Paula Febbe, tudo é tão bilateral que enquanto o idoso Carlos Almeida remói sua vida (e seus crimes) entre senhas intermináveis de um atendimento hospitalar, percebemos que a realidade de uma vida é fragmentada demais para ser taxada de uma coisa só.

    Suas cores são diversas, as faces de um homem vivido também, e o desconforto que advém disso interessa só a nós, que adoramos especular sem se envolver de jeito nenhum com o alheio, perdendo o nosso tempo com Big Brother Brasil e vídeos de ‘50 Fatos Sobre Mim’ de youtubers com nada a dizer. Por sua vez, Carlos Almeida é um vovô qualquer com terríveis segredos cuja imoralidade, de tão pesada que é, não o deixa esquecer. Numa leitura rápida e ritmada, dividida em capítulos e estrofes rápidas com alto o poder de síntese de Febbe dando o tom deste conto, o aposentado fica sentado esperando ser atendido pelo doutor, entre tantos outros idosos, enquanto seu pensamento voa guiado apenas por seus instintos psicopatas.

    A autora paulistana, além de ser psicanalista, parece ter um prazer quase que inenarrável de adentrar e revirar uma mente destorcida como a do senhor Almeida, viúvo e que a partir disso, dessa revolta que fica alojada em seu âmago em perder a esposa num acidente de metrô, é capaz das coisas mais terríveis com crianças que não o devem nada, exceto, para ele, alguns minutos de prazer forçado e sem remorso algum. A psicopatia então casa com uma pedofilia crônica em Mãos Secas Com Apenas Duas Folhas, e alguns trechos cínicos e cáusticos nos causam uma revolta gigantesca que só alguém que conhece e tem coragem de desbravar a tensão e a perturbação que uma psique doentia esconde pode nos oferecer, toda vez que adentramos nela. Em seus segredos, amarrados em pequenos detalhes cheios de duplos sentidos.

    Em troca, temos em mãos uma obra curta e de grande sensibilidade com seus contornos, seu potencial de mexer com os nervos do(a) leitor(a), algo cruelmente realista que narra o gatilho e as consequências de uma segunda personalidade destrutiva – ou seriam uma só? “As palavras, às vezes, são sangue”, diz o inofensivo Almeida, frágil aos olhos que não veem o que esconde sua aparência arcaica. Assim, a publicação de 2018, da editora Monomito, tem plenas capacidades literárias (igualmente incômodas) de acordar as nossas paranoias sobre a integridade das pessoas comuns que convivem conosco, a todo momento, incapazes e impotentes dos maiores horrores sociais que pensamos viver longe de nós. Eis um dos livros nacionais mais passivo-agressivos dos últimos tempos, e cabe a cada um de nós ler e descobrir o que isso quer dizer.

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  • Resenha | O Tempo é um Rio Que Corre – Lya Luft

    Resenha | O Tempo é um Rio Que Corre – Lya Luft

    Lançado em 2014 pela Editora Record, O Tempo é Um Rio que Corre é uma síntese fundamental da prosa e dos temas centrais abordados na obra de Lya Luft, autora gaúcha que, desde o lançamento do primeiro livro de poesias, em 1964, transforma a literatura em um tear sobre o tempo, a memória, a sabedoria e a dor adquirida pela vivência.

    Transitando em sua carreira entre a poesia, narrativas infanto-juvenis, prosas ficcionais, ensaios memorialísticos, além de traduções de autores consagrados, o livro retoma elementos de obras anteriores ao estabelecer uma profunda reflexão sobre a passagem do tempo a partir de um atento observador da vida, capaz de compreender as nuances e os percalços da trajetória humana. Como definido desde o título, o rio representa a fluidez do tempo, ecoando a famosa frase do filósofo Heráclito de que não nos banhamos duas vezes na mesma água de um rio. Demonstrando como o mundo permanece em constante transformação. Uma eterna modificação em que sempre há renovação, um simbolismo evidente com a mutação da vida.

    Dividido em três partes formais que abordam a infância, a juventude e a vida adulta, a narrativa é composta a partir da construção memorialística, recordando fatos e reflexões, dando vazão ao conceito do fluxo da consciência, marcado por pausas e fôlegos, simbolizando os diversos pensamentos que se amontoam no emaranhado da memória. A voz da narradora é altamente lírica e a costura da memória feita em textos curtos e poéticos, alguns deles próximos a poemas em prosa. De fato, a própria poesia como estrutura formal também está presente na obra, demonstrando tanto a versatilidade da autora como a eclosão das referências e formas diversas pelas qual a memória pode ser construída e simbolizada.

    Luft parte da própria experiência para analisar a vivência humana, produzindo um balanço sensível de sua trajetória e compreendendo, na medida do possível, questões existências que tangem nossas indagações. Mantendo sempre uma delicadeza lírica como se a própria vida fosse tão preciosa que necessitasse de uma observação cuidadosa e sensível. Diversas memórias são abordadas em mais de um momento temporal, retomando as sensações da época vivida bem como estabelecendo uma nova reflexão a partir da maturidade, contemplando, assim, as mudanças e a evolução de uma memória vivida e reconfigurada pela própria trajetória.

    A leitura fluida e a brevidade do livro também conferem densidade a obra. Afinal, uma vez mergulhados na água do rio, é impossível permanecer imóvel. Promovendo a reflexão no leitor em uma prosa lírica, O Tempo é um Rio que Corre marca a essência da obra de Luft e exalta sua competência como autora madura ainda em atividade.

    Compre: O Tempo é um Rio que Corre – Lya Luft.

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  • Resenha | Meu Querido Canalha

    Resenha | Meu Querido Canalha

    Conforme o Aurélio, “canalha” é pessoa desprovida de moral; quem não tem bom caráter. Aquilo que se refere ao que é vil, sem valor; ordinário. Que é próprio da pessoa mau-caráter, desprezível. Que não é honesto; velhaco. E é sobre essa persona tão presente tanto na ficção quanto na vida que versam as histórias deste livro.

    Apesar de a definição ter um viés um tanto negativo, o canalha não é necessariamente cruel. Digamos que sua amoralidade lhe permite colocar em prática ideias que passam pela cabeça de muitas pessoas. Não é perversidade, eles apenas são mal intencionados por princípio. E, nesta obra, o foco é um tipo específico de canalha: o conquistador barato. Aquele tipo esperto, de raciocínio rápido, cheio de malícia, lascívia e “apto” a deixar as mulheres à vontade fazendo as maiores sem-vergonhices.

    La petite mort, de Ruy Castro, conta a história de Guilherme, um Don Juan carioca que morre durante um orgasmo. O narrador, seu melhor amigo, conta algumas de suas aventuras enquanto conduz as cinzas do conquistador ao seu destino final.

    Em Ave-Maria de Schubert, Carlos Heitor Cony conta as peripécias de um jornalista que tenta se tornar um canalha. O leitor acompanha suas andanças por ambientes escusos em que, nos idos dos anos 50, casais não casados, esposas e maridos infiéis entregavam-se à lascívia.

    Baseado numa sinopse de Bráulio Pedroso, Geraldo Carneiro escreveu o conto O Bom Canalha. Luis (ou Antonio) é o clássico golpista que ambiciona dar o golpe do baú, bancando o filho pródigo. E, como narrador, é um bom exemplo de narrador não confiável. Sua mitomania é tão exacerbada que fica difícil acreditar em qualquer de suas histórias.

    Homem que é homem, de Aldir Blanc, conta em detalhes uma tentativa de conquista. Passada durante o período Getúlio Vargas, e repleta de pormenores aparentemente desnecessários, retrata bem a forma como o malandro enxerga as mulheres. O desfecho da abordagem mal sucedida, como não poderia deixar de ser, é a parte mais engraçada da história.

    Marcelo Madureira, mais conhecido como “um dos caras do Casseta & Planeta“, conta em Agnus Dei a história de um sedutor barato, seleto representante da cafajestagem carioca. O narrador conta minuciosamente todos os eventos, alguns até escatológicos, da noitada com a viúva do General. Tudo sem ruindade, afinal, ele é do bem.

    Nas mãos desses autores, os protagonistas, canalhas por excelência, tornam-se personagens “intangíveis, impalpáveis, impossíveis” e, por conta disso, apesar da canalhice fazem o leitor torcer por eles. É uma leitura agradável e totalmente descompromissada.

    Texto de autoria de Cristine Tellier.

  • Resenha | Incursões – Maurício Ieiri

    Resenha | Incursões – Maurício Ieiri

    Marco na carreira de qualquer autor, o livro de estreia sempre se pauta em alta expectativa. Simboliza o primeiro contato graúdo do escritor com o mundo externo e um possível público, tornando-se uma obra definidora de sua carreira ou um romance negado futuramente que ganha mero título de curiosidade por seus leitores. Exemplos não faltam para compreendermos essa dinâmica: o primeiro romance de F. Scott Fitzgerald, Este Lado do Paraíso, causou uma ascensão vertiginosa ao jovem autor, e se tornou o início de uma sólida carreira; Por outro lado, o primeiro romance de José Saramago, Terra do Pecado, é negado pelo autor como uma obra de pouca qualidade. Duas estreias de grandes autores, vistas sobre prismas diferentes.

    Tanto por prazer quanto por trabalho, esse crítico leu obras iniciais de diversos autores, dividido entre a curiosidade de ler um primeiro trabalho bem como contemplar grandes obras-primas. Nunca, porém, havia atravessado um conhecimento anterior da obra, focado no autor que, por coincidência, também é um amigo próximo.

    Lançado pela Azo Editorial, Incursões é o romance de estreia de Maurício Ieiri que, anteriormente, participou da antologia Contos Fantásticos da 42 (Editora 42) e publicou contos online no coletivo literário Os Caras do Clube. Explorando a metaficção na composição de um personagem escritor, somos apresentados a Thomas Oliveira, um escritor de histórias de fantasia que tenta se recuperar de uma difícil fase na vida. Após se entregar ao álcool, decide se reaproximar-se de ex-esposa e filha, mudando-se para a fictícia cidade costeira de Porto de Amy. Porém, o que encontra na sala de seu novo apartamento deixa seus planos de lado. Duas placas de metal tampam a janela da sala e algo sinistro se esconde por detrás.

    O autor parte inicialmente da obsessão do personagem – um fator inerente a qualquer escritor, afinal, todos são obcecados por narrativas e palavras – para contrapor dois momentos da vida de Thomas: seu passado em que os vícios destruíram-no e o presente em que tenta se reerguer. Aquilo que poderia ser apenas um detalhe em seu apartamento, se torna mais um objeto de destruição, ainda mais quando o personagem observa que, de fato, há algo por trás daquelas placas de metal.

    Trabalhando com elementos tradicionais das narrativas de fantasia, sem medo de expor citações cinematográficas e referências evidentes a autores que admira, como Stephen King, a obra é a primeira incursão a um gênero que sempre foi admirado por Ieiri. Ciente de que o universo de fantasia sempre esteve em voga como um nicho com um público cativo, o autor não procura desenvolver novos parâmetros para a narrativa do gênero mas propor uma narrativa bem desenvolvida diante desta tradição, construindo bons personagens e costurando-os em cenas que resultam no famoso page turner, fazendo o leitor virar página após página, curioso para saber o desfecho de cada situação.

    Composto por um narrador-observador em terceira pessoa, seu narrador é um personagem divertido e bem equilibrado. Apresentando as cenas com boas doses de estilo, sem se render para o didatismo ou descrições exageradas. Mantendo referências e citações como se dialogasse de igual para igual com o leitor, como se fossem amigos.  O texto marca a verve de um escritor em início de carreira, ansioso para que sua obra alcance um público e cative-o. Não a toa, nas mais de 500 páginas do livro, há uma solidez na composição narrativa, fruto de um autor ainda com sangue nos olhos, a faca nos dentes, dedicando-se ao máximo para o primeiro e importante passo de sua carreira.

    Ainda que ponderemos que a proximidade do autor e o crítico possa impedir certas observações com maior grau de objetividade, Incursões é uma obra sólida que, particularmente, me surpreendeu. Como se sua estreia simbolizasse uma maturidade evidente, além dos olhos do leitor comum. E trouxesse a compreensão interna de que o amigo que escrevia contos no mesmo coletivo literário, aquele que trocou conselhos sobre a escrita, deu um passo além, produzindo a primeira cria literária. Uma obra que precisa ser conhecida por um público maior.

    Em uma época editorial que a leitura ainda é vista como guerrilha no pais, com grandes editoras focando em autores internacionais com maiores possibilidades de venda e escritores-leitores se concentrando em nichos de plataformas digitais ou youtubers vendendo livros rasos, sempre é positivo se debruçar sobre um novo autor, reconhecendo que, apesar de combalida, a boa literatura brasileira contemporânea independente ainda respira. Maurício, uma bela estreia, meu caro. Bela estreia.

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  • Resenha | Vidas Secas – Graciliano Ramos

    Resenha | Vidas Secas – Graciliano Ramos

    Graciliano Ramos nasceu em Alagoas (1892) e viajou durante a juventude por várias cidades nordestinas, o que influenciou e se tornou a base para seus romances, assim como sua visão política, voltada para a esquerda da época, tanto que ingressou, em 1945, no PCB – Partido Comunista Brasileiro. Essas características (que dão forma para o período literário brasileiro logo após a primeira grande guerra e o final da segunda) onde se observa romances voltados à vida social brasileira, a realidade do povo, ao mesmo tempo em que se tece uma crítica à essa realidade, à essa estrutura. E Vidas Secas é um exemplo clássico desse período.

    O romance assume então características, somadas aquelas citadas, filhas de seu tempo,  de crítica social, sendo o livro um exemplo do Realismo,  também característico da época. A influência marxista transparece na obra, sendo o governo injusto (prefeitura, militares, burocracia, dono da fazenda) com um dos protagonistas, Fabiano, em diversas oportunidades, ao mesmo tempo em que se pune pela sua ignorância.

    A família vive como animais, fala pouco e com discurso limitado, muitas vezes sem saber ao certo como manter um diálogo, soltando frases, umas por cima das outras, sem se preocupar se o interlocutor entende o que está sendo dito ou não, podendo observar uma animização das personagens. Assim como a personagem Baleia, que é uma cadela, é humanizada em função disso, pois ela é tratada como um membro da família, nesse ponto há uma inversão, uma interpretação da própria vida das famílias retirantes.

    Vidas Secas é de uma escrita fluida e com uma estrutura que permite (com exceção do primeiro e último capítulos) a leitura dos capítulos em qualquer ordem e transmite certo ciclo da historia familiar, sempre em busca de um éden ao sul, com gado e uma cama de couro.

    Compre: Vidas Secas – Graciliano Ramos.

    Texto de autoria de Róbison Santos.

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  • Resenha | Meio Intelectual, Meio de Esquerda – Antônio Prata

    Resenha | Meio Intelectual, Meio de Esquerda – Antônio Prata

    Nove entre dez críticos ao abordarem uma obra de Antonio Prata iniciam a análise a partir de sua árvore genealógica. Se o talento é um gene passível de ser transmitido de pai para filho, é difícil não mencionar o pai Mario Prata – um dos cronistas que se adequam ao epíteto de um dos mais talentosos do país – ao iniciar uma conversa sobre Antônio. Embora seja uma raridade a filiação na literatura, há bons exemplos consagrados como Alexandre Dumas e Alexandre Dumas Filho, Stephen King e Owen King, e outras duplas que comprovam a teoria da evolução pelo meio da narrativa.

    Vencedor do prêmio Jabuti em 2010 na categoria Crônica, Meio Intelectual, Meio de Esquerda, lançado pela Editora 34 é uma reunião de crônicas que, como toda boa crônica, dilui qualquer definição de gênero. Sempre considerada como um gênero menor, uma afirmação vinda até mesmo de estudiosos da literatura, a crônica sempre foi uma espécie de patinho feio literário. Devido a seu formato breve, a necessidade de uma contextualização de fatos presentes na mídia, e outras definições de manuais, definiu-se que ela é uma narrativa datada e, portanto, menor.

    Porém, uma constatação rápida em grandes cronistas do país como Machado de Assis, Carlos Drummond de Andrade, Rubem Braga, Nelson Rodrigues e Mario Prata, demonstram que a afirmativa é uma definição simplista. Embora os autores dialoguem em maior ou menor grau com um fato observado, o estilo e a visão única de cada autor é que o marca a solidez do texto, mesmo fora de seu tempo.

    Nas quase 80 crônicas que compõe o livro de Prata, essas anteriormente lançadas em jornais e revistas, não são os fatos cotidianos e midiáticos o enfoque do autor, como uma crítica fundamentada sobre o mundo. Mas os fatos miúdos da vida, as reflexões que surgem ao acaso em uma tarde ensolarada, o caminho repetido que fazemos durante anos no carro sem nunca se questionar o porquê e outras análises que mostram a complexidade natural de cada um de nós.

    Com uma prosa rica e bem-humorada, o autor transforma pequenas observações em análises poéticas em meio a um mundo caótico. Demonstrando precisão ao abordar com qualidade tais temas em textos tão breves, De fato, não soubesse o leitor que se trata de um livro de crônicas, muitas das narrativas poderiam ser chamadas de contos pela abordagem temática e lírica de momentos que, ao menos uma vez na vida, todos irão passar: a espera de uma ligação, as brigas que acontecem por um motivo estúpido, a imaginação que não cessa ao ouvirmos os sons de nossos vizinhos.

    Prata é um atento observador do mundo ao redor e um talentoso autor capaz de transmitir tais sensações em meio a um formato simples, direto e breve, divertindo e produzindo reflexões ao leitor. Meio Intelectual, Meio de Esquerda é uma daquelas seleções que demonstram a força da crônica, contrariando qualquer afirmativa de gênero menor.

    Compre: Meio Intelectual, Meio de Esquerda – Antonio Prata.

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  • Resenha | As Horas – Alex Andrade

    Resenha | As Horas – Alex Andrade

    Livro para dias chuvosos

    A Literatura é um universo paralelo ao nosso. Não por acaso, a boa escrita tem esse poder magnífico de nos transportar a outra versão de mundo, com situações que alteram o humor de quem o lê. As Horas (2016, Editora Penalux), do escritor Alex Andrade, é um desses livros que nos inundam com uma carga emocional potente ao longo das páginas.

    A meu ver, os treze contos de As Horas, orbitam entre melancolia, raiva e ingenuidade. Talvez não sejam as emoções mais cômodas a qualquer leitor, mas a leitura do conjunto cumpre expressivamente uma das funções mais importantes da literatura: o desenvolvimento da empatia. Ou seja, Andrade encadeia de tal forma os contos que somos fisgados pelas situações dos personagens e nos colocamos no lugar deles. A inversão nos faz experimentar as mesmas emoções, e somos pegos, desprevenidamente, pela pergunta capciosa: “Eu faria algo diferente?” Essa simples pergunta transmutada em escrita já eleva a reflexão sobre todos os contos do autor.

    Em termos de técnica, Alex demonstra experiência. Notamos claramente que ele tem domínio de uma voz própria na escrita (algo raro entre os escritores), com preferência por períodos longos, pouquíssimos diálogos (ao menos nos contos selecionados para o livro), tempo retardado, e recorrentes fluxos de consciência entre os (quase maioria) narradores em primeira pessoa.

    Contudo, senti falta de certa ousadia com o não dito para incrementar a fidelidade dos contos. Explico: a utilização de períodos longos, que por vezes se confundem com o fluxo de consciência ou o fluxo das ações dos personagens, diz muito sobre a cena e entrega facilmente ao leitor uma conclusão ou um estado de espírito que permeia as situações abordadas.  Faltou, portanto, o não dito ou a descrição do momento sem a interferência do narrador, para que o leitor também possa tirar uma própria conclusão sem sofrer a interferência de outros. É a regra do “Narre, não conte”, da escrita.

    Outros pontos poderiam incrementar a experiência de leitura: em vez de optar pelos períodos maiores, alternar com mais frequência trechos curtos e longos a fim de imprimir um ritmo mais harmônico de leitura; em alguns contos, as personagens não ficaram tão nítidas porque não houve diálogo que os diferenciasse, pois a falta de dialogismo nivela com opacidade todos os integrantes do conto para, mais uma vez, ficarmos reféns da análise do narrador; alguns contos que exploraram a melancolia pareciam histórias de diferentes fases de um mesmo personagem, ou seja, senti falta de individualidade entre os narradores.

    Dos treze contos, “A menina nua” é o melhor. Supera a amplitude dos outros contos com originalidade e adiciona períodos não ditos que enriquecem a interpretação do leitor. Por fim, As Horas é um livro para ser lido com cuidado porque carrega esse poder de exercitar a empatia de cada um; exige silêncios, trás reflexões. Livro para ser lido em dias de chuva.

    Texto de autoria de José Fontenele.

    Compre: As Horas – Alex Andrade.

  • Resenha | O Interesse Pelas Coisas – Eduardo Villela

    Resenha | O Interesse Pelas Coisas – Eduardo Villela


    O Interesse Pelas Coisas
    (Editora Moinhos, 2017) é o primeiro livro solo de Eduardo Villela. Os quinze contos exploram situações cotidianas e incomuns na perseguição daquilo que por vezes foge à compreensão imediata. Distanciado, o leitor recria as situações escritas nos contos, readquire as sensações impregnadas nas palavras e, enxergando completamente o cenário, tem a chance de refletir sobre as estranhezas e alegrias do cotidiano.

    O segundo conto dá nome ao livro e também antecipa ao leitor as preferências de Villela. “O interesse pelas coisas” persegue o descobrimento e deslumbramento de um jovem de 14 anos com o mundo ao redor; paixões, amizades, família separada, comemorações, esportes etc, fragmentam a atenção do personagem em pequenos nichos de conflito. Com linguagem muito bem trabalhada e um sabor de adolescência, o conto pode ser interpretado como o impulso jovem na busca incessante pelas respostas escondidas nas experiências de vida. Ao leitor ainda cabe, involuntariamente, a reflexão íntima.

    Como os contos versam sobre assuntos variados, o leitor se surpreenderá com “Olavo Pontes”. O personagem que empresta o nome ao título é um pianista brilhante no topo da carreira. Agenda cheia, ensaios, apresentações e muitos aplausos do público e crítica fazem parte da fase de Olavo. O que quase ninguém sabe é que a criatividade do pianista aflorou após um interesse inusitado por competições de luta livre.

    Enquanto os oponentes se esbofeteiam, lutam e deixam sangue no octógono ou no ringue, Olavo Pontes compõe melodias porque consegue transformar cada golpe em nota musical. Conto de especial interesse às mentes engenhosas, pois ilustra muito bem a natureza inusitada do processo criativo.

    Outra história que merece destaque é “A Guerra da Córsega”. Nele, o autor imagina uma partida de futebol como solução para uma disputa territorial. O jogo é endossado pela própria  ONU porque ela prefere o esporte às ameaças de guerra. O interessante no desenvolvimento do conflito é que Villela trata dos desdobramentos positivos e negativos da disputa, afinal mesmo que a solução do esporte fosse adotada por outros conflitos, questões diplomáticas, midiáticas, econômicas e de tradições esportivas (ninguém aceitaria disputar um território jogando Futebol contra o Brasil, por exemplo, quer dizer, não antigamente, hoje, sim), poderiam inviabilizar semelhantes disputas.

    Por fim, nos deleita em “Interesse pelas coisas” as referências ao Rio de Janeiro (da Zona Sul ao subúrbio carioca), as referências musicais (do blues ao rap, para dizer o mínimo) e a forma de contar por vezes inocente por vezes madura, na amplitude exata do conto. Em seu livro de estreia, “O interesse pelas coisas” não é só uma busca pelas faces do cotidiano, é também uma investigação pelo ofício da escrita.

    Texto de autoria de José Fontenele.

    Compre: O Interesse Pelas Coisas – Eduardo Villela.

  • Resenha | Fisiologia da Idade – Ricardo Lísias

    Resenha | Fisiologia da Idade – Ricardo Lísias

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    Neste novo livro o autor de Divórcio entra ainda mais fundo na fronteira entre ficção e realidade e acaba por fazer uma grande homenagem à literatura através de seu primo bastardo: os quadrinhos.

    Depois do reboliço que se seguiu à publicação de Divórcio – em que Lísias conta em detalhes os eventos envolvendo o divórcio do protagonista, Ricardo Lísias -, o autor retoma, em Fisiologia da idade, essa abordagem auto-ficcional. Na coletânea de contos publicada em 2015 – Concentração e outros contos, um apanhado de textos breves escritos e já publicados, exceto o conto “Auto-ficção” – há uma sequência de contos “fisiológicos”: “Fisiologia da Memória”, “Fisiologia do Medo”, “Fisiologia da Dor”, “Fisiologia da Solidão”, ” Fisiologia da Amizade”, ” Fisiologia da Infância” e ” Fisiologia da Família”. E Fisiologia da Idade parece ser uma sequência natural a essas narrativas.

    Neste, o narrador Ricardo Lísias, que acaba de completar 40 anos de idade, tenta fugir de seus textos, afirmando que não quer escrever sobre os últimos 20 anos de vida. Acaba se propondo a falar então sobre os primeiros 20 anos, tentando reviver suas primeiras leituras, supostamente as mais marcantes, e entender suas próprias referências literárias. Ao levar o projeto adiante, vê-se à voltas com reflexões sobre o cenário atual da literatura brasileira. Em certo momento, ele se pergunta:

    “Como o Brasil chegou a um número tão grande de romances que não incomodam ninguém?”

    O texto assemelha-se a um fluxo de memória, com uma narrativa fragmentada e palavras “engolidas” propositalmente. Há fragmentos de quadrinhos, numa tentativa forçada de reviver a sensação infantil da descoberta da leitura, tuítes, até um boleto bancário que compõem e complementam a história contada.

    “Aliás, não paro de telefonar para os meus editores, pedindo para ser convidado para a.”

    Espalhando pistas sobre a natureza do narrador – falsas ou verdadeiras – Lísias, assim como em suas obras anteriores, gera no leitor algo que beira um embaraço durante a leitura. Seu texto é instigante, provocativo. Não há, nele, a intenção de indicar uma conclusão, conduzir a um desfecho. E essa narrativa aberta, aparentemente inacabada, provoca reações diversas nos leitores. Não é à toa que tantos se sentem ultrajados por não existir um limite claro entre o que é realidade e o que ficção. Mas, afinal, isso importa?

    Texto de autoria de Cristine Tellier.

  • Resenha | Investigação Olímpica – Fernando Perdigão

    Resenha | Investigação Olímpica – Fernando Perdigão

    A narrativa policial brasileira sempre foi tímida se comparada a outros gêneros. Se analisarmos o topo da pirâmide literária, a partir dos canônicos, observaremos que certos autores flertaram com o estilo, sem a consagração de obras inseridas no gênero por completo. Ainda que o Brasil conte com uma diversificada produção em vertentes distintas, há ainda uma pequena parcela de autores que escreve literatura policial e, simultaneamente, se consagra como um bom literato.

    Lançado pela editora Oito e Meio em maio do ano passado, Investigação Olímpica é o terceiro livro de Fernando Perdigão, o segundo romance focado no Detetive Andrade, um bom personagem criado no romance anterior, A Pedido do Embaixador, com grande potencial para estar na pequena (e boa) galeria de detetives made in Brazil.

    A trama se constrói a partir do fato real dos Jogos Olímpicos realizados no país em Agosto de 2016. A narrativa destaca em maior potência a personagem e suas ações do que a trama envolvendo possíveis enigmas, demonstrando que, neste caso, o como se narra é maior do que a descrição e posterior resolução de um crime em si. Sob este aspecto, Andrade é um personagem excepcional. Distante de qualquer espelhamento com grandes detetives internacionais, trata-se de um personagem rude, vacilante entre uma inteligência mordaz e um cinismo irônico, politicamente incorreto. No físico, reflete a construção de um esteriótipo policial: o homem gordo, amante da boa comida, que se destaca a partir de sua particularidade física como exceção dentro do grupo policial. Fator que encontra pares semelhantes como, apenas para nos mantermos em dois exemplos, o rotundo Nero Wolfe do americano Rex Stout e, recentemente, Cormoran Strike de Robert Galbraith (pseudônimo de J. K. Rowling). Uma composição descritiva que contraria a excelência física, potencializado um contraste que será evidente por sua inteligência.

    Andrade parece mais uma paródia do policial do que um detetive, de fato, ciente de todas as estratégias para realizar uma boa investigação. Neste aspecto, Perdigão demonstra seu domínio narrativo e o apreço pela literatura policial. Afinal, é necessário conhecer os clichês do gênero para poder parodiá-lo e, simultaneamente, enganar o leitor com a dúvida de estar diante de um genuíno detetive ou um impostor. A narrativa se fundamenta a partir da personalidade de Andrade, rude, agressivo, preconceituoso e, através de um riso grotesco, estabelece a dúvida se, de fato, haverá um crime ou se tudo não passa de teorias de um personagem afetado, um policial em terra brasilis que embebido de nossa brasilidade justifica arroubos de inteligência sem de fato tê-la.

    Submerso à investigação policial envolvendo uma possível sabotagem dentro dos Jogos Olímpicos, a trama se destaca também na destruição das aparências, e usa com adequação um evento de alto custo, não por acaso responsável por protestos por parte da população do país, como um contraponto para apresentar o conhecido status quo do país, em que, naturalmente, o popular jeito brasileiro se destaca e permeia as ações da trama.

    A prova de que as personagens e a condução narrativa é a linha principal da obra se solidifica no desfecho quando Perdigão manda as favas um ato final com a revelação do enigma, encerrando qualquer descoberta do culpado de maneira anticlimática como se fosse apenas um caso qualquer (e de fato, o autor afirmava tal feita desde o título da obra). Sem, com isso, destruir a narrativa, afinal, Andrade é a grande história e se revela um personagem autêntico daqueles que parte dos leitores terão uma relação definida entre amor e ódio, mas composto com vigor para se tornar inesquecível.

    Investigação Olímpica – Mais um caso ordinário do detetive Andrade é um respiro favorável a nossa literatura policial, com um bom personagem autêntico em um estilo tragicômico que se alinha com os contrastes de nosso próprio pais-natal.

    Compre: Investigação Olímpica – Fernando Perdigão

  • Contos | O Princípio do Fim

    Contos | O Princípio do Fim

    Para ler ouvindo: Black Sabbath – End of The Beggining 

    Nunca voltei a entrar no mar após quase me afogar quando criança. Foi a primeira experiência frágil que sofri sem que minha mãe fosse capaz de me ajudar. Eu ainda não sabia que a vida era uma sucessão de ações de quase-morte ou quase-vida. Espanta-me, portanto, anos depois, agora adulto, estar com os pés na areia, aguardando as ondas me abraçarem.

    Quando N. me disse para mudarmos de cidade, pois o mundo ficaria mais fácil com o novo emprego, eu achei, por um curto período de tempo, que ela estaria em minha vida para sempre. Que brindaríamos a existência a cada dia, enterraríamos muito dos nossos entes em conjunto, sepultura após sepultura, um ao lado do outro. Mas, em minhas mãos, sobraram apenas os dedos e uma única taça de cristal que, de maneira patética, será dedicada a um novo ano enquanto adentro o mar dando saltos a cada onda que virá.

    Nós estivemos aqui uma vez. “Larga de ser medroso, eu estou com você”, ela me disse. Mas permaneci no hotel, sozinho, enquanto ela, após uma discussão de bater portas, foi comemorar o ano novo em oferendas ao mar. Ela voltou quando os fogos tinham se dissipado, o olhar frio de quem não aceitava meus abismos. “Você é um babaca”, e deitou na cama com o vestido branco.

    Escolhi este mesmo local como um desafio. Para provar que ela estava errada diante de meus medos. Mas, provavelmente, ela riria de mim. “Abram alas para o senhor dramático, ele precisa de atenção”. Ela sabia ser cruel quando contrariada, mas creio que o fim transforma todas as relações em brumas.

    Os casais passam por mim com suas crianças birrentas. A cada passo dado na areia, os smartphones brilham pela praia para registrar os segundos. Não há nada que se deva manter para o futuro, eu penso, mas eles não param. Pergunto-me, diante de um mundo efêmero, se os registros são uma tentativa de traçar um caminho. Pedaços de pão na estrada que significam sequência e continuidade. Vimos, vivemos e vencemos. E imagino um corvo seguindo o caminho dessa estrada imaginária, comendo as trilhas de pão como um prenúncio para o caos. Eu rio pensando no quanto eles ficariam desesperados se perdessem estes registros preciosos.

    Uma garota esbarra em mim, a taça cai no chão. Ela pede desculpas, sorri, pega a taça, nossas mãos se tocam por um instante. “Um feliz ano novo para você”, diz, e seu sotaque estrala ao som das palavras. “Feliz para você também”, respondo com o mesmo som estralado. Permaneço sibilando a palavra feliz para ninguém até perceber o quanto isso soa idiota. Feliz. Feliz. O que estou fazendo aqui?

    Eu vim para enterrar um morto. Para sepultar trezentos e sessenta e cinco dias de merda pelos quais passamos. Como um mártir escolhido pelo meu povo, eu desejo que minhas preces sejam atendidas e que tudo pareça diferente quando o sol estiver de novo queimando nossas retinas. Dois mil e dezesseis foi um ano tomado pela loucura. Descemos a um novo círculo do inferno mas não há Alighieri como narrador desta jornada. Sobrevivemos de nossas ilusões.

    O bem e o mal sobre a terra como cura ao tédio enquanto tudo se desmancha. Estamos rindo, entupidos até o rabo com ansiolíticos, ouvindo fitas de gurus paraguaios dizendo que tudo ficará bem. A mentira contada mais de uma vez para evitarmos o fato de que estamos fodidos por completo.

    As horas informam que em breve um novo ano desponta no horizonte. No ar, existe uma eletricidade invisível que transforma a ilusão em esperança. Eu me imagino saltando cada onda como um astro de rock cujos movimentos são louvados pelo público. Cada movimento ruim sendo reprisado em minha memória como se pudesse ir embora pelo mar: pai, N., e cada partícula infeliz daqueles que me cercam.

    O universo realiza mais uma de suas voltas paquidérmicas, situando o espaço, o sol, e toda a artilharia espacial em um jogo que faz do futuro um novo presente. Em meio aos fogos que subirão aos céus como deuses mortos, demonstrando talento para a pirotecnia em meio ao caos, nasce um novo momento. Enquanto as mãos estão ao alto pedindo preces, as cordas invisíveis continuam nos pescoços. Em largas passadas a distância, o carrasco se prepara para a execução.