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  • Resenha | O Deus das Avencas – Daniel Galera

    Resenha | O Deus das Avencas – Daniel Galera

    Após uma sequência dedicada a narrativas longas, Daniel Galera reúne três novelas em O Deus das Avencas, lançamento da Companhia das Letras. Se sua obra anterior, Meia-Noite e Vinte, radiografava a geração de 1990, nesse novo livro as narrativas se estruturam a partir do tempo presente e se deslocam a um futuro árido.

    O trabalho do último livro, resultou em um cansaço inédito em sua carreira. Na cabine de leitura do livro, promovida pela editora, o escritor mencionou um período de latência em que duvidava da própria narrativa. O natural distanciamento temporal lhe trouxe novas experiências e ideias esboçadas, culminando nas três narrativas presentes.

    Situada em um passado recente, inesquecível pelos brasileiros, a novela O Deus das Avencas, que intitula o livro, é bem executada nas angústias internas e externas. A trama contrapõe um casal cujo filho demora a nascer, em um trabalho de parto ansioso que adentra um final de semana. O mesmo final de semana do dia da eleição de 2020 culminando nos rumos atuais do país. A contraposição entre felicidade interna sobre a composição da família e um caos prestes a ser instaurado na política é preciso.

    Como seus personagens, Galera amadureceu e, nessa narrativa, versa sobre a experiência paternal levada ao extremo, analisada sob o legado parental, indagando-se qual o futuro será das próximas gerações? Não há nenhum conceito implícito nas entrelinhas. Mas sim, a tensão de um rebento que, como um mentalista metafórico, reconhecendo um futuro tenebroso, quase se recusando a nascer.

    Já na segunda novela, Tóquio, o escritor explora uma vertente nova em sua narrativa. Ao apresentar um futuro desolado, dialoga com a tradição da ficção científica mas não perde o foco sobre o Brasil e o tempo presente. O elemento mais incômodo da trama é o fator realista como se vislumbrássemos um futuro que está logo ali. Ao contrário de muitas narrativas especulativas que inserem a inteligência artificial como uma tecnologia perfeita, a narrativa aborda um futuro em que a transferência de mentes é disfuncional, mas um dos poucos contatos existentes entre famílias e o passado conhecido. Some a isso um mundo arruinado, em grande parte destruída pela estupidez humana, e o cenário está completo.

    Fechando a trinca, Bugônia prossegue em mais um passo rumo a um futuro longínquo em que a devastação mundial traz o retorno do primitivismo e reacende a importância da natureza como harmonia. Com valores reestruturados em uma sociedade tribal, porém, o medo do desconhecido ainda se mantém. De certa forma, demonstrando como, independente dos ciclos, os humanos se mantém em vício.

    As três narrativas, embora sem compartilhar o mesmo universo, seguem uma estrutura temporal evidente. Como se previsse possíveis destruições a partir das tensões atuais, tanto na falência dos ecossistemas como nas rupturas políticas.

    Além do espaço temporal, outra unidade evidente é a narrativa de Galera, madura e precisa, mantendo um bom ritmo narrativo e se aprofundando em personagens envolventes e ricas ambientações. A todo momento, o senso de realidade em suas linhas esmaga o leitor. Como um pessimista, o autor nos convida a contemplar três narrativas sobre o fim, seja o esgarçamento moral de nossa nação, a liquidez das relações sociais ou o mundo como o conhecemos. No inevitável apagar das luzes, ainda resta a ficção. Ou quase.


  • Resenha | Baiacu

    Resenha | Baiacu

    O futuro, seja lá o que este seja, costuma ser o Eldorado e ao mesmo tempo a alma dos quadrinhos nacionais. Faz-se, então, como a busca e o ímpeto dessas HQ’s brasileiras que, um dia, tentaram se destacar, no polvoroso cenário daquele libertário período pós e durante a ditadura militar. Se o tal futuro é ousadia, mesmo, pois que seja a bússola e o espírito de uma arte orgulhosamente autoral, movida pela paixão do fazer que fez brotar tantos clássicos dos(as) artistas Laerte (Piratas do Tietê) e Angeli (Rê Bordosa). Uma das mais simbólicas e prolíficas duplas do meio gráfico, não só de São Paulo, mas do Brasil, que fizeram história sem perceber – encapsulando a realidade por seus traços inconfundíveis, suas ironias consagradas, suas incansáveis experimentações desde os anos 70 até hoje.

    Por isso que folhear e sentir Baiacu é ter um verdadeiro museu interativo, em mãos, e o leitor se pergunta se era essa a intenção. Com gosto de amostra pós-moderna em que, de página em página, serpenteia-se por corredores de pura criatividade e nostalgia, e adentramos a fundo em uma criatividade colaborativa, geralmente precisando de páginas duplas, e expandindo-se tal como a consciência por trás de imagens cujo impactos não poderiam se perder no tempo. Eis, agora, um compêndio da assim chamada por Laerte como “literatura de banca”, agora transfigurada de “literatura de livraria”. Com capa dura e o escambau para elevar formalmente a credibilidade do conteúdo, servindo de casa para fanzines e poéticas inestimáveis de artistas geniais.

    Estamos falando de uma publicação que reúne, em mais de trezentas páginas de tamanho grande, pequenos trabalhos gigantescos de inúmeras talentos que a dupla Angeli e Laerte apresenta ao grande público, mais familiarizado com a assinatura infalível desse Batman e Robin das tirinhas e dos desenhos nacionais. Uns apostando mais na palavra, outros na fotografia que de certa forma completa a prosa, a HQ, a pintura impressa e deliciosamente abstrata. Baiacu reverencia mais o futuro que o passado, mais as possibilidades que qualquer outro legado basilar. Com as contribuições de Rafael Coutinho, Laura Lannes, Daniel Galera, Guazzelli, Mariana Paraizo e tantas outras gotas numa paleta de tintas, e estilos distintos sabiamente organizados, essa anarquia rítmica dialoga com aquele ímpeto primordial, colorido e expansivo de se explorar novas formas, texturas; fazer brotar linguagens dentro de outras linguagens.

    Em todo momento, nota-se como o livro alcança seu êxito sem digressões ao transmitir a arte como uma grande metamorfose inspiracionista, e indomável. Um processo que todos amam ver, e se não o entendem, pelo menos devem enxergá-lo com o coração – ou algum outro órgão. A experiência aqui é atingida num exímio trabalho editorial da Cachalote, em 2017, na iminência do que significa o seu próprio título. Uma ode livre, catártica, de curadoria frenética, por assim dizer, ao que há de melhor na diversidade de vozes artísticas do Brasil, pegando emprestado o nome de um peixe engraçado que incha ao se sentir ameaçado para garantir a resistência que o livro representa, até mesmo em nível semântico. O futuro é um baiacu. A arte, esse monstro que os sistemas e seus agentes não matam, talvez sempre tenha sido um baiacu. Lutando para se manter ativo, num vasto reino de tubarões pequenos, médios e grandes.

    Compre: Baiacu.

  • Resenha | Meia-Noite e Vinte – Daniel Galera

    Resenha | Meia-Noite e Vinte – Daniel Galera

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    Em Barba Ensopada de Sangue, lançado em 2012, elogiado e denso romance vencedor do Prêmio São Paulo em 2013, Daniel Galera fundamentava mais uma boa obra em sua carreira, demonstrando um talento impar dentro da literatura contemporânea brasileira. Novamente em parceria com a editora Companhia das Letras, o autor lança novo romance, dessa vez concentrado na análise sobre tensões presentes no cenário atual.

    Meia-Noite e Vinte se alinha com o espaço contemporâneo, situado em uma Porto Alegre quente e movimentada, devido aos protestos públicos contra aumento de tarifas. Neste cenário, um grupo de amigos se reúne relembrando os feitos da universidade para velar um dos amigos, morto em um assassinato fatídico. Se o contemporâneo sempre é um objeto difícil para a análise de qualquer meio, desenvolver uma história neste espaço também requer delicadeza e alto grau de observação, fator que a prosa do autor garante em qualidade e estilo.

    A trama é focada neste grupo de amigos que estão na fase dos trinta anos de idade, vindos de feitos bem-sucedidos de um passado mistificado pela própria memória. A intenção de radiografar a geração atual apresenta personagens que cresceram na passagem do mundo analógico para o digital, extremamente conectado. Neste processo de transição, encontram-se três personagens, Aurora, Emiliano e Antero sobrevivendo numa realidade diferente daquela imaginada nos tempos áureos da juventude.

    Personagens que mesmo inseridos nessa era de revolução, compartilhando sentimentos via redes sociais, conectados com conhecidos e estranhos de todo mundo, ainda se sentem incompletos, incapazes de aceitar que a vida foi diferente dos planos imaginados, tornam-se adultos que ainda vivem uma insatisfação como se não amadurecessem por completo.

    A obra é narrada por estes três personagens, dando sequência temporal a fatos após a morte de Andrei, considerado um autor prodígio. Cada um deles é construído de maneira distinta mas com problemas que desembocam em um mesmo significado: a sensação insegura do presente, a urgência do contemporâneo e a falta de pilares para que se compreendam as motivações atuais de cada um, em um mundo cada vez aparentemente dividido. Diante deste cenário de modificações rápidas, os homens estão de joelhos, sem saber o que ou quem seguir em época em que tudo é reconfigurado e destruído constantemente. Apoiando-se na tecnologia e em pequenas transgressões daquilo que resta como matéria para se sentir vivo.

    Se em outras obras anteriores, o autor já foi reverenciado como um autor de geração por situar seus dramas em um espaço contemporâneo focado em sentimentos internos e universais, esta nova obra dá sequência a esta afirmativa observando o comportamento da geração atual à procura de refletir no leitor a mesma insatisfação. Semelhante à radiografia composta por Fernando Sabino em Encontro Marcado – não à toa, outro autor e romance considerado como representante de uma geração com o desencantamento do universo adulto – Meia-Noite e Vinte relata a velocidade do mundo em que vivemos, em excesso de signos ao nosso redor, sem parâmetros coesos para estabelecer limites e espaços. Uma sociedade à margem de um abismo em uma história escrita sob esta pressão e velocidade de cliques e likes.

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  • FLIP 2013: Cadê o grito do Galera?

    FLIP 2013: Cadê o grito do Galera?

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    Quatro romances, um de contos, uma história em quadrinhos, além de antologias. Com o saldo, ainda pequeno para uma um futuro longo, Daniel Galera demonstra seu talento como escritor e sua popularidade pode ser medida pela quantidade de leitores ávidos que esperavam sua chegada na Tenda dos Autógrafos para autografar, muitas vezes, mais do que um exemplar de seus livros.

    O francês Jeromi Ferrari tem na bagagem o mesmo número de livros que o brasileiro. O mais recente, O Sermão da Queda de Roma, traduzido no país e publicado pela Editora 34, foi lançado ano passado e tem dado sequência aos elogios sobre sua prosa.

    Ambos são jovens, ainda mais se levarmos em conta uma carreira que, normalmente, amadurece em torno dos quarenta anos. Além da idade e do talento ativo, tem em comum o fato de que seus últimos romances aproximam-se por temas em comum. Motivo que os uniu as 13h, no sábado,  na mesa Tragédia no microscópio.

    Barba Ensopada de Sangue, de Galera, e o Sermão, de Jerome, apresentam personagens inseridos no mundo contemporâneo dentro de um microcosmos peculiar. No primeiro, em Garopaba, em Santa Catarina. No segundo, Córsega, na França.

    A trama dos romances gira em torno de um universo limitado e específico – bem definido pelo título da mesa – que retira os contornos óbvios das personagens dando lhes certo senso de perdição que, mesmo que evitem, acabará por abalá-los.

    São prosas densas, claustrofóbicas, bem ritmadas de maneira lenta que, quando menos se percebe, angustia o leitor. Duas tramas em potencial que, bem dialogadas, transformaria este encontro em um dos melhores da FLIP. Transformaria.

    Se é necessário uma primeira ação para desencadear outras, a mediação de Noemi Jaffe pode ter sido o primeiro ponto de desencontro para uma mesa morna. Houve certa preocupação inicial em apresentar cada escritor em seu próprio espaço, talvez temerosa de que Galera se destacasse além de Jerome. As perguntas eram feitas direcionadas primeiro para um, depois para outro. Sem uma temática que conseguisse percorrer ambas narrativas, mesmo quando tudo inclinasse para isso.

    Quando surgiram perguntas para aproximá-los era impossível ultrapassar um incômodo que permaneceu. Autores respondiam as perguntas sobre a própria obra, tentavam dialogar um sobre a obra do outro mas, em seguida, faltava um fio condutor que ponderasse os assuntos e prosseguisse.

    As perguntas de Noemi eram diversas vezes muito específicas. Retirando a unidade da mesa e buscando respostas que mais se aproximavam de curiosidades do que de informações capazes de sustentar um diálogo.

    Enquanto isso, chegavam também as perguntas da platéia. E quando a mediadora começou a utiliza-las o descompasso pareceu maior. Obrigavam o pouco diálogo a mudar de tom para perguntas nulas e rasas demais que desmanchavam o começo de uma possível boa conversa.

    Nada tenho contra perguntas da platéia, mas é necessário adequá-las ao o que se dialoga para não se transformar apenas em um mero sistema de perguntas e respostas.

    No centro do palco, entre a mediadora e Daniel Galera, Jerome Ferrari parecia incomodado. Pediu desculpas no final da sessão por não parecer tão simpático, culpando certa emoção momentânea.

    Fiquei com a sensação de que o francês queria mais. Uma oportunidade maior de abertura de diálogo para que de fato discutisse com profundidade o assunto. Com uma das mãos apoiadas no rosto, o escritor parecia pensar que sua vinda ao Brasil, até então, deveria ter rendido mais.

    E ironicamente a tragédia no microscópio refletiu-se além das narrativas, pairando também sobre a mesa quase desperdiçada de dois grandes escritores.

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