Tag: literatura brasileira contemporânea

  • Resenha | O Deus das Avencas – Daniel Galera

    Resenha | O Deus das Avencas – Daniel Galera

    Após uma sequência dedicada a narrativas longas, Daniel Galera reúne três novelas em O Deus das Avencas, lançamento da Companhia das Letras. Se sua obra anterior, Meia-Noite e Vinte, radiografava a geração de 1990, nesse novo livro as narrativas se estruturam a partir do tempo presente e se deslocam a um futuro árido.

    O trabalho do último livro, resultou em um cansaço inédito em sua carreira. Na cabine de leitura do livro, promovida pela editora, o escritor mencionou um período de latência em que duvidava da própria narrativa. O natural distanciamento temporal lhe trouxe novas experiências e ideias esboçadas, culminando nas três narrativas presentes.

    Situada em um passado recente, inesquecível pelos brasileiros, a novela O Deus das Avencas, que intitula o livro, é bem executada nas angústias internas e externas. A trama contrapõe um casal cujo filho demora a nascer, em um trabalho de parto ansioso que adentra um final de semana. O mesmo final de semana do dia da eleição de 2020 culminando nos rumos atuais do país. A contraposição entre felicidade interna sobre a composição da família e um caos prestes a ser instaurado na política é preciso.

    Como seus personagens, Galera amadureceu e, nessa narrativa, versa sobre a experiência paternal levada ao extremo, analisada sob o legado parental, indagando-se qual o futuro será das próximas gerações? Não há nenhum conceito implícito nas entrelinhas. Mas sim, a tensão de um rebento que, como um mentalista metafórico, reconhecendo um futuro tenebroso, quase se recusando a nascer.

    Já na segunda novela, Tóquio, o escritor explora uma vertente nova em sua narrativa. Ao apresentar um futuro desolado, dialoga com a tradição da ficção científica mas não perde o foco sobre o Brasil e o tempo presente. O elemento mais incômodo da trama é o fator realista como se vislumbrássemos um futuro que está logo ali. Ao contrário de muitas narrativas especulativas que inserem a inteligência artificial como uma tecnologia perfeita, a narrativa aborda um futuro em que a transferência de mentes é disfuncional, mas um dos poucos contatos existentes entre famílias e o passado conhecido. Some a isso um mundo arruinado, em grande parte destruída pela estupidez humana, e o cenário está completo.

    Fechando a trinca, Bugônia prossegue em mais um passo rumo a um futuro longínquo em que a devastação mundial traz o retorno do primitivismo e reacende a importância da natureza como harmonia. Com valores reestruturados em uma sociedade tribal, porém, o medo do desconhecido ainda se mantém. De certa forma, demonstrando como, independente dos ciclos, os humanos se mantém em vício.

    As três narrativas, embora sem compartilhar o mesmo universo, seguem uma estrutura temporal evidente. Como se previsse possíveis destruições a partir das tensões atuais, tanto na falência dos ecossistemas como nas rupturas políticas.

    Além do espaço temporal, outra unidade evidente é a narrativa de Galera, madura e precisa, mantendo um bom ritmo narrativo e se aprofundando em personagens envolventes e ricas ambientações. A todo momento, o senso de realidade em suas linhas esmaga o leitor. Como um pessimista, o autor nos convida a contemplar três narrativas sobre o fim, seja o esgarçamento moral de nossa nação, a liquidez das relações sociais ou o mundo como o conhecemos. No inevitável apagar das luzes, ainda resta a ficção. Ou quase.


  • Resenha | Guia de Sobrevivência do Exilado no Próprio País – Alexandre Meira

    Resenha | Guia de Sobrevivência do Exilado no Próprio País – Alexandre Meira

    “O seu país, o nosso país, é racista, misógino, homofóbico e, principalmente, covarde”. A excelente frase faz parte do Guia de Sobrevivência do Exilado no Próprio País (Editora Penalux), do escritor Alexandre Meira, um livro com cinco potentes crônicas que destrincham as origens do cotidiano político medíocre que impera no status quo nacional. Ambicioso, Alexandre estima em suas crônicas monólogos com informações preciosas para outros brasileiros que também se sentem reféns da necropolítica federal. Além da natureza urgente do assunto em si, grande parte do sucesso do livro está na forma como o autor maneja bem a produção das próprias crônicas.

    Crônicas, por onde começar? A crônica é um gênero híbrido por excelência, engloba tanto informações de caráter não-ficcional, jornalístico, quanto momentos de beleza literária, herança da Literatura e dos primeiros cronistas nacionais que também eram escritores de mão cheia, como Lima Barreto, Machado de Assis, João do Rio, só para citar alguns. No meio desse tempero encontramos ironias, provocações, variedade de referências (Alexandre vai do Futebol a Nelson Rodrigues, de Pizarro ao tribunal da Lava Jato, por exemplo), informações históricas (sobretudo dos anos de 1990 ao tempo atual), fatos jornalísticos, tudo muito bem costurado por eloquentes e claras frases.

    Sobre as cinco crônicas, são elas: O golpe na amendoeira; O gol da Alemanha e a revanche dos vira-latas; Pizarro, cavalos, ovos e o fim da Lava Jato; Por que eu matei Marielle?; Chão de Amêndoas. Quero destacar alguns pontos de três delas. Em “O golpe na amendoeira”, o cronista toca em primeiro plano o processo de impeachment sofrido pela presidenta Dilma por conta das “pedaladas fiscais”. Mas em segundo plano, o que chama atenção é a disputa acirrada entre dois amigos que discutem se ela cometeu ou não os crimes econômicos. “Disputa” e “Discussão” porque, como o cronista bem observa neste e em outros pontos do livro, estamos em uma época que o diálogo está morto por uma corrente política que chegou ao poder pregando a polarização dos discursos. Isso não é diálogo, é discurso com a intenção de calar correntes opostas, e Alexandre explica como esses golpes duros contra o diálogo matam também a própria ideia de democracia, que pressupõe, por excelência, o espaço para todas as pessoas dialogarem pelo bem público.

    “Por que eu matei Marielle?” é outra crônica com um assunto mais evidente, a saber, a morte da vereadora Marielle Franco em março de 2018 (até hoje ainda sem mandantes conhecidos), mas com dois assuntos secundários importantes para discussão: a banalização da violência (seja ela contra as mulheres, minorias, ou por conta de sexualidades), e como há um sistema perverso no país que trabalha incansavelmente para exterminar representantes de camadas menos privilegiadas (Marielle era negra, homossexual e de pobre origem) do país. É um sistema que tem ojeriza à mudança do status quo, que luta para manter tudo como está, com elevadores de serviço e piadas homofóbicas e racistas em cada esquina. Como bem escreve o cronista: “Nunca houve nada mais perigoso para quem tem medo de uma verdadeira mudança do que algo que abra a fórceps sua estreita visão de mundo ante um futuro viável e livre de seus preconceitos. (…) Ela [Marielle] representava justamente essa verdadeira mudança.” Quem mandou matar Marielle?

    Última crônica do livro “Chão de Amêndoas” acompanha as mudanças políticas, econômicas e sociais desde a primeira eleição democrática brasileira, em 1989, pelos olhos do autor, intercalando com a própria infância e crescimento dele. Alexandre colhe fatos históricos ao seu lado, desde a TV de tubo onde acompanhou os primeiros horários políticos em 1989, às transformações no próprio bairro e no novo cotidiano do país. Uma crônica potente que abarca história nacional, o ponto de vista humano, as transformações políticas e sociais, o nascimento de um poder paralelo na Zona Oeste carioca (milícias), exemplos de fundamentalismo religioso, entre outros pontos. Um verdadeiro exemplo de narrativa, informação e texto em sincronia.

    Guia de Sobrevivência do Exilado no Próprio País consegue atingir o que almeja: um manual atualizado para quem se propõe deixar o obscurantismo de lado e dialogar com os principais acontecimentos que nos trouxeram até o pessimista momento político atual. Este livro não possui apenas crônicas, mas monólogos que buscam fortalecer diálogos nesse espaço (em tese) democrático da política nacional. Leitura muito recomendada.

    Compre: Guia de Sobrevivência do Exilado no Próprio País.

    Texto de autoria de José Fontenele

     

     

  • Resenha | O Som do Rugido da Onça – Micheliny Verunschk

    Resenha | O Som do Rugido da Onça – Micheliny Verunschk

    Na última década, a historiografia brasileira tem sido revista, derrubando a visão estreita com enfoque nos vencedores. Aos poucos, a percepção de Brasil antes do Brasil, terreno fértil, culturalmente e fisicamente massacrado pela colonização, tem sido reconhecido como as verdadeiras raízes de nossa nação.

    O Som do Rugido da Onça da historiadora e poeta Micheliny Verunschk é uma dessas narrativas que reconfigura, simultaneamente, a literatura e a história brasileira. Desloca os colonizadores para a margem e, principalmente, destaca dois índios como figuras centrais desse romance histórico, nativos sequestrados – ou salvos, como diriam os colonizadores – e levados a Europa. Em paralelo a essa ação, temos um enfoque contemporâneo  no qual uma personagem visita uma exposição artística em um museu e observa as ilustrações desses índios feitas como registros históricos da época. A conexão produz uma pergunta explícita: como lidamos com o peso histórico dos antepassados?

    Se retrocedermos o marco zero brasileiro além da descoberta, observaremos uma vasta quantidade de povos com uma ampla riqueza cultural. Ainda hoje, talvez por economia ou padronização, os povos nativos foram resumidos a uma figura, a do índio, que embora possuam elementos em comum como um belo respeito mítico a natureza, têm estruturas, sistemas sociais e religiosos distintos. Se hoje são quase marginalizados sem amparos governamentais, são povos fundamentais em nossa identidade.

    Verunshk demonstra essa riqueza brasileira através de uma das personagens centrais, Inê-ê, a nativa miranha colonizada pela expedição austríaca e posteriormente chamada de Isabella. É seu martírio de dor e incompreensão que observamos esse período de nossa história. Um contraponto diante das sempre elogiosas análises feitas a expedição do botânico Karl Friedrich Philipp von Martius e o biólogo Johann Baptist Ritter von Spix. Sem dúvida, suas pesquisas descobriram uma ampla gama de espécies registradas em nosso país, mas se por um lado observavam a natureza com beleza e harmonia, ainda consideravam os nativos indígenas como uma raça inferior em comparação a branca (em textos posteriores, Martius rejeita esse preconceito).

    Ao situar um espaço histórico em contraposição com o presente, é perceptível como as fraturas desse país colonizado a preço de sangue ainda seguem estilhaçando nossa identidade. Mantendo o eterno paradoxo de um país que a cada dois passos rumo a um progresso, retrocede um. O quanto somos conectados com nosso passado ancestral comum? Qual valor real damos aos povos nativos ou sua valia se situa apenas historicamente? Perguntas amargas que o romance suscita nas entrelinhas.

    Iñe-e, a personagem central da narrativa, é a representação dos povos massacrados. Da perda de nossa identidade primordial e da imposição vivida pelo domínio. Seus laços com a terra-mãe são apresentados com profundidade, como se os nativos compreendessem o ciclo natural como um todo. A realidade cede a um elemento mágico em que a própria personagem sente a natureza como parte integrante de si. Não a toa, é representada pela onça, um animal importante em sua infância, e que um dia foi abundante nas matas brasileiras. É por sua dor que o leitor observa a violência do exilado, a captura, o subjugo e a sensação desumana de superioridade dos povos brancos da época. Sendo uma narrativa histórica, reconhecemos que qualquer desfecho é trágico.

     O Som do Rugido da Onça faz parte de uma nova vertente da literatura contemporânea que deseja, de uma vez por todas, apresentar a multiplicidade narrativa de nossa história. Embora o Brasil insista em se manter parcialmente colonial, nossa história ancestral necessita de liberdade. Onça a onça.

  • Resenha | O Fim e o Começo – Bruno Sanches

    Resenha | O Fim e o Começo – Bruno Sanches

    A estreia de um novo autor sempre é carregada de expectativa. Uma obra inicial é um convite aos leitores rumo a um novo universo literário. Traz o carinho do autor como se desse luz a um primeiro filho e se apresenta como um cartão de visitas a procura de leitores e leituras atentas.

    O lançamento de O Fim e o Começo marca duas estreias em paralelo. Ao mesmo tempo, inicia formalmente a carreira do bauruense Bruno Sanches no universo narrativo (anteriormente participou apenas de antologias), como também é uma obra lançada no primeiro ano da recém-fundada Mireveja, de João Correia Filho. Uma expectativa em dobro.

    Nos treze contos que compõe o livro, observamos um narrador atento ao mundo contemporâneo, ciente de certa condição combativa do mundo, mesmo nos menores sinais. Como um analista da sociedade atual, Bruno destaca a selva de pedra em personagens reconhecíveis por qualquer leitor: vigaristas, mentirosos, amantes, preconceituosos, e outros conflitos infelizes de nossa sociedade. Todos compostos em um estilo narrativo que mistura um relato atual, como crônica, e intenso como conto.

    Se a estrutura do conto é evidentemente diferente do romance pelo espaço temporal, a delimitação entre conto e crônica não é tão nítida. Antonio Prata, um dos grandes cronistas contemporâneos, demonstra em seus livros a falta de definição precisa entre os relatos citados.  A narrativa de Sanches trabalha no mesmo escopo. A brevidade narrativa e a reprodução dos fatos cotidianos se alinham a crônica, a observação filosófica dos fatos vem da veia do conto, com uma narrativa que fisga o leitor nas primeira linhas. Narrativas com punch, como define Julio Cortazar em sua teoria sobre contos.

    A unidade narrativa entre eles advém de um autor atento, levemente irônico, que faz o leitor refletir se a fidelidade das situações narradas são frutos de sua criatividade ou um reflexo de suas observações pela selva de pedra. Qualquer resposta para essa pergunta é corromper uma das graças da literatura.

    Quando não observa o cotidiano, o autor também dá vazão a sua paixão pela música, não apenas nas presentes citações a títulos e trechos de canção como em dois contos especiais: O lado escuro da lua, uma viagem tão transcendental como os ácidos que a banda Pink Floyd tomava para realizar seus discos psicodélicos, apresentando uma fictícia (será?) entrevista com Alan Parsons, técnico de som da banda, para uma análise sobre teorias da conspiração e arrebatamento musical. Além dele, um dos contos mais sensíveis do livro, Silent Lucidity, mantém a tônica musical em um drama que é impossível terminar a leitura sem os olhos embargados.

    As narrativas em cada conto se alinham também com a estética da obra como livro físico: uma capa em cores fortes, viva, destacada com ilustrações de larvas e borboletas, tanto em sua capa, quanto em páginas internas. Fins e começos narrativos, registrando ciclos. Os meios ficam a cargo do leitor. Nessa jornada, o livro de estreia de Sanches tem muito a dizer, sem perder qualidade em nenhuma das narrativas.

    Compre: O Fim e o começo – Bruno Sanches

  • Resenha | O Interesse Pelas Coisas – Eduardo Villela

    Resenha | O Interesse Pelas Coisas – Eduardo Villela


    O Interesse Pelas Coisas
    (Editora Moinhos, 2017) é o primeiro livro solo de Eduardo Villela. Os quinze contos exploram situações cotidianas e incomuns na perseguição daquilo que por vezes foge à compreensão imediata. Distanciado, o leitor recria as situações escritas nos contos, readquire as sensações impregnadas nas palavras e, enxergando completamente o cenário, tem a chance de refletir sobre as estranhezas e alegrias do cotidiano.

    O segundo conto dá nome ao livro e também antecipa ao leitor as preferências de Villela. “O interesse pelas coisas” persegue o descobrimento e deslumbramento de um jovem de 14 anos com o mundo ao redor; paixões, amizades, família separada, comemorações, esportes etc, fragmentam a atenção do personagem em pequenos nichos de conflito. Com linguagem muito bem trabalhada e um sabor de adolescência, o conto pode ser interpretado como o impulso jovem na busca incessante pelas respostas escondidas nas experiências de vida. Ao leitor ainda cabe, involuntariamente, a reflexão íntima.

    Como os contos versam sobre assuntos variados, o leitor se surpreenderá com “Olavo Pontes”. O personagem que empresta o nome ao título é um pianista brilhante no topo da carreira. Agenda cheia, ensaios, apresentações e muitos aplausos do público e crítica fazem parte da fase de Olavo. O que quase ninguém sabe é que a criatividade do pianista aflorou após um interesse inusitado por competições de luta livre.

    Enquanto os oponentes se esbofeteiam, lutam e deixam sangue no octógono ou no ringue, Olavo Pontes compõe melodias porque consegue transformar cada golpe em nota musical. Conto de especial interesse às mentes engenhosas, pois ilustra muito bem a natureza inusitada do processo criativo.

    Outra história que merece destaque é “A Guerra da Córsega”. Nele, o autor imagina uma partida de futebol como solução para uma disputa territorial. O jogo é endossado pela própria  ONU porque ela prefere o esporte às ameaças de guerra. O interessante no desenvolvimento do conflito é que Villela trata dos desdobramentos positivos e negativos da disputa, afinal mesmo que a solução do esporte fosse adotada por outros conflitos, questões diplomáticas, midiáticas, econômicas e de tradições esportivas (ninguém aceitaria disputar um território jogando Futebol contra o Brasil, por exemplo, quer dizer, não antigamente, hoje, sim), poderiam inviabilizar semelhantes disputas.

    Por fim, nos deleita em “Interesse pelas coisas” as referências ao Rio de Janeiro (da Zona Sul ao subúrbio carioca), as referências musicais (do blues ao rap, para dizer o mínimo) e a forma de contar por vezes inocente por vezes madura, na amplitude exata do conto. Em seu livro de estreia, “O interesse pelas coisas” não é só uma busca pelas faces do cotidiano, é também uma investigação pelo ofício da escrita.

    Texto de autoria de José Fontenele.

    Compre: O Interesse Pelas Coisas – Eduardo Villela.

  • Resenha | Investigação Olímpica – Fernando Perdigão

    Resenha | Investigação Olímpica – Fernando Perdigão

    A narrativa policial brasileira sempre foi tímida se comparada a outros gêneros. Se analisarmos o topo da pirâmide literária, a partir dos canônicos, observaremos que certos autores flertaram com o estilo, sem a consagração de obras inseridas no gênero por completo. Ainda que o Brasil conte com uma diversificada produção em vertentes distintas, há ainda uma pequena parcela de autores que escreve literatura policial e, simultaneamente, se consagra como um bom literato.

    Lançado pela editora Oito e Meio em maio do ano passado, Investigação Olímpica é o terceiro livro de Fernando Perdigão, o segundo romance focado no Detetive Andrade, um bom personagem criado no romance anterior, A Pedido do Embaixador, com grande potencial para estar na pequena (e boa) galeria de detetives made in Brazil.

    A trama se constrói a partir do fato real dos Jogos Olímpicos realizados no país em Agosto de 2016. A narrativa destaca em maior potência a personagem e suas ações do que a trama envolvendo possíveis enigmas, demonstrando que, neste caso, o como se narra é maior do que a descrição e posterior resolução de um crime em si. Sob este aspecto, Andrade é um personagem excepcional. Distante de qualquer espelhamento com grandes detetives internacionais, trata-se de um personagem rude, vacilante entre uma inteligência mordaz e um cinismo irônico, politicamente incorreto. No físico, reflete a construção de um esteriótipo policial: o homem gordo, amante da boa comida, que se destaca a partir de sua particularidade física como exceção dentro do grupo policial. Fator que encontra pares semelhantes como, apenas para nos mantermos em dois exemplos, o rotundo Nero Wolfe do americano Rex Stout e, recentemente, Cormoran Strike de Robert Galbraith (pseudônimo de J. K. Rowling). Uma composição descritiva que contraria a excelência física, potencializado um contraste que será evidente por sua inteligência.

    Andrade parece mais uma paródia do policial do que um detetive, de fato, ciente de todas as estratégias para realizar uma boa investigação. Neste aspecto, Perdigão demonstra seu domínio narrativo e o apreço pela literatura policial. Afinal, é necessário conhecer os clichês do gênero para poder parodiá-lo e, simultaneamente, enganar o leitor com a dúvida de estar diante de um genuíno detetive ou um impostor. A narrativa se fundamenta a partir da personalidade de Andrade, rude, agressivo, preconceituoso e, através de um riso grotesco, estabelece a dúvida se, de fato, haverá um crime ou se tudo não passa de teorias de um personagem afetado, um policial em terra brasilis que embebido de nossa brasilidade justifica arroubos de inteligência sem de fato tê-la.

    Submerso à investigação policial envolvendo uma possível sabotagem dentro dos Jogos Olímpicos, a trama se destaca também na destruição das aparências, e usa com adequação um evento de alto custo, não por acaso responsável por protestos por parte da população do país, como um contraponto para apresentar o conhecido status quo do país, em que, naturalmente, o popular jeito brasileiro se destaca e permeia as ações da trama.

    A prova de que as personagens e a condução narrativa é a linha principal da obra se solidifica no desfecho quando Perdigão manda as favas um ato final com a revelação do enigma, encerrando qualquer descoberta do culpado de maneira anticlimática como se fosse apenas um caso qualquer (e de fato, o autor afirmava tal feita desde o título da obra). Sem, com isso, destruir a narrativa, afinal, Andrade é a grande história e se revela um personagem autêntico daqueles que parte dos leitores terão uma relação definida entre amor e ódio, mas composto com vigor para se tornar inesquecível.

    Investigação Olímpica – Mais um caso ordinário do detetive Andrade é um respiro favorável a nossa literatura policial, com um bom personagem autêntico em um estilo tragicômico que se alinha com os contrastes de nosso próprio pais-natal.

    Compre: Investigação Olímpica – Fernando Perdigão

  • Resenha | Grito – Godofredo de Oliveira Neto

    Resenha | Grito – Godofredo de Oliveira Neto

    Grito - Godofredo Oliveira Neto

    A tradição teatral fundamentada em grandes obras, lançadas através dos séculos e em definições teóricas postuladas, são a base primordial para o desenvolvimento de Grito, nova obra de Godofredo de Oliveira Neto – doutor em Letras pela UFRJ e vencedor do 48º Prêmio Jabuti, em segundo lugar pela obra Menino Oculto em 2005. Situado em um Rio de Janeiro contemporâneo, a obra contrasta a relação de dois personagens de idades distintas cuja ligação explícita é amarrada pelo teatro.

    Narrada pela octogenária Eugênia, uma fictícia dama do teatro brasileiro, a obra acompanha o cotidiano ao lado de Fausto, um jovem talento artístico, morador do mesmo prédio que ela, que se torna uma espécie de personagem platônico para a senhora, dando limites ao real e seu imaginário. A estrutura teatral invade a obra dividida em pequenos atos, motivação que centraliza a ação – fator fundamental no drama – e a paixão que compartilham pelo teatro, bem como certa projeção da velha dama pela juventude desejada do garoto.

    A narrativa se aprofunda no fluxo de consciência da octogenária, deixando o leitor na margem da dúvida sobre quem é, de fato, o ouvinte da história. Se são memórias relatadas para um amigo íntimo ou uma consciência própria, uma solidão que a desloca da realidade. Ou ainda um costume devido aos anos de profissão, acostumada a viver em voz alta devido às interpretações teatrais. A solidão e a nostalgia do sucesso se ressaltam nas lembranças da personagem e, ao lado do jovem Fausto, transformam o cotidiano em pequenos atos teatrais. Reinterpretando fatos cotidianos como se estivessem em cena e observando a própria vida como projeção ou possível material bruto para uma obra dramática.

    São estes princípios que fundamentam a composição híbrida do texto, explorando tanto uma narrativa quanto dando espaço para a cena teatral, movimento que leva o leitor a observar a narradora por dentro, como alguém que vive do conceito teatral e observa a vida como uma espécie de palco contínuo. O estilo misto também garante boa fluidez narrativa, pontuada entre estas cenas e pequenos atos que retomam fatos corriqueiros sob uma vertente metaficional, em que o teatro se destaca como grande arte. Valendo-se do conhecimento adquirido pela formação acadêmica, Oliveira Neto conduz a obra tanto apresentando referências sobre grandes clássicos teatrais como costurando sua narrativa como uma tragédia teatral, inserindo no texto elementos e personagens característicos que eclodem em um final digno das clássicas tragédias de William Shakespere e Sófocles, retomando uma tradição teatral fundamentada em tempos antigos.

    Grito promove uma reflexão sobre a potência da arte e de como seus artistas vivem-na de maneira intensa, permanecendo à margem conforme a solidão se adentra ou a carreira entra em crepúsculo, quando a memória se transforma em um símbolo sensível e brilhante diante da realidade obscura.

    Compre: Grito – Godofreto de Oliveira Neto

    Godofredo de Oliveira Neto

  • Resenha | O Vilarejo – Raphael Montes

    Resenha | O Vilarejo – Raphael Montes

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    Depois de seus dois thrillers, Suicidas – bom, mesmo com as falhas naturais de um autor iniciante – e de Dias perfeitos – cujo final boa parte dos leitores achou detestável – Raphael Montes apresenta ao leitor uma coletânea de contos de terror numa estrutura fix-up. A denominação é gringa mas quer dizer simplesmente que os contos são independentes entre si, mas interligados por um ou mais elementos, podendo ser lidos na ordem que o leitor preferir. Realmente, podem ser lidos em qualquer ordem, mas em O Vilarejo o mais indicado é deixar o último por último mesmo.

    São sete histórias curtas, cada uma delas enfocando um dos moradores do vilarejo e tratando de um dos sete pecados capitais. Montes faz uso de um recurso narrativo já conhecido, mas sempre interessante, afirmando que traduziu manuscritos em que constava referência a um teólogo alemão – Peter Binsfeld – que realmente existiu e escreveu sobre a classificação dos pecados, relacionando-os a demônios.

    “De acordo com seu trabalho, cada um dos demônios, os Sete Reis do Inferno, era responsável por invocar um pecado capital nos seres humanos: Asmodeus (luxúria), Belzebu (gula), Mammon (ganância), Belphegor (preguiça), Satan (ira), Leviathan (inveja) e Lúcifer (soberba).”
    (pag.8)

    Obviamente é uma honra ter seu nome citado junto ao de Stephen King na mesma frase (na capa), porém, sem querer desmerecer o autor, exceto pelo fato de partilharem do mesmo gênero, o terror, a comparação com King é um tanto quanto exagerada. Seja pela produção de Montes, parca em relação a de King, seja pelo estilo. Enquanto King é bastante descritivo, quase prolixo, Fontes é bem mais econômico nas palavras, tem um texto mais seco e, portanto, mais dinâmico, sem delongas.

    Os demônios nomeiam os capítulos, que tratam do pecado a eles relacionado. É interessante perceber como as histórias se entrelaçam, como o caminho dos personagens se entrecorta. Sob esse ponto de vista, as narrativas estão bem estruturadas. Contudo, em relação à construção de cada conto há algumas lacunas que poderiam ter sido melhor “preenchidas”, isto é, trabalhadas. Em três deles, o desfecho pode ser apreendido bem antes de revelado pelo autor – algo que, num texto tão curto, chega a ser brochante. Mas no geral, os textos se completam bem e algumas passagens são bastante chocantes, para não dizer indigestas.

    Vale destacar o projeto gráfico. As gravuras de Marcelo Damm que ilustram cada conto são impressionantes e complementam o clima sombrio das histórias. É um livro que possivelmente agrada mesmo aos leitores não habituados ao gênero.

    Texto de autoria de Cristine Tellier.

  • Resenha | Amar é Crime – Marcelino Freire

    Resenha | Amar é Crime – Marcelino Freire

    Amar é Crime - Marcelino Freire

    Segunda edição desta obra de 2011 de Marcelino Freire, Amar é Crime foi relançado pela Editora Record em edição revista e ampliada, agora com dezenove narrativas cujo tema expõe lados obscuros de relações supostamente amorosas. Seguindo a tradição característica do autor, personagens marginalizados narram suas histórias como um desabafo. Apoiado na oralidade, cada personagem parece dialogar com o leitor sobre sua situação.

    O escritor transita por diversos tipos de personagens destacando sempre o lado miserável da natureza do homem. A exploração sexual, os desejos escondidos, o amor por interesse, e outros sentimentos que traçam um panorama agressivo sobre a sociedade. O amor como crime presente no título parece rir de seus personagens, poucas histórias se destacam falando sobre um amor verdadeiro. Tratam-se de relações de poder, violências desgastadas de vozes cansadas da exploração.

    Freire evolui em sua proposta estética fundamentada desde o primeiro livro de contos, Balé Ralé. Dando maior vazão a poesia de sua prosa crua, que ganha maior ritmo e mantém o resgate expressivo da oralidade com palavras típicas da fala. As personagens transitam entre um contexto empobrecido rumo a um enobrecimento narrativo. Uma tensão narrativa que destaca situações mundanas de seres que são vistos pela sociedade como pequenos e desvalidos, embrutecidos pela pobreza, seja ela explícita ou de alma. Cenas que sem nenhum pudor estético escancaram situações agressivas ou desamparadas.

    O choque continua afiado em suas palavras, tanto nas imagens que propõe quanto no uso do sexo como transgressão, como a primeira narrativa do livro, um poema concreto semelhante em tema e impacto com Homo Erectus de seu primeiro livro, belo conto que questiona o quanto a sexualidade alheia é vista com interesse por outros. Relatos cotidianos que o leitor parece um intruso pela riqueza narrativa, transformando-o em um observador nato de situações em que o amor nem sempre é evidente ou puro.

    Composto por contos breves, em sintonia com o universo contemporâneo de tempo escasso, a obra é um conjunto de narrativas ásperas que prezam o conceito do conto como uma narrativa de impacto preciso no leitor, um golpe rápido e certeiro que causa, no término de sua leitura, um vazio para a reflexão necessária.

    Compre: Amar é Crime – Marcelino Freire