Resenha | O Som do Rugido da Onça – Micheliny Verunschk
Na última década, a historiografia brasileira tem sido revista, derrubando a visão estreita com enfoque nos vencedores. Aos poucos, a percepção de Brasil antes do Brasil, terreno fértil, culturalmente e fisicamente massacrado pela colonização, tem sido reconhecido como as verdadeiras raízes de nossa nação.
O Som do Rugido da Onça da historiadora e poeta Micheliny Verunschk é uma dessas narrativas que reconfigura, simultaneamente, a literatura e a história brasileira. Desloca os colonizadores para a margem e, principalmente, destaca dois índios como figuras centrais desse romance histórico, nativos sequestrados – ou salvos, como diriam os colonizadores – e levados a Europa. Em paralelo a essa ação, temos um enfoque contemporâneo no qual uma personagem visita uma exposição artística em um museu e observa as ilustrações desses índios feitas como registros históricos da época. A conexão produz uma pergunta explícita: como lidamos com o peso histórico dos antepassados?
Se retrocedermos o marco zero brasileiro além da descoberta, observaremos uma vasta quantidade de povos com uma ampla riqueza cultural. Ainda hoje, talvez por economia ou padronização, os povos nativos foram resumidos a uma figura, a do índio, que embora possuam elementos em comum como um belo respeito mítico a natureza, têm estruturas, sistemas sociais e religiosos distintos. Se hoje são quase marginalizados sem amparos governamentais, são povos fundamentais em nossa identidade.
Verunshk demonstra essa riqueza brasileira através de uma das personagens centrais, Inê-ê, a nativa miranha colonizada pela expedição austríaca e posteriormente chamada de Isabella. É seu martírio de dor e incompreensão que observamos esse período de nossa história. Um contraponto diante das sempre elogiosas análises feitas a expedição do botânico Karl Friedrich Philipp von Martius e o biólogo Johann Baptist Ritter von Spix. Sem dúvida, suas pesquisas descobriram uma ampla gama de espécies registradas em nosso país, mas se por um lado observavam a natureza com beleza e harmonia, ainda consideravam os nativos indígenas como uma raça inferior em comparação a branca (em textos posteriores, Martius rejeita esse preconceito).
Ao situar um espaço histórico em contraposição com o presente, é perceptível como as fraturas desse país colonizado a preço de sangue ainda seguem estilhaçando nossa identidade. Mantendo o eterno paradoxo de um país que a cada dois passos rumo a um progresso, retrocede um. O quanto somos conectados com nosso passado ancestral comum? Qual valor real damos aos povos nativos ou sua valia se situa apenas historicamente? Perguntas amargas que o romance suscita nas entrelinhas.
Iñe-e, a personagem central da narrativa, é a representação dos povos massacrados. Da perda de nossa identidade primordial e da imposição vivida pelo domínio. Seus laços com a terra-mãe são apresentados com profundidade, como se os nativos compreendessem o ciclo natural como um todo. A realidade cede a um elemento mágico em que a própria personagem sente a natureza como parte integrante de si. Não a toa, é representada pela onça, um animal importante em sua infância, e que um dia foi abundante nas matas brasileiras. É por sua dor que o leitor observa a violência do exilado, a captura, o subjugo e a sensação desumana de superioridade dos povos brancos da época. Sendo uma narrativa histórica, reconhecemos que qualquer desfecho é trágico.
O Som do Rugido da Onça faz parte de uma nova vertente da literatura contemporânea que deseja, de uma vez por todas, apresentar a multiplicidade narrativa de nossa história. Embora o Brasil insista em se manter parcialmente colonial, nossa história ancestral necessita de liberdade. Onça a onça.