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  • Resenha | Os Zeróis

    Resenha | Os Zeróis

    O livro Os Zeróis de Ziraldo é a cereja do bolo na prova factível da genialidade do mais celebrado cartunista brasileiro de todos os tempos. A publicação da editora Globo resgata, em um grande trabalho de curadoria e restauração estética nas suas amplas páginas, toda a criatividade e ousadia do autor de O Menino Maluquinho em épocas ditatoriais, avessas para com a liberdade de expressão. Aqui, temos a face mais saudosista e debochada de Ziraldo, daquele menino que cresceu lendo gibis de super-heróis, e ainda nas décadas de 60 a 80, enfrentou o regime militar e os absurdos desse tempo com a ajuda do Fantasma, Homem de Ferro, Capitão América e outras figuras que, ridicularizadas, reforçam e emblemam suas críticas atemporais ao “todo poderoso” sistema ditatorial. As armas? Lápis e papel contra os tanques e a repressão do estado.

    Quando a censura comia solta no Brasil, e o AI5 tornou-se uma realidade, a ficção confiou em Ziraldo para ajudar a opinião pública a enxergar o ridículo da situação. Em Os Zeróis, aprendemos que o caminho trilhado pelo autor nos jornais cariocas da época foi repleto de desafios, impostos a ele e outros cartunistas que, se não foram perseguidos pelo governo, é porque não trabalharam corretamente. Lembrando que nada cutuca mais o autoritarismo do que uma boa charge, Ziraldo também apostou nos cartuns do Jornal do Brasil e do lendário O Pasquim (jornal que a partir de 1969 se opôs a censura, como veículo independente) para se destacar, indiscutivelmente, como um gênio sem lâmpada mágica – ora devido a suas sutis e espetaculares ideias gráficas, ora por seu impressionante poder de síntese quanto as temáticas polêmicas, nos idos terríveis de Castelo Branco e companhia.

    Porque a arte não se cala, ela grita. Muito além da ditadura na república brasileira, Ziraldo expôs a tensão não somente da Guerra do Vietnã, mas da Guerra Frita entre EUA e Rússia sem precisar de muitas palavras para isso, e da forma mais célebre possível. Usando e abusando dos ícones da cultura pop americana, o cartunista desenhou Superman descansando na lua ao lado da bandeira norte-americana, enquanto russos chegavam na lua “atrasados para a festa”. Em outro momento, Ziraldo fez o Capitão América correndo com o símbolo da ‘foice e do martelo’ no seu escudo, evidenciando assim a influência ideológica de uma política, nos símbolos de outros países. A genialidade de Ziraldo nunca conheceu fronteiras, e reconhecida mundialmente, fez arte e política se casarem num matrimônio perfeito.

    Mas foi com as ideias baseadas no Tarzan e Shazam! que nosso orgulho nacional ganhou as capas de revistas estrangeiras, e logo em seguida, os louros por sua contribuição as belas-artes, ainda nos anos 1960, no auge de sua produção catártica. Já na época, Ziraldo também se contestava sobre o que lhe restava fazer, e ciente de que terminaria seus dias como pintor (caso sobrevivesse a ditadura, até 1985), vinha sonhando com os seus Zeróis, seres adoravelmente defeituosos, pintados em cavaletes e além das charges de jornal. Uma validação de seus cartuns longe das suas onomatopeias coloridas e imortalizados agora na dimensão das telas pictóricas em acrílico num tempo mais livre, sem a preocupação anterior de ser calado pela grande mão invisível do sistema. O clima, agora, era outro, e por que não reler grandes obras do passado com a participação de suas próprias criações?

    Assim, desde 2008, o autor passou a incorporar suas versões achincalhadas do Batman, Zorro e Mulher-Maravilha dentro de clássicas pinturas mundiais, inserindo (no mais genial de seus quadros) o Superman no “Gótico Americano”, em pé entre os dois ruralistas pintados por Grant Wood. Para quem não sabe, o quadro é um monumento da história do povo estadunidense, e Ziraldo, assim como em “Las Meninas na África”, numa releitura com o Fantasma dentro do quadro da fase cubista de Picasso, vê na realidade a principal ferramenta para exercitar sua maestria expansionista – sempre com uma irreverência ácida e pertinente, e um traço igualmente inconfundível. Os Zeróis cobre todo o seu esplendor artístico ao retificar o lugar especial que o artista merece ter na história da cultura do Brasil, sendo ademais um artista veterano digno de adoração por toda a esfera humana, aquela que preza pela mais fina flor do bom gosto e do bom humor.

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  • Resenha | A Ilha – Aldous Huxley (2)

    Resenha | A Ilha – Aldous Huxley (2)

    “Shivanayama!”

    Uma sociedade regida sobretudo pela iluminação. Em todos esses anos de profissão, o jornalista francês Will Fanarby, acostumado a viajar em busca de furos polêmicos de reportagem, não esperava ser possível algo tão delirante, e tão perfeito, assim. Quando um homem acostumado a ver de perto a fome e a miséria na África, encardido pelos horrores e valores do mundo, se vê como náufrago cada vez mais infiltrado em um verdadeiro modelo extraordinário de civilização, antagônico ao capitalismo e seus fatores socialmente excludentes, ele sabe que está a viver uma ficção científica que nunca julgou ser possível existir, na vida real. A experiência n’A Ilha é forte, inesquecível, e Aldous Huxley, autor do igualmente marcante O Admirável Mundo Novo, consegue ser atemporal ao revisitar, sob uma visão crítica e otimista, uma concepção de mundo idealizada no levante progressista do ser humano e suas relações para consigo e seu meio ambiente, muito antes da era da internet em que se esperava que a humanidade, então integrada na era da informação, finalmente fosse iluminar seu intelecto em prol de si mesma. Outra utopia, como mostram os eventos do começo do século XXI.

    O livro, um marco visionário do século passado e que ainda aguarda uma adaptação à altura no Cinema, possui uma abundância de personagens a influenciar Will por seus comportamentos, um tanto, diferentes. Nota-se a exploração desse termo “diferente” pela obra dentro da tradição de uma literatura utópica, pois esse estranhamento do jornalista com os habitantes da idílica ilha de Pala é derivado, aos olhos de Will, pela falta de adequação dessas pessoas com os valores perpétuos do capitalismo. Nosso distanciamento com a natureza e a espiritualidade, e a lógica que o cidadão capitalista aceita em descartar tudo (e todos) com total facilidade, nesse modo de vida onde todas as coisas é Mercado, e todas as pessoas são mercadoria, não é em vão: na modernidade líquida que o sociólogo Zygmunt Bauman tanto defendeu na sua obra, como seria bom escapar, numa fantasia plenamente escapista, para o único lugar da Terra onde o racionalismo capitalista não iria nos consumir, onde nós não seriamos os produtos espionados pelos olhos das grandes corporações. Onde não teríamos preço, e onde sua utopia seria justamente pautada por tudo isso.

    Mas qual o preço de escapar da normalidade imposta a civilização do capital? Revisão e horror, é claro: revisão do quadro inteiro que alguém faz parte, e por isso mesmo não consegue ver por completo, e no momento que está fora, consegue, e o horror decorrente a isso – para o homem que não nasceu na sociedade perfeita, mas foi ali colocado, o choque com a chamada “perfeição” é gigantesco. “As pessoas boas e cordatas não têm ideia do que o mundo é feito!”, vocifera Will em certo momento, encaixando as peças da realidade na sua mente, imune a cegueira que o dia a dia na sociedade desenvolve ao cidadão. No exercício de deixar para trás um sistema mundial vigente que só pensa em escala industrial, no uso as vezes violento e as vezes sutil das ovelhas para que os lobos alcancem seus objetivos, o jornalista Will se depara com uma vida bidimensional que se tornaria a maior prova de resistência de todas, afinal, ele se integra aos valores da ilha indo invariavelmente contra os interesses do mundo exterior. Pala, portanto, está longe de ser a ilha de Themiscera das Amazonas, a qual também seria, cedo ou tarde, invadida pelos lobos.

    Muito além da dinâmica “mártir versus vilão”, ou “imperialismo versus colônia”, Huxley no seu último clássico mostra o preço de se resguardar diante da realidade – o preço de viver sonhando na máquina não-eterna das experiências – através das cinco dimensões do conceito de bem-estar do ser humano, nos quesitos culturais, sociais, mentais, corporais e espirituais que regem a nossa percepção. Virtuosamente estruturados em cada uma dessas áreas de suas vidas, os habitantes de Pala são as melhores versões de si mesmos, enquanto que Will passa cada vez mais a entrar em contato com o seu Eu interior, algo condenável no capitalismo das coisas, afinal tudo e todos precisam ser superficiais para que não haja sentimentos envolvidos no descarte desse tudo, e desse todo. É esse capitalismo predatório, e inevitável nos quatro cantos da Terra como a lua influenciando suas marés que faz de A Ilha um romance tão trágico, quanto brilhante. A “antiutopia” aqui passa a ser real na narrativa, já que conhecemos um alojamento de inúmeras utopias, aprendemos a se apaixonar por esse lugar e suas virtudes até os mínimos detalhes, para que então, o castelo de areia se desfaça, e a coruja de Minerva possa voar para sempre, buscando por novos caminhos.

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  • Resenha | O Caçador de Pipas – Khaled Hosseini

    Resenha | O Caçador de Pipas – Khaled Hosseini

    Quanto do passado a gente carrega? Difícil não se perguntar isso (e deixar a resposta emergir da nossa alma) no término de O Caçador de Pipas, a famosa história de Khaled Hosseini que evita sequer dedilhar em polêmicas sobre sua região do Oriente Médio, e nos entrega a mais simples e ainda a mais gostosa das narrativas sobre dois garotos que pensavam ser livres, e esse foi o pecado deles em sua “inabalável” amizade. O tempo, esse sim, poderoso, se faz generoso até certo ponto com a sua relação inocente e sincera, mas com um pequeno problema, desde antes dela começar: Amir é um pashtun, e Hassan um hazara, dois povos marcados por conflitos históricos, entre eles, nos quais o povo de Amir levou a melhor. Se Amir e seu pai são ricos, Hassan e seu pai são seus empregados numa suntuosa casa em Cabul, capital do Afeganistão, onde pelo menos neste lar, o amor dos dois meninos não faz germinar o distanciamento classicista entre patrão, e subalternos.

    Não deixa de ser curioso, para nós, ocidentais, ver como a rivalidade entre dois (ou mais) povos é capaz de manter por séculos uma profunda relevância no tecido social das relações, em muitas partes do globo. Ao propor um evento célebre em Cabul, ou seja, uma torneio de pipas aonde a última pairando no ar é a vencedora, a competição também racha esse estigma entre povos num jogo justo, em que todos os garotos de Cabul aguardam o ano inteiro para participar – e ganhar, claro. A pipa então assume o papel de união, e também, ironicamente, da separação de uma das mais lindas e emocionantes amizades da literatura contemporânea. Hosseini tem uma graça oriunda de sua escrita simplória, e sem sentimentalismos, ao tentar controlar a enorme força dramática de várias cenas sem deixar tudo muito explícito, ou apologético, sendo que lágrimas ao longo de O Caçador de Pipas já são difíceis de segurar.

    Se o pecado foi mesmo ignorar tudo, e apenas viver sua amizade, a trama cruel de um destino inquisidor é o que move esse conto que arrebatou multidões em meio aos livros de Harry Potter, desde o começo dos anos 2000. Ultra acessível, não é à toa o romance ter se tornando um fenômeno desde que foi lançado, em 2003, no mercado editorial americano – e adotado, no Brasil, pela editora Nova Fronteira em 2005, e quase 10 anos depois reeditado pela editora Globo Livros. Mesmo inseparáveis, nota-se a preservação de termos respeitosos pois Amir é o agha do seu melhor amigo, ou seja, seu superior, uma regra ancestral que nem mesmo o carinho deles pode superar, afinal, a realidade é a mesma para todos – nisso, a idade é só um detalhe. “Por você, faria isso mil vezes!”, diz Hassan para Amir, não como empregado, mas aliado em todos os seus momentos. E quando Amir vai para os EUA, rapaz feito já, após tantos anos longe do menino que, órfão, bebeu do mesmo seio que ele, o homem então descobre que fantasmas existem, sim, para todos, e por uma razão muito especial.

    A partir disso, O Caçador de Pipas vira uma vasta e semi elegante alegoria sobre a vida pós-separação. Acerca do período adulto que nos molda, e remodela, numa sucessão ininterrupta de altos e baixos a qual damos o nome de maturidade. Um duro e longo mural de coisas não-ditas, ora esquecidas, ora lembradas de uma forma crônica por anos a fio. Não importa aonde fosse, Amir nunca iria esquecer de seu amigo basilar aos seus caminhos, além da tenra infância e de momentos mais simples, quando era possível decodificar o universo e tudo se resumia em correr atrás de pipas, azuis ou vermelhas, e driblar as diferenças que os adultos criam e repassam, de geração em geração. Vez ou outra, o complexo sente falta da simplicidade que deixou para trás; será que até as maiores águias não dispõe de saudade, em seus pequenos cérebros animais, do ninho onde foram empurradas e, assim, aprenderam a voar?

    Eis um livro diferente de vários outros bestsellers que, rumo ao sucesso em engajar seu público, não faz devorar temas polêmicos para se sustentar na lista anual dos mais vendidos, nos EUA e no mundo; nada disso. Hosseini explora a cultura afegã e seus valores e costumes como ambientação, rica em detalhes, para algo de caráter universal e impagável: a amizade entre dois garotos, e o amor fraternal que um sente pelo outro, acima de dogmas religiosos ou mundanos, como eles mesmo também admitem, mesmo ainda tão pequenos. Talvez porque a infância atua como um véu a realidade séria e descolorida que pode vir depois, ou ainda, porque essa mesma realidade cheia de regras e limites que nós inventamos ainda não tinha caído em cima deles, feito um tsunami devastador, ou uma de suas pipas, livres no céu como eles e nós, um dia, também almejamos ser.

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  • Resenha | Fahrenheit 451 – Ray Bradbury

    Resenha | Fahrenheit 451 – Ray Bradbury

    “[…] E quando finalmente montaram a estrutura para queimar os livros, usando os bombeiros, reclamei algumas vezes e desisti, pois não havia mais ninguém reclamando junto comigo. Agora é tarde demais.

    Distopias são atraentes em níveis grandiloquentes ao extremo para quaisquer escritores que idealizam a chance, que sentem com fervor o néctar de uma premonição fantasiosa, sedutoramente louca e porque não astuta, como neste caso, de um futuro aquém ou além do esperado por previsões realistas e, sejamos francos, nada convidativas a grandes aventuras. O acaso é a grande regra das histórias de um amanhã distópico, sempre a observar nos seres humanos as consequências objetivas desta imprevisibilidade irresistível para o escriba a interagir conosco; sejam essas consequências expressas no nosso físico, no social, na ciência, na política, na religião, ou talvez da forma mais cruel possível: na nossa cultura.

    O escritor norte-americano Ray Bradbury vai longe no seu retrato de um mundo totalitário, conjurando uma forma de estado e seus agentes de controle social que abominam os livros (por razões não tão óbvias assim, ainda que com total perfídia a qualquer tipo de liberdade que o cidadão possa ter), perseguindo leitores que possuam exemplares em sua casa e queimando, literalmente, até mesmo as traças que possam habitar os manuscritos. Bradbury sabe como intimidar o leitor página a página, detalhando com rigor o funcionamento desse estado, sua lógica e ferramentas de repreensão, e a sobrevivência de quem ainda sabe que, aonde se queimam livros, no final queimarão os seus leitores (o uso de palavras-chave na sua prosa é encantador, contextualizando através da Palavra um mundo onde a violência é o meio, e o fim.).

    Dentre as cinzas culturais que sujam e envergonham a sociedade alienante, e alienada, de Fahrenheit 451, destacam-se alguns poucos homens e mulheres, figuras um tanto isoladas, muitos destes frios e pessimistas, mas inconformados com sua situação de cegueira coletiva imperial. Ao não concordarem com o sistema determinista que manda arder a história do mundo sob o calor de 451º na escala fahrenheit (com medo que o povo questione seus arredores, temeroso quanto o poder da escola, das disciplinas, da pesquisa), cedo ou tarde estes cidadãos controlados criarão forças para tentar derrubá-lo, mesmo que sua tentativa sirva apenas como aviso: Ainda não estamos totalmente cegos para não perceber as cinzas ao redor. O livro de Bradbury, sua grande obra prima, escala reflexões de extrema pertinência ao papel da cultura na sociedade, como um todo, e como ela pode ser a maior arma que uma pessoa pode contar na vida.

    Na formosa edição brasileira publicada pela Globo Livros, por meio do selo Biblioteca Azul, com tradução de Cid Knipel, a leitura se torna dinâmica ao ponto de sentirmos, ou ainda calcularmos, o desenvolver sutil de uma guerra contra a intelectualidade alvejada que reside nas mãos do povo, como também o de uma rebeldia necessária num caos civilizatório desses no qual bombeiros não apagam, mas causam o fogaréu a exterminar nossos cérebros. Há então aquele que trai a corporação para não trair a sua raça, propriamente dita. Humano, afinal. Mesmo em uma época onde livros migram para as telas dos celulares e computadores, não fadados somente ao papel, museus se tornam o alvo preferido dos incendiários. O que arde vai além do físico, seria o nosso passado mesmo, impossibilitando o conhecimento geral sobre as nossas fundações, e assim, por consequência, o que vem depois. É isso o que eles desejam, e Bradbury deu o seu alerta da forma mais sagaz, divertida e solene possível, ainda em 1953: é isso o que eles mais desejam.

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  • Resenha | As Memórias do Livro – Geraldine Brooks

    Resenha | As Memórias do Livro – Geraldine Brooks

    O título acima serve a fundamentos literários pouco lembrados e muito menos difundidos na nossa contemporaneidade obtusa. Atua, sobretudo, como valioso e divertido lembrete prático de que nenhuma história, real ou não, possui apenas um lado de se contar, ou se apoia em apenas um ponto de vista para se desdobrar rumo a um clímax satisfatório – como não pode deixar de ser o caso, aqui. É justamente nessa falta de unilateralidade, que aprofunda e deixa qualquer escrita ampla e primorosa, baseando-se em fatos e passagens ficcionais (ou não), que a escritora vencedora do Pulitzer, a americana Geraldine Brooks, sensivelmente converte ambiguidades delirantes em forma de romance realista. Isso porque As Memórias do Livro, título clichê que certamente afasta boa parte dos leitores em potencial, certamente caminha nessa tênue faixa que promove a distração entre o verídico e o inventivo; um verdadeiro contraponto às inúmeras obras surreais de investigação cujo único propósito é entreter usando meia dúzia de verdades prontas.

    Em certo momento, lá pelo meio do livro em questão, somos todos convidados a refletir sobre o modelo de vida que um professor, cientista, historiador, enfim, que um agente da realidade leva (e participa) graças a profissão na qual devota seu tempo e energia muitas vezes sacrificando suas relações, em prol de um objetivo, muitas vezes, atemporal, e ainda muito maior que sua mera vida pessoal. No tocante a nossa protagonista aqui, a jovem e muito competente restauradora literária Hanna Heath, temos uma persona tão devotada a seu ofício com as obras antigas que chegam em suas mãos profissionais quanto, afinal, a sua própria escritora laureada, e assim, de supetão, como num sonho da autora travestido numa trama de ficção, Hanna fica envolvida com a oportunidade de restaurar e analisar uma das obras mais raras e misteriosas da Terra: O sobrevivente livro Hagadá.

    – […] Já tivemos livros queimados demais nesta cidade.

    – Livros demais queimados no mundo.

    Um diamante inestimável, e que abriga uma narrativa compilada acerca da saída dos judeus do Egito, incluindo sermões judaicos, canções e trechos milenares do Antigo Testamento. Valiosíssimo como deve ser, Hanna não perde tempo algum e aceita a responsabilidade exclusiva de se ver diante de séculos de informação organizada num manuscrito quase destruído por conflitos e bombardeios históricos, cuidando, restaurando e investigando os pormenores de uma joia literária neste que pode, muito bem, ser o trabalho da sua vida. No uso desta premissa de desvendar os segredos do Hagadá, supostamente perdido no tempo, e que agora nas mãos de Hanna começam a brotar dos seus pergaminhos ancestrais, Brooks se mostra uma escritora extremamente hábil e experiente ao inserir elementos imaginários e autorais em meio a uma narrativa que muitos não ousariam se distanciar, respeitosamente, do seu realismo e da sua dramaticidade quase que inevitáveis. Quase.

    Longe da leitura séria que se pressupõe a um livro cujo MacGuffin são textos sagrados, mas que cada vez mais, e pouco a pouco, extrai de seus temas sérios pitadas de mistério e poesia existencial que podemos constatar em suas rápidas trezentas e poucas páginas, As Memórias do Livro é feito de reviravoltas oportunas e, acima de tudo, de desdobramentos. Pouco importa a paixão em que seus diálogos são escritos, ou seus inteligentes momentos de êxtase e frenesi: A direção que se toma a partir dos efeitos múltiplos de se mexer com o passado e revitalizá-lo, literalmente, com Hanna se aprofundando, postulando e resgatando cadências de outrora, faz afetar o presente de todos os envolvidos na trama arqueológica, e revelar aliás tramas paralelas que compõe uma história principal de uma forma coerente e prazerosa que pouco se testemunha, hoje, nos best-sellers ofensivos, anistóricos e assexuados de Dan Brown, e cia.

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  • Resenha | E Não Sobrou Nenhum – Agatha Christie

    Resenha | E Não Sobrou Nenhum – Agatha Christie

    Com o título alterado para E Não Sobrou Nenhum (do original O Caso dos Dez Negrinhos), Agatha Christie tem em seu livro mais famoso publicado em 1939 o maior diferencial que tanto a marcou durante sua carreira: um grande mistério dedutivo em uma trama policial recheada de suspense.

    Oito pessoas são convidadas para passar o final de semana em uma ilha na Inglaterra ao lado dos dois criados, e, após serem acusados por crimes distintos, todos são assassinados seguindo os versos de um poema.

    A construção perfeita de suspense de Christie para sua trama policial de mistério se baseia através das sólidas estruturas: uma trama simples e funcional, personagens com fortes motivações e medo da repercussão dos seus atos, o ótimo cenário onde tudo se desenrola, e o seu grande diferencial: o poema que prevê a morte de cada um dos dez
    personagens principais do livro e os soldados de enfeite que vão sumindo a cada morte.

    Christie consegue proporcionar uma leitura rápida que envolve o leitor logo no início com uma breve descrição dos personagens e suas motivações e termina de prender o público ao mostrar o grande mistério que permeia a trama: quem arquitetou a vingança contra os dez personagens acusados de cometer crimes diversos. A partir daí, torna-se cada vez mais prazeroso ver o escalonamento do suspense trazido pelas mortes e a tensão de que um dos restantes seria o assassino.

    O romance ganha ainda mais força quando se completa a história pois revela outras camadas quando se reflete sobre a obra ou a cada releitura. A dedução de E Não Sobrou Nenhum não é o principal alicerce da história, o mistério causado pelo simbolismo do poema e das estátuas enriquece a história trazendo outras discussões para além do usual de um romance policial: a que ponto alguém vai para arquitetar uma vingança e quais significados essa vingança teria.

    E Não Sobrou Nenhum, publicado pela Globo Livros, deve agradar a todos os que gostam de um bom romance que discute outras questões que vão além de uma história policial. A edição do livro só favorece a própria história deixando o texto fluido, direto, sem a necessidade de encher informação inútil com o objetivo de tornar o livro maior do que ele é.

     

    Compre: E Não Sobrou Nenhum – Agatha Christie.

    Texto de autoria de Pablo Grilo.

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  • Resenha | Jogos Macabros – R. L. Stine

    Resenha | Jogos Macabros – R. L. Stine

    Em época anterior ao movimento editorial juvenil com autores explorando o gênero young adult, haviam autores dispersos que dialogavam com o público deixa faixa etária. No Brasil, autores como Pedro Bandeira e Stella Carr injetaram suspense e horror em suas narrativas, doses precisas para causar o medo pontual em um público ainda em desenvolvimento.

    Configurado nesse estilo e dedicado ao mesmo público, R. L. Stine é um dos grandes autores do gênero, ainda que o seu nome não se destaque em nosso país. Talvez seu nome possa ser lembrado devido a série Goosebumps lançada em 1995, explorando narrativas de horror bem sucedidas tanto quanto livros como na adaptação seriada. Ao lado da série dedicada ao horror sobrenatural, há outra famosa série de livros intitulada Rua do Medo, totalizando mais de 100 publicações entre a série original, spinoffs e variações temáticas. Demonstrando tanto o quanto o autor é prolífico no gênero como justificando a afirmação de que Stine é o Stephen King juvenil.

    Lançado pela Globo Alt, selo da Globo Livros, em 2016, Jogos Macabros é o primeiro livro que retorna a Rua Do Medo, depois de anos de hiato. Intitulada originalmente como Fear Street Relaunch, a nova série de livros continua em publicação no exterior, totalizando, atualmente, seis novas narrativas da famosa Rua do Medo.

    Na trama, Rachel Martin é uma garota simples, colega de classe de Brandon Fear, da famosa, conhecida e rica família Fear e seu passado misterioso. Prestes a fazer aniversário, o garoto convida Rachel para sua festa em um local sombrio: a mansão da família. No local, Brendan dá início ao jogo que, como aponta o título, será mortal.

    Stine tem consciência de seu público. Há trinta anos possui uma carreira voltada para o público juvenil. Dessa forma, sabe como criar a atmosfera necessária para desenvolver personagens juvenis com credibilidade e ainda trabalha o suspense com vigor. A narrativa tem enfoque em uma leitura de entretenimento com boas e carismáticas personagens, genuinamente adolescentes.

    Composto por diversos capítulos curtos de títulos enigmáticos, o autor sabe como conduzir cenas de aparente suspense, desenvolver reviravoltas simples mas eficientes para manter o leitor atento. Presenteando-lhes com o estilo consagrado de suspense e horror envolvendo mortes, fantasmas e o medo como enfoque primordial. Sempre sem perder a tônica de dialogar diretamente com um público juvenil.

    Anterior ao movimento contemporâneo dedicado ao jovem, Stine sempre se manteve ligado a esse público, apresentando-lhe doses bem executadas de diversão e horror, produzindo livro atrás de livro como o prolífico King também o faz, cada um em seu estilo. Jogos Macabros é uma leitura simples e divertida, e marca o retorno do autor a uma de suas franquias mais famosas. Um produto formatado para o jovem, sem dúvida. Mas um bom produto dentre as diversas opções sem qualidade atualmente.

    Compre: Jogos Macabros – R. L. Stine.

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  • Resenha | Battle Royale – Koushun Takami

    Resenha | Battle Royale – Koushun Takami

    Koushun Takami chegou à final do Japan Grand Prix Horror Novel com seu primeiro livro, Battle Royale. O ano era 1997. Takami não saiu vencedor dali, mas sua obra impactou todo o país ao ser publicada dois anos depois. A partir daí, quase que imediatamente, Battle Royale ganhou adaptações para o cinema e mangá.

    Dizem as más línguas que o júri do Japan Grand Prix Horror Novel não deu o prêmio a Takami devido ao conteúdo extremamente pesado e controverso do livro. Essa derrota não impediu que Battle Royale vendesse mais de um milhão de cópias no Japão e se tornasse parte da cultura pop mundial, inclusive a franquia de sucesso Jogos Vorazes.

    Mas afinal de contas, do que se trata Battle Royale? A trama se passa numa espécie de Japão totalitário onde, de tempos em tempos, o governo escolhe uma turma de alunos para se matarem em um local isolado até que sobre apenas um sobrevivente.  Uma história leve e feliz, ideal para toda a família.

    Takami consegue, ao longo das mais de 650 páginas, narrar de forma detalhada toda a trajetória daqueles 42 estudantes até a fatídica ilha onde o “jogo maravilhoso” acontecerá. O ponto mais incrível é que a narrativa de Takami, embora lenta e detalhada, não é cansativa. Pelo contrário, é extremamente viciante. Ele não tem pressa de mostrar diálogos ou descrever as situações. Porém, a escrita de Takami é tão fluida que, além de ser agradável de ler, te permite criar um filme em sua mente sem grandes dificuldades. Méritos para a excelente tradução de Jefferson José Teixeira, que traduziu direto do original japonês e conseguiu adaptar perfeitamente ao português toda aquela trama macabra.

    O ponto mais perturbador do livro é o fato de serem adolescentes na faixa de 15 anos se matando. Eles são da mesma turma da escola. Eles conviveram quase todos os dias até ali. Muitos deles são grandes amigos ou até namorados. As primeiras 70 páginas mostram esses jovens alunos interagindo uns com os outros antes de serem colocados naquele cenário de matança. E a regra é clara: só pode restar um, caso contrário todos morrem no final.

    De início, temos acesso à lista de nome dos 42 alunos. Confesso que fiquei preocupado com isso. Será que o autor vai conseguir desenvolver tantos personagens? E mais, será que vou conseguir lembrar de tantos nomes, e pior, nomes japoneses? Takami conseguiu, e isso é assustador. Ele consegue criar diversos núcleos de personagens, e com isso o leitor terá um maior contato com os nomes, aos poucos. E se lembrará de como eles foram assassinados miseravelmente.

    No final de cada capítulo, temos um lembrete [RESTAM X ESTUDANTES], o que gera uma tensão absurda: “Quando esse número vai mudar?”

    Por mais que as mortes sejam constantes, Takami dá muita importância a elas. Não temos aqui uma história de assassinos seriais que matam toneladas de pessoas com métodos até engraçados, como vários filmes trash. São adolescentes com uniformes de escola matando seus colegas (e amigos) de classe. As atitudes descritas são muito críveis, onde nem todos estão plenamente dispostos a sair matando geral. Os personagens são bem humanizados, e as mortes realmente impactam. À medida que a metade do livro que está na sua mão esquerda vai ficando mais grossa, o número de estudantes remanescentes vai diminuindo e as páginas vão sendo viradas cada vez mais rápido. Seu maior desafio será ler apenas um capítulo por vez, ou algumas poucas páginas. É praticamente impossível. Queremos saber onde essa loucura vai terminar.

    A quantidade de páginas talvez assuste os leitores menos assíduos, mas a verdade é que, ao terminar, você vai querer mais. É aquele livro que não dá vontade de parar de ler, mesmo que as situações violentas não sejam as mais agradáveis possíveis. Um livro extenso que pode facilmente ser devorado em poucos dias. Leitura fluida, perturbadora e de altíssimo entretenimento. Uma pena que o autor nunca mais escreveu nada após Battle Royale.

    A edição lançada pela Globo Livros é excelente, papel de ótima qualidade e capa bonita, um belo produto.

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  • Resenha | O Assassinato de Roger Ackroyd – Agatha Christie

    Resenha | O Assassinato de Roger Ackroyd – Agatha Christie

    Poirot aposentado, mas não menos eficaz

    O Assassinato de Roger Ackroyd é o quarto livro de Agatha Christie (escrito em 1926), e o primeiro grande sucesso da autora. Romance policial dos mais assertivos do gênero, a trama funciona mecanicamente impulsionada por pequenas engrenagens narrativas que movimentam as maiores até que o criminoso seja revelado. Na ponta do trabalho, Hercule Poirot, aposentado, mas ainda uma lenda da investigação. Apenas ele para descobrir o assassinato do riquíssimo Roger Ackroyd.

    O famoso detetive utiliza uma mescla entre método dedutivo e analítico para resolver seus casos. Primeiro ele estipula o momento de morte da vítima e cria um intervalo de tempo seguro onde aconteceu o crime. Em seguida  anota todas as pessoas que estiveram ou poderiam ter acesso ao morto e os interroga. Em paralelo, ainda na cena do crime, busca os “pequenos casos”, ou seja, os desarranjos que cercam o crime e que aparentemente não tem ligação com a morte, mas que explicam, aos poucos, como o assassino agiu. De posse dessas informações, o detetive vai testar suas deduções e procurar as mentiras que as testemunhas contam, pois, segundo ele, todos mentem.

    Expliquei o método de Poirot para ilustrar os pontos que movem a narrativa da dama do crime: investigação sobre os personagens ilustres, “pequenos casos” e mentiras. Livro essencialmente trabalhado com diálogos, as descrições são em maiorias curtas e mesmo a natureza fica em segundo plano na comunidade onde se passa o crime. É interessante notar que a autora trabalha com o romantismo tanto nos diálogos quanto nas virtudes ou pecados dos personagens.

    A trama é alimentada por pontos de virada bem colocados. Agatha Christie sabe exatamente quando os personagens têm que descobrir mais alguma coisa para a narrativa não se tornar tediosa. Nós, leitores, somos alimentados parcimoniosamente com informações que revelam os intentos passivos que se escondem por trás do assassinato. As pequenas soluções alimentam as grandes e assim somos fisgados até o fim. Mas…

    O fim não é exatamente o desfecho prodigioso em um gênero policial. Leitores de romances policiais gostam de acompanhar o movimento do investigador e paralelamente identificar as pistas que levam até a resolução do conflito. Contudo, a solução empregada por Agatha Christie é o que se chama “Deus ex machina”. Esse termo serve para expressar, em linguagem de teatro, roteiro e literatura, o surgimento de uma personagem, artefato ou um evento inesperado, artificial ou improvável, de forma repentina para a resolução do conflito final.

    Ao final da leitura fica uma sensação de desapontamento. Mas enfim, talvez não houvesse outra solução tão impactante quanto aquela. Decida-se ao ler. Livro bem recomendado.

    Texto de autoria de José Fontenele.

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  • Resenha | Estrela da Manhã (Trilogia Red Rising) – Pierce Brown

    Resenha | Estrela da Manhã (Trilogia Red Rising) – Pierce Brown

    Em Estrela da Manhã, último livro da Trilogia Red Rising, Darrow já não é mais um infiltrado nas linhas inimigas. Tanto aliados, como inimigos, têm que lidar com a revelação de sua verdadeira identidade e com o fato de que ambos foram enganados por meses. Depois da morte de Ares, o futuro da rebelião parece incerto e como nosso herói está na mãos do Chacal, o destino parece impreciso também. Porém o que mais deixa o vermelho apreensivo é a forma como a guerra mudou sua personalidade e o tornou diferente do jovem que sofria a morte da esposa.

    O Chacal busca desconstruir Darrow, revertendo a manipulação genética e cirúrgica que o transformou em um Ouro, mas também submetendo-o a uma rotina de humilhações para que perca a aura de um dos homens mais admirados daquela sociedade. Mesmo quando vê uma esperança, o herói não consegue se livrar da sensação de que não é aquele que a rebelião precisa. Pierce Brown nos faz sentir o isolamento e a sensação de inadequação do personagem, assim, ansiamos pela batalha que levará ao fim a saga com as mesmas dúvidas do protagonista, e logo nas primeiras páginas deste último livro, não conseguimos imaginar um desfecho possível que não a falha de sua jornada.

    É claro que temos batalhas grandiosas ao decorrer do livro, com alianças constantemente quebradas e renovadas, com muitas reviravoltas e surpresas, porém os grandes momentos do livro são as reflexões de Darrow, em seus monólogos melancólicos e sua incerteza diante de uma missão tão complexa.

    Mesmo ao descrever os aliados, o autor não tem escrúpulos em mostrar suas ações e motivações pouco louváveis, afinal, nem todos que lutam pelo “Levante Vermelho” abraçam as idéias de justiça social e igualdade perante os homens. Pode haver naves e batalhas espaciais, armas com tecnologias inexistentes, mas o que se destaca na narrativa  é a verossimilhança de um exercito de homens a sós defendendo cada um a própria agenda pessoal. Nem mesmo personagens como Mustang, sempre retratada como inteligente e justa, escapam desse escrutínio e por isso, ao virar de cada página, sempre esperamos uma nova traição.

    Embora algumas resoluções pareçam quase mágicas e o grande numero de reviravoltas e planos secretos dentro de planos secretos seja um tanto cansativo, agrada-me que o autor se demore tanto na trama política quanto nas batalhas. É  dessa maneira equilibrada que Red Rising se apresenta muito superior as outras distopias juvenis que foram lançadas aos montes no mercado brasileiro nos últimos anos.

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    Mariana Guarilha é devota de George R. R. Martin, assiste a séries e filmes de maneira ininterrupta e vive entre o subconsciente e o real. 

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  • Resenha | Filho Dourado (Trilogia Red Rising) – Pierce Brown

    Resenha | Filho Dourado (Trilogia Red Rising) – Pierce Brown

    Filho Dourado - Pierce Brown - capa

    Lançado pela Globo Livros em agosto do ano passado, no selo Globo Alt, O Filho Dourado, de Pierce Brown, é a segunda parte da trilogia Red Rising, lançado pela editora após o primeiro volume, Fúria Vermelha, em 2014.

    Se no primeiro romance, Darrow estava se preparando para uma batalha futura, aprendendo sobre estratégia na Academia em Agea e enfrentando o medo de ser descoberto, em O Filho Dourado a personagem já está totalmente aculturada entre os Ouros, com um alto cargo de Pretor na família Augustus e colecionando sucessos na Escola de Guerra, enquanto ostenta a cicatriz de um Inigualável Maculado.

    Tudo é muito grandioso, as simulações de batalha espacial, os ambientes em que ele habita e sua rixa com a família de Cassius au Belona. Darrow não está mais se preparando para ser um guerreiro; ele é um guerreiro. Porém, há mais que sangue e vísceras em seu caminho. Ares e Dancer, os líderes da revolta que almeja destruir todo o modo de vida dessa sociedade dividida em cores, se calaram desde que Darrow saiu da academia, sem saber mais que diretrizes seguir após ter sobrevivido até então. Como se não bastasse a solidão de sua vida cheia de segredos, uma nova facção dos Filhos de Ares está realizando atentados terroristas e o faz questionar sua missão.

    Seus mais caros amigos estão em cantos longínquos do sistema, e seus inimigos perto demais. Virgínia (Mustang) não entende por que alguém que questionou a ordem social dentro da academia se aliou justamente a seu pai, o Governador de Marte, Nero au Augustus. O governador Nero é um símbolo de tudo o que Darrow questionou em seus tempos de academia. Agora que ganhou a sua marca de Inigualável Maculado, tornar-se Pretor de Augustus não parece o correto a fazer, mas para minar a sociedade por dentro Darrow necessita conquistar um lugar de destaque.

    Assim como no livro anterior, a narrativa tem grandes cenas de ação e momentos mais reflexivos, e é nestes momentos que o autor alcança sua excelência. Cada um dos personagens com mais destaque tem um discurso de impacto sobre a sociedade, todos coerentes com suas trajetórias e capazes de gerar reflexão no leitor sobre a realidade. Após participar de um desfile da vitória, Darrow nos presenteia com a seguinte reflexão: Tradição é a coroa do tirano. Olho todos os Ouros com seus distintivos e sinetes e estandartes, tudo isso sendo usado para legitimar um reinado corrupto e para alienar o povo. Para fazê-los sentir que assistem a um cortejo além da compreensão deles.

    O autor nos apresenta mais divisões e sub-divisões das castas representadas por cores, fazendo com que a sociedade retratada naquele universo se torne cada vez mais complexa. No livro anterior ficamos familiarizados com a estratégia de dominação utilizada para subjugar os vermelhos: competição interna e a promessa de que o seu sacrifício os fazia pioneiros na transformação de um planeta. Em O Filho Dourado conhecemos mais a fundo algumas castas e a estratégica de dominação utilizada com elas, entre as mais expressivas os azuis e os Obsidianos.

    Os Azuis são criados no que o protagonista chama de uma “seita que louva a racionalidade”. São cientistas com áreas de estudo tão específicas que se perdem em cálculos de probabilidades e estatísticas, e não parecem capazes de enxergar a sociedade e a maneira como são subjugados aos Ouros. Sem dúvida, uma crítica à formação que prioriza as Ciências Exatas em detrimento de qualquer reflexão social.

    Os Obsidianos são os soldados altamente especializados. Para controlar sua enorme força subjugada, os Ouros os isolaram nos pólos oferecendo-lhes uma vida de privações e uma religião que os proibia de pegar em armas contra eles, considerados deidades. Em contraste com os cientistas Azuis, que foram alienados com a estrita crença nas ciências e com uma vida confortável, os Obsidianos foram alienados em misticismo e miséria.

    Pierce Brown nos confunde um pouco ao descrever suas cenas de ação, porém as reflexões que o livro propõe são acertadas, e seus personagens são tão carismáticos que qualquer demérito do autor fica eclipsado pelo sucesso de nos envolver irremediavelmente na história que entrega.

    Mariana Guarilha é devota de George R. R. Martin, assiste a séries e filmes de maneira ininterrupta e vive entre o subconsciente e o real.

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    Pierce Brown

  • Resenha | Fúria Vermelha (Trilogia Red Rising) – Pierce Brown

    Resenha | Fúria Vermelha (Trilogia Red Rising) – Pierce Brown

    Furia Vermelha - capa - Globo Livros

    Tenho um caso sério de amor com as distopias clássicas e, na esperança de encontrar um material que faça jus a elas, tenho me aventurado em muitas das distopias adolescentes que tem feito sucesso. Fúria Vermelha tem muito em comum com elas, porém é muito mais complexa ao se aprofundar sem medo nas reflexões sociais que propõe.

    Pierce Brown, em seu livro de estréia, constrói um cenário crível, detalhando uma sociedade organizada em castas e que coloca a conquista espacial como objetivo maior. O livro que inaugura a trilogia Red Rising, começa nos apresentando os Vermelhos, casta responsável pelo duro trabalho de tornar Marte habitável. Eles são a base da pirâmide social vivendo provações em que as crianças amadurecem cedo.

    Darrow, o protagonista, tem apenas 16 anos, mas já é um homem casado e ocupa posição de destaque na sociedade por ser um “mergulhador do inferno”, elite entre os mineradores, já que sua posição exige destreza e coragem. Seu recorte da sociedade é dividido em tribos, sendo a sua chamada Lykos. A ambição maior da tribo de Lykos é conquistar a láurea, prêmio delegado à tribo que mais extrair minério, e que concede comida extra e alguns parcos luxos a seus ganhadores. Há muito Lykos não a conquista, perdendo sempre para os Gama.

    Ao contrário de Darrow, que só vê se foca no objetivo imediato de ganhar a láurea para melhorar a vida de sua família, Eo, sua esposa, questiona toda a organização social em que estão inseridos. Ela quer que seus filhos ainda não nascidos sejam capazes de escolher o tipo de vida que almejam, e tenham ambições maiores do que se tornar um “mergulhador do inferno” ou conquistar a láurea.

    Além dos vermelhos, que são responsáveis pela mineração, limpeza das cidades e outras atividades consideradas indignas, o livro nos apresenta algumas outras castas:

    • Os ouros: elite da raça humana, e soberana que governa e comanda a expansão do império espacial.
    • Os pratas: responsável pela polícia e cargos menores no exército (chamados carinhosamente pelo protagonista de latões).
    • Os bronzes: burocratas.
    • Obsidianos: raça criada especialmente para a guerra, soldados com físico impressionante, porém meros peões.
    • Azuis: responsáveis pela tecnologia, descritos como criados em uma seita que ensina a lógica que torna-os mais computadores que homens.
    • Verdes: médicos.
    • Violetas: artistas e entalhadores (manipuladores genéticos e cirurgiões plásticos), o que também é considerado uma forma de arte.
    • Rosas: humanos treinados e perfeitamente adaptados para a prostituição.
    • Marrons: responsáveis pelos serviços domésticos em geral.

    Dentro de cada casta há diversas graduações, e suas próprias tensões sociais.  Você pode ascender dentro de sua própria casta, porém não há mobilidade social fora delas. Essa característica acaba fazendo com que as pessoas estejam mais interessadas em lutar contra seu vizinho do que questionar seus governadores.

    Em seu livro de estreia, Pierce Brown, formado em Economia e Ciências Políticas, não poupa esforços pra incluir em sua narrativa reflexões sociais profundas. Sua obra é um tanto descritiva, nos entregando de graça informações que poderiam ser mais bem apresentadas se ele apenas nos mostrasse através do desenvolvimento da trama. Apesar de isso causar incômodo, sua escrita é leve e de fácil absorção. Incomoda o modo como o autor faz uso da narração em primeira pessoa, visto que o narrador é o protagonista, mas conta sua história de forma tão distanciada e com tantas informações sobre o que não está em seu entorno imediato que me questiono: por que não fazer uso da terceira pessoa?

    Normalmente não me atenho muito a esses detalhes, mas outro demérito foi a diagramação escolhida para o livro. A fonte pequena e de contornos tênues foi um desafio para meu astigmatismo e várias vezes me fez deixar o livro muito antes do que gostaria.

    Mariana Guarilha é devota de George R. R. Martin, assiste a séries e filmes de maneira ininterrupta e vive entre o subconsciente e o real. 

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    Pierce Brown

  • Resenha | Popular – Maya Van Wagenen

    Resenha | Popular – Maya Van Wagenen

    Popular - Maya Van Wagenen

    Popular – Dicas Vintage Para Ser Uma Garota Descolada foi escrito por uma adolescente, e foi esta afirmação que tentei manter em mente o tempo todo para não ser crítica em demasia com Maya Van Waganer. Lançada no Brasil pela Globo Livros, a obra tem 279 páginas difíceis de vencer.

    Deslocada de sua escola, mas decidida a se tornar uma garota conhecida, Maya aceita a ideia pensada por sua mãe e utiliza um manual de popularidade escrito por uma modelo da década de 50 para realizar seu projeto pessoal. Conforme realiza a leitura deste manual antigo, a garota incorpora em seu cotidiano os conselhos de Betty Cornwell, descrevendo os efeitos em um diário. Para mim, como leitora, o problema começa no formato: um diário é estritamente pessoal, e algo escrito em forma de diário deve soar pessoal. A narrativa é distante e “limpinha demais”, e não conseguiu me causar emoção alguma, até mesmo em passagens em que conta a morte de um de seus principais apoiadores.

    A autora descreve demais o processo, e parece se desligar de qualquer reflexão a respeito. Na introdução, vemos uma tabela: Escala de popularidade em minha escola, onde Maya descreve quase um sistema de castas, e fiquei esperando que isso fosse problematizado. Mas não há nenhuma reflexão.

    Falta à obra uma narrativa mais franca. A impressão que tive é que a escritora se poupa, diversas vezes no decorrer da história, de confirmar o sucesso de seu projeto. Duvido que a garota não passou por nenhuma situação a qual foi ridicularizada quando tentou mudar sua imagem. Mas poucas notas sugerem este tipo de problema e, quando sugerem, passam ao largo, evitando se demorar. Assim, nos dá novamente a impressão de qualquer ausência reflexiva.

    O distanciamento de uma narrativa com maior teor pessoal e de uma análise mais abrangente dos assuntos abordados faz das palavras da contracapa anunciando “uma história real” parecerem quase uma piada.

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    Mariana Guarilha é devota de George R. R. Martin, assiste a séries e filmes de maneira ininterrupta e vive entre o subconsciente e o real.

  • Resenha | Amor em Jogo – Simone Elkeles

    Resenha | Amor em Jogo – Simone Elkeles

    O Amor em Jogo - Simone Elkeles

    Em sua primeira obra, lançada no Brasil pela Editora Globo, Simone Elkeles apresenta um tradicional universo adolescente típico da maioria das narrativas young adult. Amor em Jogo possui dois narradores diferentes, um garoto e uma garota, intercalando o desenvolvimento da trama. O ideário proposto pela história de amor adolescente ainda está preso no padrão entre mocinho e mocinha, ambos populares à sua maneira e descritos energicamente como sedutores. Uma repetição que parece comum no gênero, sempre destacando personagens ou com muitas qualidades positivas ou com muitas negativas, sem uma dosagem que equilibre a composição das figuras ficcionais.

    O estilo alternado de narradores promove maior dinamicidade e evita a parcialidade proposital ao observarmos somente um narrador. Mesmo sob dois pontos de vista diferentes, a história é linear, sem mudanças bruscas de estilo, afinal, não faz parte da intenção da autora buscar vozes diferentes na narrativa, mas sim demonstrar o desenvolvimento da história de amor em ambos os lados da relação.

    Ashtyn Parker e Derek Fitzpatrick têm em comum um passado atribulado de difícil compreensão diante da imaturidade natural do adolescente. Capitã do time de futebol americano do colégio, Ashtyn foi abandonada pela mãe quando criança, e o trauma impede-a de aproximar-se de qualquer pessoa, com medo de uma futura rejeição; enquanto o jovem Derek perdeu a mãe na infância e convive somente com a madrasta, já que o pai trabalha em alto-mar como integrante da Marinha. Após um trote na escola, que lhe rende uma expulsão, o garoto é obrigado a mudar-se para Illinois com a madrasta e começar uma nova vida.

    O encontro das personagens produz certa originalidade à obra, foge de um tradicional encontro em lugares comuns, como uma escola ou locais de lazer juvenil, para se apresentar em laços fundamentados por parentes: a irmã de Ashtyn é a namorada jovem do pai de Derek. Um acaso que coloca os dois jovens vivendo sob o mesmo teto.

    A antipatia inicial de adolescentes contrariados pela invasão do espaço é quebrada aos poucos pela atração física que um sente pelo outro. A narrativa desenvolve pequenas intrigas para dificultar a aproximação amorosa: Ashtyn namora outro rapaz, e Derek é tido como um galinha galanteador. Dificuldades que se sobrepõem e geram uma tensão interna entre amor e medo.

    Mesmo que parte da composição dos personagens centrais seja tradicional, com exagero em apresentá-los como populares, engraçados e com um porte físico invejável, uma tipificação do americano médio, a personalidade irônica de cada um é o grande destaque. É certa agressividade que promove bons diálogos e humor durante a história. Ashtyn e Derek cativam o leitor por suas características pessoais, motivo que também nos faz torcer pelo casal.

    Na parte final da história, entretanto, Elkeles exagera em algumas descrições eróticas, desequilibrando uma obra que, até então, fazia breves insinuações sobre a sexualidade, detalhes antes apresentados de maneira leve ou atenuados pelo humor. É uma mudança breve na qual se demonstra uma escrita que, por não estar ainda completamente madura, entrega uma cena explícita, talvez como uma demanda para atender a um público mais específico. Ainda assim, as personagens mantêm seu brilho durante toda a trama.

    Amor em Jogo é o primeiro livro de uma trilogia de sucesso lançada nos Estados Unidos. Mesmo apresentando as situações típicas de um young adult – estendendo a discussão sobre até que ponto um gênero ou estilo é castrador de uma narrativa –, a obra se mantém e é uma boa indicação, principalmente para os leitores do gênero. O diálogo com o público jovem, apresentando suas incertezas internas, os ápices de desejo, a sensação de incompletude e os medos primários, transpõe com qualidade o universo adolescente para a literatura atual.

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  • Resenha | Encontre-me – Romily Bernard

    Resenha | Encontre-me – Romily Bernard

    Encontre-me-RomilyBernard

    Como gênero fundamentado nos últimos anos, ainda é difícil observar a longo prazo a importância do young adult na literatura e entre seus leitores. Essa análise foi explorada em outras leituras, como Perdão, Leonard Peacock, de Matthew Quick, e A Culpa é Das Estrelas de John Green. Porém, sempre que se realiza mais uma leitura de obras deste estilo, é necessário refletir a respeito, afinal a narrativa contemporânea é também um inimigo do crítico. É difícil radiografar um momento que acontece simultaneamente à observação e à leitura da obra.

    É notável o crescimento mundial deste gênero e, no Brasil, editoras têm apostado no estilo. Além de uma preocupação mercadológica, a abordagem destas narrativas é interessante, pois os romances são voltados a jovens e utilizam-se de personagens jovens. Mesmo que as obras sejam mediadas por adultos escritores, seu talento em compor um crível personagem adolescente destrói essa barreira e, ao promover um diálogo direto com o público juvenil, é capaz de abordar assuntos graves ou polêmicos sem a necessidade de um discurso denso e formal de um adulto. Um conceito que pode distanciar o leitor, afinal há diferentes discursos utilizados para cada idade e maneiras diferenciadas de se referir a elas. A maneira com que adultos dialogam sobre suicídio, por exemplo, deve ser diferente quando o discurso é dirigido a infantes ou adolescentes.

    Romily Bernard encontrou uma maneira de abordar o sensível tema do suicídio em sua obra ao envolvê-la em uma história de investigação, que tem como personagem central a adolescente Wick Tate. A jovem é uma hacker informal que trabalha ilegalmente para conseguiu seu próprio dinheiro e, ao descobrir o suicídio de sua antiga amiga de escola, Tessa Waye, recebe anonimamente o diário da garota e um bilhete escrito “encontre-me”. Através de uma narrativa investigativa, com a intriga e a dúvida em saber quem é o culpado, a autora aborda um assunto denso sem perder a leveza comumente caracterizada pelo estilo/gênero.

    No Brasil, o suicídio entre jovens cresceu cerca de 30% em 25 anos. Uma porcentagem que reflete o crescimento mundial da taxa de suicídio e que aumenta debates e discussões sobre a questão, analisada sob diversos ângulos a fim de compreender o significado do suicídio na sociedade, no indivíduo e em outras esferas. A personagem central do romance teve uma infância desequilibrada devido à convivência com um pai traficante e uma mãe que, diante de tais problemas, sucumbiu ao suicídio. Vivendo em diferentes lares nos últimos anos, mora com a irmã em companhia de uma família de classe média alta que as adotou temporariamente. O suicídio da melhor amiga é mais um choque de realidade para a garota. O diário deixado pela amiga contém um retrato íntimo de suas dores e, sem relevar culpados, denuncia que o suicídio foi consequência de um abuso sexual.

    No interior da narrativa, com uma personagem bem humorada vivendo os problemas e as dúvidas naturais da idade, a obra expõe a questão do abuso sexual infantil e o consequente suicídio de Tessa Waye. Mesmo que pesquisas informem um aumento mundial de denúncias de abuso, ainda há números alarmantes de crianças que sofrem caladas. A princípio, a falta de maturidade causa incompreensão sobre sua própria condição e, muitas vezes, a ameaça do abusador as mantém caladas, ainda mais quando o criminoso pertence ao círculo íntimo da vítima. Este hediondo ato imposto a outro ser humano produz fissuras físicas e psicológicas e causa rupturas agressivas que podem permanecer por toda a vida.

    A autora é capaz de apresentar tanto a trama de investigação como a história submersa e profunda sobre abuso de maneira equilibrada, denunciando o assunto sem transformá-lo em uma análise adulta. Parte dos recursos que mantém a trama leve deve-se ao humor da personagem central e ao seu domínio em computação. Mesmo ciente da ilegalidade de seus atos, não há nenhum julgamento moral por parte da obra, o que permite desenvolver o suspense investigativo nas descobertas que a garota faz ao hackear sistemas e computadores.

    Mesmo sendo uma típica personagem do gênero, levemente deslocada e com personalidade, Wick Tate é cativante e, sem dúvida, dialoga diretamente com os jovens, que, como ela, descobrem-se apaixonados e vivendo um novo mundo. O enigma é o recurso que aproxima outros leitores, fazendo da curiosidade sobre o desfecho um dos maiores ganchos da literatura.

    A obra é a primeira de uma trilogia que a Editora Globo lançará em breve, com o segundo romance marcado para o início do ano que vem. Ao fim do livro, é possível observar que o desenvolvimento narrativo se repete em cada história: um enigma com uma pista central pedindo ajuda e uma garota curiosa em desvendá-lo.

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  • Resenha | As Diabruras de Quick e Flupke – Volume 1

    Resenha | As Diabruras de Quick e Flupke – Volume 1

    as Diabruras de Quick e Flupke - vol 1

    Tintim, o intrépido repórter criado pelo cartunista belga Hergé em 1929, influenciou artistas no mundo todo, não só pelo clima aventuresco das histórias que criou mas também por seu traço característico. Essas influências transcendem os quadrinhos e dialogam com outras mídias, como os games, a exemplo de Tomb Raider e Uncharted, muito inspirados pela personagem. O mesmo pode ser dito com o icônico Indiana Jones, produzido por Lucas, além de ser dirigido por Spielberg, o mesmo que, anos depois, ratificou essa influência filmando As Aventuras de Tintim.

    No entanto, o que poucas pessoas sabem é que a carreira do artista no mundo dos quadrinhos vai muito além da criação de um único personagem, já que na Europa várias de suas histórias são quase tão conhecidas quanto as de Tintim, caso de Quick e Flupke, que os brasileiros poderão agora conhecer por meio da publicação da Globo Livros.

    Criadas em 1930, em preto e branco, vindo a ser coloridas apenas após a Segunda Guerra Mundial, assim como Tintim, as histórias de Quick e Flupke foram publicadas semanalmente no jornal Le Petit Vingtième e com uma temática bastante diferente da outra criação do cartunista. Hergé situa as duas crianças em histórias inocentes e inventivas, dignas de trapalhadas de outros personagens, a exemplo do Capitão Haddock ou dos detetives Dupond e Dupont, que, aliás, parecem-se bastante com o policial que vive no pé desses dois garotos.

    As confusões de Quick e Flupke são abordadas em pequenas tiras, demonstrando a capacidade narrativa de Hergé, que sempre soube trabalhar muito bem com a mídia que tinha em mãos, desenvolvendo tramas longas, como as do protagonista Tintim, mas também dedicando-se a elas de maneira extremamente sucinta e simples quando requerem elementos nesse sentido, algo que constatamos nas histórias desta publicação.

    Parecendo situar-se em um outro mundo quando lidas nos dias de hoje, as narrativas devem ser analisadas sob o contexto da época em que foram escritas, além, é claro, de se partir do fato de que foram publicadas em um jornal católico. Mesmo que as histórias de algumas tiras soem extremamente conservadoras e moralistas, elas, contudo, permanecem divertidas, constituindo um material riquíssimo para nos ajudar a conhecer um pouco mais o trabalho de Hergé.

    As Diabruras de Quick e Flupke – Volume 1, lançado pela Globo Livros é de uma qualidade impecável, com capa dura e ótima impressão gráfica, fazendo jus ao trabalho do autor. Vamos torcer para que a editora continue com as publicações de novos volumes.

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  • Resenha | Casagrande e Seus Demônios – Casagrande e Gilvan Ribeiro

    Resenha | Casagrande e Seus Demônios – Casagrande e Gilvan Ribeiro

    Para quem está acostumado a ver Walter Casagrande Júnior comentando as partidas da seleção ao lado de Galvão Bueno e Júnior (antes, Falcão), talvez não conheça a história por trás do gigante em estatura e, por vezes, lento cronista, que costuma dar pausas imensas entre uma máxima e outra proferida. Desde a época como jogador da histórica e áurea fase da Democracia Corinthiana, ele já demonstrava um algo a mais, seja por sua óbvia qualidade como atacante (em um time que tinha enorme qualidade antes mesmo de sua estreia), seja pela parceria e amizade com o Doutor Sócrates tanto nas quatro linhas quanto fora delas; ou por sua destacada personalidade forte e comportamento completamente diferente do estereótipo do jogador de futebol, normalmente associado à pouca inteligência e afeito ao samba. Casão era diferente: roqueiro e muitíssimo instruído, considerado esquerdista e representante de uma das poucas formas democráticas de governo em plena ditadura militar. Uma boa definição para ele foi feita por Washington Olivetto, um dos publicitários mais importantes do país e vice-presidente do departamento de marketing da Democracia Corinthiana do Parque São Jorge: “O Casagrande foi o jogador e é o comentarista mais rock’n’roll da história do futebol brasileiro.”

    Logo na orelha do livro Gilvan Ribeiro começa citando o que haverá nas páginas seguintes, nesta ordem: “Drogas, futebol, política, rock’n’ roll”. A promessa é de que as palavras serão as mais sinceras possíveis, num tom de total confissão não dos pecados em si ou de arrependimentos por parte de Casão, mas dos tropeços e demônios que ele busca expulsar de sua própria vida até os dias atuais. O tom do início do escrito é tão docemente poético que dá para notar a simbiose entre Walter e Gilvan, ambos jornalistas, um ingressando por seu passado esportivo e outro por formação. A união dos dois traz à luz a primeira publicação de cunho literário de ambos. Curioso é que Casagrande, mesmo após o lançamento do livro, ainda não o havia lido por completo, ainda pesando se seria benéfico a ele revisitar tudo outra vez.

    Há um contraste entre os relatos da vida do biografado e a ideia que seus amigos fazem de si e de sua luta contra o vício. Para Antonio Prata e Marcelo Rubens Paiva, existe uma enorme poesia na luta entre os antagonistas e o vencedor, contornos de uma narrativa épica. Casagrande humilha o adversário e até o rebaixa de divisão (utilizando um termo ligado ao esporte). No entanto, sem qualquer egocentrismo e sem subestimar a sua capacidade de autodestruição, Walter assume sua ponderabilidade diante do vício, e afirma que não se lembra de como era antes de provar a droga. Ela não o apequena, ao contrário, é homem o suficiente e tem tal coragem e ombridade para assumir que sempre perderá para o entorpecente. Sua luta diária é a de empatar com ele, não de ganhar. O ex-jogador não é um ex-adicto: viciado é a sua condição; a luta é para não lançar mão de seu vício. Ribeiro usa um paralelo com Salomão, que teve um embate com 71 demônios e que destes o único que sobreviveu era exatamente o mais forte, o qual retornaria. Casagrande também estudaria o caso e veria materializado o diabo em seu apartamento.

    A escolha por iniciar a narrativa pelas tragédias é corajosa e pontual, mostrando uma das muitas crises de Casão, convencido de que um ser dos infernos invadirá a sua casa, até hoje sem a certeza absoluta de que aquilo foi causado somente pelo torpor da droga. A preparação da heroína que ele injetava é contada nos mínimos detalhes, inclusive expondo a espera pela solidão, quando sua mulher (atualmente ex-esposa) e filhos saíam de casa, apenas para fazer uso da substância. A excitação maximizava os efeitos e o uso era tão milimetricamente pensado que se assemelhava a um ritual dos mais metódicos. Os parágrafos são construídos entre fatos e falas de todos que cercam Casa, como na parte em que seu filho Leonardo diz ter notado algo estranho com o pai, escondido atrás da porta do banheiro e do fingimento do mesmo — o episódio se caracterizou como uma das overdoses mais recentes que sofreu, em 2006, um ano antes do incidente com o demônio e do acidente automobilístico que causou. A injeção foi de 1 ml de “speed”, uma dose para dois, devendo ser aplicada em dois momentos distintos, mas que foi ingerida em uma única vez. Tal desventura foi o fator principal para o seu divórcio com Mônica: ela sentia-se traída e Casagrande tinha dificuldade em aceitar o litígio. Segundo o autor, o ex-jogador se encontrava em queda livre e tinha uma atração irresistível pelo abismo.

    Nem mesmo se apegar ao trabalho fez Casão ter força o suficiente para parar de se autoflagelar. A cobertura que realizou na Copa do Mundo da Alemanha, em 2010, foi em um período entressafra do vício, quando estava limpo – tal comissão só aconteceu graças a Galvão Bueno, que insistiu muito com a emissora para que o comentarista trabalhasse, a despeito de todo o receio do canal, deveras justificado, obviamente.

    Uma vez, na clínica de reabilitação em Itapecerica da Serra, sofreu um forte choque com a rigidez do tratamento e do isolamento: “não sabia para que lado ficava São Paulo”. Lá ele era chamado somente de Walter. O intuito era livrá-lo da aura de fama que também colaborava para o descontrole de seu vício. Isso despertou nele a luz de alerta do quanto estava doente, fazendo-o passar a ser mais Walter e menos Casagrande. A ideia de morrer jovem sempre foi para si muito deliciosa, posta pela morte precoce de seus ídolos Jim Morrison Jimi Hendrix, uma filosofia juvenil preconizada por Mick Jagger, que curiosamente envelheceu nos palcos mantendo sua energia. O esboçar da mudança aconteceu com um presente de amigo oculto organizado entre os pacientes da clínica: a autobiografia de Eric Clapton, seu ídolo, pessoa pública e, acima de tudo, um homem que enfrentou o vício nas drogas e que contou a sua própria história, assim como Casão faria junto a Gilvan.

    A reinserção do comentarista na grade da Globo foi, aos poucos, milimetricamente pensada para chocar o mínimo possível de espectadores. A retomada começou em pequenas participações em programas de TV fechada como o Arena Sportv, e depois em uma longa entrevista a Fausto Silva e seu típico arquivo confidencial. No dominical ele abordou a questão da adrenalina perdida após a aposentadoria dos gramados e do grave erro de querer preencher um vazio com algo diferente, ao invés de tentar aceitar que certas coisas são finitas. Walter ainda viria a dizer que um dos efeitos da cocaína é o congelamento emocional decorrente do uso, que o torna um sujeito cínico, egoísta e insensível aos sentimentos alheios.

    Para quebrar um pouco com a gravidade das situações, o biógrafo começa a falar da adolescência e juventude de Casão, desde a amizade com Wagner Magrão, com quem começou a usar maconha, passando pelo ativismo político, inclusive contando seu envolvimento numa arrecadação de fundos para a fundação do Partido dos Trabalhadores. A biografia não contempla todos os momentos da vida do ex-jogador, mas trabalha obviamente as partes mais lisérgicas e repletas de adrenalina de sua existência. Um ótimo escape dos problemas do homem Casagrande, elencados de acordo com seus próprios interesses.

    O período histórico da Democracia Corinthiana foi um marco para o futebol e para a época, visto que dava voz aos atletas, além de ser um grito anti-repressão. O movimento sofreu tentativas de desmoralização ao ser associado a alguns episódios do clube, como o extensivo uso de cocaína por parte de Casagrande e outros escândalos que envolviam outros jogadores do Corinthians. Mais do que o poder de voto e de influência, para Walter o auge era dividir os vestiários e os gramados com os seus ídolos, além de vestir a camisa do seu time do coração, realizando finalmente um sonho de menino. Tudo na vida de Casão orbitava em volta de Democracia. A situação era de tamanha compreensão que ele ganhou a salvaguarda de poder beber sua cervejinha em um bar dentro do Parque São Jorge, regalia estranha até mesmo para os dias atuais. Tal conduta o faria se encontrar com Mônica, sua futura esposa e atleta de vôlei do clube, levando-o a pichar o muro das dependências do Parque pedindo-a em casamento.

    A outra parceria matrimonial de Walter Casagrande foi com o Doutor Sócrates. A história pregressa do elegante meio-campista era belíssima, a começar pela decisão de só sair de Ribeirão Preto após sua formação no ensino superior, mesmo com propostas de cunho econômico elevadíssimo. “Isso foi do caralho! Qual jogador recusaria uma oportunidade dessas com o propósito de terminar os estudos? Hoje, por qualquer euro, o cara larga tudo e vai jogar na Ucrânia.” A admiração sempre foi grande. Em 1978, quando Sócrates passou a jogar no Timão, Casagrande estava nos juniores, e em 1981 os dois se encontraram, com Sócrates servindo a seleção em um amistoso contra a Caldense, onde o centro-avante estava emprestado. O mais experiente foi perguntar ao mais jovem como ia a sua carreira, pois lembrava dele nos juniores, e os olhos de Walter brilhavam ao saber da importância que ele lhe deu. Mesmo após o Magrão sair do Corinthians, dali pra frente eles se tornaram “unha e carne”, inclusive o Doutor foi convidado para ser padrinho do casamento de Casão. A relação esfriou após uma declaração de Sócrates de que Walter teria se vendido e ignorado seus ideais por começar a trabalhar na Rede Globo, como se ao aceitar o emprego ele abrisse mão de seu DNA transgressor. O divórcio aconteceu silenciosamente, nunca houve uma discussão pública entre os dois, somente um afastamento que os proibia até de se reconciliarem. Isso ocorreu até que Gilvan Ribeiro decidiu tornar público o desentendimento, fazendo com que o povo passasse a exigir a reconciliação, cuja oportunidade existiu em 2006, mas que não aconteceu graças a uma das muitas falhas de Sócrates. Pouco antes do Doutor falecer, entubado na cama do hospital, os dois deram as mãos e Casagrande desistiu do orgulho ferido, perdoando seu melhor amigo. Eles ainda gravariam uma reunião no ar no Arena Sportv, antes da derradeira internação. Walter Casagrande escreveu um belo texto sobre o amigo Magrão, declarando seu amor a ele e concluindo que não existia Casagrande sem Sócrates. A íntima relação tinha em comum a dependência — no caso de Sócrates, era ao álcool. No fim do texto ele desabafa: “Tínhamos uma estreita aliança… Vou jogar meu anel fora. Fazer o quê com um anel pela metade?”.

    Casagrande já tinha um engajamento político antes de ser amigo de Sócrates, desde muito cedo. Com o tempo, passaria a ser voz ativa contra o militarismo dos anos 70 e começo dos 80, divergindo inclusive das ideologias de alguns outros jogadores, como a do goleiro Emerson Leão. Estas desavenças se enfraqueceram com o tempo, e apesar de ter sido acusado de amolecer, Casão acredita que conviver com as diferenças é a base da democracia. O ex-atacante foi totalmente contra a contratação do goleiro pelo Corinthians, quando perguntado sobre o assunto na época em que os membros do plantel davam opiniões sobre as admissões de outros jogadores. Casagrande seria afastado por 40 dias por contestar publicamente a decisão da maioria; seu receio era que a democracia ruísse graças ao forte temperamento de Emerson. A rivalidade aumentaria, passando por alfinetadas mútuas e brigas no elenco, cujo fim do estado democrático supostamente teria findado graças ao arqueiro. Mas seriam águas passadas, pois ambos atualmente se admiram muito graças às profissões que ambos seguiram após aposentarem as chuteiras.

    A saída de Walter do Corinthians foi traumática. Tudo começou com uma desavença com o técnico Jorge Vieira e depois com a diluição do que ele entendia ser a essência da Democracia. Com a nova diretoria, acostumada a velhos hábitos da cartolagem brasileira, ele também não teve uma boa relação, sofrendo uma crise com a torcida – após desperdiçar um pênalti contra o Atlético-MG, foi retirado aos cinco minutos do segundo tempo somente para sair vaiado pela torcida. Através do empresário Juan Figer, ele foi transferido para o Porto, numa época em que o aporte de brasileiros no futebol europeu não era tão comum. Depois ele ainda teria uma passagem vitoriosa pelo futebol italiano, sendo artilheiro e ídolo no Ascoli e no Torino.

    A sinceridade de Casagrande é uma característica apreciada e elogiada por todos que o cercam, inclusive por admiradores ilustres, como Washington Olivetto e Galvão Bueno. Até em suas rusgas o ex-jogador é absolutamente preso à verdade, mesmo quando isto não é totalmente conveniente. Isso acontecia nos seus comentários in loco durante os jogos, porém essa característica se mostra ainda mais intensa ao comentar seu temível drama do vício. O que antes poderia ser encarado como algo possivelmente ruim, tornou-se uma indiscutível demonstração sentimental de autenticidade, quando, em lágrimas, comemorava a vitória do Corinthians sobre o Chelsea, em 2012, no Mundial Interclubes. A louca gangorra que era a vida de Casagrande é completamente diferente de sua rotina atual, morando sozinho e saindo pouco de casa, apenas para não cair na tentação de re-experimentar as sensações das bad trips proporcionadas pelo uso recreativo da droga. Dedica-se somente ao trabalho e ao hobby cinéfilo, explorando Lars Von Trier e Quentin Tarantino. As últimas páginas são voltadas ao capítulo com a alcunha, dada por Casagrande, de Ele Mesmo, onde o ex-artilheiro esmiúça as mais recentes experiências e traça prospectos sobre como será seu futuro. Tal posfácio acrescenta ainda mais honestidade ao seu relato, que no geral se preconiza e se caracteriza pela quase completa ausência de arrependimento, mesmo em meio a muitos erros. Além disso, a obra apresenta suprema honestidade nas palavras, numa das poucas biografias autorizadas sem uma linha sequer de caráter chapa branca ou apologia a uma vida sem desvios morais. Casagrande e Seus Demônios é um enorme esforço de pesquisa por Gilvan Ribeiro, e de desabafo por Walter Casagrande Júnior.

  • Resenha | Rubem Braga: Um Cigano Fazendeiro do Ar – Marco Antonio de Carvalho

    Resenha | Rubem Braga: Um Cigano Fazendeiro do Ar – Marco Antonio de Carvalho

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    Marco Antonio de Carvalho conta em forma de prosa a vida bucólica do cronista Rubem Braga, destacando sua predileção pelo campo e apresentando a história a partir do primeiro emprego de Braga nos anos 40, época de rendição dos alemães aos aliados, na Itália, presenciada por ele. O biógrafo fez de Um Cigano Fazendeiro do Ar seu último trabalho, e recebeu o Prêmio Jabuti postumamente em 2008. Carvalho já havia registrado a vida do belíssimo coreógrafo Klauss Vianna em A Dança, e fez desta peça uma obra belíssima, apaixonado pelo objeto de análise.

    Em seu primeiro capitulo, o biógrafo fala do “herói” de forma literata. O ritmo da narrativa é frenético, em alguns momentos lembra inclusive um thriller. A imersão só é quebrada depois de decorridas quatro páginas, artifício competente e muito bem-vindo, pois introduz o leitor ao estilo de escrita típico de Braga. A história inicia-se com o jornalista começando seu ofício por volta de 194* como correspondente de guerra na SGM, em Florença. A estadia de Braga na Itália o marcou profundamente, não só pelo risco de vida durante o conflito, mas também por seu envolvimento com alguns nativos. Nos anos 1970, voltaria ao local por iniciativa da Revista Realidade e evitou o reencontro com pessoas que conheceu, a fim de evitar reabrir velhas feridas. Sua volta ao Brasil foi em um momento bem diferente ao de quando viajou, com a saída de Vargas (seu antigo empregador) da presidência e a posse de Dutra. O passado como repórter político o marcou profundamente: questões como capitalismo x comunismo o cercariam até o fim de sua carreira. Os três capítulos subsequentes contam um pouco do histórico familiar de Rubem, além de falarem brevemente sobre sua carreira.

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    O nomadismo de Rubem Braga, especialmente no começo de carreira, pontua bem os diferentes momentos de sua trajetória enquanto jornalista. Ainda nos anos 1930, ele já destacava o extremismo dos comunistas, divergindo das ideias de Luis Carlos Prestes, impedindo-o que o autor se “avermelhasse”. Sobretudo, incomodava-o o fato dos socialistas terem um comportamento extremista de não entender o humor, constituindo um povo sem capacidade de raciocinar de forma leve seus preceitos tão “respeitosos” e preocupados com o bem estar geral.

    A escrita de Marco Antonio de Carvalho é muito interessante e a abordagem escolhida é competente, pois faz o leitor mergulhar no mundo do biografado sem uma sequência óbvia de acontecimentos, como “Rubem nasceu numa tarde ensolarada…”. A forma escolhida para contar a trama é feita através de episódios anedóticos, especialmente no que toca as (muitas) experiências profissionais (e, claro, pessoais) do cronista. Textos e cartas de personalidades como Vinicius de Moraes, Danuza Leão, Fernando Sabino, Clarice Lispector, Antonio Carlos Jobim, Jorge Amado, Gabriel Garcia Márquez, Nélida Piñon, entre outras, também se destacam no livro. Outro bom objeto de análise do biógrafo é a aversão de Braga ao getulismo: seu posicionamento político, cada vez mais crescente, é enfocado de forma muito competente.

    “Fidel não raspa a barba porque tem o queixo curto… à Revolução cubana não falta ingenuidade, mas não é com ceticismos que se faz revoluções. Essa se faz com bofes – mulheres feias e feiamente vestidas que aplaudem, muitas vezes histéricas, as palavras ou a simples presença dos jovens líderes cubanos.”

    Os dois últimos capítulos são sobre despedidas: Rubem destaca a tristeza de perder Vinicius e outros de sua geração – a morte, antes poetizada, se avizinhava cada vez mais. Em 1990 descobriria o câncer na laringe; ao abrir o envelope e descobrir a doença, só falou: “É de amargar.” Agora o cronista estava enfermo, sem dinheiro –  graças ao Presidente Fernando Collor de Mello – e, portanto, sem condições de viajar aos EUA para realizar tratamento médico. Até o simples desejo de ser cremado, ao invés de servir de alimento aos vermes, lhe foi negado. O fim de Rubem era tão lírico quanto seus escritos e igualmente cheio de cinismo. O desespero era tanto que o autor pensou em eutanásia provocada por uso de barbitúricos. Sobre os protestos de Otto Lara Rezende, Braga prosseguia querendo a morte. Vaidoso como era, não aguentava definhar. Como um sopro, deixou a existência, com uma carta à Boni, da TV Globo, pedindo que cuidasse dos preparativos da cremação. Às margens do Rio Itapemerim, repousaram as cinzas do escritor, numa pequena cerimônia às 6:25 da manhã, conforme a vontade do finado.

    Marco Antonio de Carvalho bebe na fonte de Ruy Castro, especificamente de O Anjo Pornográfico, através do qual descobriu que há como falar sobre um mito sem transformá-lo no herói sem máculas. Apesar de reverencial, sua abordagem mostra as mazelas e imperfeições do autor, uma busca definida pelo próprio biógrafo como “um fardo e um prazer, uma obsessiva loucura”. Ao folhear Rubem Braga: Um Cigano Fazendeiro do Ar, essa sensação é perceptível.

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  • Resenha | Luz e Sombra: Conversas com Jimmy Page – Brad Tolinski

    Resenha | Luz e Sombra: Conversas com Jimmy Page – Brad Tolinski

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    Ao olhar para o título do livro Luz e Sombra – Conversas com Jimmy Page, é possível que o leitor pense, ao menos num primeiro momento, que se trata de apenas um título sem maior significado.

    Engano.

    O conceito de “Luz e Sombra” talvez seja o que melhor define uma das principais características da obra do guitarrista inglês: a alternância de dinâmica entre peso e leveza, velocidade e lentidão dentro de uma mesma canção.

    Exemplos da aplicação desse conceito não faltam. Principalmente na obra do Led Zeppelin, uma das maiores bandas de todos os tempos e o grupo ao qual Page é imediatamente associado, como fundador, líder, produtor e principal compositor. Canções como “Ramble On”, “Dazed and Confused” e “‘Stairway to Heaven”, entre tantas outras, são provas vivas de que, para ele, uma composição é formada, antes de qualquer outra coisa, por nuances e variações.

    Page é declaradamente avesso a entrevistas. Nunca escondeu que detesta falar com jornalistas. A postura defensiva é fruto do massacre que praticamente todos os álbuns do Zeppelin sofreram nas mãos da crítica americana. Um dos poucos que conseguiram furar o silêncio do músico foi Brad Tolinski, editor da revista Guitar World. O livro é justamente o resultado da compilação de várias conversas que ambos tiveram ao longo dos anos.

    Organizado de forma cronológica, a obra mostra toda a história de Jimmy Page – desde seu nascimento até o primeiro contato com a guitarra, ainda na infância. As excursões em grupos pequenos e pouco no início da carreira. O longo período em que trabalhou como músico de estúdio, quando gravou com praticamente todos os grandes nomes da música britânica na década de 1960. A entrada nos Yardbirds. A formação, ascensão e dissolução do Led Zeppelin. Os trabalhos posteriores com o The Firm e o álbum que gravou em parceria com David Coverdale. A reunião com Robert Plant para os álbuns “No Quarter” e “Walking into Clarksdale”. O show solitário do Zeppelin na O2 Arena, lançado ano passado nos cinemas, e a participação no documentário A Todo Volume.

    Tudo está lá, costurado por longas entrevistas com o próprio Page e também com pessoas que passaram pela sua vida profissional, como Chris Dreja (Yardbirds), John Paul Jones (Led Zeppelin), Jack White (The White Stripes e Raconteurs) e Paul Rodgers (Bad Company, The Firm e Queen).

    Nas conversas, o guitarrista fala sobre a vida, os detalhes das turnês, seu processo criativo, o trabalho como produtor e as técnicas utilizadas por ele para captar o som em estúdio.

    Para quem não sabe, Page é considerado um revolucionário no que se refere à captação do som de bateria. Se quiserem um exemplo dessa habilidade, ouçam com atenção o bumbo fantasmagórico e cheio de ambiência tocado por John Bonham no início de “When the Levee Breaks”, do  Led Zeppelin IV.

    No entanto, há um assunto sobre o qual o guitarrista se esquiva todo o tempo: o seu envolvimento com magia e ocultismo. O entrevistador se esforça para conseguir detalhes, mas Page concede apenas respostas evasivas, o que aumenta ainda mais o mistério sobre este aspecto da sua vida.

    Como se sabe, o músico é tão fascinado pelo oculto que, em 1971, comprou a Boleskine – mansão localizada às margens do Lago Ness, na Escócia, e que antes pertenceu ao mago Aleister Crowley. Ele também é o responsável pela adoção dos quatro símbolos rúnicos associados a cada integrante do Zeppelin.

    Além de tudo isso, o livro traz uma parte dedicada apenas aos aspectos técnicos da vida de Page como músico: uma relação detalhada de guitarras, amplificadores e pedais usados pelo guitarrista.

    Luz e Sombra – Conversas com Jimmy Page é item fundamental para todos aqueles que querem saber mais sobre a história do Led Zeppelin, mas principalmente para quem deseja mergulhar nos detalhes da vida de um dos maiores guitarristas da história do Rock.

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    Texto de autoria de Carlos Brito.

     

  • Resenha | O Beco do Pânico – Clovis Levi

    Resenha | O Beco do Pânico – Clovis Levi

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    No prefácio da edição nacional de O Beco do Pânico, de Clovis Levi, livro originalmente lançado em Portugal, onde foi muitíssimo bem-sucedido, e que chegou ao Brasil pela Globo Livros, Jairo Bouer aponta a dúvida como ponto focal da trama. A interpretação me parece acertada, e, ao longo dessa pequena história que explora os infindáveis questionamentos de Caíque, um adolescente de classe média alta, a incerteza será de fato o fio condutor.

    Namorando a garota mais bonita da escola, mas se vendo subitamente atraído pelo professor de Teatro, nosso protagonista, tido por todos como um pegador, começa a questionar sua sexualidade – fato que, atrelado a outros males da idade, como o desinteresse pelos estudos, a dificuldade de diálogo com os pais e mesmo a revolta juvenil sem objetivo claro, dá ao leitor a dimensão da confusa psique de um jovem que, como quase todos os outros, não sabe ao certo quem é.

    E a multiplicidade não se encontra apenas nos dilemas de Caíque. É impressionante o número de temas tratados por Clovis Levi, que, trabalhando uma gama enxuta de personagens, consegue trazer às páginas desde a ambígua relação que até hoje temos com a Ditadura Militar, na figura do autoritário e intolerante Barbosa, avô de Caíque, até as diferenças de classe que assolam todos os cantos da nação, representadas por Cuca Fresca, o favelado melhor amigo de nosso herói. Contudo, essa vastidão de assuntos abordados acaba por configurar antes uma falha que uma qualidade; o 11 de setembro, bullying, homofobia, preconceito étnico – nada parece escapar à ânsia de Levi de enriquecer sua história, o que, por fim, torna superficiais quase todas as reflexões alcançadas sob o prisma adolescente dos narradores.

    E embora suas construções psicológicas sejam louváveis, a forma como esses adolescentes efetivamente se expressam passa grande estranheza e, vale dizer, simplesmente não condiz nem com a realidade nem com o universo no qual se encontram. Onde já se viu, por exemplo, um jovem repleto de revolta, como é Caíque, no momento de extravasar essa ira utilizar de jargões como “Vai se catar”?

    Ao ler O Beco do Pânico, o leitor se depara com uma trama que gira em torno de dúvidas, e, como não poderia deixar de ser, sai com algumas delas em aberto. É uma pena que, ao concluir suas 111 páginas, talvez a única dúvida que realmente o incomode seja: valeu a pena?

    Texto de autoria de Alexandre “Noots” Oliveira.

  • Resenha | Fico Besta Quando Me Entendem – Entrevistas com Hilda Hilst

    Resenha | Fico Besta Quando Me Entendem – Entrevistas com Hilda Hilst

    Hilda Hilst é um nome relevante, embora pouco lido da literatura brasileira. Autora de peças, romances e poemas a escritora é muito estudada na academia, especialmente em cursos de pós-graduação, mas, ausente dos currículos escolares, acaba também fora do repertório de maior parte da população. Formada em direito, Hilst publicou seu primeiro livro de poemas aos 20 anos, filha da família Almeida Prado, largou a vida na alta-sociedade para se isolar em uma fazenda nos arredores de Campinas, onde viveu rodeada de cachorros até sua morte.

    Contraditória na personalidade e na literatura Hilda escreveu pornografia intelectual e poemas místicos, foi sempre louvada pelos críticos e nunca muito lida e é essa figura controversa que a coletânea de entrevistas busca explorar. Cristiano Diniz organizou em ordem cronológica entrevistas feitas entre 1952 e 2002, cobrindo a carreira e a vida da escritora.

    A ordem cronológica é uma escolha que funciona: vemos Hilst crescer através das conversas e sua obra se multiplicar, mas, ironicamente, a jovem Hilda é mais interessante que a mulher madura. No início do livro, a autora ainda está envolvida com a poesia, a primeira entrevista é da época da publicação de seu segundo livro, e um tanto fascinada com o mundo literário. Inteligente e bem humorada, Hilst solta pérolas como “Eu falo tão claro. Eu falo até sobre a bunda” ao que um colega escritor respondeu à jovem autora “mas tua bunda é terrivelmente intelectual, Hilda!”

    O inconformismo de Hilst com sua falta de público é provavelmente o tema mais repetido nas entrevistas: sem qualquer modéstia, a escritora se espanta que seus escritos, segundo ela, tão lindos não sejam lidos por ninguém. Hilda fala sobre seu hermetismo e fama de “escritora para doutores” e a dor que isso lhe causa, não é questão de dinheiro, afirma, mas de comunicar. Ela confessa ainda que a trilogia erótica veio justamente daí, um esforço de ser popular, mas que acabou frustrado já que até sua pornografia é densa e controversa.

    A poeta fala ainda de sua relação com o misticismo e a espiritualidade: na década de 60, Hilda fez experimentos com um rádio que supostamente captaria espíritos, aos moldes das investigações de um filósofo suíço. Mais tarde, ela se volta novamente para o Deus cristão, aproximando-se até das místicas medievais ao falar de uma religiosidade do corpo, da carne e dos sentidos, “meu negócio é com Deus”, afirma a autora mais de uma vez.

    No entanto, conforme o livro caminha, as entrevistas vão se tornando repetitivas, quanto a Hilst, fica mais velha  ranzinza e desagradável. Ela repete com cada vez mais frequência que não é lida, enquanto exalta cada vez mais a excelência da própria escrita. É interessante ver a mudança da personagem, mas há uma repetição excessiva, as últimas entrevistas parecendo versões levemente alteradas da mesma coisa.

    Ainda assim, Fico Besta Quando Me Entendem é uma ótima introdução ao universo da escritora: provoca interesse em suas obras e descortina uma personalidade que, pela maior parte da vida, foi fascinante. Eu quase tive vontade de ser amiga da jovem Hilda, aberta, escrachada, tremendamente honesta e disposta a ir atrás de Marlon Brando em um quarto de hotel em Mônaco e, tendo lido apenas alguns poemas da escritora, adicionei à lista de leituras Presságio e A Obscena Senhora D.

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    Texto de autoria de Isadora Sinay.