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  • Crítica | MLK/FBI

    Crítica | MLK/FBI

    MLK/FBI é um documentário de Sam Pollard, diretor conhecido pelo elogiado The Talk: Race in America. Aborda a os arquivos do FBI sobre o reverendo e ativista Martin Luther King, indicando a abordagem completamente parcial e desonesta em cima dessa figura. O filme começa com falas do presidente republicano Ronald Reagan em um discurso bizarro, comentando a historia dos Estados Unidos e as manifestações populares, sobretudo as raciais, como se fossem iguais as batalhas entre bem e mal dos filmes de mocinho que protagonizava quando novo, relegando o papel de vilão aos grupos protestantes de maneira nada sutil.

    É estranho como discursos vindos de classes tradicionalmente tratadas como inferiores são necessariamente associadas a malignidade por parte de figuras de autoridade, mesmo quando o tom da fala é conciliatória como era no discurso de King. O pastor era considerado o negro mais perigoso do país, o homem visto com maior potencial destrutivo para o status quo e o regime de poderes que vigoravam na segunda metade do século XX.

    O filme possui um ritmo um pouco truncado, mas toda a investigação da produção a respeito da paranoia do país e da forma como J. Edgar Hoover lidava com a questão de Luther King ser subversivo é muito bem escrutinada. Na tela se expõem as estranhas de um país que não sabe lidar realmente com as liberdades individuais, embora todo o discurso, para dentro ou fora de suas fronteiras, dê conta dos Estados Unidos como uma pátria que valoriza suas origens democráticas e a liberdade de pensamento e expressão.

    Pollard não tem pudor em mostrar o quão irresponsáveis e injustas foram as autoridades, levantando mentiras contra o pregador, revelando supostas indiscrições, frutos de um reacionarismo tacanho de quem estava no poder em uma época de ebulição e luta de classes. O filme poderia ser mais enérgico, mas de modo algum aliena o espectador.

    Há uma espera, muito justa aliás, para que em 2027 sejam reveladas as fitas originais com os registros da agencia sobre Luther King. Em meio a tantos boatos e fofocas a respeito da vida pessoal de MLK, a obra de Pollard consegue levantar bons indícios de perseguição ao reverendo, que podem inclusive ter influenciado na brevidade de sua trajetória. MLK/FBI é elucidativo e não cai em armadilhas conspiratórias. Além de conversar muito bem com os recentes Judas e o Messias Negro e Os 7 de Chicago, também acrescenta bons temperos aos tempos atuais e as complicadas situações e batalhas travadas contra o reacionarismo que vigora.

  • Crítica | Eu Não Sou Seu Negro

    Crítica | Eu Não Sou Seu Negro

    “A história dos negros na América é a história da América. E não é uma história bonita”. Essa é uma das frases que James Baldwin, famoso escritor americano, profere no documentário Eu Não Sou Seu Negro, de Raoul Peck. Além dessa, existem várias outras frases, citações, textos, palestras e conversas onde ele expõe de forma nua e crua as relações raciais nos EUA, com a qual podemos traçar alguns paralelos em relação ao Brasil. O difícil mesmo é escolher quais citações usar, pois a cada minuto Baldwin nos joga na cara, com uma lucidez dolorosa, a forma como os EUA foram construídos em cima de um projeto de separação racial e exploração da população negra trazida da África. E como não dá mais para ignorar isso.

    O filme Eu Não Sou Seu Negro é um projeto do cineasta (com narração de Samuel L. Jackson), utilizando como base o livro não concluído de Baldwin, Remember this House, onde o escritor iria contar a história dos EUA a partir dos assassinatos de três dos principais líderes negros da história: Medgar Evers, Malcolm X e Martin Luther King, durante o movimento pelos direitos civis.

    No início e final do filme, Baldwin cita a necessidade tanto de ter saído dos EUA (com a paranoia real de a cada esquina poder ser morto por alguém), até viver em Paris por tanto tempo que passou a sentir falta dos EUA. Mas, como ele deixa claro, não dos ícones da cultura americana, como a comida ou os esportes, mas sim o seu povo. Mesmo deixando também claro que nunca se sentiu conectado com nenhum movimento em particular (Os Panteras Negras, a NAACP, ou as congregações cristãs), ele queria estar ali, circulando entre eles, observando a história acontecer. Enquanto escrevia sobre ela.

    É morto Medgar Evers.

    A todo o tempo no filme, Baldwin cita a relação e o diálogo na época com os brancos (sociedade em geral e também representantes do governo dos Kennedy) e a frustração com não só a incapacidade deles de entenderem o real problema, mas também de entender que havia um problema ali. Os brancos acreditavam firmemente que os EUA eram um projeto que deu certo, e a escravidão e violência eram um desvio de caráter, não um traço fundador do país.

    A divisão no país, entre brancos e negros, não é só econômica. Há uma barreira quase intransponível que mesmo os brancos liberais e antirracistas não conseguem ver ou mesmo entender como ela opera no seu cotidiano. Ao citar amplamente sua infância e seu início de aprendizagem e formação psicológica, Baldwin mostra, utilizando-se como exemplo, como o negro nos EUA cresce com outros referenciais de beleza, de postura, de atitude, de crenças, e de oportunidades, e como se dá o choque ao saber que tudo aquilo que lhe foi vendido, não foi feito para ele.

    É morto Malcom X.

    Discordando-se ou não de sua postura (como havia discordâncias, as vezes ferozes, mesmo dentro do movimento negro), Malcom foi um porta-voz ativo de uma mensagem que precisava ser ouvida. A da raiva acumulada por séculos, e de que o negro americano nunca foi pacífico ou que aceitou a condição que lhe foi imposta. E que agora essa raiva iria retornar na mesma medida a sociedade que lhes impôs tudo isso. E essa atitude iria custar uma repressão enorme do aparato estatal, já que o “Revolucionário branco quando se arma é aplaudido. O negro é tratado como criminoso.”

    É morto Martin Luther King.

    Toda a estrutura social, econômica, política e especialmente militar dos EUA, toda a base do “sonho americano”, foi construída em cima de uma noção de país que só serve para uma pequena minoria, que desfruta de todo essa qualidade de vida ao custo da mão-de-obra barata dos negros desde a escravidão.

    A ignorância do branco em relação a todas essas questões se reflete na discussão com o professor de filosofia de Yale, Paul Weiss, cuja frase marcante “a cor não deveria ser o foco do debate” é o típico argumento do branco, quando se é negro nos EUA ou no Brasil a principal preocupação do negro antes de tudo é sobreviver ao dia-a-dia. A ameaça de morte está em cada pessoa e em cada figura de autoridade. Todo o histórico de violência do país é o retrato dessa divisão, e o argumento principal de Baldwin é que isso tem um custo. O vazio emocional dos EUA é tão grande que se tenta preencher isso com uma avalanche de bens materiais. Cada americano, violento ou ignorante, tem uma parcela de responsabilidade enquanto não assume a situação do país. E isso se reflete na violência das instituições, da população contra si mesma, os tiroteios em massa, a paranoia com segurança e o “invasor externo”, etc, afinal “Você não pode me linchar e me manter nos guetos sem se transformar em algo monstruoso”.

    Texto de autoria de Fábio Z. Candioto.

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  • Crítica | Selma: Uma Luta Pela Igualdade

    Crítica | Selma: Uma Luta Pela Igualdade

    Selma - Luta pela Liberdade - poster brasileiro

    Vulgarizamos o que não entendemos, essa é uma das verdades sobre nós. Assim é com a matemática, quando esta deixa de ser divisão e vira fração na terceira série, ou com aquela redação dada em uma época que ainda não sabemos como segurar a caneta corretamente. Estende-se essa negação quando muitos veem um casal gay na calçada, e, se não atravessam a rua, preferem cometer barbaridades a deixar que cada um viva como queira viver.

    Desculpas ao riso são músicas em inglês em ouvidos treinados em uma única língua, ou alguém que veste amarelo aos olhos de quem só gosta de verde. Não menos que um negro, hoje o homem mais poderoso do mundo ocidental, disputando eleições na maior democracia consolidada do planeta. Fato risível, isso sim, na penosa, quase cármica época que o leve e forte filme da (ótima) cineasta Ava DuVernay se apropria em recriar com fidelidade, dor e esperança no Cinema, sem quaisquer apologias emocionais ou de caráter caricatural como nos recentes 12 Anos de Escravidão, Django Livre ou Gran Torino – neste último caso, racismo explícito contra japoneses.

    Todos esses filmes, bons ou regulares, atestam a ignorância humana a favor do desumano, enquanto Selma – Uma Luta Pela Igualdade opta pela ausência dessa ignorância em troca da presença do medo que poderosos brancos tinham de dividir um grama de seu poder com uma voz… diferente. Não é ignorância frente ao desconhecido, é medo de perder o poder, pois sabiam e sabem que, se uma voz consegue reunir duas pessoas, pode reunir 200 ou 3000 para protestar contra o que as impede de ser feliz na tentativa de sobreviver. E assim como Doze Homens e Uma Sentença, clássico de Sidney Lumet, um filme americano novamente discute, sem medo e com um fôlego renovado, as dívidas morais de uma sociedade, procurando um calor progressista em um conservadorismo congelado e congelante.

    Há muitos paralelos entre a obra de Lumet e esta de Ava, em especial o debate temático mostrado em tela, o suficiente para inspirar o espectador a se posicionar ante o certo e o errado, diante do que sente, sobretudo na perspicácia de explorar recantos intrínsecos ao status de cidadania, como a criminalidade, direitos civis e meritocracia, com um background repleto de questões atemporais e principalmente ricas em perspectiva e grau de tratamento artístico.  Ao “reescrever” a história de Martin Luther King, primeiro o homem e depois o herói, o escritor Paul Webb, de Lincoln (um ótimo roteiro, fragilmente adaptado por Steven Spielberg) volta aos malabarismos com o racismo e a segregação temporal, numa verdadeira lucidez temática sobre o assunto, e finalmente muito bem traduzido por Ava. A diretora, em seu terceiro longa-metragem – quase Like a Virgin, mas habilidosa a ponto de deixar ações e trilha sonora falarem mais alto que palavras – não se apoia nos recursos de liderança já citados, mas no gênio da artista de extrair bom senso, leveza e ponderação ética do material escrito por Webb. Trabalho de veterano(a) com garra de principiante.

    Faça a Coisa Certa, Fruitvale Station: A Última Parada, Compasso de Espera e, agora, este belo tratado sobre as fraturas do convívio humano… Ressacas sociais filmadas como rito de consciência e inteligência interemocional, fazendo, através de um arranjo tão forte, grandes filmes. Filmes além de pretensões para com gregos e troianos, senão com a harmonia entre a realidade e a ficção, com o contraponto da política teórica de gabinete e a política violenta das calçadas, valorizando a força real das situações graças à potência empregada com uma câmera de Cinema (um toque de parcialidade quanto ao drama vivido), e o poder deste em recriar uma época, suas cicatrizes e implicações com o hoje e, certamente, o amanhã.

    Selma carrega uma grande e imperturbável estabilidade emocional, transmitindo-nos segurança para a veracidade de fatos e relatos demonstrados em imagens difíceis de esquecer, como as impressionantes marchas de negros nas ruas e pontes de uma nação de mentalidade ainda escravista, excomungando cidadãos não reconhecidos como tal, com forças policiais caninas e leis de separação étnica, como se não bastasse. Cenário ainda retratado no Brasil, graças à violência policial e outras expressões de poder igualmente apodrecidas de dentro para fora. No filme, um retrato sem moldura, um alívio da realidade. Em cada olhar de uma atuação coletiva impecável, notam-se as expressões reproduzidas nos jornais, de famílias removidas de suas casas, e feições em protestos a favor de uma qualidade de vida melhor – e proibida.

    Extrovertido em suas conclusões, com alma introvertida em momentos mais íntimos, onde o Sr. e a Sra. King tiram a limpo suas disposições à causa negra e devoções conjugais. O que é para muitos um drama, tachado como melodrama, tamanha a sensibilidade, feminina ou não, para com o seio a nutrir e transmitir forças ao herói em frente a Casa Branca, num discurso de políticas igualitárias histórico, num dos momentos decisivos da história americana. Selma é um símbolo que vai além de justificar, por sinal, apenas o nome da cidade onde os negros foram primeiramente reconhecidos como gente antes do resto do mundo, assim como o bairro Castro, em São Francisco, o foi para os homossexuais, e todas as veredas ainda a se tornarem marcantes para “populações inferiores”, no futuro. Assim, a partir de tais verdades compartilhadas ao leitor, nenhuma tecnologia evitará que o futuro seja o espelho do passado, enquanto quem usa verde desprezar quem gosta de amarelo.