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  • Crítica | O Céu da Meia-Noite

    Crítica | O Céu da Meia-Noite

    Podemos dizer que filmes de viagens espaciais existem “desde sempre”, quando em 1902, o cineasta francês Georges Méliès dirigiu o ótimo Viagem à Lua, que já nasceu clássico por se tratar do primeiro filme de ficção científica da história, além de também ser o ponto de partida para a criação dos subgêneros da ficção, como os contatos imediatos com alienígenas.

    Apesar da ficção científica estar sempre em evidência no decorrer dos anos, um gênero específico possui pouquíssimos filmes que são muito bem representados, como é o caso dos dramas das viagens espaciais. Talvez, tem-se em 2001: Uma Odisseia no Espaço e em Interestelar os dois maiores filmes do gênero já feitos e podemos adicionar à lista outras produções como Apollo 13: Do Desastre ao Triunfo que é baseado em fatos reais, além dos ótimos Gravidade, Perdido em Marte e O Primeiro Homem, também baseado em fatos reais e o mais recente deles, Ad Astra: Rumo às Estrelas.

    Vale destacar que com exceção de “2001” e “Apollo 13”, que foram lançados em 1968 e 1995, respectivamente, todos os outros foram lançados na última década e olha que não estamos falando da enorme quantidade de seriados do gênero.

    E tudo isso, provavelmente, se deve às últimas pesquisas e missões feitas pela NASA, aliada à Spacex, de Elon Musk, que quer que humanos colonizem Marte o mais rápido possível. Nunca se mandou tantos astronautas e sondas para o espaço como atualmente e, como a vida imita a arte, fica claro que o mercado cinematográfico está aquecido.

    Mas como dito, são poucos os representantes do gênero e O Céu da Meia-Noite, produção da gigante Netflix, busca registrar seu nome neste hall da fama dos dramas de viagens espaciais.

    Dirigido e estrelado pelo astro George Clooney, acompanhamos a história do cientista Augustine (Clooney), que, num Planeta Terra já condenado, decide ficar sozinho numa base no Ártico para tentar alertar os vários astronautas que estão viajando pelo espaço a não voltarem à Terra, dada a sua rápida degradação. A missão destes astronautas é clara: encontrar planetas habitáveis para que possamos sobreviver e perpetuar nossa espécie. E é justamente aí que conhecemos a equipe de astronautas da nave comandada por Sully (Felicity Jones), que está retornando ao nosso planeta com ótimas notícias.

    Então, vemos em tela dois fronts de desespero, sendo um de Augustine buscando contato com as naves fora do planeta e outro da Comandante Sully buscando contato com a Terra que, estranhamente, não responde os seus chamados. E, para piorar a situação, Augustine descobre uma criança que está abandonada na base. A menina Iris, vivida pela atriz Caoillin Springall, provavelmente foi esquecida por alguma das pessoas que abandonaram a base e que motivaram a estadia do protagonista.

    Curiosamente, o filme se destaca mais pela dinâmica da dupla sozinha no Ártico do que pela dinâmica dos astronautas que são responsáveis pelos momentos de maior ação no filme, justamente porque todos os percalços vividos pelos viajantes do espaço já foram vistos no cinema pelo menos uma vez. A direção de Clooney é muito competente. Sua atuação e a química entre os personagens funcionam bem, mas infelizmente, a parte espacial não traz nada de novo para o espectador.

    Mas, ainda assim, visualmente falando, o filme é lindo e esse adjetivo não está somente presente no aspecto estético, já que passa diversas mensagens para aquele que assiste, principalmente na atual condição do nosso mundo hoje, que está doente, ambientalmente falando, pandêmico, com uma população que vem sofrendo constantemente com a saúde mental fragilizada, dentre outros diversos problemas.

    Apesar de ter figurado na lista dos filmes mais vistos na Netflix, só o tempo irá dizer se O Céu da Meia-Noite, figurará na seleta lista mencionada no início deste texto.

    Texto de autoria de David Matheus Nunes.

  • Crítica | The Cloverfield Paradox

    Crítica | The Cloverfield Paradox

    No ano de 2008, foi lançado o primeiro Cloverfield, um filme em esquema found footage sobre um grupo de amigos tentando sobreviver à destruição de Nova York por uma estranha criatura que surgiu do oceano. O filme, produzido pela Bad Robot de J. J. Abrams, escrito por Drew Goddard e dirigido por Matt Reeves, beneficiou-se de uma extensa e intrigante campanha de marketing viral que incluiu sites com pequenas pistas sobre a trama, jogos de realidade alternativa e trailers que pouco revelavam sobre o filme. A película de 25 milhões de dólares foi um sucesso, rendeu 170 milhões de bilheteria e recebeu boas críticas da mídia especializada. Em 2016, após anos de intensa especulação, chegou aos cinemas Rua Cloverfield, 10, uma produção que foi cercada de mais mistério do que a sua irmã mais velha. Dirigido por Dan Trachtenberg e estrelado por Mary Elisabeth Winstead, o longa foi um sucesso de público e crítica.

    Pouco depois do lançamento de Rua Cloverfield, 10, surgiram os primeiros boatos sobre o que poderia ser a trama do próximo Cloverfield. O filme se chamaria God Particle (Partícula de Deus) e envolveria um grupo de astronautas e cientistas que se veriam às voltas com um acidente em um acelerador de partículas e o posterior desaparecimento do planeta Terra. E só. Depois disso, fora as confirmações de elenco, nada mais foi falado sobre o filme. A data de lançamento foi mudada várias vezes, gerando mais expectativa e também desconfiança. A situação foi ficando mais estranha quando surgiram boatos de que a Netflix tinha adquirido a franquia da Paramount e surgiram informações sobre o enredo do quarto filme, chamado Overlord, mas nada sobre The Cloverfield Paradox. Entretanto, no intervalo do Super Bowl, um trailer surpresa do filme foi exibido com o anúncio de que estaria liberado ao final da partida. Nesse momento todos estão pensando na jogada de mestre aplicada pela Netflix. Seria, se o filme não fosse tão ruim.

    Na trama, a Terra enfrenta uma crise energética que irá fazer com que o planeta consuma todos os seus recursos em pouco tempo. Na iminência da extinção, nações colocam as diferenças de lado e lançam um projeto coletivo chamado Shepard, um mega acelerador de partículas que é acoplado na Estação Especial Cloverfield com o fim de gerar energia ilimitada para o planeta. Após dois anos de tentativas fracassadas, a missão finalmente consegue ativar o acelerador, mas algo dá errado durante o processo e nosso planetinha azul simplesmente desaparece. Desesperados, os tripulantes da estação empreendem esforços para entender o que se passa, mas após o acidente com o acelerador, eventos estranhos passam a ameaçar a vida de todos ali dentro.

    A premissa é muito interessante, mas o seu desenvolvimento é terrível. Logo no início do filme, há uma participação especial de Donal Logue que praticamente chama o espectador de burro. Quem reclama de Christopher Nolan e o excesso de exposição em seus filmes vai se sentir compelido a escrever um pedido de desculpas ao diretor, porque essa cena de Paradox duvida descaradamente da capacidade intelectual de quem está assistindo. Oren Uziel e Doug Jung falham miseravelmente na concepção do acelerador Shepard. A única coisa que fica bem estabelecida é que estamos diante de um acelerador de partículas. Fora isso, nunca fica claro qual efeito o objeto é capaz de produzir. Pior, os efeitos colaterais são extremamente discrepantes. De um objeto capaz de causar rupturas dimensionais, feridas no espaço-tempo contínuo e surgimento de estranhas criaturas, o acelerador produz efeitos semelhantes aos de uma casa mal assombrada, com direito até mesmo a uma mão inteligente e temperamental ao estilo da mãozinha da Família Addams. Seria caótico (no bom sentido) se não fosse estúpido. Entretanto, o pior é a tentativa de forçar o filme a amarrar as pontas e responder grandes questões da franquia. Não que as perguntas sejam facilmente respondidas, mas as respostas são as piores possíveis e fica a noção de que essa integração é gratuita e forçada.

    Narrativamente o filme não possui impacto, visto que logo que o planeta some, somos apresentados a uma sub-trama que se passa simultaneamente na Terra, fato esse que diminui o impacto do filme e acaba com qualquer atmosfera de mistério. Essa sub-trama também faz parte da forçada de barra em integrar The Cloverfield Paradox parte de uma franquia e de um universo cinematográfico interdimensional (vou patentear essa expressão) compartilhado. Se essa trama fosse omitida em troca de uma surpresa final ao estilo de M. Night Shyamalan, é possível que esse Cloverfield provocasse uma breve sensação de satisfação. Outro problema grave é que a direção frouxa de Julius Onah falha até mesmo em criar uma atmosfera de suspense para as mortes na tripulação, tripulação essa que é composta de tipos genéricos e que não despertam nenhuma empatia, à exceção da protagonista vivida pela ótima Gugu Mbatha-Raw.

    Em resumo, The Cloverfield Paradox não funciona em nada. Não se estabelece como suspense, erra na ficção-científica sendo somente um filme que se aproveitou de uma campanha excelente de marketing e que cuja a única razão de existir é pra integrar e amarrar mal um universo cinematográfico interdimensional compartilhado.

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  • Crítica | Rainha de Katwe

    Crítica | Rainha de Katwe

    O acaso e a democracia em caráter alegórico determinam, de maneira resumida, o relato sobre a história real de Sophia Mutasi, uma menina analfabeta, de apenas 11 anos, moradora de uma das regiões mais pobres da capital de Uganda, Kampala. Rainha de Katwe é uma produção da Disney com colaboração da ESPN – outro canal de seu conglomerado – que explora uma delicada e interessante análise sobre a construção do esporte na África e como a participação de mulheres resulta em uma emancipação inclusiva.

    William Wheeler, o roteirista, sentiu a necessidade de esculpir personagens femininas fortes, mas sem desnivelar a tons tendenciosos e maniqueístas. Portanto, entregou liberdade interpretativa para a estreante Maldina Nalwanga, que faz Sophia, e para Lupita Nyong’o, que encena a mãe viúva Harriet. A partir da inclusão do xadrez como objeto de foco no filme, o roteiro contorna situações de tensão e escarne, popularizando o conceito democrático do jogo – ponto positivo para o treinador Robert (David Oyelowo), que para instigar os jovens pobres a participar do jogo, destaca que pode ser a chance para não só mostrar à classe mais abastada da região e do país que é bom no jogo, mas que existe e que é escondido pela desigualdade.

    A direção é da indiana Mira Nair, erradicada nos Estados Unidos. Aqui, ela diversifica a pluralidade de paisagens e culturas do país para evidenciar a existência do povo daquela região, sem apelar a uma perspectiva exótica. Aliada à direção de fotografia de Sean Bobbit, os conflitos internos de Phiona são catalisadores para os embates nos tabuleiros, afinal, como contestar a vida que se segue, sendo que ela pode ser alterada a qualquer momento, para além do próprio alcance?

    Portanto, a narrativa do filme, como muitos contos – próprios ou não – da Disney, é evocar histórias de superação e equiparação além da singularidade daquele universo. Toda a igualdade, todas as chances por uma oportunidade de vencer e sair do anonimato imposto por sociedades e seus braços, são manifestadas em diversas maneiras e claro, quando é sobre um esporte, é um evidente ponto democrático. Quantas pobrezas foram esquecidas ou amenizadas quando se chega em casa de madeirite com comida para dois meses? E quantas dúvidas sobre a dúvida foram esclarecidas pelos mestres, pelos tutores e depois, por si mesmo? Sophia é uma heroína de sua família, de seu povo, e de si mesma.

    Texto de Adolfo Molina.

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  • Crítica | O Ano Mais Violento

    Crítica | O Ano Mais Violento

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    O Ano Mais Violento se passa no árido inverno de 1981 em Nova York, e inicia-se já apresentando o histórico violento da cidade bem como o seu futuro incerto e desajustado. Índice de assassinatos em alta, roubos não investigados, e um sistema judiciário inchado e coberto de interesses políticos.

    É neste cenário que o empresário e imigrante Abel Morales (Oscar Isaac) e sua esposa Anna (Jessica Chastain) lutam para progredir no negócio de venda de combustível enquanto tentam lidar com suas éticas internas e com a violência opressora da cidade. Vítimas constantes de roubos e da vigilância do ambicioso promotor local (David Oyelowo), os personagens empalidecem sua aparência civilizada a cada novo golpe que sofrem, cada vez mais tendendo à opção de moldarem-se ao modus operandi da cidade.

    Em plena ascensão, Abel é mostrado como um homem rígido e eventualmente caridoso que subiu na vida através do seu talento e do casamento com Anna, e tendo como carta final a compra de um terreno de logística privilegiada que lhe garantirá o poder que tanto almeja. Seu destaque empresarial e resiliência pessoal contrastam-se, porém, com a trajetória de seu jovem empregado Julian, que se quebra frente à pressão de suas próprias incapacidades até apresentar-se como um problema para Abel e suas ambições.

    Uma das preocupações do roteiro é não mostrar apenas a violência urbana. Está claro que na verdade estamos falando de uma época mais civilizada que antes. Esse “antes” é a época dos gângsteres, que dominavam o mercado na violência e na troca de tiros. O que faz desse ano descrito o mais violento não é a violência física em si, mas a recente desinstitucionalização dessa violência.

    Não é incomum pessoas que viveram sua infância na década de 1940, por exemplo, rascunharem o relato de uma época mais pacífica, saudável e solidária que a atual, mesmo que esta tenha sido a década em que 40 milhões de pessoas morreram tão violentamente em uma guerra mundial. O motivo é que, quando sob aval social, a violência perde impacto, e com o tempo acaba por ser digerida pelo sistema.

    Usando Oscar Isaac (Inside Llewyn Davis – Balada de um Homem Comum) como astro, é notório que, apesar de seu talento, o ator desaparece cada vez que Jessica Chastain (A Hora Mais Escura) aparece em cena. Isso não é por acaso, pois a direção de J.C. Chandor faz questão de iluminá-la e destacá-la em todas suas aparições, demonstrando todo o magnetismo daquela mulher que, ao contrário do marido, é capaz de fazer o que é necessário. Cria de uma sociedade gângster, ela se mostra capaz de adaptar-se à sociedade atual, mais civilizada e de sobretudo, mas sem deixar suas garras de lado.

    Subliminarmente perversa desde o início, Chastain faz um belíssimo papel demonstrando que, como disse Mario Puzo, por trás de toda grande riqueza sempre há um grande crime, fazendo do “American Dream” tudo, menos um sonho.

    Texto de autoria de Marcos Paulo Oliveira.

  • Crítica | Selma: Uma Luta Pela Igualdade

    Crítica | Selma: Uma Luta Pela Igualdade

    Selma - Luta pela Liberdade - poster brasileiro

    Vulgarizamos o que não entendemos, essa é uma das verdades sobre nós. Assim é com a matemática, quando esta deixa de ser divisão e vira fração na terceira série, ou com aquela redação dada em uma época que ainda não sabemos como segurar a caneta corretamente. Estende-se essa negação quando muitos veem um casal gay na calçada, e, se não atravessam a rua, preferem cometer barbaridades a deixar que cada um viva como queira viver.

    Desculpas ao riso são músicas em inglês em ouvidos treinados em uma única língua, ou alguém que veste amarelo aos olhos de quem só gosta de verde. Não menos que um negro, hoje o homem mais poderoso do mundo ocidental, disputando eleições na maior democracia consolidada do planeta. Fato risível, isso sim, na penosa, quase cármica época que o leve e forte filme da (ótima) cineasta Ava DuVernay se apropria em recriar com fidelidade, dor e esperança no Cinema, sem quaisquer apologias emocionais ou de caráter caricatural como nos recentes 12 Anos de Escravidão, Django Livre ou Gran Torino – neste último caso, racismo explícito contra japoneses.

    Todos esses filmes, bons ou regulares, atestam a ignorância humana a favor do desumano, enquanto Selma – Uma Luta Pela Igualdade opta pela ausência dessa ignorância em troca da presença do medo que poderosos brancos tinham de dividir um grama de seu poder com uma voz… diferente. Não é ignorância frente ao desconhecido, é medo de perder o poder, pois sabiam e sabem que, se uma voz consegue reunir duas pessoas, pode reunir 200 ou 3000 para protestar contra o que as impede de ser feliz na tentativa de sobreviver. E assim como Doze Homens e Uma Sentença, clássico de Sidney Lumet, um filme americano novamente discute, sem medo e com um fôlego renovado, as dívidas morais de uma sociedade, procurando um calor progressista em um conservadorismo congelado e congelante.

    Há muitos paralelos entre a obra de Lumet e esta de Ava, em especial o debate temático mostrado em tela, o suficiente para inspirar o espectador a se posicionar ante o certo e o errado, diante do que sente, sobretudo na perspicácia de explorar recantos intrínsecos ao status de cidadania, como a criminalidade, direitos civis e meritocracia, com um background repleto de questões atemporais e principalmente ricas em perspectiva e grau de tratamento artístico.  Ao “reescrever” a história de Martin Luther King, primeiro o homem e depois o herói, o escritor Paul Webb, de Lincoln (um ótimo roteiro, fragilmente adaptado por Steven Spielberg) volta aos malabarismos com o racismo e a segregação temporal, numa verdadeira lucidez temática sobre o assunto, e finalmente muito bem traduzido por Ava. A diretora, em seu terceiro longa-metragem – quase Like a Virgin, mas habilidosa a ponto de deixar ações e trilha sonora falarem mais alto que palavras – não se apoia nos recursos de liderança já citados, mas no gênio da artista de extrair bom senso, leveza e ponderação ética do material escrito por Webb. Trabalho de veterano(a) com garra de principiante.

    Faça a Coisa Certa, Fruitvale Station: A Última Parada, Compasso de Espera e, agora, este belo tratado sobre as fraturas do convívio humano… Ressacas sociais filmadas como rito de consciência e inteligência interemocional, fazendo, através de um arranjo tão forte, grandes filmes. Filmes além de pretensões para com gregos e troianos, senão com a harmonia entre a realidade e a ficção, com o contraponto da política teórica de gabinete e a política violenta das calçadas, valorizando a força real das situações graças à potência empregada com uma câmera de Cinema (um toque de parcialidade quanto ao drama vivido), e o poder deste em recriar uma época, suas cicatrizes e implicações com o hoje e, certamente, o amanhã.

    Selma carrega uma grande e imperturbável estabilidade emocional, transmitindo-nos segurança para a veracidade de fatos e relatos demonstrados em imagens difíceis de esquecer, como as impressionantes marchas de negros nas ruas e pontes de uma nação de mentalidade ainda escravista, excomungando cidadãos não reconhecidos como tal, com forças policiais caninas e leis de separação étnica, como se não bastasse. Cenário ainda retratado no Brasil, graças à violência policial e outras expressões de poder igualmente apodrecidas de dentro para fora. No filme, um retrato sem moldura, um alívio da realidade. Em cada olhar de uma atuação coletiva impecável, notam-se as expressões reproduzidas nos jornais, de famílias removidas de suas casas, e feições em protestos a favor de uma qualidade de vida melhor – e proibida.

    Extrovertido em suas conclusões, com alma introvertida em momentos mais íntimos, onde o Sr. e a Sra. King tiram a limpo suas disposições à causa negra e devoções conjugais. O que é para muitos um drama, tachado como melodrama, tamanha a sensibilidade, feminina ou não, para com o seio a nutrir e transmitir forças ao herói em frente a Casa Branca, num discurso de políticas igualitárias histórico, num dos momentos decisivos da história americana. Selma é um símbolo que vai além de justificar, por sinal, apenas o nome da cidade onde os negros foram primeiramente reconhecidos como gente antes do resto do mundo, assim como o bairro Castro, em São Francisco, o foi para os homossexuais, e todas as veredas ainda a se tornarem marcantes para “populações inferiores”, no futuro. Assim, a partir de tais verdades compartilhadas ao leitor, nenhuma tecnologia evitará que o futuro seja o espelho do passado, enquanto quem usa verde desprezar quem gosta de amarelo.

  • Crítica | O Mordomo da Casa Branca

    Crítica | O Mordomo da Casa Branca

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    O filme se inicia com uma emblemática citação a Martin Luther King “A escuridão não pode expulsar a escuridão, apenas a luz pode fazer isso.”. The Butler mostra a trajetória do negro Cecil Gaines – Forest Whitaker – desde sua traumática e trágica infância, até a vida adulta, onde atuou como um servil mordomo na casa presidencial americana por longevos anos, passando por grande parte dos momentos marcantes da história americana, em especial pelos martírios e conquistas executadas pelo povo negro.

    No ato primeiro, Cecil é mostrado ainda como uma criança, aparentemente feliz, mas que logo teria sua vida marcada. Seu pai deixa claro como são as regras: “não se meta com esse homem (branco), o mundo é dele, e nós só vivemos aqui” – após essa fala a sua mãe é levada para fora de sua vista, para satisfazer o desejo de seu “patrão” e logo em seguida seu pai é morto, mesmo não apresentando nenhuma resistência. O trauma ocasionou nele a vontade de fugir, e garantir que seus herdeiros não tivessem acesso aquele mau, encarnado como o Sul dos Estados Unidos, uma região intolerante por si só.

    Cecil cresce, e se torna um “negro de casa”. Após consumar sua fuga, encontra em seu caminho um sujeito que o ajuda, lhe dá emprego e toma para si a máscara de mentor, dando-lhe um tapa no rosto ao ver o rapaz dizendo a palavra nigger – “este é um termo feito por brancos, carregado de ódio”. Já adulto, o protagonista passa a trabalhar em Washington DC, e graças à sua boa postura – cabeça baixa, submissão, e capacidade de invisibilidade – é convidado a trabalhar na Casa Branca.

    A magnífica atuação de Forest Whitaker faz o espectador crer em cada um dos seus dilemas, seja o medo de perder o bom emprego que tem, as preocupações com as reclamações de sua esposa – Oprah Winfrey, competente em sua proposta – ou com o bem estar de seus filhos. Louis, personagem de David Oyelowo, evolui de um menino próximo do pensamento rebelde americano, para um “revolucionário” membro dos panteras negras. A cena intercalada entre um protesto numa lanchonete no sul do país e o salão de jantar na casa branca é emblemática em mostrar a atitude geral do povo negro, alguns como inconformados, e outros serviçais leais ao homem branco.

    A trajetória de pai e filho vai em direções bastante opostas, mas igualmente emocionantes. A luta não é leve, é tratada como visceral e cheia de significados. A primeira-dama chorando após o assassinato de JFK, ensanguentada pelos restos do marido é de partir o coração, muito bem montada, e faz Cecil retornar à triste memória da morte de seu pai – mais uma figura inspiradora se foi.

    Os filhos de Cecil se engajam cada um para um lado, enquanto Louis torna-se um ativista político e evolui, deixando de lado a luta “rebelde” para se tornar um combatente intelectual, Charlie alista-se para a guerra do Vietnã. Quando indagado pelo irmão mais velho, o personagem, cômico a maior parte do tempo, diz seriamente que quer lutar a favor de seu país, e não contra ele, mostrando que ele enxerga a situação tão mal quanto o seu pai. A morte do filho faz Cecil rever alguns de seus conceitos. O convite do jantar impingido pelo presidente Reagan causa constrangimento no mordomo, que se sente como um mentiroso, um fantoche feito para exibição de uma falsa aceitação. A postura do político ajuda-o a enxergar o real valor de seu filho, igualando-o a um herói e não há mais um simples marginal. O reatar da relação acontece num primeiro passo com o pedido de demissão depois com o engajamento por parte do patriarca, e no último ato são os únicos dois que permanecem.

    O paralelo com os presidentes também é interessante, os mais importantes para o negro foram Jack Kennedy (James Marsden), que o fez começar a mudar o seu pensamento em relação à causa, e Ronald Reagan (Alan Rickman), que se mostra contra o término da segregação ignorando o apartheid – mesmo sobre protesto do seu próprio gabinete. Reagan é mostrado como um bufão, apresentado quase sempre de forma jocosa e pouco reflexiva, bastante parecida com a interpretação recente de George W. Bush, ambos encarados como imbecis por uma boa parte da opinião pública.

    Ao visitar Barack Obama – um novo tempo – Cecil lança mão dos presentes dados pela senhora Kennedy e por Reagan, e quando entra na sala de espera é enquadrado junto a uma foto de Abraham Lincoln, com um claro simbolismo de que ali começava mais uma etapa na guerra pela igualdade. O registro de Lee Daniels é muito bonito, repleto de simbolismo e demonstrações realistas da história, obviamente escolhendo o lado oprimido, mas em momento panfletário de forma gratuita. Tem todo o cunho político que a Academia tanto gosta e sem dúvida merece atenção especial por parte do espectador.