Tag: Tom Wilkinson

  • Crítica | Negação

    Crítica | Negação

    Dirigido por Mick Jackson e adaptado para o cinema pelo escritor David Hare, baseado no livro Negação (History on Trial: My Day in Court with a Holocaust Denier), o filme conta o embate legal entre Deborah E. Lipstadt (Rachel Weisz) e David Irving (Timothy Spall). Irving acusou Lipstadt – assim como a editora britânica da autora, Penguin Books – de difamação por denegrir seu trabalho acadêmico de negação do Holocausto. Diferente da maioria dos países, em que cabe ao querelante provar sua acusação, no sistema legal britânico, não há presunção de inocência, recaindo o ônus da prova sobre o acusado. Sendo assim, cabia à equipe de advogados contratados pela Penguin – encabeçada por Richard Rampton (Tom Wilkinson) e Anthony Julius (Andrew Scott) – provar que a queixa de Irving era infundada.

    Irving, sendo um estudioso da Segunda Grande Guerra e principalmente de Hitler, acusou Lipstad de ter afirmado que ele manipulara e distorcera evidências a fim de isentar o Reich e, por conseguinte, Hitler de ter matado judeus deliberadamente. Enquanto a maioria de nós, leigos, ou melhor, não-advogados pensaria que o melhor argumento seria confirmar a ocorrência do Holocausto, os advogados de defesa optaram, sabiamente, por combater a difamação que Irving dizia ter sofrido. Deborah deixa claro que sua intenção era reafirmar o Holocausto, dando voz aos sobreviventes e aos que pereceram nos campos de concentração. Contudo, os advogados a convencem, muito a contragosto, de que a estratégia planejada por eles era a melhor opção. E, ao final, do julgamento, em um veredito de trezentas e poucas páginas, o juiz Charles Gray (Alex Jennings), dá ganho de causa à defesa por ter efetivamente provado que Irving, sim, distorcera evidências a fim de defender seus pontos de vista e que, portanto, o que Lipstad dissera não configurava difamação.

    A história, em si, é bastante direta. O que chama a atenção são as questões suscitadas pelo evento. Como é possível que existam pessoas capazes de colocar em dúvida um evento histórico dessa magnitude? Simplesmente por não haver fotos que o comprovem, como diz Lipstad a seus alunos? O quão fácil é distorcer a verdade, usando apenas palavras, falácias e argumentos tendenciosos?

    É o trecho de Denying the Holocaust: the Growing Assault on Truth and Memory, em que Lipstad descreve os métodos de Irving, que ele usou para acusá-la:

    “Irving é um dos mais perigosos porta-vozes do negacionismo do Holocausto. Conhecedor da evidência histórica, ele a distorce até que ela se adapte a suas inclinações ideológicas e objetivos políticos. Um homem convencido de que o grande declínio da Grã-Bretanha foi acelerado pela decisão de entrar em guerra contra a Alemanha, ele é muito hábil em pegar informações corretas e moldá-las para confirmar suas próprias conclusões. Uma resenha de seu recente livro, Churchill’s War, publicada no New York Review of Books, analisa corretamente sua prática de tratar as evidências de forma parcial. Ele exige “prova documental absoluta” quando o assunto é provar a culpa dos alemães, mas se baseia em evidências altamente circunstanciais para condenar os Aliados. Essa é uma descrição correta não apenas das táticas de Irving, mas das dos negacionistas em geral”.
    (p.181)

    Conciso, de abordagem simples, trata o assunto de forma direta, sem floreios ou melodramas desnecessários. E, apesar de parecer muito um telefilme, tem aquele “quê” a mais que faz o espectador continuar pensando a respeito das questões levantadas durante a exibição do longa-metragem. Ainda que em termos de produção, o filme não possua nada de excepcional, além de seu elenco, Negação se mostra um daqueles filmes importantes e necessários em nossos tempos.

    Texto de autoria de Cristine Tellier.

  • Crítica | Snowden: Herói ou Traidor

    Crítica | Snowden: Herói ou Traidor

    snowden2016 foi um ano particularmente trágico no mundo e uma das surpresas mais negativas surgiu com a eleição de Donald Trump à presidência dos Estados Unidos. Por tudo que defende, o futuro comandante da nação mais poderosa do planeta representa não só a possibilidade de uma escalada ainda maior do processo de desequilíbrio econômico-social no mundo, mas sobretudo da expansão do cerceamento das liberdades individuais. E é justamente nesse contexto que Snowden: Herói ou Traidor, novo filme de Oliver Stone sobre o ex-funcionário da CIA e da NSA, se torna absolutamente relevante e terrivelmente assustador.

    Escrito pelo próprio Stone em parceira com Kieran Fitzgerald a partir dos livros Os Arquivos Snowden e Time of the Octopus (ainda sem tradução no Brasil), Snowden é um filme que resgata tudo aquilo que se espera de seu diretor. Com forte viés político, como não poderia deixar de ser, a produção constrói um thriller digno de John Le Carré para mostrar os eventos que culminaram na divulgação de documentos secretos da NSA em junho de 2013 ao mesmo tempo em que nos apresenta quem de fato é Edward Snowden, o homem responsável pelo vazamento de informações que mancharam irremediavelmente a administração de Barack Obama.

    Interpretado por um Joseph Gordon-Levitt num trabalho que impressiona pelas sutilezas com que emula o personagem título quase à perfeição (quem viu o documentário ganhador do Oscar 2015, Citizenfour, vai notar como o ator ficou realmente parecido com Snowden tanto na postura física quanto no tom de voz), o ex-CIA e NSA se revela uma figura fascinante à medida em que vemos a trajetória da transformação do homem que acreditava plenamente que a “América” é o melhor lugar do mundo e confiava em seus governantes – achando absurdo, por exemplo, quem criticava o presidente – àquele que resolveu expor o maior segredo destes para o mundo.

    O filme estrutura e divide sua narrativa basicamente entre duas coisas: os bastidores da longa entrevista que Snowden deu à documentarista Laura Poitras (Melissa Leo) e aos jornalistas Glenn Greenwald (Zachary Quinto) e Ewen MacAskill (Tom Wilkinson) em Hong Kong em junho de 2013 e os flashbacks que trazem recortes da carreira de Snowden evidenciando alguns de seus feitos em posições de destaque tanto na CIA quanto na NSA (que inclusive provam que ele não era um reles analista terceirizado como o governo americano tentou pintá-lo depois) além de sua própria vida pessoal quando mostra como seu relacionamento com a progressista Lindsay Mills (Shailene Woodley) influenciou a mudança de perspectiva que ele experimentou.

    A propósito, ainda que tenha o thriller político no seu DNA, Snowden, por vezes, ganha ares de filme de terror quando evidencia quão ameaçadoras são as ferramentas que a NSA dispunha (e provavelmente continua dispondo) para monitorar cidadãos mundo afora que sequer sabem que estão sendo vigiados das formas mais vis. É o choque de realidade que o filme provoca, aliás, que o transforma numa obra tão importante, já que expõe com todas as letras que o terrorismo foi a mera desculpa que o governo americano usou para obter vantagens em negociações econômicas com outros países através do monitoramento secreto de outros governos e empresas estrangeiras.

    Expositivo na medida certa, Snowden traz também o importante alerta sobre como é fundamental ter uma mídia imparcial genuinamente interessada em expor fatos de interesse público doa a quem doer em oposição àquela que defende interesses particulares omitindo ou manipulando informações. Nesse contexto, aliás,  há uma sequência já no terceiro ato do filme que deveria fazer muito paneleiro aqui no Brasil ficar envergonhado ou no mínimo pensando como sou trouxa por ter acreditado em tudo que os JNs da vida me disseram por meses a fio sobre o que estava acontecendo no país.

    E se isso, por si só, não te convencer da relevância que um filme como Snowden deveria ter, o momento político atual dos Estados Unidos, aliado a uma fala de seu personagem título já na parte final da produção sobre os riscos de estarmos nos aproximando do ponto em que poderemos perder totalmente nossa liberdade e direito à privacidade em nome da pretensa segurança devem fazer o serviço.

    Texto de autoria de David Garcia, do site Ligado em Série.

  • Crítica | Operação Valquíria

    Crítica | Operação Valquíria

    Operação Valquiria - poster

    A história universal da humanidade se baseia, na medida do possível, na identificação de fatos e acontecimentos históricos. Conjecturas e possibilidades não se encaixam nesta linha, ainda que certas ações possibilitem a reflexão sobre se os rumos da história se modificariam caso certos planos fossem adequadamente executados.

    Operação Valquíria suscita tais questionamentos ao apresentar um plano, de parte dos militares alemães, para assassinar Hitler. Um acontecimento real, dentre os mais de 15 ataques contra a vida do ditador, em uma versão cinematográfica dirigida por Bryan Singer e com Tom Cruise no elenco. A produção talvez seja o filme mais dissonante de Singer. A bilheteria foi aquém do esperado, e o tema, diferente da narrativa usual do diretor. Ainda que as críticas feitas à produção devessem ser reconsideradas.

    Em um apoio fiel aos fatos históricos, a trama resgata um momento luminoso na história alemã em um bom thriller de guerra. As primeiras cenas feitas em língua alemã demonstram a intenção de fidelidade histórica. Quando a língua é modificada para o inglês, o público compreende que se trata de uma liberdade cinematográfica devido à origem de seus atores. Uma estratégia interessante que explicita a visão cinematográfica do acontecimento, um fator linguístico que foge das línguas-mãe de cada país e é motivo de reclamações por parte de críticos e público.

    A narrativa enfoca o plano de assassinato de Hitler considerando que o público compreende as bases fundamentadas na história da Segunda Guerra Mundial. Os militares perdem a visão uníssona devido a um grupo dissidente contra as ações do Führer , criando uma resistência interna que decide uma maneira radical de encerrar o conflito e reestruturar o país após a morte do líder.

    O general Stauffenberg se torna o personagem chave do grupo para desenvolver uma estratégia efetiva para matar Hitler. Vindo do front da África, após uma explosão que lhe custou as mãos e um olho, a personagem interpretada por Tom Cruise reconhece que a condução desta guerra adquiriu contornos exagerados. Apoiando-se em um plano de contingência desenvolvido pelo próprio ditador, surge a Operação Valquíria, uma manobra criada para caso o líder fosse abatido ou surgisse um conflito interno de poder. Mesmo que o público reconheça de antemão que a operação foi um fracasso, e que estendeu por mais nove meses a guerra até o suicídio de Hitler, o roteiro de Christopher McQuarrie e Nathan Alexander sustenta o suspense e a tensão, como se a revelação deste fato não fosse importante, intensificando a conspiração dentro dos frontes internos.

    No papel central, Tom Cruise se destaca com um personagem enérgico mas ponderado, demonstrando que brilha como ator fora de seus personagens habituais de galãs. Além de sua participação, o elenco é formado por grandes atores que se sobressaem em poucos papéis principais, como Bill Nighy (perfeitamente caracterizado como Friedrich Olbricht), Tom WilkinsonTerence Stamp e Kenneth Branagh. A reconstrução de época ajuda a enfatizar um momento da história mundial que boa parte conhece apenas por narrativas. A câmera de Singer abrange o esplendor da visão alemã em câmeras panorâmicas, apresentando toda a pompa pela qual o nacionalismo alemão foi sustentado.

    A operação foi o último atentado registrado contra Hitler e dá margem para uma reflexão: se o plano fosse bem-sucedido, mudaria de forma eficiente a transição do pós-guerra? De qualquer maneira, a estratégia demonstra que a visão de uma Alemanha apoiando seu líder de maneira cega é inadequada, destacando um bonito momento histórico de resistência interna de um grupo, considerado traidor e executado como tal, mas hoje símbolo de resistência contra um legado negro da humanidade.

  • Crítica | Risco Imediato

    Crítica | Risco Imediato

    Risco Imediato 1

    O início do filme de Henrike Ruben Genz (Dias Melhores e Desculpe Incomodar) é silencioso, remetendo ao repertório típico dos thrillers europeus recentes que fogem da estética americana de pontuar cada sentimento com uma música. A perturbadora calmaria proveniente da ausência de som esconde as intenções sombrias dos personagens retratados, diferentes demais do termo do título original, Good People.

    Em um mundo onde predomina a extrema violência urbana, o casal Tom (James Franco) e Anna Reed (Kate Hudson) veem sua rotina oprimi-los. Cheios de dívidas, o par ainda tem de denunciar a estranha morte de um vizinho, que apodrecia na casa ao lado e acumulava moscas à sua volta. Após a retirada do cadáver, a dupla limpa o apartamento onde ocorreu o óbito e encontra uma mala com duzentas e vinte mil libras, acima do assoalho. A quantia seria o ideal para acertar os débitos da família, mas usufruir do dinheiro parecia além de um movimento antiético, mas  bastante perigoso.

    Enquanto Tom e Anna balanceiam as decisões sobre o que fazer com a quantia que encontraram, um grupo de malfeitores segue no encalço do dinheiro, exibindo uma violência gráfica típica dos filmes de Guy Ritchie e dos irmãos McDonagh, mas sem o exagero gráfico dionisíaco destas referências. Logo, os dois mundos distintos colidem, com a visita de contraventores violentos e torturadores, salvos por pouco pela ação do agente da lei John Halden (Tom Wilkinson), que tenta ajudá-los a fugir após o ato estúpido de Tom em gastar o dinheiro ilícito que achou.

    O suspense predomina sobre o texto de Kelly Masterson por apresentar uma intercessão de realidades onde a violência extrema e proximidade da morte dão a tônica. Após infrutíferas tentativas de redenção, o casal se vê com baixas possibilidades de sobrevivência, mostrando seus arquétipos de previsíveis e ordinários homens comuns que, diante da possibilidade de usufruir da fortuna alheia, acabam caindo em tentação. Essa atitude contraria o clichê da máxima popular que afirma que o povo é honesto e oprimido pelos poderosos, e apresenta uma faceta corrupta que levanta questões morais mas que não demoniza os que praticam atos (ditos) maus por necessidade: a motivação dos protagonistas está longe de passar pela ganância e volúpia por dinheiro. No entanto, a nobreza prévia é atrapalhada pelas direções opostas de Franco e Hudson, que não conseguem imprimir qualquer química enquanto par romântico.

    O filme, apesar de conter bons momentos, passa a não se levar a sério, especialmente após o começo da segunda metade. A curta duração de noventa minutos não permite que haja muito mais viradas do que já era esperado. Cenas em que sentenças são dadas a partir de armadilhas caseiras, ao melhor estilo de Charles Bronson em Desejo de Matar 3, sepultam toda a aura misteriosa dos primeiros minutos, passando a mostrar uma caça frenética com direito a dilacerações e corpos ensanguentados típicos de filmes B, nos quais qualquer verossimilhança é imediatamente afastada pela sobrevivência do mais fraco e mais inapto.

    A diferenciação internacional criada no começo da película é abandonada com o final repleto de bordões e clichês visuais, com “ressurreições” acontecendo a todo momento e exemplos de superação de cunho bastante vulgar e barato. Risco Imediato tenciona ser algo diferenciado por sua fórmula inicial, mas não demora a exibir uma trama genérica, com personagens cuja profundidade não ultrapassa a dos arquétipos comuns de filmes de ação, tendo nas cenas de violência gratuita o seu ponto mais forte, mostradas com um grafismo invejável.

  • Crítica | Selma: Uma Luta Pela Igualdade

    Crítica | Selma: Uma Luta Pela Igualdade

    Selma - Luta pela Liberdade - poster brasileiro

    Vulgarizamos o que não entendemos, essa é uma das verdades sobre nós. Assim é com a matemática, quando esta deixa de ser divisão e vira fração na terceira série, ou com aquela redação dada em uma época que ainda não sabemos como segurar a caneta corretamente. Estende-se essa negação quando muitos veem um casal gay na calçada, e, se não atravessam a rua, preferem cometer barbaridades a deixar que cada um viva como queira viver.

    Desculpas ao riso são músicas em inglês em ouvidos treinados em uma única língua, ou alguém que veste amarelo aos olhos de quem só gosta de verde. Não menos que um negro, hoje o homem mais poderoso do mundo ocidental, disputando eleições na maior democracia consolidada do planeta. Fato risível, isso sim, na penosa, quase cármica época que o leve e forte filme da (ótima) cineasta Ava DuVernay se apropria em recriar com fidelidade, dor e esperança no Cinema, sem quaisquer apologias emocionais ou de caráter caricatural como nos recentes 12 Anos de Escravidão, Django Livre ou Gran Torino – neste último caso, racismo explícito contra japoneses.

    Todos esses filmes, bons ou regulares, atestam a ignorância humana a favor do desumano, enquanto Selma – Uma Luta Pela Igualdade opta pela ausência dessa ignorância em troca da presença do medo que poderosos brancos tinham de dividir um grama de seu poder com uma voz… diferente. Não é ignorância frente ao desconhecido, é medo de perder o poder, pois sabiam e sabem que, se uma voz consegue reunir duas pessoas, pode reunir 200 ou 3000 para protestar contra o que as impede de ser feliz na tentativa de sobreviver. E assim como Doze Homens e Uma Sentença, clássico de Sidney Lumet, um filme americano novamente discute, sem medo e com um fôlego renovado, as dívidas morais de uma sociedade, procurando um calor progressista em um conservadorismo congelado e congelante.

    Há muitos paralelos entre a obra de Lumet e esta de Ava, em especial o debate temático mostrado em tela, o suficiente para inspirar o espectador a se posicionar ante o certo e o errado, diante do que sente, sobretudo na perspicácia de explorar recantos intrínsecos ao status de cidadania, como a criminalidade, direitos civis e meritocracia, com um background repleto de questões atemporais e principalmente ricas em perspectiva e grau de tratamento artístico.  Ao “reescrever” a história de Martin Luther King, primeiro o homem e depois o herói, o escritor Paul Webb, de Lincoln (um ótimo roteiro, fragilmente adaptado por Steven Spielberg) volta aos malabarismos com o racismo e a segregação temporal, numa verdadeira lucidez temática sobre o assunto, e finalmente muito bem traduzido por Ava. A diretora, em seu terceiro longa-metragem – quase Like a Virgin, mas habilidosa a ponto de deixar ações e trilha sonora falarem mais alto que palavras – não se apoia nos recursos de liderança já citados, mas no gênio da artista de extrair bom senso, leveza e ponderação ética do material escrito por Webb. Trabalho de veterano(a) com garra de principiante.

    Faça a Coisa Certa, Fruitvale Station: A Última Parada, Compasso de Espera e, agora, este belo tratado sobre as fraturas do convívio humano… Ressacas sociais filmadas como rito de consciência e inteligência interemocional, fazendo, através de um arranjo tão forte, grandes filmes. Filmes além de pretensões para com gregos e troianos, senão com a harmonia entre a realidade e a ficção, com o contraponto da política teórica de gabinete e a política violenta das calçadas, valorizando a força real das situações graças à potência empregada com uma câmera de Cinema (um toque de parcialidade quanto ao drama vivido), e o poder deste em recriar uma época, suas cicatrizes e implicações com o hoje e, certamente, o amanhã.

    Selma carrega uma grande e imperturbável estabilidade emocional, transmitindo-nos segurança para a veracidade de fatos e relatos demonstrados em imagens difíceis de esquecer, como as impressionantes marchas de negros nas ruas e pontes de uma nação de mentalidade ainda escravista, excomungando cidadãos não reconhecidos como tal, com forças policiais caninas e leis de separação étnica, como se não bastasse. Cenário ainda retratado no Brasil, graças à violência policial e outras expressões de poder igualmente apodrecidas de dentro para fora. No filme, um retrato sem moldura, um alívio da realidade. Em cada olhar de uma atuação coletiva impecável, notam-se as expressões reproduzidas nos jornais, de famílias removidas de suas casas, e feições em protestos a favor de uma qualidade de vida melhor – e proibida.

    Extrovertido em suas conclusões, com alma introvertida em momentos mais íntimos, onde o Sr. e a Sra. King tiram a limpo suas disposições à causa negra e devoções conjugais. O que é para muitos um drama, tachado como melodrama, tamanha a sensibilidade, feminina ou não, para com o seio a nutrir e transmitir forças ao herói em frente a Casa Branca, num discurso de políticas igualitárias histórico, num dos momentos decisivos da história americana. Selma é um símbolo que vai além de justificar, por sinal, apenas o nome da cidade onde os negros foram primeiramente reconhecidos como gente antes do resto do mundo, assim como o bairro Castro, em São Francisco, o foi para os homossexuais, e todas as veredas ainda a se tornarem marcantes para “populações inferiores”, no futuro. Assim, a partir de tais verdades compartilhadas ao leitor, nenhuma tecnologia evitará que o futuro seja o espelho do passado, enquanto quem usa verde desprezar quem gosta de amarelo.

  • Crítica | O Grande Hotel Budapeste

    Crítica | O Grande Hotel Budapeste

    o grande hotel budapeste

    O Cinema de Wes Anderson, sendo a arte antes do artista, é claro, é um corredor de pinturas, uma ida ao museu numa tarde chuvosa onde não há mais nada a se fazer senão apreciar a viagem histórica. O cineasta tem a preferência de centralizar seus mundos enquanto expande os significados deles através de uma simbologia única em nível de identificação universal. Mundos onde todos os personagens são totalmente imprescindíveis à história ao mesmo tempo em que são totalmente desnecessários à narrativa em retalhos: substituíveis e relevantes ao mesmo tempo. O Grande Hotel Budapeste é o Cinema de Jacques Tati e Stanley Kubrick feito para todas as idades e mentalidades. Lindo, matemático, extremamente planejado em planos cênicos milimétricos, mas não é superficial em toda a sua estilização, afinal de contas, apenas por denunciar a beleza existencial do mundo a partir dos valores humanos de cada vida vinculada à teia apresentada.

    Até porque Anderson tem olho clínico e confiança de chamar atores do mais alto nível, assim como semi-desconhecidos, para interpretar figuras icônicas que pertencem a mentes de pessoas como Alan Moore, genial escritor inglês e famoso por sua excentricidade. Logo no começo de Budapeste, percebemos os traços marcantes da filmografia do diretor de Moonrise Kingdom, seja na (ótima) direção de arte, seja na atmosfera visual ou na musicalidade inocente e eclética de sempre. Enfim, temos, ao longo de uma hora e meia de projeção, a desconfiança da releitura artística que o filme vem a ser, na real, muito antes do clímax esperado.

    Releitura devido ao ponto alto da carreira que o cineasta já conseguiu alcançar “por acaso” é onde repousa seu belo e extravagante hotel. Um cume no qual não carece mais provar seus talentos e visão pessoal a mais ninguém, vide a falta de pretensão, de autoestima, e de altos e baixos de uma energia linear e constante ou mesmo de alguma dose de seriedade da história de corre-corre e de amizades inesperadas pelos caminhos. Veredas a partir e muito além dos corredores e escadas sinuosas do edifício homônimo.

    A fusão entre realidade e realidade particular pode ser uma das explicações para definir a arte de cada um; o Cinema, inclusive, o qual muitos chamam de “a arte completa” por ser justamente a fusão da maioria delas. Seja como for, e sem mais delongas, Anderson e seu elenco espetacular – Tilda Swinton aparece 5 minutos depois do início do filme, durante 60 segundos apenas, e é tão impressionante sua participação que a projeção poderia terminar com sua saída e tudo seria maravilhoso do mesmo jeito – defendem a teoria que abre este último parágrafo na aurora de uma realidade particular, a que todos nós aprendemos a amar, cada um à sua maneira, e que muito completa a verdadeira realidade das coisas.

  • Crítica | O Cavaleiro Solitário (2013)

    Crítica | O Cavaleiro Solitário (2013)

    O-Cavaleiro-Solitario-poster-15Mar2013

    Mais um dos produtos Disney encabeçado por Gore Verbinski e acompanhado de Johnny Depp, este O Cavaleiro Solitário traz uma nova visão do clássico justiceiro mascarado do Velho Oeste. A história é contada por um índio ancião a uma criança fantasiada de Lone Ranger. Os fatos são contados por meio de flashbacks, recurso que parece estar cada vez mais em moda no cinema contemporâneo.

    Ao menos os cenários e figurinos condizem com o gênero Western, a Direção de Arte têm poucos erros e a atmosfera contribui para a imersão dentro da história, mesmo com a ausência de sangue nos tiroteios e execuções. O roteiro contém muitas gags hilárias e piadinhas físicas que, aos poucos, vão minando a paciência do espectador mais ranzinza.

    Depp está com todos os trejeitos típicos de seus filmes com Tim Burton e do próprio Verbinski, o que torna sua caracterização em algo completamente genérico, visto em quase todas as suas bombas recentes – quase sempre de cara pintada,  com atuações tresloucadas e caricatas. O próprio ator parece se incomodar com a repetição de estereótipos que vem fazendo, tanto que seu contrato não prevê sua participação numa possível continuação. O estilo canastra permanece irritante, principalmente quando este interage diretamente com o público, mas o fato deste filme ser voltado para o público infantil, faz relevar alguns de seus muitos defeitos de concepção.

    Armie Hammer também não acerta como Lone Rider, e é ainda mais canastrão que Tonto. Seu personagem e o índio revezam-se nos arquétipos de Mentor e Pupilo, mas a relação é tão mal construída e jogada, que não há como se importar com os percalços deles. Para colaborar ainda mais com a mediocridade da obra, é apresentada Helena Bonham Carter num papel de uma cafetina perneta, com uma prótese de marfim – objeto que gera uma cena fetichista totalmente descabida, que não é pesada, mas também não se encaixa num produto cinematográfico para crianças – não é sequer engraçada, é só de mal gosto.

    A ação empregada em Cavaleiro Solitário é muito semelhante a da série Piratas do Caribe: lotada de pirotecnias, com brigas “pouco violentas”, coisas explodindo pelo cenário,  e sem personalidade nenhuma, mais do mesmo. Verbinski se repete demais e aposta suas fichas no que sempre deu certo em sua filmografia, até nos erros o realizador tem a obsessão em se autorreferenciar, pois o romance entre John Ready e sua cunhada Rebeca Ready (Ruth Wilson) é muito fraco, e tem o desfecho parecido com o do casal de Piratas do Caribe: Fim do Mundo, onde Orlando Bloom e Keira Knightley também são impedidos por “forças maiores” de ficarem juntos. Neste, ao menos, havia um pouco de química, ao contrário da relação semi-incestuosa apresentada em Lone Ranger. Esta versão do O Cavaleiro Solitário carece de conteúdo, substância e relevância, e só não é absolutamente descartável graças a sua fotografia e direção de arte.

  • Crítica | Batman Begins

    Crítica | Batman Begins

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    Demorou certo tempo para a Warner trazer o Cavaleiro das Trevas novamente às telas, após a destruição causada por Schumacher com Batman & Robin. Ao descobrir sobre o interesse da produtora, Christopher Nolan demonstrou sua vontade em realizar um longa-metragem e esboçou breves ideias iniciais a respeito do projeto.

    Antes mesmo de realizar longas reuniões com executivos, Nolan convidou o roteirista David S. Goyer para juntos trabalharem em uma versão do roteiro, ao mesmo tempo em que seu desenhista de produção concebia visualmente as ideias criadas por ambos.

    Quando os executivos puderam conhecer a história de Nolan / Goyer, também tinham em mãos diversos protótipos desenvolvidos a respeito do uniforme e carro da personagem, e também da cidade de Gotham City. Elementos que começaram como testes na garagem de Nolan e tornaram-se presentes no filme.

    Batman Begins não só narra a origem do herói como também é o primeiro marco da narrativa de Nolan. O filme explora a lacuna de sete anos em que Bruce Wayne ficou fora da cidade. Lacuna que, diz o diretor, nem mesmo foi explorada em gibis.

    A personagem dos quadrinhos aproxima-se daquela vista nas telas: um homem que realizou uma jornada interior e teve maciço treinamento com diversos mestres para tornar-se aquilo que ambicionava. Além da composição como um herói, conhecemos também o pequeno círculo de confiança de Bruce Wayne: Alfred, o paternal mordomo, Lucius Fox, mentor tecnológico do morcego e Jim Gordon, o policial que lhe inspira confiança.

    Antes de o personagem vestir o manto, a história apresenta a jornada de Bruce Wayne. Nela, é desenvolvida a psicologia desde sua infância, com seu medo pelos morcegos, e as maneiras necessárias para explorar o terror interno. Antes mesmo de o público ver o Homem Morcego, há confiança e credibilidade na jornada estabelecida por Wayne.

    As tramas apresentadas são costuradas com perfeição. Inicialmente, Batman desenvolve uma luta contra a máfia da cidade, tentando ajudar a promotora Rachel. Conforme adentra as investigações, descobre que o Dr. Jonathan Crane aproveita-se do contrabando para desenvolver uma droga própria que impele o medo. A jornada do morcego constitui-se em uma luta com elementos ainda desconhecidos por ele.

    Batman foi criado para ser um tanque de guerra em forma de homem. Tem o aparato necessário e conhece as lutas marciais mais definitivas. Nolan não queria transformar a violência em espetáculo, mas sim em um elemento que assustasse o público. Dessa forma, oferece-se credibilidade à composição da personagem.

    A produção foi rodada quase inteiramente em locações ou estúdio, utilizando muito pouco do CG. Boa parte da cidade de Gotham foi levantada em grandes estúdios; a cena da caverna possui, de fato, um lago submerso e até mesmo o batmóvel foi construído como um veículo funcional de verdade, com quatro metros e mais de duas toneladas.

    Os elementos constituem uma realidade crível para o espectador. É retirado da personagem seu conceito colorido dos filmes anteriores, compondo um ambiente sombrio e real. Por conseguinte, estabelece-se com eficiência a composição de Christian Bale entre Bruce Wayne e Batman. Dando vazão e justificativa a um homem que a noite vira um símbolo.