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  • O Cavaleiro das Trevas – Dez Anos Depois: As Três Faces de um Conto do Batman

    O Cavaleiro das Trevas – Dez Anos Depois: As Três Faces de um Conto do Batman

    Em julho de 2008, o mundo veria um libelo da cultura pop mainstream nascer e se mostrar como uma obra capaz de ultrapassar as discussões sobre a influência de um personagem para além das questões de nicho nerd e dos aficionados por historias em quadrinhos, gerando muitas discussões inclusive entre estudiosos de filosofia e historia.

    Os seis palhaços que organizariam um assalto a um banco da Máfia de Gotham City fariam um movimento ousado e claramente impensado caso não fosse planejado por uma mente inventiva do crime. A genialidade do plano se iguala de certa forma a mentalidade por trás do roteiro de Jonathan Nolan e Christopher Nolan, pois tanto os ladrõesm  dentro da trama, vão se canibalizando, quanto este consegue de certa forma tornar a maioria dos filmes de heróis  obsoletos e meros comerciais para vender brinquedos, não só por não terem um pé na realidade mas também por ter quase todas as suas ações com ao menos um significado mais profundo. Mesmo quando a  movimentação em adaptar quadrinhos em tela grande deu certo no pós Cavaleiro das Trevas, se deu exatamente por não tentar replicar o que deu certo aqui, como na Marvel a partir de Homem de Ferro de 2008, sua continuação, O Incrível Hulk e por aí vai.

    O filme é tão garantido em si que não contém o nome do herói no original, tampouco há créditos iniciais, como foi em Batman Begins. Ele se passa nove meses após esse útilmo, e essa historia dura 9 e dias e noites. Nolan, durante os primeiros dias de filmagem parou com o elenco e passou uma série de filmes, para que o elenco e produção entendessem o que ele queria fazer nesta obra, foram eles: Fogo Contra Fogo (1995), Sangue de Pantera (1942), Cidadão Kane (1941), King Kong (1933), Batman Begins (2005), Domingo Negro (1977), Laranja Mecânica (1971), e O Inferno Nº 17 (1953).

    A tentativa deste artigo é falar um pouco sobre os bastidores e um pouco da gênese e construção dos três pilares de Cavaleiro das Trevas, o Coringa, Harvey Duas Caras e obviamente o Batman discorrendo um pouco sobre o que acontece no filme e tentando fazer paralelos com os quadrinhos e materiais que serviram de base para a construção da historia.  Tal qual havia ocorrido com Begins, esse também teve um nome fake em seu roteiro original, chamava-se Olivers Army. Christopher Nolan sempre quis filmar no formato IMAX e finalmente conseguiu isso neste, seis grandes sequências de ação, foram filmadas com estas câmeras e equipamentos e isso gerou uma grande dor de cabeça pois inúmeros problemas surgiram, por conta do barulho que o  equipamento produzia, obrigando a redublar boa parte das falas na pós produção e também pela inesperada demora para revelar o filme. Mas é fato que há uma diferença visual grotesca entre esta versão e a do filme de 2005.

    Enfim, a analise das figuras virá segmentada logo abaixo.

    O Duas Caras

    Uma das criticas frequentas a TDK é de que ele constrói tão bem seus vilões que passa então a ser um filme sobre os antagonistas. Isso não é inédito com o cruzado encapuzado, em Batman o Retorno essa acusação também ocorreu, mas no caso desta obra isso é uma falácia. Talvez essa acusação tenha ocorrido muito por conta da péssima construção de Duas Caras e Charada em Batman Eternamente e de Hera Venenosa, Senhor Frio (e Bane) em Batman e Robin, mas fato é que o Harvey Dent de Aaron Eckhart é bem construído de um jeito que seu destino trágico é realmente digno de lamento quando finalmente ocorre.

    O chamada Cavaleiro Branco de Gotham, é capaz de muito, tanto de conquista o amor da mulher que o Bruce Wayne sempre pleiteou, como é  capaz de revidar a violência que sofre ao desferir um soco no bandido que tentou matá-lo em pleno tribunal, numa clara alusão a um momento de O Longo dia Das Bruxas, onde Harvey era desfigurado com o ácido em seu rosto. Ao mesmo tempo, ele é idealista o suficiente para não entender o pragmatismo de James Gordon ao ter que lidar com policiais corruptos, já que se o tenente insistir em afastar todos os investigados, certamente não teria pelotão patrulhar, proteger a lei e servir o povo. Fato é que o desenrolar dos fatos não deixa Dent sem razão, mas ainda assim ele consegue ser tão idealista que soa até pueril.

    Quando Harvey discute a política de Gotham em uma mesa de restaurante, com sua amada, Wayne e uma bailarina russa, há uma boa discussão sobre o Império Romano. Rachel menciona Júlio César, o que leva Dent a dizer: Você morre um herói ou vive o suficiente para se tornar um vilão. Em Júlio César, de William Shakespeare, o personagem titular é retratado como um homem de notável ignorância, cuja surdez parcial implica que ele apenas ouve aquilo que julga relevante, em vez de ser um líder de mente aberta. O discurso de Dent já se aproxima do totalitarismo antes mesmo da provação do Coringa, antes da A Piada Mortal ser posta em prova, antes de perder o seu centro…ele só precisava de fato de um empurrão.

    Avançando um pouco no tempo, no rescaldo da transformação de Harvey Dent em sua persona Duas Caras, ele perde seu senso de razão, em vez de ser racional ele  apenas discute assuntos relacionados ao assassinato de Rachel e a”traição” que Gordon e o Batman teriam feito com ele. A loucura que se estabelece ali não permite qualquer argumento que não seja simplista. Quando Batman o “mata” por cruzar a linha invisivel e proibida aos benfeitores, quase se espelha a morte de César por Brutus, pois o golpe final é dado por um homem que era seu aliado, mas a analise de que o Morcego cometeu esse crime é igualmente simplista, e há de se lembrar que o antigo promotor já não mais servia povo da maneira que ele mesmo jurou. É nessa ruptura que Harvey deixa de ser o homem justo e bom que não estava nas historias em quadrinhos para se tornar um vigarista vil e vilão típico.

    Solução para a ferida de Harvey é muito criativa e emocional. A forma como é mostrada e a percepção , na cama do hospital de que realmente havia perdido sua amada é de uma catarse monstruosa, e o Grito silencioso  de Harvey é claramente a mostra visual de aquele era o começo da psicopatia, ou a evolução da mesma, já que o roteiro deixa em aberto se ele era ou não insano a esse ponto. O Coringa parece persuasivo, pois uma das partes de sua fala é verdade: o palhaço ele é louco, e não corrupto e isso une os dois personagens. Dent, mas o fato de não ser corrupto não faz dele um sujeito honesto. Quando o advogado recebe a visita de Gordon, ele  promete que o policial sentiria na pele a dor da perdaque ele sentiu,  isso antes de o palhaço aparecer no hospital, mais uma vez e como num dejavu a sensação do empurrão é estabelecida.

    Há um segmento nos extras dos DVDs da época, chamado Gotham Tonight, que era o programa jornalístico de televisão Mike Engel (Anthony Michael Hall) e que tem alguns momentos estendidos aqui. A maior parte do que se mostra aqui são momentos meio bobos, mas o desdobrar político de Gotham e as eleições de Dent são bem discutidas, assim como as impressões do Comissário Loeb (Colin McFarlane) e de Sal Maroni (Eric Roberts) que aparecem conversando com o jornalista da GCN. Além de repercutir a toxina do medo do Espantalho, Mike deixa claro o quanto acha Batman um mal para  a cidade, por ninguém saber sua origem, seu nome ou mesmo se é humano ou não. O jornalista sensacionalista bem ao estilo Datena e Marcelo Rezende revela seu gosto contrário ao Morcego e o coloca no mesmo balaio dos bandidos que ele caça e a surpresa dele é tamanha quando o promotor, ao ser entrevistado por ele (antes obviamente da morte de Rachel e dos acontecimentos do filme) declara que não há uma opinião formada sobre o vigilante. Dent não poderia em um programa de audiência grande se declarar favorável a um louco que se utiliza de teatralidades para fazer justiça, mas claramente ele tem uma predileção por esse comportamento, que em ultima analise nesse universo escapista mas ainda calcado na realidade que Nolan estabelece, é quase um abraçar a insanidade.

    No entanto, com o filme em andamento, isso muda. Em um estudo sobre o filme, o filosofo Slavo Zizek afirma que  o verdadeiro rival de Batman não é o Coringa, e sim Harvey Dent, o “cavaleiro branco”, que é um tipo de vigilante oficial com uma batalha fanática ás vezes inconsequente. Zizek acha que Dent é como uma resposta à ordem legal da ameaça de Batman com o sistema gerando seu próprio excesso ilegal, seu próprio vigilante e defensor, muito mais violento que Batman, violando diretamente a lei e é por isso que existe  uma justiça poética no fato Dent roubar a identidade secreta do Batman de Bruce, pois ele seria mais Batman que o próprio Batman, fato que fortifica ainda mais o final, onde Batman assume os crimes do homem da lei, retribuindo-lhe o favor, e retomando o protagonismo que muitos acusaram ele de perder, em um gesto simbólico. Zizek não poderia estar mais correto, sua visão sobre Harvey é certeira, e ele ainda voltaria seus olhos o outro vilão, o palhaço do crime.

    O Coringa

    A primeira participação do Coringa é enigmática, envolve o já citado assalto a um banco mas também um estranho sinal de obsessão com ônibus escolares, que aparecem não só na sequencia inicial, como na hora em que explode- um hospital de Gotham. Aliás, ambas ocorrem logo após ele praticas uma de suas sádicas piadas, sendo a primeira com uma bomba de gás na boca do gerente do banco e a segunda se travestindo ao falar com Dent. Não há confirmação oficial, até por conta de não se ter certeza sobre a origem do bandido, mas isso pode ser eco da infância do personagem.

    O número quase circense da sequencia inicial que o Coringa de Heath Ledger orquestrou seria só uma mostra de como a criminalidade de Gotham precisava mudar e mudar rápido, para se adaptar ao Batman, e nem o Espantalho e Ras All Ghull de Batman Begins chegam perto disso. Mesmo no encontro entre Checheno (Ritchie Coster) e Crane (Cillian Murphy) para comprar drogas se nota que até o vigilantismo mudou, e que o Morcego gerou uma reação na população que busca se armar e agir como milícia sem ter o preparo que Wayne se submeteu. Esse tipo de reflexão que Nolan propõe não é inédita, e pergunta se Batman é um lunático ou não é discutida ao longo dos 152 minutos de filmes, e vai além da simples sentença de usar ou não armas de fogo ou proteção de hockey, por mais que o vigilante tente simplificar a conversa nesse sentido.

    Heath Ledger passou vários meses trabalhando com um treinador vocal na voz do Coringa. Ele usou bonecos de ventríloquo como inspiração para a qualidade desconexa e zombeteira, além das (hoje obvias) referencias tão discutidas, como Sid Vicious do Sex Pistols e o protagonista de Laranja Mecânica, Alex DeLarge.

    O filosofo Slavo Zizek, ao analisar Batman : O Cavaleiro das Trevas Ressurge, ao comparar o Coringa e Bane diz que a imensa popularidade da figura do Coringa se dá pelo fato dele clamar por anarquia na sua mais pura manifestação, enfatizando a hipocrisia da civilização burguesa como ela existe, mas é impossível traduzir suas visões em uma ação de massa, enquanto Bane é uma ameaça existencial ao sistema de opressão e sua força não é apenas a psique, mas também sua capacidade de comandar as pessoas e mobilizá-las rumo a um objetivo político. O Bane de Nolan é mais profundo que o do quadrinhos, no entanto ele não tem o fascínio do Coringa de Heath Ledger, e isso não se explica obviamente só pelo carisma do ator, que era encarado como um sujeito mal quisto, pois seu passado com comédias românticas meio bobas.

    Evidente que as razões que Zizek apontam explicam os motivos ideológicos, mas na questão cinema, foi Ledger que ao ter liberdade para construir seu personagem que conseguiu tornar tudo isso mais crível. Ledger dirigiu as duas cenas que são filmadas pelo Coringa, e essa sugestão veio do realizador, Nolan acreditava tanto no ator que o deixou conduzir a cena, lembrando que em Begins e em TDK houve segunda unidade, em todos os momentos que a câmera estava ligada o cineasta estava presente.

    O personagem assassina/mata 34 pessoas no filme, aliás a perseguição que ele faz ao povo, matando pessoas para que Batman apareça faz referencia a primeira aparição do personagem nos quadrinhos dos anos quarenta, presente em Batman Crônicas, onde ele vai matando criminosos para acabar com a concorrência e para tomar posse do dinheiro dessas pessoas. Aqui evidentemente ele é anárquico e foge da necessidade do dinheiro, como disse Zizek e a referencia mais uma vez a O Longo Dia das Bruxas, também invertida, pois quem queima o dinheiro na revista é o Batman e Harvey.

    A música estridente de Hans Zimmer, nas descrição de Why So Serious amedronta e põe enigmas, refletindo um som de Anarquia. O ideal que Zimmer mirava em algo provocativo e odioso para as pessoas, e seu objetivo foi plenamente alcançado. Se ouvida sozinha, a canção gera naturalmente uma aversão aos tons altos estabelecidos ali, que vez por outra são quebrados pela presença do Coringa. O Coringa é o vilão de muitas faces diferente de Harvey. Se Duas Caras tem a duplicidade o conjunto de anomalias mentais e até parafilias é tão grande quanto a quantidade de cartas no baralho, o palhaço do crime é de certa forma a amálgama da galeria vasta de vilões do Morcego. Para Nolan a resposta lógica a um herói como Batman é  uma contra resposta violenta igual, o seu real oposto, a diferença básica entre eles mora nos lados da lei que os personagens abraçam.

    O Batman

    O herói e protagonista  do filme talvez seja resumida em uma das falas residente na conversa que Christian Bale e Michael Caine tem, onde Bruce afirma que não se dá ao luxo de conhecer os seus limites. A utilização de frases de efeito poderia soar como algo ruim, mas claramente é bem utilizado.

    O Batman deste tomo dois da saga que Nolan estabelece tem capacidade de vestir mais de uma máscara, seja a do herói que luta pela justiça e que é apoiada por parte da plebe e da burguesia de Gotham, assim como a do herói invasivo,  capaz de usar a tecnologia do Sonar que evoluiria para o re-percussor de ondas dos celulares, e que seria a versão de Nolan para o Oráculo. O conceito de transformar cada telefone como se fosse um rádio, invadindo a intimidade das pessoas, para encontrar o  antagonista, em uma invasão de privacidade que o dá vantagem e faz ele ser por um breve momento, onipotente e como diz o Lucius Fox de Mogan Freeman, isso é errado em muitos níveis, pois as pessoas não tem direito a escolher nada. Hoje toda essa celeuma perdeu o sentido, pois as redes sociais as pessoas expõem tudo o que querem e em alguns ponto até o que não querem e percebendo ou não a auto evasão de informação é voluntaria.

    A rivalidade entre Batman e Coringa sempre foi grande nos quadrinhos e a cena em que os dois finalmente se encontram é tardia passados aproximadamente 52 minutos. Mesmo no começo, quando Coringa faz piadas com o sumiço da caneta, onde enfrenta Gambol (Michael Jai White) e fala em matar o Batman, claramente isso é uma bravata, e ele nem precisa declarar isso, como faz depois. Os ataques constantes a moral do herói tem seu alvo acertado, por mais que Bruce/Batman finja-se de intransponível, como quando Gordon cai. A suposta morte do policial faz o Morcego largar seu estilo stealth, e invadir uma boate onde Maroni tatá, para liberar sua raiva em uma catarse violenta. Aliás, o Batman é mais agressivo com o mafioso italiano do que com o seu nêmesis, até para não ter a tentação de mata-lo, semelhante em muitos pontos a morte do Coringa em O Cavaleiro das Trevas.

    Há um bom material complementar, um documentário de pouco mais de quarenta minutos chamado Batman Unmasked, que trata da psicologia do Homem Morcego e que trata de alguns dos detalhes falados aqui. Evidentemente que em Batman Begins e TDKR há um aprofundamento maior e mais detalhado no Batman do que neste TDK, mas o desfecho, com Gordon fazendo um discurso ao seu filho de como o personagem é o Cavaleiro das Trevas e de como seu heroísmo não é o ideal, mas sim o necessário para que Gotham permaneça equilibrada.

    Por mais clichê que pareça, Batman retoma o poder quando age assumindo a culpa que não era dele, pois a característica básica do heroísmo é o sacrifício pessoal em prol da maioria, foi assim com Cristo, com Moisés, Davi e a maioria dos mitos cristãos, é assim com os heróis Teseu, Hercules, Orfeu na mitologia grega e é como sempre fez Homem Aranha e Super-Homem em tantas historias. O Batman de Bale não tem qualquer pudor em se entregar, pois a sua função maior é isso, fazer com que Gotham seja um lugar seguro, como era o sonho de Thomas Wayne, e evidentemente que esse preço seria cobrado, e só por isso já justifica a construção de Batman o Cavaleiro das Trevas Ressurge que repercute o erro de maturidade de Batman, que foi impulsivo e precisava ter sua historia fechada, finalmente.

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  • Crítica | Despedida em Grande Estilo

    Crítica | Despedida em Grande Estilo

    Willie (Morgan Freeman), Joe (Michael Caine) e Albert (Alan Arkin) são amigos há décadas. Levam uma vida sossegada de aposentados, o que inclui partidas de bocha. Até que inexplicavelmente param de receber sua aposentadoria. Numa ida ao banco para discutir a hipoteca de sua casa, Joe testemunha um assalto bem sucedido. E, querendo dar um fim a seus problemas financeiros, começa a pensar que cometer seu próprio assalto é uma boa saída. E chama Willie e Albert para a empreitada.

    Remake do filme homônimo, de Martin Brest e estrelado por George Burns, Art Carney e Lee Strasberg em 1979, o filme – dirigido por Zach Braff com roteiro de Theodore Melfi – lembra algumas outras obras recentes que seguem a mesma linha: amigos de longa data, chegando ou já na terceira idade, que se reúnem para “viver altas aventuras” – por exemplo, Última Viagem a Vegas (de que Freeman também participa), Amigos Inseparáveis e Motoqueiros Selvagens.

    Apesar de a motivação dos três amigos ser algo bastante sério, não há como não rir ao pensar nesses três senhores executando um assalto a banco. A essência do humor é justamente essa inversão de expectativa em eventos que contrariam a lógica. Parece simples. Contudo não é fácil conduzir um filme todo assim. Obviamente, o roteiro é uma sucessão de pequenas e (quase sempre) bem boladas gags. Mas amarradas num ritmo que não cansa o espectador e consegue manter a trama coesa. Infelizmente, no terceiro terço do filme, esse ritmo se perde um pouco e a narrativa fica um tanto arrastada. Ainda mais ao se contrapor à segunda parte, em que o longo se torna um “filme de assalto”, com o planejamento e a preparação para o roubo. Não chega a comprometer, mas deixa a impressão de que o humor se esgotou a essa altura.

    A premissa é simples. A história, bastante previsível. E há algumas coincidências um tanto forçadas para garantir o desenrolar da trama. Mas fica claro que é essa a proposta do filme. Não há planos rebuscados, nem enquadramentos mirabolantes. A meta não é ser original e revolucionário, mas sim entregar algo fluido e agradável de assistir. E, logicamente, o elenco é garantia de que isso ocorra. “The three caballeros”, além do talento inquestionável, têm uma sinergia que transcende a tela, ao se comportarem como um casal antigo – discutindo por qualquer coisa, mas completando as frases (ou ideias) uns dos outros. Sem contar a ótima participação de Christopher Lloyd como Milton, responsável pelas piadas mais pastelão da história. A exemplo de Os Mercenários, é visível o quanto estão se divertindo fazendo o filme. E isso, sem dúvida, conquista o espectador.

    No melhor estilo “sessão da tarde”, é um filme que funciona bem. Com mais altos que baixos, cumpre seu objetivo que é entreter descompromissadamente, mesmo levantando alguns questionamentos bastante atuais e relevantes. Não é o filme do ano, nem sequer a comédia do ano. Mas certamente não é esquecível como muitas outras.

    Texto de autoria de Cristine Tellier.

  • Crítica | A Juventude

    Crítica | A Juventude

    Juventude - poster

    A terceira idade adquiriu um peso cujo significado se traduz por uma derrocada tanto do corpo quanto de estágios mentais. Uma concepção que aponta como o contemporâneo lida com tais valores em uma sociedade cada vez mais líquida, em que o novo é sempre louvado. A afirmação é delicada e profunda a ponto do próprio cinema evitar escalar atores velhos para certos papéis, visão que necessita ser mudada devido a uma percepção errônea.

    Estágio natural a todos os homens, a velhice é tratada com desprezo por parte do pensamento ocidental e da indústria cultural. A maturidade e sabedoria advinda do acúmulo dos anos são ignoradas e transformam este período em uma área de isolamento. A Juventude, nova produção do italiano Paolo Sorrentino, versa sobre esta fase ao apresentar dois amigos, Fred (Michael Caine) e Mick (Harvey Keatel), passando as férias em um luxuoso hotel, valendo-se de um elenco de primeira linha para sua história.

    O diretor ainda apresenta um estilo cinematográfico no qual o visual significa parte de sua mensagem. A trama desenvolve a amizade dos dois personagens e suas lembranças de épocas anteriores ao mesmo tempo que apresenta silenciosamente outros hóspedes do local, pessoas sem expressão, despidas, em uma suposição de que a própria vida está ausente. Inserida na questão estética, a contemplação é uma das bases fundamentais de sua narrativa. Cenários e personagens convivem em um espaço teatral, preservando uma situação que representa uma espécie de vazio em contrapartida ao que deveria ser prazeroso, vide o cenário natural do local com muito luxo.

    Ainda que cada personagem seja particularmente normal, dentro deste cenário os papéis compõem um tecido díspar de humanos que parecem estar no local como tentativa de fuga. A filha que nega o término do casamento (Rachel Weisz); o velho maestro que não assume a morte da esposa; o diretor em derrocada que não assume seu fracasso. Dentro deste cenário, a figura de Jimmy Tree (Paul Dano), representando um ator talentoso cujo papel mais famoso foi em um filme-pipoca sobre um robô, observa a todos e constata, em determinado momento, o quanto o drama interno de cada um deles é rico em dilemas existenciais que devem ser explorados. Uma visão que parece compartilhar a impressão do público e, sem dúvida, a do próprio roteirista ao compor este quadro.

    A juventude que marca o título da história se identifica com maior facilidade pela beleza. Um signo óbvio que estabelece um padrão estético ainda vigente, a beleza dionisíaca e a seu culto, um conceito de perfeição desenvolvida em eras anteriores. Ainda que coerente com sua metáfora, a bela cena que ilustra o imagético pôster internacional é um impacto parco em relação a outros símbolos inseridos na trama. A beleza da atriz é notável, e Sorrentino sabe conduzir a cena de tal modo que a mantém em uma contemplação ideológica entre a moça, o novo e perfeito, e os velhos, menores e destituídos do vigor da vida, com uma carga de admiração que não se sobrepõe ao apelo sexual.

    De fato, o significado da juventude dentro do filme é múltipla. Contemplativamente parece representar uma visão idealista de um passado visto com admiração. Nesse aspecto, a juventude e a beleza, principalmente a feminina, seriam grandes representantes deste ideal. Em contrapartida, denota uma imaturidade a qual qualquer homem estaria sucessível quando não desenvolve um equilíbrio interno, uma juventude interna e cenário de incompreensão e imaturidade.

    O filme mantém uma lacuna para a interpretação do público sobre parte dos símbolos desta narrativa, que é bem conduzida entre tais espaços para possibilidades e uma intenção firme de seu autor.

  • Crítica | O Último Caçador de Bruxas

    Crítica | O Último Caçador de Bruxas

    O Ultimo Caçador de Bruxas 1

    De começo promissor, apesar de todos os avisos contrários ligados à filmografia pouco prolífica de Breck Eisner – diretor que também brindou o mundo com Saara e Epidemia, remake de O Exército de Extermínio de George A. Romero -, O Último Caçador de Bruxas surpreende pela construção de cenários, figurinos, fotografia e ambientação, trazendo um ambiente que emula a Idade Média e elementos da mitologia nórdica de maneira tão pontual, que quase faz esquecer que o filme é protagonizado por Vin Diesel.

    O nano ator careca vive Kaulder, um antigo predador de bruxas, que na primeira parte do filme tem um embate mortal com a Rainha Feiticeira (voz de Julie Engelbrecht) das criaturas maléficas, sofrendo a maldição de viver pela eternidade, a custo de conviver em um mundo com as criaturas que sempre odiou. Para azar seu e do público, as portadoras da magia passam a conviver pacificamente com os humanos, estabelecendo normas e um conselho controlador de seus atos. Ao lado de Kaulder há uma organização, da Cruz e Machado, que auxilia o homem bruto em sua caçada, designando sempre um “Dolan” para auxiliá-lo, focando neste momento na transição entre as figuras de Michael Caine e Elijah Wood.

    É curioso notar como um pretenso sidekick pode se tornar a figura de um mentor, como ocorre com o Dolan de Caine, o único dos homens que “tocou” o coração duro do imortal.  Outro ponto positivo é a harmonia dos detalhes mágicos com a modernidade, bem como a apresentação dos antagonistas.

    Há uma forte aproximação da fita de algo minimamente aceitável em matéria de filme pipoca que trata de setores de fantasia, com uma direção de arte que faz até se relevarem alguns clichês narrativos incômodos, mas ao se aproximar do final, todo o drama passa a ser genérico, mesmo com o aporte de Chloe (Rose Leslie), que é uma personagem que tem um pouco de substância, mas que é desnecessariamente associada a par romântico do herói. As soluções em relação ao desfecho são muito fáceis, desembocando em um deboche bobo do próprio texto.

    Após o embate entre os inimigos mortais, há um vergonhoso apelo a uma possível continuação, tornando fracos até os pontos positivos no drama de Kaulder, um espécime que até então era carismático e que cede aos apelos esdrúxulos de um personagem caça-níquel, cujo retorno é esperado para possíveis continuações. O Último Caçador de Bruxas chega muito perto de ser o melhor blockbuster de Breck Eisner, mas cai em erros primários de concepção, sendo ao final só mais um filho do meio, com um fechamento genérico e que não condiz com a trajetória que ensaiava ser interessante.

  • Crítica | Sherlock e Eu

    Crítica | Sherlock e Eu

    Sherlock e Eu 1

    Em dois minutos de tela já são apresentados John Clay – um dos maiores vilões do cânone, o 4° homem mais perigoso do mundo -, o oficial Lestrade (Jeffrey Jones), Sherlock (Michael Caine) e Watson (Ben Kingsley), numa cena bastante edificante e cheia de referências as aventuras clássicas. Mas isto não dura muito, pois no terceiro minuto de exibição tudo é desconstruído com uma enorme bronca vinda do médico, seguida de um pedido de desculpas do atrapalhado “investigador”. Without a Clue é uma comédia que apresenta Sherlock Holmes como uma farsa, um detetive perfeito criado por Watson para publicar suas próprias reminiscências provindas de suas deduções e investigações.

    O pastiche, realizado por Tom Eberhardt, mostra que Holmes não era mais que um papel interpretado pelo ator alcoólatra Reginald Kincaid, que fora encontrado na sarjeta pelo autor dos contos da Strand Magazine. Em poucos momentos, a dupla se separa após uma briga, e o doutor acha que pode seguir a frente das investigações sem o alterego famoso, o que se prova um engano dos mais terríveis e ardis, pois sua obra supera em muito o autor em popularidade e notoriedade de forma semelhante ao paralelo real entre Sherlock Holmes e Arthur Conan Doyle, e o argumento metalinguístico é muito bem executado.

    Logo Watson percebe que terá de lançar por terra seu orgulho e recorrer a Kincaid, que também não se mostra muito bem quando está só, visto que é absolutamente inábil em quase todos os seus afazeres e se mete em dívidas de jogo como ninguém, a ponto de não ter capital sequer para arcar com sua bebedeira.

    Quando Watson declara suas próprias deduções, ele é sumariamente ignorado, mas quando as mesmas palavras vêm dos lábios de Sherlock, todos acreditam, numa clara referência ao conceito de placebo. A comédia do roteiro é muito semelhante ao humor presente nas séries televisivas americanas, o que se deve ao background dos dois roteiristas, Gary Murphy e Larry Strawther. A ideia inicial era boa, mas fica presa somente à premissa, pois com o decorrer do tempo a comédia perde o fôlego e só se sustenta graças ao humor pastelão.

    Holmes treme diante da possibilidade de Moriarty (Paul Freeman) estar envolvido, este sim um vilão á altura do intelecto de John Watson. É curioso como neste Sherlock e Eu a figura de bufão e de bobo alegre é de Sherlock, ao contrário dos filmes dos anos 30/40, em que Nigel Bruce e seu médico eram o alívio cômico. O duelo final de esgrima garante a Kincaid um justo momento de honra diante do inimigo mortal, fazendo valer finalmente os louros que receberia. Sua nobreza aumentaria ao dar créditos ao real “resolvedor” de casos, superando assim sua antiga birra e assumindo sua amizade pelo médico. O anúncio de “Caso Encerrado”, revela que mais aventuras dali viriam, e apesar da mensagem final, politicamente correta, esta é uma película eficiente em misturar humor e o universo criado por Arthur Conan Doyle.

  • Crítica | Kingsman: Serviço Secreto

    Crítica | Kingsman: Serviço Secreto

    Kingsman - Serviço Secreto

    A semelhança estabelecida entre Kingsman, a história em quadrinhos, e o filme, é parcial. Há um mote fundamental e cada desenvolvimento é feito à sua maneira, levando-se em consideração as diferentes mídias abordadas. Evitando apropriações indevidas, quadrinhos e cinema dialogam de maneira sincronizada, sem que um exagero de recurso de um ou de outro destoe da história.

    A narrativa de um grupo especial focado em operações especiais sigilosas surgiu durante a parceria do diretor Matthew Vaughn e o roteirista Mark Millar na adaptação de Kick Ass – Quebrando Tudo. Dessa maneira, cada um trabalhou com o mesmo ponto de partida, mantendo certa originalidade nesta obra, que é uma homenagem explícita aos filmes de espionagem antigos que apresentavam um mundo mais polarizado entre bem e mal.

    A referência quadrinesca do longa se mantém nas cenas de ação impossível, mas o foco principal é a paródia dos cinemas de espionagem. Mantêm-se, assim, as referências conhecidas pelo público, modificadas por uma visão que demonstra o quanto tais personagens são anacrônicas e estereotipadas.

    Vaughn continua seguindo em sua carreira uma tendência mista de adaptar quadrinhos mantendo o estilo de cada um mas trabalhando simultaneamente com a linguagem do cinema. As cenas de ação são bem compostas e evitam as câmeras lentas – usadas somente em uma cena de alto impacto –, preservando a referência contemporânea de filmes de ação com cenas ágeis ou brutas.

    Samuel L. Jackson interpreta outro personagem coadjuvante interessante, outra tipificação após o papel de velho escravo em Django Livre. Dessa maneira, o habitual excesso interpretativo do ator (conhecido como o motherfucker Jackson ou o massavéio dos massavéios) é deixado de lado para dar vida a um vilão bobo, um plano maligno e megalomaníaco como de costume, e uma língua presa que explicita sua caracterização de bobo.

    Na fronte dos mocinhos, representando um dos agentes Kinsgman, está Colin Firth como o tradicional britânico educado. O ator evidencia conforto nesse papel de ação e comprova estar sempre coerente em sua interpretação sendo, sem dúvida, um dos britânicos em atividade com maior habilidade em sustentar uma gama de personagens diferentes.

    Exagerando na metalinguagem, com personagens que falam sobre a própria impossibilidade dos filmes de espionagem, Kingsman ri do gênero como Kick-Ass riu dos super-heróis, uma replicação de um conceito realista que, mesmo parecendo cópia, foi bem-sucedida. Como roteirista, Millar demonstra talento em criar narrativas do zero, sem personagem pré-fabricados do eixo DC/Marvel. Ainda que uma parcela de seus leitores aponte-o hoje como um escritor que compõe suas tramas pensando na futura adaptação cinematográfica, o sucesso da produção confirma que o gênero quadrinhos é hoje uma das fontes de inspiração do cinema, tanto como novo argumento quanto como reciclagem de novas maneiras de narrar velhas histórias.

  • Crítica | Interestelar

    Crítica | Interestelar

    Interestelar

    Desde que o primeiro homem andou sobre esse planeta, o céu e as estrelas exercem uma fascinação na espécie como nenhum outro fenômeno da natureza. Não à toa, praticamente todos os povos terrestres tinham como deuses planetas e estrelas, dadas sua magnitude, distância e beleza. Portanto, nada mais natural que, na era moderna, as artes tentem reproduzir esse senso de admiração pelo desconhecido. Dentre todas, o cinema é a que chega mais próxima de construir e reproduzir essas sensações para o público dito “comum”, que em meio à correria do dia a dia, mal tem tempo de olhar para o lado, quanto mais para cima.

    Desde Georges Méliès, passando pelo sempre cultuado 2001 – Uma Odisseia no Espaço, Contatos Imediatos de Terceiro GrauContato e, mais recentemente, por Gravidade, o Universo exerce um fascínio por sua exuberante beleza, ao mesmo tempo que assusta por suas escalas inimagináveis de grandeza e a sensação de que, ali, estamos perto de ser literalmente nada. Ciente de todas essas questões, o cultuado diretor britânico Christopher Nolan se lançou em uma empreitada arriscada, a de fazer uma história que se passa nesse cenário e que, ao mesmo tempo, possa emplacar um sucesso comercial.

    Interestelar gira em torno do piloto Cooper (Matthew McConaughey), que cuida de sua fazenda no interior dos EUA junto a sua família. Em um futuro não muito distante, que flerta com uma distopia onde a humanidade não foi destruída, mas passa por dificuldades e tenta viver normalmente, a sociedade não precisa mais de engenheiros e pilotos, pois a exaustão natural do planeta, junto ao crescimento da população, provocou a escassez de comida, sendo essa a atual função de Cooper, que nunca superou o fato de não ter levado adiante sua vocação. Sua filha, Murph (Mackenzie Foy/Jessica Chastain/Ellen Burstyn), mostra uma grande inteligência e inclinação para a ciência, enquanto seu filho, Tom (Timothée Chalamet/Casey Affleck), se mostra contente em seguir seus passos de fazendeiro, tudo aos cuidados do pai de sua falecida esposa, Donald (John Lithgow).

    Cooper tenta ao máximo se esforçar para cumprir suas tarefas como fazendeiro e pai, mas a frustração de não ser piloto sempre o impede de dar a tudo a atenção e importância que merecem. A passagem em que ele discute com os responsáveis da escola de seus filhos, onde os livros de história sobre a exploração espacial foram alterados, é excelente na medida em que mostra o descompasso entre aquele estágio da humanidade, que se contenta em apenas sobreviver, e a reminiscência de um passado sonhador, na figura de Cooper, que imaginava expandir as fronteiras da humanidade rumo ao espaço. A discussão a respeito do pioneirismo da exploração espacial – relembrando o Velho Oeste -, e o papel da ciência como salvadora da humanidade também poderia ser mais problematizada. O filme ignora condições sociais e ideologias das quais a ciência é fruto. Ela não existe sem seres humanos dotados de vontade produzindo-a, e da mesma forma que ela é tratada sozinha como a salvadora da humanidade, também poderia ter sido a causadora de sua extinção.

    Dentro deste mundo, os fenômenos naturais com os quais estamos habituados não acontecem mais do mesmo jeito. Elementos como uma poeira constante (que às vezes se transforma em tempestades) e alterações na gravidade por vezes acontecem, mas a preocupação com o dia a dia é tão grande que poucos ligam. Menos Murph. A criança percebe em seu quarto que algo estranho, que ela chama de “fantasma”, acontece, já que os livros de suas estantes sempre caem sozinhos. Cooper diz a ela para compilar dados e analisá-los, para depois se chegar a uma conclusão, como manda a lógica científica. Prontamente, Murph realiza o pedido do pai e em pouco tempo descobre uma mensagem codificada, em código Morse, e que, para a surpresa e espanto de Cooper, os leva a uma instalação secreta da NASA.

    Lá, Cooper reencontra um antigo amigo de seus tempos de piloto, o professor Brand (Michael Caine), e conhece a filha dele, Amelia Brand (Anne Hathaway). Então, a história dá uma guinada. Cooper é convidado para fazer parte de um projeto de tentativa de salvação da humanidade, que será extinta por uma “praga” que consome nitrogênio e altera o balanço da atmosfera. O projeto, que estava em andamento há anos, levou equipes diferentes de cientistas para outra galáxia através de um buraco de minhoca posicionado perto de Saturno por “alguém”, que ninguém sabe quem, mas que não estaria ali por acaso. E esse seria o caminho da viagem, o qual envolveria muitos riscos, provavelmente sem retorno.

    Nesse momento, o desenvolvimento dos personagens e suas angústias é parado para dar vazão a uma velha mania de Nolan, que é explicar para o espectador tudo o que os especialistas do filme pretendem fazer. Nesse caso, o professor Brand explica todo o passo a passo para Cooper, e o fato de escolherem um ex-piloto e fazendeiro, que apareceu por acaso naquela base para pilotar a missão mais importante da humanidade, causa um certo estranhamento, em que a explicação dada, onde “algo” o enviou ali, convence o espectador mais crédulo, mas não aquele mais exigente. A explanação do professor Brand sobre os planos A (resolução de sua equação e retirada da população da Terra para outro planeta) e B (popular o novo planeta com material genético guardado) também é acometida por isso.

    Chamado de volta a sua vocação, Cooper aceita a missão e precisa deixar a família, para o desespero de sua filha. A promessa do retorno do pai não resolve o conflito, que ecoará para sempre na vida de ambos. O relógio que Cooper dá a Murph como uma tentativa de criar um elo sentimental e temporal entre ambos também falha nesse sentido.

    Ao abandonar a Terra e ir para o espaço, o filme toma outra proporção, e as discussões científicas entre os personagens, para decidirem o próximo passo da missão, são sempre explicativas dentro de um limite do aceitável, mas bem perto deste limite. Para um espectador sem nenhum tipo de conhecimento científico, talvez ajudem-no a entender alguns conceitos básicos e o que estaria acontecendo em determinados momentos. Porém, para este mesmo espectador, explicação alguma ajudaria a entender fenômenos mais complexos, como o que acontece dentro de um buraco negro, o que, na verdade, ninguém sabe. Se em A Origem o excesso de explicações sobre uma trama relativamente simples acaba entediando o público, em Interestelar isso não acontece, pois as informações estão inseridas em um contexto totalmente diferente do que estamos habituados, e os diálogos ajudam-nos a familiarizar tanto com o tema quanto com as motivações por trás de cada personagem. Obviamente, escorregões acontecem, quando Amelia Brand discorre sobre o amor, mas são poucas as vezes.

    A sequência de aproximação, e quando entram no buraco de minhoca, é belíssima e lembra muito a viagem de Ellie, em Contato, ao transformar uma viagem espacial sob condições inéditas e extremas em uma aventura por si só. Ao mesmo tempo, a chegada ao local se transforma em uma paisagem visual para o vislumbre do espectador e dos protagonistas. Juntos na viagem estão os outros cientistas Doyle (Wes Bentley) e Romilly (David Gyasi), além dos computadores com inteligência artificial TARS (voz de Bill Irwin) e CASE (voz de Josh Stewart), que garantem bons alívios cômicos.

    Ao transformar o desconhecido do espaço em potenciais riscos para os astronautas, Nolan consegue criar situações de tensão de forma eficiente, e utilizando-se de toda a complexidade de estar em uma realidade com tempo e espaço totalmente diferentes, o horror da situação aumenta ainda mais, como na excelente sequência dentro do planeta aquático onde estava uma das cientistas que buscavam mundos habitáveis. Lá, tudo o que poderia dar errado, deu, em referência a uma própria brincadeira do filme com a “Lei de Murphy”. O fato do planeta estar próximo do buraco negro Gargantua faz com que poucas horas ali se transformem em quase 30 anos perdidos na Terra, e o peso de tais erros, ainda mais brutal sobre os tripulantes. Ao retornar à nave, percebem que se passaram 23 anos na Terra, e muita coisa aconteceu. Os filhos de Coop cresceram, e Murph, que agora trabalha com o professor Brand na NASA, ainda não superou a partida do pai, enquanto Tom permanece cuidando da fazenda. A teoria da relatividade é citada, usada e explicada extensivamente no filme e serve de fundo para explicar a motivação de Coop para tentar retornar logo para a Terra.

    Por perderem muito tempo e combustível nesse planeta, sobram mais dois para visitarem: um do Dr. Mann (Matt Damon), brilhante cientista, e outro do Dr. Edmmonds – que tinha um relacionamento amoroso com Amelia -, ambos com motivos para serem visitados. Porém, o lado racional de Cooper fala mais alto e eles seguem para o planeta de Mann, que, desesperado pela solidão e medo da morte, manda o sinal mesmo sem ter encontrado nada para tentar escapar, o que também garante boas sequências de ação e tensão, mesmo que previsíveis, com os velhos discursos do vilão e tudo mais. Aqui, ele poderia encarnar de forma mais enfática o papel crítico sobre a ciência, mas foi feita a escolha mais simples.

    A transformação do homem racional e altruísta em um homem egoísta, contradizendo todos os argumentos racionais de Cooper para escolherem aquele planeta, é feita de forma rasa ao contrapor o velho “sentimento versus razão”. A fuga do Dr. Mann danifica o equipamento espacial que acopla as naves, e a sequência para tentar encaixar a nave pilotada por Cooper e Amelia lembra bastante Gravidade, ao colocar seres humanos em risco no espaço, realizando manobras praticamente impossíveis para tentarem se salvar, mas sempre sem abusar da expectativa e tensão, que poderia cansar caso fosse esticada demais.

    Nesse momento, é também revelado para Murph e para Coop e Amelia que o plano original do professor Brand sempre foi o B, e a sua equação gravitacional não resolveria o problema de como salvar a humanidade, que sempre esteve condenada. Portanto, a viagem de volta de Coop seria impossível.

    Com o gasto excessivo de combustível, agora não havia o suficiente nem para Cooper voltar para casa, nem para irem ao planeta de Edmmonds. A solução é usar os recursos para contornar Gargantua e usar sua força para impulsionar a nave, mas Cooper engana Amelia e solta sua nave, caindo no buraco negro. E dentro do buraco negro onde Nolan se rende a homenagear, à sua maneira, o clássico espacial de Kubrick. Se em 2001 – Uma Odisseia no Espaço estamos sozinhos com Dave, dando a cada imagem o nosso próprio significado, Cooper faz questão de perguntar ao computador TARS cada passo da etapa no qual se encontra, em uma conversa que não chega a incomodar, mas tira um pouco o poder do espectador de ter a mesma epifania visual e criativa que Kubrick corajosamente permitiu.

    Assim como em 2001, a estrutura de dentro do buraco negro falou diretamente com Cooper, dando a ele elementos de sua natureza para conseguir se comunicar – no caso, a biblioteca do quarto de Murph quando criança. Lá, todas as condições são radicalmente diferentes de tudo o que conhecemos, e tanto o tempo quanto a gravidade são distorcidos. A estrutura consegue distorcê-los de forma padronizada, fazendo com que Cooper envie os dados da equação gravitacional que resolveria o problema de como salvar a população da Terra, ou seja, ele era o fantasma de Murph quando criança tentando se comunicar com ela. Todas essas cenas dentro do buraco negro, apesar de serem atrapalhadas por tanta explicação, brincam com conceitos da física, ao mesmo tempo que garantem uma gama enorme de emoções, em grande parte por causa da brilhante atuação de McConaughey.

    Após enviar a mensagem para Murph usando o mesmo relógio que havia dado à menina, ela consegue decifrar os dados e salvar a humanidade, enquanto Coop é reenviado pela estrutura do buraco negro e encontrado pelos terráqueos do futuro em Saturno. Nessa conclusão, um pouco da magia inicial se perde, pois o objetivo principal do desenlace é explicar e resolver praticamente todas as pontas soltas do filme, não deixando margem para praticamente nada, a não ser o paradeiro e situação de Amelia Brand. O reencontro de Coop com Murph, já idosa e prestes a morrer, não garante muitas emoções, e o passeio turístico dentro da estação espacial em Saturno soa desnecessário.

    Porém, em relação ao aspecto técnico, a produção funciona muito bem. As sequências no espaço, sempre em silêncio, garantem uma atmosfera de suspense que se mantém, até misturar com o som dos ambientes fechados dos atores. O jogo de luzes dentro das naves, remetendo sempre ao sol (o nosso, ou não), é sempre interessante de acompanhar. A também já criticada parceria com Hans Zimmer mostra sinais de cansaço, mas ainda funciona para compor canções que, por vezes, casam perfeitamente com os momentos vividos na tela, em especial nas cenas finais.

    Muito se tem comparado Interestelar a outras produções do gênero, mas nenhuma comparação é justa. Nolan, como qualquer artista, retira influências de suas obras preferidas e as coloca ali, misturadas a seus próprios elementos dentro de uma narrativa própria, que tenta fazer uma homenagem não só à ficção científica, mas ao próprio sentimento humano de querer saber o que existe além. Quem condena a exploração espacial por ser gasto inútil de dinheiro não consegue ver mais adiante. Como o próprio filme cita, a tecnologia espacial gerou vários outros frutos para a humanidade, como as comunicações via satélite e a máquina de ressonância magnética, que poderia ter salvado a vida da esposa de Coop. Se a humanidade gasta dinheiro à toa, ali realmente não é o lugar. O Professor Brand também afirma que cada pedaço de metal sendo usado na construção daquelas naves poderia ser utilizado na fabricação de uma bala de uma arma, então, de certa forma, tudo aquilo foi positivo. É junto a esse conceito básico e humanitário que o filme se posiciona e se constrói, em como a ciência, ao desvendar o funcionamento por trás da natureza, nos ajuda a entender como ela é bela e, principalmente, nos torna mais humildes e capazes de admirar tudo o que está lá fora.

    Texto de autoria de Fábio Z. Candioto.

  • Crítica | O Último Amor de Mr. Morgan

    Crítica | O Último Amor de Mr. Morgan

    O Último Amor de Mr. Morgan

    Um filme é produzido por duas razões: Hoje em dia, pra fazer dinheiro em especial, mas também para contar uma história que precisa ser contada. A trama precisa ser especial o suficiente a um monte de elementos, uma montanha deles na verdade, e contudo, para um filme sobreviver e se destacar, às vezes a sorte ajuda o que não consegue reunir nem em um montinho de terra os seus valores. Aqui, a sorte ou um ótimo elenco, caso de O Último Amor de Mr. Morgan, com Michael Caine, um raro drama americano que encontra na leveza e nos explícitos subtextos culturais da cidade de Paris a essência do filme, muitas vezes traduzida pelos próprios cenários da produção de frescor virginal. Virginal porque celebra o último amor de um homem, como qualquer outro filme celebraria o primeiro, e esse é o único trunfo desta contradição em forma de filme. A intenção, infelizmente, não faz o projeto.

    Que tal juntar as duas pontas da vida?, pensou a arte. As duas gerações? Sim, dois universos, duas línguas diferentes. Na dificuldade de uma falar a outra, o filme encontra então uma metáfora no desafio de um homem ancião ter alguma chance junto a um coração juvenil – mais do que vice-versa. A ótica da história tende a ter impacto social, mas desiste e se limita a consequências unilaterais, brotadas do entrelaçamento inevitavelmente temporário, e mais uma vez nos romances fadados à morte, de forma depressiva e à base de memórias que jamais enriquecem a película. Seria exagero afirmar que Up, da Pixar, foi o mais feliz representante moderno desses “milagres termodinâmicos” que unem alvorada e rugas, apenas por ser divertido e sábio do mesmo jeito, ao mesmo tempo? Tempo de refletir, isso sim.

    Só que encontrar um sentido para a enorme despretensão de O Último Amor de Mr. Morgan é como achar algum para a vida, seja um significado definitivo ou não. O filme inteiro parece uma introdução a ele mesmo, isso explica o porquê dele ser uma contradição. O filme tem o fôlego de um homem de 90 anos e comete o pecado de não se aprofundar no sensível (!) personagem homônimo de Caine, afetado pelo recente óbito de sua esposa e por questões relacionadas, seja o respeito total que tem por sua inusitada parceira, na pele de Clémence Poésy, seja a difícil relação do homem com seus filhos. Relações inconsistentes demais, e resoluções ainda mais cruas para um filme que tenta ser tão emocional.

    O que era pra ser um duplo estudo de dois seres humanos diferentes, mas análogos no modo como encaram a vida, vira um mosaico de relações verborrágicas e quebradiças e que não encontra tempo nem espaço para refinar a nobre proposta interpretada por uma boa atriz, Poésy, e um ator no auge de sua sabedoria cênica. Em certo momento, nem mesmo Paris consegue mais mascarar um contexto tão desidratado, pois toda história seca quando, antes do final, já não merece mais ser contada. Aparentemente, a cineasta Sandra Nettelbeck ainda é incapaz de fazer seus filmes falarem por ela.

    Vladimir Nabokov com seu Lolita sabe a dor de cabeça e o preço que o laço entre gerações produz. Mas nos últimos filmes de Bergman e Ozu, os vovôs pegaram as duas pontas da velhice humana e fizeram essa união, selando seus presentes realizados por mais de quarenta anos a nós, fiéis revisores da verdadeira imortalidade artística. De fato, a breve história do Sr. Morgan deixa um grande gosto de quero mais na boca, afora suas boas atuações, e acaba sendo senão tão efêmero e esquecível quanto é a maioria das almas na reta final da estrada, onde não existe mais semáforos: às sombras, o caminho é livre sob a luz.

  • Crítica | A Origem

    Crítica | A Origem

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    É fácil olhar hoje para a carreira de Christopher Nolan e ver nele um exemplo de cineasta de grandes feitos e em quem os estúdios confiam, seja pela franquia de super-heróis da Warner que deu certo (vide o insucesso de O Homem de Aço e Lanterna Verde, só para citar os mais recentes), assim como em produções caríssimas, como O Grande Truque. A Origem é um projeto bastante antigo de Christopher Nolan, engavetado na época graças à escassez de efeitos especiais adequados ao roteiro apresentado. Mas também relegado ao limbo por ter em sua concepção um preço absurdamente alto para os padrões de um cineasta iniciante. Foram precisos seis longa-metragens no currículo para confiarem a ele o orçamento estimado em 160 milhões de dólares.

    O visual do filme impressiona, a fotografia, edição, tudo é belíssimo. A escolha por narrar a trajetória de Cobb (Leonardo DiCaprio) por meio de flashbacks é uma opção muito inteligente. A história, contada de forma linear, não teria metade do impacto que teve como produto final. Além disso, a estratégia de usar a máscara de filme de assalto para abordar uma coisa tão complexa como o funcionamento da psiquê e seus segredos dentro do ambiente misterioso do sonho é brilhante, e, aliada à estética noir, fazem da fórmula do filme algo único. O didatismo de Nolan, tão criticado nos filmes do Morcego, é muitíssimo necessário neste evento em particular.

    A cartilha de Joseph Campbell é cumprida à risca: todos os arquétipos são desenhados e representados de forma bastante óbvia. O intuito é de não deixar qualquer dúvida acometer o público, a não ser em relação à realidade tangível. O grave problema de Inception é a motivação dos personagens. Cobb é um herói falido típico, que não consegue ter controle sequer sobre o destino de suas ações. Toda a gigantesca trama, os roubos de informações, os sequestros e outras tantas atitudes fora da lei protagonizadas por ele só acontecem graças à sua reticência. A humanidade não é um problema, mas a contradição de seus atos o são. Para alguém que lidera uma operação tão complexa, é simplesmente inaceitável a sua falta de pulso, mesmo levando-se em conta o seu trauma. Outra questão que influi na percepção do público quanto à atuação do ator principal foi a proximidade entre o lançamento de A Origem e Ilha do Medo, de Scorsese, cujas premissas dos personagens centrais são bastante parecidas.

    O segundo erro capital é a personagem que deveria ser a orelha, a inserção do espectador dentro da experiência como um todo. Ariadne, de mesmo nome da libertadora de Teseu do labirinto do Minotauro, deveria ser uma promissora arquiteta que, ao ser desafiada, mostra-se muito competente no que faz, mas ainda assim é neófita e inexperiente. Uma vez que o papel de Ellen Page sabe perverter as regras do mundo dos sonhos, ela se torna uma deusa, que desliza sem dificuldades pelos segredos da mente e que molda a estrutura das construções compartilhadas entre os aventureiros. Sua evolução é rápida e até admirável, mas passa muito do ponto, pois instantaneamente se torna presunçosa e moralista, pondo o dedo em riste, acusando o seu contratante, como se ela fosse onipotente. Tais pecados podem ser explicados pela inexperiência, mas não são tão bem justificados quanto facilmente poderiam. Mais uma vez a omissão de Cobb é demonstrada, e assim como a vilã, Ariadne se usa disso para se achar maior do que realmente é, ignorando a possibilidade de, uma vez no subconsciente, perder a noção do que é verdade e do que é sonho. Ela carrega tanta arrogância sem causa que não consegue amadurecer ao tomar conhecimento das experiências alheias, algo que claramente faz falta ao perceber que a mente de Fischer era treinada, desmoralizando Cobb por cultivar tais pensamentos.

    A ideia de Nolan é discutir filosoficamente os limites do tecido da realidade. Antes de completar 60 minutos de exibição, um simples funcionário de um “dormitório” indaga Cobb sobre a veracidade da dimensão sonhada e qual destas é a mais verídica de fato. Primeiro ele desmistifica a questão da “elitização da verdade”, pondo um mestiço comumente ignorado e fadado a ser taxado como simplório como o detentor da informação primordial e do questionamento fundamental. Depois ele joga no colo do herói a interpretação do seu maior anseio, fazendo ele confrontar seus próprios demônios. Viver no passado é sedutor, e o avatar curvilíneo e as belas feições de Mal (Marion Cotillard) representam toda essa volúpia de forma ímpar. Cobb deseja tanto sua beleza quanto anseia se encontrar com os seus filhos novamente. Toda a sua reticência é voltada para a dificuldade de escolha da realidade que terá de fazer.

    A escolha de Mallory em ignorar a verdade é parte da utopia do mundo ideal, onde somente ela e seu amado vivem, alienando-se totalmente ao que acontece na vida real. A projeção de um conto de fadas é maximizada e elevada a níveis altíssimos, numa alegoria clara à fuga da inconveniente verdade do fruto proibido. A personagem Mal é como uma louca Eva, que, ao provar da árvore do Bem e do Mal, não consegue mais viver sua antiga rotina. O cotidiano é démodé demais para os seus gostos, e sua tentativa de voltar ao ideal condena o seu amado a uma vida sem realizações que lhe são prazerosas e necessárias.

    A utilização dos elementos externos a quem dorme dentro da camada inferior de sonho é uma ótima forma de representar o nonsense e descompromisso com as regras físicas dentro desta alternativa efetivamente verdadeira. A perseguição frenética e apressada em relação até mesmo ao tempo acrescido se dá graças ao mergulho dentro das camadas de transe. A contradição ajuda a aumentar o suspense da história.

    O limbo que é a prisão de Mallory representa uma amostra decadente de como o mundo idílico era e de como ele se tornou assustador com o decorrer do tempo. O passado é amedrontador e contém muitos dos medos de Cobb. A simples chance de olhar no rosto de suas crianças dentro de sua fantasia causa asco no herói. Sua incessante busca é pelo real: poder tocar seus herdeiros, aqueles a quem ele abandonou, primeiro ao se isolar e depois por motivos de força maior. A ideia, implantada em Mal, de que tudo muda parecia ser a maldição de sua própria vida. Enfrentar a sua própria verdade inconveniente e ter de assumir a sua parcela de culpa o consome e só não dói mais do que a distância de seus filhos, Sam e Phillipa. A dificuldade em liberar sua alma do sentimento de Mal é intenso, e a despedida é emotiva, especialmente para a projeção da mulher. Já Cobb parece, pela primeira vez, seguro de si e do que quer. A questão da dualidade no final é agravada pelos olhares do protagonista e cada um dos seus companheiros de jornada, dos cenários e cenas idênticos aos que se propagam em seu imaginário.

    A Origem é o momento mais autoral de Christopher Nolan, e a prova do quão prolífico é o seu cinema. Uma promessa para filmes ainda melhores do realizador britânico.

    Ouça nosso podcast sobre Christopher Nolan.

  • Crítica | Batman: O Cavaleiro das Trevas

    Crítica | Batman: O Cavaleiro das Trevas

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    Depois do impressionante primeiro ato, Christopher Nolan retorna à franquia de Batman para realizar uma produção épica. A consagração que romperia o gênero filme de super-herói para tornar-se um grande filme por excelência.

    Introduzido como gancho na produção anterior, entra em cena a personagem antagônica do Cavaleiro das Trevas, o Coringa. Sua figura é representação máxima da potência de Batman e se popularizou até nas frases que se tornaram seculares entre os fãs.

    A trama se aproxima novamente de histórias conhecidas do herói sem deixar de lado elementos inéditos.  Trabalhando com diversos níveis narrativos, a composição de suas camadas é exemplar. Injusto afirmar que Coringa é a personagem central, sendo claro três polos distintos na narrativa: Harvey Dent como a manutenção da paz perante a lei, Batman como o vigilante que age no limiar desta, e a figura do palhaço como a não-regra, o caos.

    Os enredos se apresentam de maneiras distintas e paralelas, culminando no ápice sem volta em Gotham City. Sob esse aspecto, o diálogo entre Batman e Gordon em Begins já inferia que o surgimento de um super-herói implicaria em uma escalada criminosa. E o que assistimos é justamente uma força impossível de ser sobrepujada.

    Heath Ledger incorpora um Coringa crível e conveniente também com os quadrinhos. O espaço para a piada só se realiza por meio do grotesco, da figura abominável sem limites. Embora a personagem se encontre pouco com o seu rival, definitivas são as cenas em que estão juntos.

    O interrogatório no quartel de Gordon é a chave central do significado entre herói e vilão, uma cena brilhante que, além de seu impacto, tem significado como análise do bem que necessita do mal para existir.  A moeda que trafega nessas vias é o promotor Harvey Dent (Aaron Eckhart), que vai de um extremo a outro, conduzido por Coringa.

    A consistência do elenco comprova que é possível realizar um filme com grandes astros sem a sensação de deslocamento, impressão que tenho assistindo aos diversos filmes da Marvel. Sendo possível trabalhar com um bom elenco sem a sensação de ele estar presente só como divulgação do filme.

    Mesmo que o texto apaixonado não abrace todos os expectadores da produção, uma afirmação é correta: Batman – O Cavaleiro das Trevas tornou-se exemplo a ser copiado. Produziu um marco grandioso nas histórias em quadrinhos que tanto será comparado como tentará ser copiado. Exemplo parecido com o que aconteceu com Matrix, em 1999.

    Mais do que o filme em si, sua força é medida quando, além de uma simples história, uma produção transforma-se em método a ser seguido. Some a isso o fato de que o elemento dramático fez milhões de nerds chorarem no final da trama, que você encontra um épico moderno com a elementar jornada de um herói.

  • Crítica | O Grande Truque

    Crítica | O Grande Truque

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    A obsessão humana transcendendo os limites do agente que a gerou.

    Quando Christopher Priest foi abordado por produtores interessados em transformar o seu romance em filme através da visão de Chrisptopher Nolan, ele ficou bastante impressionado, pois o autor apreciava os filmes anteriores do diretor (The Following e Amnésia). Em meados dos anos 2000 Nolan terminou de ler o romance e envolveu o seu irmão na produção de um roteiro. Nascia assim O Grande Truque (The Prestige).

    Nolan pretendia terminar este filme antes mesmo de Batman Begins, mas a pressão do seu projeto do morcego era maior e o diretor teve que esperar um pouco para poder finalizar o seu “projeto paralelo”. O que se pensarmos bem, fez muito bem à produção de O Grande Truque (mais grana liberada pelo estúdio), além de facilitar o casting do mesmo, muito graças ao sucesso de Batman.

    O plot inicial soa quase despretensioso: Dois ilusionistas, após terem sido afastados por um trauma em um truque do passado se sucedem em uma obsessão dantesca na busca pelo truque de mágica máximo, gerando tragédias para ambos assim como para as pessoas próximas a eles. Mas dentro deste enredo Nolan explora diversos conceitos interessantíssimos da natureza humana, e extrapola para a ficção gerando inclusive dilemas filosóficos da representação do ‘’Eu’’ e sua natureza transcendental, ou não.

    Robert Angier (Hugh Jackman) e Alfred Borden (Christian Bale) são algumas das peças que Nolan tem para revisitar temas que marcariam toda a sua carreira. Um indivíduo obcecado e que está disposto a ir além do que muitos iriam, para alcançar de alguma forma a sua realização, o sentimento de ter cumprido a sua função existencial. Se aqui temos a busca pela fama e o reconhecimento como melhor ilusionista de Londres como foco, em Amnésia esta busca seria a vingança do assassinato de sua mulher, ou mesmo a obsessão de um vigilante mascarado em querer “limpar” uma cidade (e com isso amenizar as dores que o afligem desde criança). Todos eles em diversos momentos transitam em uma linha muito tênue do que consideram moral. Angier e Borden são constantemente questionados pelas pessoas ao seu redor sobre as suas ações, sobre a obsessão que os corrói, mas eles seguem sempre em frente, sempre na busca por algo que os libertará disso tudo. Ingênuos, eles se esquecem de que o caminho espinhoso percorrido deixará cicatrizes permanentes, não importa o quão gratificante seja ter atingido o seu propósito inicial.

    Outro tema recorrente em Nolan é o seu modo de brincar ou questionar a realidade. Seja através de uma lesão cerebral na qual as memórias não se fixam mais, seja através da insônia e um estado mental perturbado ou simplesmente com um truque de mágica. Aqui a metáfora do que é ou não real nunca foi mais clara. Nolan brinca em várias cenas com os truques de ambos, isso somado as reviravoltas do roteiro justificam assistir a obra mais de uma vez.

    Integram o cast de peso Michael Caine, Scarlett Johansson, Andy Serkis e a mais que curiosa participação de David Bowie como o cientista e inventor Nicola Tesla. A fotografia e a produção de arte são fidedignas a Londres do final do século IXX (o que rendeu 2 indicações ao Oscar), cores frias permeiam quase toda a película, representando em grande parte a racionalidade de nossos protagonistas, seus maquinários para os truques e sua amoralidade quando levado em conta seus objetivos. Essa frieza é contrastada em pequenos momentos que clamam mais do emocional humano, principalmente nas cenas de Michael Caine e a linda filha de Borden (Samantha Mahurin), um misto de ingenuidade e deslumbramento ao se deparar com os truques mais simples do mundo ilusionista.

    Vemos aqui que há um preço enorme a se pagar caso não haja limites para a sua obsessão. Seja ele pequeno (um pássaro que morre para o sucesso dos truques de desaparição) ou até mesmo os que podem comprometer de forma irreversível a sua vida. Direta ou indiretamente, Angier e Borden sofrem e muito com isso. Mas dentro deles há impulsos fortes demais para serem ignorados. Fica fácil perceber que não importa se eles serão alcançados ou não, o impulso sempre estará lá, forte e ainda devastador. Os sacrifícios decorrentes de tal perseverança são impactantes e é difícil se manter indiferente. A reflexão resultante de tais atos por si só já valem o filme. Pena que ele muitas vezes acaba passando ao largo da filmografia do diretor como algo menor. Ao meu ver, ele consta entre os melhores filmes de Christopher Nolan.

    Texto de autoria de Amilton Brandão.

  • Crítica | Batman Begins

    Crítica | Batman Begins

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    Demorou certo tempo para a Warner trazer o Cavaleiro das Trevas novamente às telas, após a destruição causada por Schumacher com Batman & Robin. Ao descobrir sobre o interesse da produtora, Christopher Nolan demonstrou sua vontade em realizar um longa-metragem e esboçou breves ideias iniciais a respeito do projeto.

    Antes mesmo de realizar longas reuniões com executivos, Nolan convidou o roteirista David S. Goyer para juntos trabalharem em uma versão do roteiro, ao mesmo tempo em que seu desenhista de produção concebia visualmente as ideias criadas por ambos.

    Quando os executivos puderam conhecer a história de Nolan / Goyer, também tinham em mãos diversos protótipos desenvolvidos a respeito do uniforme e carro da personagem, e também da cidade de Gotham City. Elementos que começaram como testes na garagem de Nolan e tornaram-se presentes no filme.

    Batman Begins não só narra a origem do herói como também é o primeiro marco da narrativa de Nolan. O filme explora a lacuna de sete anos em que Bruce Wayne ficou fora da cidade. Lacuna que, diz o diretor, nem mesmo foi explorada em gibis.

    A personagem dos quadrinhos aproxima-se daquela vista nas telas: um homem que realizou uma jornada interior e teve maciço treinamento com diversos mestres para tornar-se aquilo que ambicionava. Além da composição como um herói, conhecemos também o pequeno círculo de confiança de Bruce Wayne: Alfred, o paternal mordomo, Lucius Fox, mentor tecnológico do morcego e Jim Gordon, o policial que lhe inspira confiança.

    Antes de o personagem vestir o manto, a história apresenta a jornada de Bruce Wayne. Nela, é desenvolvida a psicologia desde sua infância, com seu medo pelos morcegos, e as maneiras necessárias para explorar o terror interno. Antes mesmo de o público ver o Homem Morcego, há confiança e credibilidade na jornada estabelecida por Wayne.

    As tramas apresentadas são costuradas com perfeição. Inicialmente, Batman desenvolve uma luta contra a máfia da cidade, tentando ajudar a promotora Rachel. Conforme adentra as investigações, descobre que o Dr. Jonathan Crane aproveita-se do contrabando para desenvolver uma droga própria que impele o medo. A jornada do morcego constitui-se em uma luta com elementos ainda desconhecidos por ele.

    Batman foi criado para ser um tanque de guerra em forma de homem. Tem o aparato necessário e conhece as lutas marciais mais definitivas. Nolan não queria transformar a violência em espetáculo, mas sim em um elemento que assustasse o público. Dessa forma, oferece-se credibilidade à composição da personagem.

    A produção foi rodada quase inteiramente em locações ou estúdio, utilizando muito pouco do CG. Boa parte da cidade de Gotham foi levantada em grandes estúdios; a cena da caverna possui, de fato, um lago submerso e até mesmo o batmóvel foi construído como um veículo funcional de verdade, com quatro metros e mais de duas toneladas.

    Os elementos constituem uma realidade crível para o espectador. É retirado da personagem seu conceito colorido dos filmes anteriores, compondo um ambiente sombrio e real. Por conseguinte, estabelece-se com eficiência a composição de Christian Bale entre Bruce Wayne e Batman. Dando vazão e justificativa a um homem que a noite vira um símbolo.