Tag: Hans Zimmer

  • Crítica | Duna

    Crítica | Duna

    Minhas expectativas para Duna estavam em xeque, não li a série de livros do Frank Herbert, tampouco sou um admirador da adaptação cinematográfica de 1984. Não tenho qualquer valor afetivo pelo material, aliás, não tinha, pois o novo longa de Denis Villeneuve me deixou esfaimado por mais. Isso seria bom se o próximo filme já estivesse confirmado, mas é uma estratégia arriscada quando a progressão da história depende de seu sucesso financeiro. Duna (que começa com o subtítulo parte um) é maravilhoso, mas perde o sentido se não tivermos direito a uma continuação.

    Não vejo problema em dividir uma obra em duas ou três partes, mas é preciso uma cautela narrativa em relação à codependência das histórias, pois cada filme precisa funcionar individualmente. Peguemos como exemplo o final de Kill Bill: Volume 1. Todos sabemos que a jornada da personagem de Uma Thurman não acabou, ela quer matar Bill, e precisaremos de mais um filme para isso. Funciona porque a épica batalha contra os crazy 88, e o confronto com O-Ren Isshii dão ao espectador algum senso de desfecho, pelo menos a nível estrutural. A história vai continuar, mas o filme tem um ato final, e isso não acontece com Duna, que abruptamente acaba.

    Nosso protagonista é um jovem duque que vem lidando com sonhos premonitórios, super poderes de persuasão, e que pode ou não ser “o escolhido” de acordo a uma profecia. Ele acompanha seu pai até ao planeta Arrakis (Duna), que possui a cobiçada substância “spice” (funciona basicamente como magia), além de minhocas gigantes e areia. O que segue é um drama político sci-fi grandioso que me fez coçar a cabeça lá e cá. Muitos conceitos são tangencialmente abordados, gestos ou menções que presumem um conhecimento que pode desorientar a quem está explorando esse universo pela primeira vez. Da iconografia meticulosamente criada, às diretrizes culturais do figurino, à fantástica e plausível mitologia, há tanto para explorar aqui que me senti um pouco extraviado, mas não a ponto de perder o foco do conflito central que, como sempre, é motivado pela fortuna (invasão de um planeta para extração um recurso precioso, yada yada yada…).

    Villeneuve não gosta de economizar planos, é um diretor paciente, que exige o mesmo do seu público, e o recompensa com incansáveis ostentações composicionais. É como se ele competisse com ele mesmo a cada corte pelo melhor ângulo, pelo enquadramento perfeito, pela simetria sublime, e ele costuma vencer. Pra melhorar, ele tem Hans Zimmer fazendo a música, que cria um climão de guerra com a percussão (a cinematografia ajuda a compor essa atmosfera, e notam-se as homenagens a clássicos como Apocalypse Now e Lawrence da Arábia). Há uma ou outra batida onde a melodia quis me levar na marra, mas é uma trilha lamuriosa e ao mesmo tempo berrante. A gaita de fole não rolou pra mim, mas lembrei de Coração Valente, então ficou tudo bem.

    Tudo é desbundante em Duna, mesmo sendo todo cinza ou bege. Tecnicamente o filme é perfeito, mas a eutimia narrativa do diretor continua sendo um gosto adquirido. Se Blade Runner 2049 te pôs pra dormir, aqui provavelmente não será diferente. E não é um estilo que favorece as sequências de ação, que apesar de muito vistosas, precisavam de uma energia que quebrasse a melancolia subjacente. As minhoconas, por exemplo, prometem mais do que cumprem.

    Os efeitos visuais são perfeitamente integrados aos práticos, a criação de mundo é um barato (adorei os helicópteros insectóides), e eu preciso enaltecer o simples e eficiente uso do escudo com o contraste azul x vermelho, e como é satisfatório vê-lo no lugar daquela aberração de 84.

    Timothée Chalamet tem carisma de sobra. Ele se porta exatamente como um duque em construção, deixando transparecer a insegurança de quem carrega uma série de incertezas. E o diretor sabe que ele é um fofo, abusando dos close-ups do nosso herói contemplando sobre a vida com seu cabelo formidável. Rebecca Ferguson tem uma intensidade fortíssima nos olhos, o elemento de sua angústia materna é responsável pelas cenas mais emocionalmente carregadas do filme. A comunicação dela com o filho é bem trabalhada, e as camadas da dinâmica desse relacionamento estão apenas começando a cair. Oscar Isaac não atrapalha, mas não parece completamente confortável com o personagem. Ainda assim, uma de suas cenas certamente será lembrada. Jason Momoa tem uma das piadas do filme, é engraçadinha. Ele traz uma energia necessária ao ritmo remansoso, e sua ausência é frequentemente sentida. A outra piada é do Javier Bardem, ele não tem muito mais pra fazer, mas a cena é, de novo, engraçadinha. Há uma baixa dose de humor aqui, suficiente para pequenas descontrações sem afetar o tom austero predominante. A personagem de Sharon Duncan-Brewster é subdesenvolvida, Josh Brolin funciona (seus diálogos não ajudam), e Dave Bautista não. Ele não parece ter um lugar nesse universo, é apenas um bruto que é grandão porque sim, e a cena em que ele precisa demonstrar indignação é difícil de assistir. Stellan Skarsgård faz um vilão excepcionalmente grotesco e genuinamente ameaçador. Quero distância total desse cara, eca! Zendaya está no filme para soltar um trocadilho bem bolado e estimular o público com a possibilidade de mais tempo com sua presença celeste no filme seguinte.

    Duna pode parecer derivado, mas é justamente o contrário. O material fonte é tão influente que se tornou vítima das futuras criações que inspirou. Quando vi o elemento da Voz, lembrei imediatamente de Obi-Wan Kenobi usando a Força em 77, e não me pareceu justo. Mad Max, Alien, Blade Runner… muitos clássicos beberam alguma dose dessa fonte, preciso criar vergonha na cara e ler o primeiro livro.

    Nota: 8.9

  • Crítica | 007: Sem Tempo para Morrer

    Crítica | 007: Sem Tempo para Morrer

    Após um grande início adaptando uma obra de Ian Fleming com Cassino Royale; uma sequência sem roteiro devido às greves de roteiristas em Quantum of Solace; uma queda e ascensão dividida entre tradição e o moderno de Operação Skyfall e a retomada da estrutura clássica em 007 Contra Spectre, o longevo personagem James Bond, personificado pela quinta e última vez por Daniel Craig, tem sua missão derradeira em 007: Sem Tempo Para Morrer.

    Finalizando a passagem do britânico pelo personagem, a produção do vigésimo quinto filme de James Bond foi carregada com uma maior expectativa do que suas predecessoras. O último filme com Craig, marco numérico sempre destacado pela mídia, foi marcado por entraves internos e externos à sua produção.

    A princípio, Danny Boyle foi escalado como diretor, mas se justificando com o batido “divergências criativas” abandonou a produção e, em seu lugar, Cary Joji Fukunaga assumiu a cadeira, tornando-se o primeiro americano a dirigir uma produção Bond. Com a mudança, o início das filmagens foi reagendado para abril de 2019 e a estreia programada para abril de 2020. Naturalmente, a necessidade do distanciamento social deixou o lançamento em espera até setembro desse ano quando grande parte do mundo possui uma estrutura mínima para, munidos de vacinas e máscaras, estar no conforto do cinema sem correr risco de vida. O risco, aliás, fica por conta do próprio personagem central.

    O início da nova trama se situa após os acontecimentos de Spectre e resume os elementos que definiram o novo Bond. Aposentado em um lugar idílico, ao lado de Madeleine Swann (Léa Seydoux), dá vazão aos laços sentimentais até o inevitável momento em que o passado retorna, explosivo. A grande cena de ação inicial é intensa, extremamente física, bem equilibrada entre a coreografia e um realismo possível, mantendo vigente a estética fundamentada por A Identidade Bourne e reverenciada pela versão de Craig. A cena intensa demonstra algo que o público da primeira temporada de True Detective já sabe: Fukunaga constrói cenas de ação com habilidade. A cena inicial injeta adrenalina antes da canção que abre o longa, No Time To Die de Billie Eilish.

    Após os créditos de abertura, a trama salta cinco anos no futuro. Como desenhado desde a produção anterior, é a tradição que rege essa aventura final. Se no enredo anterior se descobre que as intrigas foram orquestradas pelo SPECTRE, aqui outro elemento tão poderoso quanto surge em cena, contrabalanceando as forças, mas com objetivos semelhantes: a vingança e a destruição mundial, características comuns da maioria dos vilões megalomaníacos da franquia.

    Se em composições anteriores Bond pareceu um homem sem amarras, o personagem da geração 2000, composto de forma seriada em cinco produções, é formado com maior coesão cronológica e emocional. As perdas são lembradas com sentimento e dor e trazem a evidente constatação de que é necessário desapegar do passado para seguir, embora o passado profissional e as missões anteriores nunca fiquem, de fato, no passado. Entre o equilíbrio pessoal e emocional, e a frieza das missões cumpridas se destaque um personagem central que além da camada de espionagem, dos carros luxuosos, do esnobismo britânico e do diálogo feito de punhos, uma mensagem boba e simples de que os brutos também amam, sim.

    Em entrevista a GQ em 2020, o ator afirmou que elevou o nível do personagem para outros. Sem dúvida, o sucesso da franquia se deve a sua capacidade de manter suas estruturas básicas, mas, na medida do possível, se adaptar a novos formatos narrativos. Sob esse aspecto, talvez a era Craig tenha sido a modificação mais inventiva de Bond. Trouxe não apenas novas camadas trágicas aos personagens como também a possibilidade de quebrar a forma física do agente, pois, lembrem-se, o ator foi criticado no início por seu físico e por ser loiro demais. Foram modificações como essas que permitiram que Lashana Lynch surgisse em cena como a primeira 007.

    Sem Tempo Para Morrer é um falso título porque em um filme cuja missão é ser um desfecho a uma versão de Bond, tudo é uma celebração final. Em tudo há certo tom de morte e despedida como amigos que se desencontram, arqui-inimigos que se vão e, querendo ou não, não há nada de novo nessa narrativa. Mas, sim, uma conclusão natural de uma história iniciada em 2005 e que encerra seus enredos e o legado de Craig no papel.

    O ator e sua modéstia têm razão. O marco deixado em sua passagem será um desafio à execução do próximo Bond. Mas também abriu espaço para que novas facetas sejam exploradas, sem medo de reinvenções e sem o excesso de amarras da tradição. Como um personagem com maior aptidão para se reinventar, os produtores Michael G. Wilson e Barbara Broccoli devem ter algumas cartas na manga para o futuro dessa nova Bond.

  • Crítica | Blade Runner 2049

    Crítica | Blade Runner 2049

    Havia muita expectativa em relação a Blade Runner 2049, fosse pelo óbvio fato de Blade Runner – O Caçador de Androides ser um clássico absoluto, injustiçado pelos produtores da Warner Bros à época, ou pelo fato da de Dennis Villeneuve,  uma promessa de grande cineasta desde o começo de sua carreira, assumir a direção. A realidade é que a continuação, lançada 35 anos após o primeiro filme, tenta expandir o conceito pensado por Hampton Fancher e David Webb Peoples, roteiristas do original, utilizando com maior vigor os temas de Phillip K. Dick.

    A história é contada através do olhar do caçador KD6.3-7, ou simplesmente K, vivido por Ryan Gosling. Desde o começo a trama informa que se trata de um replicante mais avançado que os modelos Nexus, da Tyrell Corporation. Uma das criações de Wallace (Jared Leto), um novo eugenista que se valeu dos espólios de seu antecessor para, basicamente, criar outros replicantes, supostamente menos agressivos e predatórios que os anteriores. Parte da base narrativa passa também por Luv (Sylvia Hoeks), um dos modelos mais avançados dessa era.

    K vive sozinho, com uma inteligência artificial holográfica, interpretada por Ana de Armas. O conceito por trás dessa tecnologia e identidade serve para contrapor a coisificação ocorrida com Rachel no primeiro Blade Runner, elevando a discussão para um tema mais progressista, quase significando um pedido de desculpas pela atitude de Deckard (Harrison Ford) ao forçar a replicante a dormir com ele. É a partir das discussões com a holografia que K passa a sonhar com upgrades em seu destino, com sonhos envaidecidos, que poem em cheque a questão desses modelos terem alma ou não.

    A direção de arte tem atenção as referências do primeiro filme, relembrando até mesmo o terrível spin off  Soldado do Futuro em alguns momentos. A tecnologia retro e suja insere a sequência na mesma tônica do primeiro filme, sem exagero e nem fan service. Parte da construção primorosa desse retorno ao universo de Dick é culpa de Roger Deakins, que retorna ao trabalho com Villeneuve para apresentar enquadramentos grandiosos, valorizando a utilização de efeitos práticos. Tudo no cenário tem textura e realismo impressionante.

    Em tempos de Atômica e John Wick, é natural que haja uma cobrança por lutas mais realistas. Não é o caso em 2049, já que os personagens são super humano. Assim, os embates físicos são organizados com golpes secos e certeiros, fato que valoriza também o roteiro e as cenas. A trilha de Benjamin Wallfisch e Hans Zimmer segue a mesma linha de Vangelis, ainda que nos momentos em que a música interfere na trama não sejam tão brilhantes.

    A persona de K lembra muito mais o Deckard de Androides Sonham com Ovelhas Eletrônicas do que o Deckard de Ford no filme de 1982, em especial por ele não ter a dúvida sobre sua identidade genética. Todos os anseios do personagem são próximos de suas posses eletrônicas, seja na relação que tem com a inteligência artificial Joi, como também na necessidade de fazer upgrades no sistema. A fé que o personagem põe no discurso programado da inteligência, nos faz lembrar também a crença do Deckard original de que sua vida melhoraria graças ao animal artificial que compraria, uma vez que a evolução tecnológica é um dos principais motes do livro de Dick.

    O roteiro de Fancher e Michael Green levanta questões filosóficas diferentes do original, em especial no embate entre o legado de Tyrell e a vaidade humana como ponto primordial da vida, mesmo que a inorgânica. O desfecho de K e Deckard gera  discussões válidas, que levam em conta o preço da liberdade e o esforço para travar uma guerra por ela. De certa forma, o filme remonta a discussão ocorrida em um episódio de Jornada nas Estrelas: a Nova Geração, a respeito da individualidade do androide positrônico Data, analisando suas liberdades e escolhas. Caso haja de fato a exploração do cliffhanger de Blade Runner 2049 com continuações vindouras, há um valido argumento para uma sequência. Porém, há chances delas falharem como o péssimo Matrix Revolutions. Como obra fechada, o filme segue de maneira criativa e inspirada, unindo-se com qualidade aos pontos inteligentes do clássico.

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  • Crítica | Dunkirk

    Crítica | Dunkirk

    O cinema se compõe a partir da junção de imagem e som, e uma das máximas dessa arte é a velha alcunha de que é melhor mostrar do que falar. A filmografia de Christopher Nolan é conhecida especialmente por suas atmosferas grandiosas; seus cenários grandiloquentes; seu caráter autoral; e em alguns filmes, pelos diálogos expositivos. Após críticas negativas ao seu último trabalho Interestelar – especialmente no que diz respeito as explicações excedentes – Dunkirk prometia ser diferente, mesmo porque esse seria um filme que fugiria muito do texto e dependeria mais da imagem.

    A resposta para indagação do público se seria esse realmente um produto com poucos diálogos é cumprida à risca. O roteiro conta como foi a retirada estratégica dos britânicos, da fracassada empreitada conhecida como A Batalha de Dunquerque. Até por ser uma história muito cara ao povo inglês, Nolan tinha uma preocupação em universalizar os dramas ali passados, para que o espectador pudesse sentir o que sentiram os alistados que estavam ao lado dos aliados na Segunda Guerra Mundial. A opção do diretor foi de apelar para o sensorial, abusando do trabalho de som, que serve de atalho para quase todos os temores, medos e sensações daqueles que sofrem com a guerra.

    Hans Zimmer já é um colaborador contumaz de Nolan, e nesse trabalho seus esforços se provam ainda mais valorosos. Mesmo quando o texto corre o risco de soar piegas, é a música de Zimmer que ajuda a tirar o produto final dessa pecha. Ainda assim, por mais que em alguns momentos haja um certo exagero patriótico, o longa não soa ofensivo as plateias não-inglesas, ao contrário, já que o argumento dribla o ufanismo exacerbado, indo na contramão do cinema de guerra norte-americano.

    Há alguns problemas com as identificações dos personagens, uma vez que a maior parte do elenco é composta por atores jovens e desconhecidos. Apesar das enormes semelhanças físicas entre esses, tal situação faz valer ainda mais a sensação de empatia, já que a maior parte dos rostos famosos – Mark Rylance, Cillian Murphy, Keneth Branagh e Tom Hardy – não estão exatamente no front, portanto, qualquer um ali pode morrer. Os sons estrondosos das bombas e os estragos feitos em meio aos que compõe as barricadas são de uma precisão sonora e visual impressionante, algumas vezes compondo cenas belíssimas, semelhantes à telas de aquarela, em outras retratando o puro horror do conflito, sem necessitar mostrar qualquer tipo de dilaceração ou gore, como havia ocorrido por exemplo com o recente Até o Ultimo Homem, soando tão ou mais grave que esse mesmo sem utilizar os mesmos recursos.

    Dunkirk é um filme de guerra, mas não há enfoque sobre o conflito. Mesmo os soldados que tem armas em punho estão lá para sofrer. Nesse ponto, ele é o perfeito filme do meio, servindo a si à perfeição de filme anti-guerra. Certamente eram exageradas (e pretensiosas) as comparações de Interestelar a 2001: Uma Odisseia no Espaço, mas certamente o caráter deste se assemelha muito a outra obra kubrickiana menos valorizada do que deveria, que é Glória Feita de Sangue, embora métrica, atmosfera e trabalho técnico sejam inteiramente diferentes, ambos falam de fracassos militares e de desperdícios de vida, no meio de um conflito bélico. A mensagem é passada de forma certeira, sem precisar lançar mão de artifícios expositivos, soando até poético em alguns momentos.

    https://www.youtube.com/watch?v=b7v_6hIa5Ok

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  • Crítica | Estrelas Além do Tempo

    Crítica | Estrelas Além do Tempo

    Existe uma propriedade que é muito interessante sobre todas as artes, traçando aqui um paralelo com a matemática e com as ciências, é que tem coisas que só uma ou duas pessoas no mundo são capazes de fazer. Simples assim. É questão de que as vezes só existe uma pessoa mesmo para realizar aquela obra. Porém se essas pessoas forem impedidas de realizar suas obras, o mundo como um todo se ficará mais pobre, e este é o caso de diversas mulheres e pessoas negras ao longo da história, que infelizmente foram sistematicamente apagadas e impedidas de nossa devida admiração.

    George Boole desenvolveu a álgebra booleana, uma álgebra utilizada para que computadores tomem decisões com um insight vindo de jogos que permeavam a cultura de diversos povos, em diversos países africanos, baseados em bits, tal qual o jogo de Búzios.

    Nos anos de alfabetização matemática meninas têm um desempenho superior ao dos meninos. Em país menos desiguais, é comum mulheres serem melhores em matemática, porém têm mais dificuldade de se afirmarem como inteligentes do que meninos. Apesar disso supõem-se que meninas não sejam tão boas em ciência e matemática. Apesar de o primeiro Computador, ENIAC, ter sido programado por um grupo de 80 mulheres, que em pouco ou nada foram reconhecidas. A atriz e inventora Hedy Lamarr foi responsável por inventar um sistema de comunicações para as Forças Armadas Americana, e que hoje chamamos basicamente de Wi-fi.

    Sendo assim, é notável que se possa observar a história de Katherine Johnson (Taraji P. Henson), Dorothy Vaughan (Octavia Spencer) e Mary Jackson (Janelle Monáe), um trio de mulheres afro-americanas, e o grupo de matemáticas calculistas do qual faziam parte no programa espacial da NASA, e que foram obrigadas a batalhar mais do que quaisquer outras pessoas na Agência Espacial para simplesmente terem a chance de se mostrarem capazes. Em determinado momento, ao se demonstrar descontente por ter sido interditada para o programa de engenheiros da NASA, que tão pouco aceitava mulheres, por conta de uma regra recente que exigia curso de pós graduação na Universidade da Virgínia, uma universidade que só aceitava brancos, ouve-se da supervisora interpretada por Kirsten Dunst, “Não posso abrir uma exceção para você, aqui ninguém tem privilégios”. A fala, tão comum na internet ganha aqui o lustro hollywoodiano e sua dramaticidade, o que pode afetar mais do que a realidade tão crua do dia a dia.

    O filme, porém, conta com uma estrutura bastante convencional, apoiando-se no fato de que só alguém sem coração se indisporia a torcer pela vitórias do trio, o filme estabelece que elas já estavam prontas, e pouco de suas personagens é desenvolvida, com exceção da personagem de Spencer, que passa por um arco de superação onde é obrigada a jogar com o sistema, tornando-se necessária e desenvolvendo um bonito conceito de sororidade. Tudo isso a partir de sua raiva e frustração acumuladas. As demais personagens têm momentos puntuais de discurso e desenvolvimento apenas, discursos esses que emocionam verdadeiramente, mas que acabam ficando dispersos por serem discursos usados como ferramenta para desenvolver outros personagens, em específico os personagens brancos e seus arcos de superação do racismo e machismos de suas estruturas pessoais e organizacionais. O que se vê é uma relação dissonante que gera uma dúvida problemática sobre o que estamos vendo, se é um símbolo de que o grau máximo de superação das pessoas de cor era a aprovação dos superiores brancos (Retratados aqui pelo figurino como variações de uma mesma coisa, com todos vestidos praticamente iguais, em oposição ao colorido das roupas das chamadas mulheres de cor), ou se esses superiores brancos na verdade encontraram em si pessoas melhores por conta do exemplo a que foram, pela primeira vez, expostos.

    Apesar da história ser imediatamente empática, o diretor Theodore Melfi faz uso de cenas um tanto mais melodramáticas, especialmente as que ocorrem no delivery de provocações de Katherine Johnson com o chefe de operações, interpretado de forma solene e caipira por Kevin Costner, que apesar de displicente com o bem estar das pessoas que o cerca, se mostra sempre justo e generoso, tomando atitudes bonitas e emblemáticas para tentar apagar as marcas que as estruturas “não preparadas para mulheres e pessoas de cor” faziam sobre a NASA. Porém a repetição dessas cenas faz com que percam sua força no resultado final. A trilha sonora composta pela parceria Hans Zimmer e Pharrell Williams não cumpre o que promete, sendo esquecida tão logo acendem-se as luzes.

    E assim é Estrelas Além do Tempo. Um filme necessário, porém burocrático e sem criatividade, sendo uma peça tecnicamente inferior entre seus concorrentes ao Oscar deste ano, que seguem a sombra do brilhante e grande merecedor Moonlight: Sob a Luz do Luar, mas que conta com um elenco bastante competente para mostrar ao mundo o por quê se vê tão poucas mulheres geniais, e tão poucas mulheres negras geniais em nossa memória: Por que elas foram sistematicamente escondidas em porões, tiveram suas contribuições apagadas por protocolos constrangedoramente preconceituosos, obrigadas tomar café e água em jarras que ninguém queria tocar, e por que foram obrigadas a ocultar sua inteligência para evitar serem assim atacadas.

    Texto de autoria de Marcos Paulo Oliveira.

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  • Crítica | Gladiador

    Crítica | Gladiador

    O aclamado filme de Ridley Scott inicia-se introduzindo o espectador no contexto tirânico do Império Romano, com o avanço tático a Germânia sendo impetrado. As mãos do personagem principal, passando sobre a mata alta de sua plantação, remetem ao real desejo de seu coração de habitar as próprias terras em paz; distante do estado caótico que a guerra se impõe, onde a ocupação do estrangeiro ultrapassa os limites do aceitável, passando a ser uma obrigação erguida pelos superiores e passada ao exército por convenção, sem muita discussão dos porquês.

    O discurso inflamado – O que fazemos em vida ecoa pela eternidade – não consegue esconder um descontentamento de Maximus (Russell Crowe), ainda sem o modus operandi do imperialismo, mas já portando um inexorável enfado em seu semblante. Analisando a jornada do herói de Joseph Campbell, o chefe do exército não seria o herói clássico, tampouco anti-herói, mas o arquétipo do herói falido, depressivo, que, apesar da adversidade e das belas cenas de combate introdutórias, guarda um ressentimento e azedume pelas ações que é levado a concluir. Quando ele hesita em matar um adversário, nota-se de maneira concreta sua insatisfação, depois proferida para que não haja dúvidas. Sua posição não é a de discutir métodos ou estratégias: ele é apenas um humilde servo, prostrado ante a vontade de Marcus Aurelius (Richard Harris), que está no final da vida, arrependido de tanto derramamento de sangue e especialmente preocupado com o seu legado, e se seria visto como um tirano de acordo com os olhos da História.

    Qualquer fidelidade e compromisso com a cronologia histórica são varridos para bem longe, assim como foram em Coração Valente. De certa forma, há uma amálgama entre muitos períodos do Estado Romano após a ascensão de Júlio Cesar, ainda que tal influência não tenha sido jamais assumida pelos produtores do filme. Tal característica seria impensável para o nível de acesso a informação atual, passados 14 anos da exibição de Gladiador – ainda que o clima de redenção dos poderosos seja bastante atual nas grandes produções hollywoodianas -, e em se tratando de uma obra de caráter revisionista, de discussão do modo violento e arbitrário que os conquistadores tinham com o território descampado mundial.

    Religião, crenças, sedução e ganância se misturam, tentando atravessar o caminho de Maximus. Focado, o soldado não deseja nada além de sua família, suas terras e sua vida simples no campo. A demora do filme em levá-lo ao lugar desejado é demasiado, fazendo do general mais uma vítima da burocracia e de um legado que não pediu para si.

    A decisão de tornar Maximus o regente da República, retomando o panorama político anterior, é bastante fantasiosa, levando a trama para um lado semelhante ao visto em contos mitológicos, mas exibindo as piores facetas do espírito humano, como o amargor de alma do antigo herdeiro, Commodus (Joaquin Phoenix), que, ao perceber que perderia a sucessão do trono, cometeu o maior dos pecados – o que estava ao seu alcance -, ultrapassando qualquer limite ético e moral.

    Ao se recusar a servir ao nefasto novo senhor, Maximus é condenado à morte. Seguindo finalmente seu senso de justiça, ele tem o revide proporcional à sua boa ação, pondo sua família em risco. Após escapar da pena imposta ao personagem, ele consegue a duras penas retornar ao seu lar para assistir, em meio a lágrimas e salivas, ao extermínio dos seus, na maior mostra de degradação em que ele poderia estar até então. De olhos fechados, carregado à força, o sujeito sofre a morte de sua antiga identidade, renascendo com outra alcunha, outro espírito e função social, ainda mais desimportante do que planejava.

    Como em uma peça teatral, a divisão clara por atos permeia o filme, com uma virada no segundo tomo mostrando o herói falido como escravo, digladiando por sua vida e ganhando um sentido novo para a própria existência, ainda que a glória seja cantada ao nome que lhe deram. O Espanhol logo torna-se o mais carismático e amado guerreiro, exibindo uma tenacidade não antes vista nas arenas romanas, tão corajosa que visa, inclusive, desobedecer uma ordem imperial.

    Diante de seu inimigo mortal, Maximus pensa em dar um fim breve ao opositor, mas se demove da ideia ao vê-lo com a criança que se afeiçoou. Após revelar sua real identidade, consegue ganhar uma pequena fama, a ponto de ter soldados novamente dispostos a levantar sua bandeira, além de ter uma ajuda real por meio da apaixonada Lucila (Connie Nielsen), cujo amor incestuoso de Commodus não é correspondido. As coincidências do roteiro são coladas por uma liga demasiada fraca, conveniente demais aos desejos e desígnios do protagonista.

    Como se esperava, o megalomaníaco plano do gladiador em aplicar um golpe de estado no soberano tem seu destino selado. A grandiosidade e magnificência dos cenários da história e do Ethos de Maximus são elevados a patamares quase infinitos, mas perdem seu peso pela disputa final, disfarçada de embate físico desigual. A justiça dificilmente teria seu lugar no combate entre as contrapartes, entre os dois “filhos” de Marcus Aurelius. O problema é o quão apelativo é o confronto épico, banalizado pela teatralidade excessiva da batalha. O dramalhão enfraquece o plot de Maximus e o retorno da liberdade do povo romano. O sonho torna-se algo de cunho barato, feito para um público idiotizado, acostumado a mensagens felizes, não condiz com a época em que se passava o drama do general/gladiador. O merecido descanso do herói é enfraquecido por mais uma mensagem politicamente correta, mudando rumos históricos e traindo qualquer possibilidade de dignidade. Gladiador é considerado por muitos como um clássico, e até caracteriza-se por um expoente interessante na combalida filmografia de Ridley Scott, mas só garante bons momentos em meio às cenas de batalha, uma vez que seu roteiro só serve para tentar justificar porcamente todos os entraves.

  • Crítica | A Origem

    Crítica | A Origem

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    É fácil olhar hoje para a carreira de Christopher Nolan e ver nele um exemplo de cineasta de grandes feitos e em quem os estúdios confiam, seja pela franquia de super-heróis da Warner que deu certo (vide o insucesso de O Homem de Aço e Lanterna Verde, só para citar os mais recentes), assim como em produções caríssimas, como O Grande Truque. A Origem é um projeto bastante antigo de Christopher Nolan, engavetado na época graças à escassez de efeitos especiais adequados ao roteiro apresentado. Mas também relegado ao limbo por ter em sua concepção um preço absurdamente alto para os padrões de um cineasta iniciante. Foram precisos seis longa-metragens no currículo para confiarem a ele o orçamento estimado em 160 milhões de dólares.

    O visual do filme impressiona, a fotografia, edição, tudo é belíssimo. A escolha por narrar a trajetória de Cobb (Leonardo DiCaprio) por meio de flashbacks é uma opção muito inteligente. A história, contada de forma linear, não teria metade do impacto que teve como produto final. Além disso, a estratégia de usar a máscara de filme de assalto para abordar uma coisa tão complexa como o funcionamento da psiquê e seus segredos dentro do ambiente misterioso do sonho é brilhante, e, aliada à estética noir, fazem da fórmula do filme algo único. O didatismo de Nolan, tão criticado nos filmes do Morcego, é muitíssimo necessário neste evento em particular.

    A cartilha de Joseph Campbell é cumprida à risca: todos os arquétipos são desenhados e representados de forma bastante óbvia. O intuito é de não deixar qualquer dúvida acometer o público, a não ser em relação à realidade tangível. O grave problema de Inception é a motivação dos personagens. Cobb é um herói falido típico, que não consegue ter controle sequer sobre o destino de suas ações. Toda a gigantesca trama, os roubos de informações, os sequestros e outras tantas atitudes fora da lei protagonizadas por ele só acontecem graças à sua reticência. A humanidade não é um problema, mas a contradição de seus atos o são. Para alguém que lidera uma operação tão complexa, é simplesmente inaceitável a sua falta de pulso, mesmo levando-se em conta o seu trauma. Outra questão que influi na percepção do público quanto à atuação do ator principal foi a proximidade entre o lançamento de A Origem e Ilha do Medo, de Scorsese, cujas premissas dos personagens centrais são bastante parecidas.

    O segundo erro capital é a personagem que deveria ser a orelha, a inserção do espectador dentro da experiência como um todo. Ariadne, de mesmo nome da libertadora de Teseu do labirinto do Minotauro, deveria ser uma promissora arquiteta que, ao ser desafiada, mostra-se muito competente no que faz, mas ainda assim é neófita e inexperiente. Uma vez que o papel de Ellen Page sabe perverter as regras do mundo dos sonhos, ela se torna uma deusa, que desliza sem dificuldades pelos segredos da mente e que molda a estrutura das construções compartilhadas entre os aventureiros. Sua evolução é rápida e até admirável, mas passa muito do ponto, pois instantaneamente se torna presunçosa e moralista, pondo o dedo em riste, acusando o seu contratante, como se ela fosse onipotente. Tais pecados podem ser explicados pela inexperiência, mas não são tão bem justificados quanto facilmente poderiam. Mais uma vez a omissão de Cobb é demonstrada, e assim como a vilã, Ariadne se usa disso para se achar maior do que realmente é, ignorando a possibilidade de, uma vez no subconsciente, perder a noção do que é verdade e do que é sonho. Ela carrega tanta arrogância sem causa que não consegue amadurecer ao tomar conhecimento das experiências alheias, algo que claramente faz falta ao perceber que a mente de Fischer era treinada, desmoralizando Cobb por cultivar tais pensamentos.

    A ideia de Nolan é discutir filosoficamente os limites do tecido da realidade. Antes de completar 60 minutos de exibição, um simples funcionário de um “dormitório” indaga Cobb sobre a veracidade da dimensão sonhada e qual destas é a mais verídica de fato. Primeiro ele desmistifica a questão da “elitização da verdade”, pondo um mestiço comumente ignorado e fadado a ser taxado como simplório como o detentor da informação primordial e do questionamento fundamental. Depois ele joga no colo do herói a interpretação do seu maior anseio, fazendo ele confrontar seus próprios demônios. Viver no passado é sedutor, e o avatar curvilíneo e as belas feições de Mal (Marion Cotillard) representam toda essa volúpia de forma ímpar. Cobb deseja tanto sua beleza quanto anseia se encontrar com os seus filhos novamente. Toda a sua reticência é voltada para a dificuldade de escolha da realidade que terá de fazer.

    A escolha de Mallory em ignorar a verdade é parte da utopia do mundo ideal, onde somente ela e seu amado vivem, alienando-se totalmente ao que acontece na vida real. A projeção de um conto de fadas é maximizada e elevada a níveis altíssimos, numa alegoria clara à fuga da inconveniente verdade do fruto proibido. A personagem Mal é como uma louca Eva, que, ao provar da árvore do Bem e do Mal, não consegue mais viver sua antiga rotina. O cotidiano é démodé demais para os seus gostos, e sua tentativa de voltar ao ideal condena o seu amado a uma vida sem realizações que lhe são prazerosas e necessárias.

    A utilização dos elementos externos a quem dorme dentro da camada inferior de sonho é uma ótima forma de representar o nonsense e descompromisso com as regras físicas dentro desta alternativa efetivamente verdadeira. A perseguição frenética e apressada em relação até mesmo ao tempo acrescido se dá graças ao mergulho dentro das camadas de transe. A contradição ajuda a aumentar o suspense da história.

    O limbo que é a prisão de Mallory representa uma amostra decadente de como o mundo idílico era e de como ele se tornou assustador com o decorrer do tempo. O passado é amedrontador e contém muitos dos medos de Cobb. A simples chance de olhar no rosto de suas crianças dentro de sua fantasia causa asco no herói. Sua incessante busca é pelo real: poder tocar seus herdeiros, aqueles a quem ele abandonou, primeiro ao se isolar e depois por motivos de força maior. A ideia, implantada em Mal, de que tudo muda parecia ser a maldição de sua própria vida. Enfrentar a sua própria verdade inconveniente e ter de assumir a sua parcela de culpa o consome e só não dói mais do que a distância de seus filhos, Sam e Phillipa. A dificuldade em liberar sua alma do sentimento de Mal é intenso, e a despedida é emotiva, especialmente para a projeção da mulher. Já Cobb parece, pela primeira vez, seguro de si e do que quer. A questão da dualidade no final é agravada pelos olhares do protagonista e cada um dos seus companheiros de jornada, dos cenários e cenas idênticos aos que se propagam em seu imaginário.

    A Origem é o momento mais autoral de Christopher Nolan, e a prova do quão prolífico é o seu cinema. Uma promessa para filmes ainda melhores do realizador britânico.

    Ouça nosso podcast sobre Christopher Nolan.

  • VortCast 17 | Christopher Nolan

    VortCast 17 | Christopher Nolan

    Bem vindos à bordo. Flávio Vieira (@flaviopvieira), Rafael Moreira (@_rmc), Amilton Brandão (@amiltonsena), Isadora Sinay (@isasinay), Mario Abbade (@fanaticc), Levi Pedroso (@levipedroso) e Carlos Brito se reúnem para comentar a filmografia de um dos grandes diretores da atualidade, Christopher Nolan. (mais…)