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  • Crítica | 8mm: Oito Milímetros

    Crítica | 8mm: Oito Milímetros

     

    8mm: Oito Milímetros, de Joel Schumacher, é produto do seu tempo e gênero, e se valeu de Nicolas Cage atuando como o detetive particular Tom Welles. Sua função primordial é a serviço da viúva de um homem rico que descobriu um filme de 8 milímetros dentro do seu cofre e quer saber se os fatos que aparecem ali são reais ou não.

    A história se passa em Miami com o protagonista no início chegando de avião, à noite. Logo é mostrado que ele é um homem de família, casado com Amy (Catherine Keener). Ele tem problemas bem comuns, tem que ganhar dinheiro o suficiente para sustentar sua família (incluindo sua filha), fuma escondido  de sua cônjuge, ou seja, tem problemas com vícios encarados socialmente como leves e lida com eles de maneira bem comum.

    Tal qual seria em O Custo da Coragem lançado algum tempo depois, em 8mm Schumacher é bem comedido. Traz uma obra que carece de exageros e arroubos visuais, que é bem pontuada inclusive pelo diretor de fotografia Robert Elswit, o contumaz parceiro de Paul Thomas Anderson, que consegue estabelecer bem um clima meio depressivo sobre a vida das pessoas – mesmo em Miami, que é uma cidade normalmente atribuída a farras e comemorações dado o eterno clima de verão e as praias. Além disso, as questões sujas envolvendo o filme encontrado no cofre do Sr.Christian são retratadas de maneira natural, apesar da visceralidade dos atos. Nota-se um incômodo em Welles quando assiste, servindo ele como representante do público (uma vez que aquelas são cenas chocantes), e essa sensação de estranhamento é alastrada ao longo da investigação e do passeio dele às ruas, onde habita a escuridão da pré madrugada, salientando uma obviedade que pode ser ignorada: toda cidade esconde segredos pesados e agressivos.

    O longa apresenta uma história e abordagem bem simples, com elementos típicos de romances detetivescos e suas adaptações para o audiovisual. Há na contratante  Sra. Christian (Myra Carter) uma figura aparentemente livre de suspeitas, uma música incidental que ajuda a aumentar o grau de tensão à medida que as investigações avançam. Também se apelam para cenários onde há destaque para cores de casas e estabelecimentos baseado em tons de cinza, para basicamente evocar que as almas das pessoas da história de Andrew Kevin Walker não são puras, longe disso, dado até sua filmografia que inclui participações nos roteiros de Se7en: Os Sete Crimes Capitais, Clube da Luta e A Lenda do Cavaleiro Sem Cabeça.

    A carreira de Joel Schumacher é bastante prolífica e  dividida por fases que são determinadas por fatores externos e até alheios aos seus filmes. Ele produziu fitas sérias como Um Dia de Fúria, outras mais voltadas para o humor nonsense em A Incrível Mulher que Encolheu, fez um clássico juvenil com Os Garotos Perdidos , até cair para si a responsabilidade de adaptar as historias do homem morcego, em dois filmes que tiveram muitas controvérsias, mas que na época foram exaltados (sobretudo Batman Eternamente). Depois que Christopher Nolan lançou seu Batman Begins e especialmente Batman: O Cavaleiro das Trevas, houve um revisionismo por parte do público na filmografia de Schumacher, que passou tanto pelos filmes do Batman, até as outras obras do diretor, que passaram a ser não só mal avaliadas, mas também mal frequentadas por gente de produção e atores principalmente da segunda metade dos anos 2000 para frente. As oportunidades para o diretor foram rareando, e bons parceiros também, o que é curioso, pois o roteirista responsável por boa parte da fragilidade dos produtos que Schumacher capitaneava ganha cada vez mais poder e influencia na industria. Akiva Goldsman tentou comandar os filmes de monstro da Universal (um fracasso retumbante), hoje escreve e produz a maioria dos produtos televisivos de Star Trek, que também não são unanimidade em crítica. Para o diretor, sobrou o ostracismo.

    Os personagens mostrados no filme são executados por atores que teriam seu apogeu pouco depois do lançamento em 1999, a participação de figuras como James Gandolfini, Joaquin Phoenix e Peter Stormare são bem pontuais, há carisma em cada um deles e é fácil acreditar em seus dramas.

    8mm: Oito Milímetros é um longa que fez muito sucesso durante o início dos anos 2000, mas hoje é bem pouco lembrada (e talvez até subestimada) e o que se vê nela é um mergulho bem fundo na alma da perversidade humana, além de um retrato do submundo BDSM que, apesar de caricato, não era tão agressivo em abordagem quanto tantos outros filmes de sua época. É tolice não se ater a fatos cronológicos, o filme é fruto de seu tempo e como Tempo de Matar tem pontos complicados na abordagem de algumas minorias. Além de não ser feito para todas as plateias, ele esbarra em um certo maniqueísmo (especialmente ao tratar as pessoas que fazem bondage como se fossem criminosas e más). Fora isso, a parte criminal é bem explorada, as atuações por mais canastronas que possam ser em alguns pontos são bem encaixadas e o ritmo do filme é frenético e honesto.

  • Crítica | Coringa

    Crítica | Coringa

    Nos últimos quinze/vinte anos, o cinema blockbuster se rendeu ao sub-gênero dos filmes de super heróis, e isso causou todo tipo de exploração temática. Coube a Todd Phillips apresentar um filme da Warner que buscaria um objetivo bem diferente tanto dos filmes super divertidos e coloridos do MCU – embora esse tenha muitas cores, em uma abordagem completamente avessa a essa – quanto da temática obscura pseudo-adulta das  versões de Zack Snyder. Coringa  é muito baseado em seu interprete, Joaquin Phoenix, que faz o aspirante a comediante Arthur Fleck, um homem de muitos problemas.

    O cenário escolhido é uma Gotham City com greve dos lixeiros, tornando o simples hábito de transitar pela cidade um esforço hercúleo. Nesse  ínterim, Arthur se maquia, forçando um sorriso com suas mãos, enquanto claramente seu semblante é triste. Ao fundo, se ouve o rádio, da onde saem as poucas vozes com quem ele interage, pois até seus companheiros de trabalho o segregam. Do lado de fora, se assiste uma cidade de arquitetura clássica e  colonial, mas ainda largada, desleixada por anos de abandono dos governos municipais.

    O espírito e caráter de Arthur é melancólica e depressiva enormemente, ele é incompreendido, mas não por qualquer frescura de relação que algumas plateias associaram – há inclusive poucos elementos do comportamento Incel, por exemplo, ao ponto de a maioria das associações desse comportamento ao que Fleck faz soarem reducionistas – ele lida com delinquência juvenil, humilhação contínua por desconhecidos e conhecidos, além de sofrer Bullying mesmo com idade  avançada. Seu visual é estranho, assim como a risada forçada que ele dá, fruto de um dos seus problemas neurais. É curioso como o roteiro de Phillips e Scott Silver usa o movimento do riso como catalisador da tristeza e do nervoso.

    É bem complicado de analisar o filme sem revelar partes fundamentais de sua trama, portanto se o leitor se incomoda com spoiler recomenda-se ler o que será falado abaixo após ver o filme.

    As relações íntimas do protagonista são tão conturbadas que fazem até a condição de protagonista ser discutida. A historia é sobre o personagem de Phoenix, mas há tanto espaço para todos os outros personagens que o destaque é bem compartilhado, e sua condição de herói não é aproximada do Anti-Herói, e sim de Herói Falido, como foi Michael Corleone em O Poderoso Chefão. O papel que Frances Conroy faz como uma mãe presente, carinhosa mas extremamente carente explica boa parte da personalidade estranha de Arthur. Os colegas de trabalho também tem bons momentos, embora sejam curtos, mas o desempenho mais impressionante fora do ator principal são de Robert DeNiro, que faz uma espécie de anti Ruper Pupkin de O Rei da Comédia, e Zazie Beetz, que faz uma vizinha de porta do personagem-título, que vive no limbo ambíguo da frágil psique de Fleck. Essas personagens, por menos que sejam ajudam a abrilhantar o que Phoenix constrói durante as pouco mais de duas horas de duração.

    É curioso como as gargalhadas involuntárias de Arthur pontuam não só a sua condição de não caber dentro da sociedade comum, como o estado catastrófico que Gotham e a maioria das cidades grandes tem. O riso incomodo representa bem como é a sensação geral do trabalhador precário em meio as cidades grandes e sujas. O trabalhador é massacrado, a política o reprime e o reduz a apenas um número e ter esse estado normalizado ajuda a causar doenças de alma e mente, ou ao menos serve como gatilho para isso. O corpo magro, machucado e lesionado ajuda claro a demarcar visualmente que ele tem problemas de comportamento e cognição, mas também representam como o homem comum sofre, portanto quando ele finalmente revida a segregação dos playboys inconsequentes, rapidamente o povo o abraça, levando sua causa até as última conseqüências, embora até isso seja discutível quanto a realidade ou não, pois quase todos os momentos do filme primam pelo fantasioso e onírico, e essa ambiguidade faz o filme soar mágico.

    O filme passa pela rotina triste de Arthur, é visceral e repleto de gore, quase como um manual de psicopatia. É curioso como ao mesmo tempo que ele tem dificuldade em fazer rir o público que tem, seus atos violentos tem um humor implícito bem grave, causando vontade de rir de nervoso, tornando o espectador um pouco em seu personagem. A evolução do homem que sente não se encaixar em nada evolui quase naturalmente para o desejo de justiçamento, e é nesse ponto que faz aproximar o Coringa e Batman. Por mais que haja um cunho de Batman: A Piada Mortal no cerne do filme, há também semelhanças com Asilo Arkham de Grant Morrison, embora seja muito menos explicito, e more só nas semelhanças citadas.

    O fato de não ter compromisso com o contrato social torna Arthur perigoso, pois as travas para alguém normal não funcionam consigo. O ritmo do filme beira a perfeição, tanto a construção do personagem quanto quando começa a ação mais gore soam absolutamente fluídas, e é nesse ponto que a aproximação deste Coringa com as fitas antigas de Martin Scorsese tem sentido, pois Bons Companheiros, Cassino e Taxi Driver tem muito desse aspecto, não só temático mas também na forma de abordar. Há também claras referencias ao cinema de Francis Ford Coppolla, especialmente pela romantização do excluído e marginal, mostrando que uma pessoa que “pratica o mal” não necessariamente a faz  por razões maniqueístas, mas sim por desprezo dos que deveriam ser os seus, agravado pelo fato de Arthur, ao contrário dos Corleones os dos soldados de Apocalipse Now morar em questões precárias e nada abastada.

    É incrível como, após Fleck deixar as pílulas de lado, o mundo que antes estava ruindo começa a mudar seu caráter e zonas de conforto, com ele, que sempre viveu no caos, ascendendo aos céus e ribalta que ele sempre busco para si. Neste ponto, temáticas psicanalíticas como Complexo de Édipo são agravados, além da condição de stalker e claro, rejeição paterna e paranoia também são aludidas, e obviamente se mostra uma realidade que pode jamais ter ocorrido. A humanização do “herói” combina com o clima de terror, e até com a anestesia ideológica dele, que assume que não tem crenças, que nada o faz ter fé ou  escolha de pensamento.

    Há dois números  visualmente maravilhosos, próximos do final, onde a sanha psicopata do sujeito rejeitado é finalmente alimentada, e há muita poesia neste ponto, mas nada irresponsável, ou que glorifique comportamento extremo. O tempo inteiro a câmera é solidária a Arthur, mas não iguala esses atos a qualquer moralidade correta, ao contrario. Vitória do Caos ou mais um devaneio.

    O apocalipse de uma cidade suja e corrupta como Gotham é a Gênese, o nascimento do que seria o vigilante Cruzado Encapuzado e a forma como essa cena é conduzida (apesar de muitas vezes repetidas em película, TV e quadrinhos) e torna ainda mais problemática a questão de Batman ser um homem que bate em bandidos geralmente pobres (Os capangas principalmente), uma vez que o movimento popular evocado em Coringa faz pensar como o povo poderia  tomar para si as rédeas de seu destino, com instauração do caos em um paralelo com a Revolução Francesa obviamente com uma motivação não presas a teorias, mas ainda assim consciente politicamente, independente do catalisador dela ter sido um sujeito sem posicionamento político definido. O céu é uma percepção bem particular segundo a ideia do filme, assim como a percepção do inferno, e Gotham reúne os dois arquétipos num espaço bem pequeno de espaço, em uma abordagem em áudio visual praticamente inédita, muito rica, violenta, condizente com as origens de Bob Kane, Bill Finger e Jerry Robinson mas também carregando uma carga dramática que se assemelha demais ao cinema europeu disruptivo dos movimentos da Novelle Vague e  Surrealismo Alemão e Italiano.

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  • Crítica | A Pé Ele Não Vai Longe

    Crítica | A Pé Ele Não Vai Longe

    É curioso como o cineasta francês Gus Van Sant, indicado ao Oscar em 2009 por Milk: A Voz da Igualdade, é curioso como ele tem um projeto de cinema que consegue se sustentar em torno da pura abstração de significados. Enquanto que Wim Wenders, o grande cineasta alemão de Paris/Texas, extrai o sentido do abstrato, do nada, e dá novas possibilidades para que o vazio e o silêncio revelem o que eles escondem, Sant faz exatamente o contrário. O cara reforça o vazio com mais vazio, emudece ainda mais o silêncio, em histórias que, mesmo tão humanas, parecem distantes e com uma comunicação mínima com o espectador que não se sente animado, o bastante, para investir sua atenção a elas.

    Talvez o exemplo mais gritante e bem-sucedido disso, em sua filmografia, seja Gerry, de 2002. Drama bastante desconhecido, e que merece muito mais atenção, justamente pelo interessante exercício narrativo a essa abstração generalizada em torno da história de dois amigos, ambos chamados Gerry, perdidos num deserto do Novo México, em meio a um cenário sufocante, árido e infinito. Mas é claro que, implícito a isso, está a sutil crise existencial presente em todos, repito, todos os filmes do diretor de Elefante, o polêmico vencedor de Cannes em 2003, um conceito pertinente a Gus Van Sant e que é bem trabalhado, em tom jocoso e metafórico, neste bom A Pé Ele Não Vai Longe, o simpático filme de 2018.

    Simpático pode ser sua principal qualidade, já que aqui, pela primeira vez na carreira, Sant escolheu o projeto perfeito para entreter seu espectador, acima de tudo, com a história mais agradável, sorridente e esperançosa possível. A principal importância do filme está na adoração, em todos os sentidos, do capital humano e dos sentimentos de pessoas comuns em situações de conflito pessoal, e coletivo. Após um fatídico acidente de carro, o músico John Callaham, agora de carreira de rodas, precisa se superar. Sozinho não dá, e então, decide entrar para um clube onde a superação é o objetivo a ser alcançado, em várias áreas fraturadas da vida de um ser humano. Tal em A Teoria de Tudo, a questão aqui é simples como uma teoria quântica para muitos: como seguir em frente, após encarar a sua própria morte?

    Nesse clube, Callaham ganha o ar fresco e as inspirações que precisava para descobrir um novo Eldorado que todos nós devemos ter para acordar, sair da cama e andar por ai – no caso dele, desenhos, e um mais divertido que o outro. Lá, ao se deparar com outros dramas e problemas reais, percebemos também como é fácil superestimar nosso sofrimento acima do de outras pessoas, e o peso desse equívoco na nossa consciência. Com o espírito de Callaham sendo cicatrizado muito além do seu corpo semi paralítico, sua produção gráfica passa a ser o principal motivo para que sua alma artística possa respirar, novamente, com novos amigos e novas esperanças fazendo-o sorrir, nessa que parece ser uma nova vida para ele – talvez até com um novo amor a caminho, ou isso seria pedir demais do destino traiçoeiro?

    Baseado na própria história de Callaham (e muitas vezes ilustrada na tela pelos próprios desenhos do artista, que aparecem entre uma cena e outra dando o tom das cenas mais irreverentes do filme), A Pé Ele Não Vai Longe é inesperadamente espirituoso, e cômico, em muitos momentos que poderiam ser dramaticamente pesados, em especial para Gus Van Sant, acostumado a se aprofundar quase que sem limites na problemática dos seus personagens. A crise de Callaham é como uma noite, densa por natureza, mas iluminada pela lua e as estrelas que funcionam como uma luz, no fim do túnel. Alcoólatra, calado, carente e dependente da ajuda dos outros para um simples banho, o corpo se reconstitui a partir e só a partir do próximo, uma vez que somos animais sociais sem um pingo de autonomia desde o nosso nascimento.

    Joaquin Phoenix é um monstro vivo, um dos melhores camaleões de Hollywood, e é ele o responsável pelo naturalismo de seu personagem transitando entre duas vidas diferentes: a desregrada e inconsequente do começo, e a pós-acidente que produz um Callaham 100% ciente dos seus limites, e do valor de uma amizade verdadeira. Phoenix na verdade se sobrepõe, então, a narrativa não-linear que vai e volta nos detalhes mais sutis da vida do artista, e constrói um retrato sensível e emocionante da trajetória tortuosa de um homem amadurecido e reconfigurado pelo destino – a atuação física do ator é apenas uma consequência disso, num trabalho impecável e que poderia ter sido mais celebrado pela temporada de prêmio em 2018, se houvesse justiça nesse mundo.

    Como se não bastasse, o longa ainda tem coragem de zoar Bob Dylan, nos emocionar pra valer com Jonah Hill (sim, o gordinho de Superbad), apresentar um sexo oral hospitalar melhor que muita coisa por ai, e promover o ato nobre de reconstruir um homem a partir do que poderia ter sido seu funeral, no meio de uma estrada noturna suja de sangue, cacos de vidro e um corpo paralítico atirado no chão. Como levantá-lo e fazê-lo ir mais longe, a ponto de brincar com skatistas adolescentes em uma rua ensolarada, é a questão aqui. Um belo filme.

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  • Crítica | Você Nunca Esteve Realmente Aqui

    Crítica | Você Nunca Esteve Realmente Aqui

    Precisamos falar sobre influências, e o quanto filmes como Drive moldam uma década no Cinema – sem força, a princípio, para ir além de um espaço decenário desses. A estilização da violência urbana que Nicolas Winding Refn emprega em seus filmes-artifício foi bonita e divertida demais em 2011 para ser despercebida e desperdiçada pela indústria sedenta por qualquer (qualquer) sinal de ponto de vista minimamente diferente. Qualquer naturalismo por um momento pareceu superado por uma linguagem de videoclipe hipnótica, feita para vender trailers e para os GIFs da internet. Sete anos depois, sobrou só seus admiradores, adoradores de um cineasta que estiliza a base de neon e sangue um nada existencial de proporções abissais, uma vez que Refn é atirador de um tiro só, feito a roteirista Diablo Cody e seu Juno, no “distante” 2007.

    Dez anos depois, Lynne Ramsay, a diretora que narrou a psicologia da psicopatia juvenil em Precisamos Falar Sobre Kevin, filme hoje cultuado e desprezado anos atrás nas premiações volta para falar sobre a violência que habita o oculto das cidades e seus habitantes. Não por trás dos olhos de um garoto bem criado que resolve entrar numa escola com uma metralhadora, e sem apostar numa estilização recompensadora e fácil, mas pelos passos de Joe, um homem simples que mora com a mãe – um ótimo filho e que quando não a está ajudando a tomar banho e se deitar, ganha a vida sendo contratado para salvar garotas presas em cativeiros imundos, escravas sexuais que tem seu calvário terminado pelas mãos de Joe; um fantasma, uma sombra que, nessa altura do campeonato, precisa manter sua existência em segredo para proteger o seu único elo emocional, sempre de camisolas.

    Você Nunca Esteve Realmente Aqui pegou de assalto o festival de Cannes com duas coisas: primeiro pela força da história e os rumos que o roteiro de Ramsay toma a partir de sua segunda metade, achando na violência que baseia e começa a exalar dos caminhos de Joe um ninho perfeito para observar, e propor reflexão acerca da influência de um homem na vida de pessoas totalmente alheias a ele que, devido suas condições de abuso, jamais o agradecem por sua salvação tão inglória. E segundo por Joaquin Phoenix, o que mais seria? Aqui, e sempre imerso nos seus papéis, o ator encarna um anti-herói de aluguel da forma visceral de sempre, sem medo de cogitar chegar nos limites de uma atuação, o famoso overacting, em cenas pesadíssimas por vezes embaladas por uma bela trilha-sonora que desafiam tanto os nervos do ator, quanto os do seu espectador.

    Nunca acreditamos na salvação de Joe pois o passado o condena sem piedade, traumatizando-o e corroendo sua sanidade mental num nível absurdo de auto flagelação, sendo que as vezes nem é possível cobrá-lo, ou exterminá-lo – lembremos aqui da cena do quarto, quando o choro do justiceiro é enorme e ecoa em suas paredes. Temos aqui, portanto, um estudo de personagem intenso e dos mais resumidos acerca de seu potencial, ainda que de boa forma, sendo objetivo até não poder mais. Tudo o que importa, mirando alguma posteridade aqui, é que Hollywood finalmente está percebendo o vasto potencial de Phoenix em papéis mais dark, tal esse caçador de recompensas bem ao estilo Travis Bickle, de Taxi Driver. Um dos melhores momentos do ator; é dele o filme.

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  • Crítica | Maria Madalena

    Crítica | Maria Madalena

    O universo semântico da religião cristã é extremamente enriquecido por simbolismos, e praticamente insondável em suas diversas significações latentes. No campo do cinema, fica difícil lembrar de um cineasta que melhor trabalhou elementos religiosos que o dinamarquês Carl T. Dreyer em seus filmes colossais como em Dias de Ira, ou no seminal A Palavra. Nos títulos aqui lembrados, ou ainda no brasileiro O Pagador de Promessas, o peso e o valor de uma religiosidade onipresente atuando sobre o que é humano chega a ser plenamente inseparável da própria dimensão atmosférica, tanto realista quanto lúdica que esses grandes filmes do passado carregam, e por conta disso, continuam influenciando e insuflando trabalhos de arte contemporâneos na exploração pelo sagrado, nas suas mais variadas interpretações, ao longo de séculos de releituras criativas bem-sucedidas, ou não.

    Dito isso, é possível notar uma digressão e um certo abuso dessa mitologia nesse Maria Madalena, de Garth Davis, diretor do super estimado Lion: Uma Jornada para Casa. Para David, a religião é um desafio constantemente posto à prova, quase um sacrifício dos homens para com um sentido maior, o que rivaliza com a imagem histórica da mulher homônima, vulgo prostituta como passou a ser mais reconhecida que cruzou o caminho do próprio Cristo, em tempos de conflito para ambos. O filme de 2018 trata de sondar a vida pré-envolvimento da mulher com a figura superior cujo contato a transformou num dos ícones femininos mais ligado ao filho de Deus. Pela primeira vez no Cinema, Madalena passa de coadjuvante da história mais famosa de todos os tempos, para a protagonista dos seus desafios pessoais, seu próprio drama e do seu próprio ponto de vista melancólico sobre o tempo presente que viveu, e resistiu, tal qual o homem que tanto admirou.

    Longe de convertê-la numa Jorna D’Arc, o que talvez não seria de todo mal para o empoderamento da personagem, a Madalena de Rooney Mara sente o peso da sua vida como se o aceitasse, como se estivesse ligada permanentemente ao divino; em algo extra mundano que a acalentasse além das agruras da sociedade – em seu primeiro contato com Jesus e seus apóstolos, o vento sopra como se a conduzisse para onde ela anda ao encontro do mar, para onde todos se dirigem. Nesses breves momentos, a expressão da espiritualidade se funde com o avanço da narrativa que, ao final, carece de atitude, de substância, invariavelmente abatida por sutilezas em excesso. Uma sensibilidade que parece indicar o medo do cineasta de investir impactos emocionais em momentos de grande potencial polêmico.

    Uma encenação a favor dos atores, acima de tudo, servindo mais a eles que a história e suas situações, entre inúmeros cenários barrocos e áridos sempre sob uma luz azulada e leitosa, assumindo nessa iluminação a presença do divino. Mara e Joaquin Phoenix, ótimo como sempre, estão contidos e hiper sóbrios no papel do messias e sua seguidora, mas limitados pela própria iconicidade intocável dos seus papéis. Nesse exercício de reler pela enésima vez uma situação fadada ao conflito, e a tragédia, o lado interessante do filme nunca é revelado, sendo assim mais um suspense histórico que o drama que pode se vender para o público que compra sua imagem de “obra devota a figuras emblemáticas”, cujo verdadeiro lado expressivo e simbólico o filme esvazia a cada cena, preferindo manter seu potencial enrustido a cada instante.

    Claro que um tema desses, tão difundido e sensível por toda a humanidade afora, é um desafio e tanto para os atores e para a sua direção, apática e quase inexpressiva, gélida e beirando a preguiça – a sensação é essa em vários momentos –, deixando sempre o peso de algumas sequências falar por si só (saudades de Martin Scorsese), como quando Cristo opera seus milagres e revive um homem já ligado a suas moscas fúnebres, e terminais. Desses momentos já esperados, e mal aproveitados, até a inevitável crucificação tocante do ícone, o filme falha em discutir o poder da fé, e tenta reviver sua própria simbologia para torná-la valiosa e o mais útil possível em prol do desdobramento frouxo da trama. Nisso, Maria Madalena acaba caindo no lugar comum das adaptações bíblicas que se amontoam na tevê, nessas celebrações de fim de ano.

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  • Crítica | Homem Irracional

    Crítica | Homem Irracional

    Homem Irracional 1

    Baseado na aleatoriedade da filmografia recente de Woody Allen, que apresenta quase sempre um filme interessante seguido de um rançoso, Homem Irracional é tão assertivo quanto uma bala que penetra a testa após uma roleta russa. O trailer e materiais promocionais apontavam para mais uma simples história de superação, onde o deprimido e resignado escritor e mestre Abe Lucas – executado por Joaquin Phoenix em uma forma rotunda quase irreconhecível – chega a um novo ambiente: uma universidade pequena para lecionar, onde conhece a jovem e apaixonante Jill (Emma Stone), que provocaria nele uma virada de perspectivas, comum em tantas comédias românticas recentes.

    O fato da premissa se assemelhar com a do filme de Marc Lawrence, em seu  recente Virando a Página, quase fez o filme sofrer o mesmo estigma que A Origem sofreu quando teve seu drama comparado ao de A Ilha do Medo. Mas o paralelo só serviu de despiste, o primeiro de tantos outros, uma vez que o argumento não se rende a essa solução fácil de inspiração baseada em outrem para funcionar.

    A saída para a crise existencial de Abe não é ligada a libido, ou ao frescor causado pela volúpia de consumir “carne nova”. Pelo contrário. Suas mudanças posturais ocorrem em decorrer da nova motivação que toma para si e para os efeitos que seguem após suas atitudes mais enérgicas na tentativa de mudar o status quo – ou ao menos é esta a desculpa que o homem entrega para si.

    A escolha de Allen por um estilo diferenciado em Homem Irracional se prova uma saída excelente para a mesmice que sua filmografia insistia em cair, dando um motivo metalinguístico plausibilíssimo para a verborragia que normalmente permeia suas obras. Justifica até as narrações variadas entre Jill e Abe, em um resgate e quase homenagem  a tradição de Scorsese vista em Os Bons Companheiros, ainda que o mote e os significados sejam bastante diferentes neste do que foi no pretenso filme de máfia, guardando algumas poucas e notáveis semelhanças entre os dois produtos.

    O texto tem bastante do conteúdo ideológico de Um Homem Sério, ainda que as semelhanças pareçam muito mais ideias que ululam pela cabeça do roteirista do que influência direta. O caráter da discussão no entanto é muito parecido, como se fossem estes parentes distantes, cujo ideário cresceu similar apesar da gritante distância entre um e outro.

    O jogo de cores que Woody Allen escolhe tanto nos figurinos quanto nos cenários faz com que todo o falatório sirva apenas para explicar, para as plateias menos ávidas pela temática de mistério, o que transcorre na tela, como um autêntico mcguffin, tão comum nos filmes de suspense. A tonalidades das vestimentas de Abe evoluem para tons fortes, com o decorrer de sua mudança ideológica, passando de tons átonos para grafismos mais vívidos e claros, retornando a tons graves após as tomadas de decisões polêmicas que tomam. Todas as transformações espirituais que acometem o personagem são notadas pela sua mudança de vestuário, aspecto que também acolhe Jill.

    O estigma visual torna o roteiro ainda mais inteligente, valorizando o acaso primeiro em relação ao conteúdo teórico, e depois refutando a questão instintual, discussão esta tão repetida nos diálogos, mas que somente ganha contornos reais quando mostrado no ecrã, sem descrições de falas. Quando a imagem diz tudo por si só. Allen faz um brilhante retorno aos primórdios do cinema mudo, em que a narrativa imagética era o suficiente para entreter e embasbacar seu público, e no qual o inverter de expectativas era um aspecto básico da arte.

  • Crítica | Vício Inerente

    Crítica | Vício Inerente

    Vicio-Inerente-cartaz-br

    Assistir a este filme e decifrar seus signos narrativos é assistir a uma esponja absorvendo um balde d’água de dois litros: uma especulação angustiante e estranha. Paul Thomas Anderson, o cineasta pós-Sangue Negro e o ultra-autoral O Mestre, não parece mais, finalmente, ter a necessidade de impressionar ninguém, o que é tão bom quanto ruim, e faz seu filme mais erótico até agora – esqueça Boogie Nights: Prazer Sem Limites.

    Vício Inerente é anos 70, é trilha sonora de domingo, é Brian de Palma e Jim Jarmusch em algum lugar do cinema ítalo-americano daquela época, perdido ou integrado informalmente em pleno 2015. Não é de se surpreender o estranhamento, não só pela forma e essência, atemporal e universal, mas principalmente estrutural, numa abordagem tão literária quanto fluida e linear, evitando ser episódica, o que poderia tornar confusa a trama já confusa – de propósito e no bom sentido, no melhor sentido, na verdade. Temos na história todos os elementos e recursos de uma investigação filmada: conversas misteriosas em ruas sombrias, figuras cômicas de tão inusitadas, diálogos que sugerem mais do que revelam, policiais, suspeitos, etc. O quanto esses recursos são usados pelo artista, e como são interpretados a favor de um contexto policial, é a aliança que consagra o filme e garante uma boa impressão no final, ainda que não tão boa e poderosa quanto outros filmes do seu diretor, isso é indiscutível.

    A energia de Magnólia vai pra debaixo dos panos e surge a paranoia, por exemplo, extra e intertextual no filme, feito em Embriagado de Amor, comédia romântica cheia de segundas e terceiras intenções e que muito tem a ver com a história de Doc, personagem fantasmagórico de Joaquim Phoenix, perfeito debaixo da peruca afro e óculos escuros. Um agente policial mais interessado em ser primeiro o símbolo de sua época libertária e depois resolver o desaparecimento de um milionário, em meio a um painel de contatos e informantes que contribuem mais com a trama imprevisível e tortuosa do que com a responsabilidade de ser coadjuvantes em torno de Doc, talvez a figura mais icônica do Cinema de Anderson depois do petroleiro Daniel Plainview.

    Martin Scorsese e Michael Mann, dois dos maiores diretores americanos em atividade, filmam a América escancarada, nua e crua tanto em forma, tanto em alma emergencial, como se o mundo (ou o país) fosse explodir amanhã, e um último registro precisasse e devesse ser filmado já, como um atestado rupestre em vídeo a ser imortalizado. Anderson, não; filma o que já passou para entender o presente filmado pelos outros. Mas isso não quer dizer nada, não a longo prazo. O que importa e engrossa o caldo é a relevância que ele, Tarantino e outros filhos dos anos 90 dão ao processo de revitalização do cinema americano, quase perdendo o posto de ser um dos melhores do mundo. Mas se ainda é, é por causa de gente assim, que aposta no próprio poder de persuasão artística e cultural para convencer o público que ainda vale a pena assistir a filmes como O Lobo de Wall Street, Colateral, Django Livre e Vício Inerente, somados no retrato nacional de um estilo de vida. Doc é a personificação desse estilo: vivo, porém na beira da overdose.

    O filme parece ser improvisado naquela abordagem de época já comentada, apesar de que fica claro ser o bom roteiro adaptado que sustenta suas cafonices deliciosas e bem-vindas, até o final, numa bela conversa conclusiva sobre o amor e suas contradições. Mas Vício Inerente não é suas contradições: é adaptação, inclusive a nossa, de uma plateia pós-moderna assistindo a glórias e pesares de uma época precoce, diante de uma ex-realidade que a atual deve muito de seus vícios e fraturas, vitórias e valores por mais ambíguos que tudo isso possa ser. Não é tampouco um livro filmado ou folhetim de um crime: é, isso sim, o romance homônimo publicado por Thomas Pynchon em 2009, tratado na tela de forma moderna, sem limitações de mídia que não poderíamos esperar de quem adaptou de forma épica o romance de Upton Sinclar, em 2008. Alguém achou que juntar Os Infiltrados com Embriagado de Amor era uma boa ideia. Talvez a obra de Pynchon não precise ter o mesmo poder e escala dados ao livro de Sinclair, por mais viciante que foi aquela força profunda molhada de petróleo, aqui cheirando a maconha e com 1/3 da profundidade. O problema é que o filme não se leva a sério, quando Anderson tem talento o bastante para ser pretensioso numa boa.

  • Crítica | Gladiador

    Crítica | Gladiador

    O aclamado filme de Ridley Scott inicia-se introduzindo o espectador no contexto tirânico do Império Romano, com o avanço tático a Germânia sendo impetrado. As mãos do personagem principal, passando sobre a mata alta de sua plantação, remetem ao real desejo de seu coração de habitar as próprias terras em paz; distante do estado caótico que a guerra se impõe, onde a ocupação do estrangeiro ultrapassa os limites do aceitável, passando a ser uma obrigação erguida pelos superiores e passada ao exército por convenção, sem muita discussão dos porquês.

    O discurso inflamado – O que fazemos em vida ecoa pela eternidade – não consegue esconder um descontentamento de Maximus (Russell Crowe), ainda sem o modus operandi do imperialismo, mas já portando um inexorável enfado em seu semblante. Analisando a jornada do herói de Joseph Campbell, o chefe do exército não seria o herói clássico, tampouco anti-herói, mas o arquétipo do herói falido, depressivo, que, apesar da adversidade e das belas cenas de combate introdutórias, guarda um ressentimento e azedume pelas ações que é levado a concluir. Quando ele hesita em matar um adversário, nota-se de maneira concreta sua insatisfação, depois proferida para que não haja dúvidas. Sua posição não é a de discutir métodos ou estratégias: ele é apenas um humilde servo, prostrado ante a vontade de Marcus Aurelius (Richard Harris), que está no final da vida, arrependido de tanto derramamento de sangue e especialmente preocupado com o seu legado, e se seria visto como um tirano de acordo com os olhos da História.

    Qualquer fidelidade e compromisso com a cronologia histórica são varridos para bem longe, assim como foram em Coração Valente. De certa forma, há uma amálgama entre muitos períodos do Estado Romano após a ascensão de Júlio Cesar, ainda que tal influência não tenha sido jamais assumida pelos produtores do filme. Tal característica seria impensável para o nível de acesso a informação atual, passados 14 anos da exibição de Gladiador – ainda que o clima de redenção dos poderosos seja bastante atual nas grandes produções hollywoodianas -, e em se tratando de uma obra de caráter revisionista, de discussão do modo violento e arbitrário que os conquistadores tinham com o território descampado mundial.

    Religião, crenças, sedução e ganância se misturam, tentando atravessar o caminho de Maximus. Focado, o soldado não deseja nada além de sua família, suas terras e sua vida simples no campo. A demora do filme em levá-lo ao lugar desejado é demasiado, fazendo do general mais uma vítima da burocracia e de um legado que não pediu para si.

    A decisão de tornar Maximus o regente da República, retomando o panorama político anterior, é bastante fantasiosa, levando a trama para um lado semelhante ao visto em contos mitológicos, mas exibindo as piores facetas do espírito humano, como o amargor de alma do antigo herdeiro, Commodus (Joaquin Phoenix), que, ao perceber que perderia a sucessão do trono, cometeu o maior dos pecados – o que estava ao seu alcance -, ultrapassando qualquer limite ético e moral.

    Ao se recusar a servir ao nefasto novo senhor, Maximus é condenado à morte. Seguindo finalmente seu senso de justiça, ele tem o revide proporcional à sua boa ação, pondo sua família em risco. Após escapar da pena imposta ao personagem, ele consegue a duras penas retornar ao seu lar para assistir, em meio a lágrimas e salivas, ao extermínio dos seus, na maior mostra de degradação em que ele poderia estar até então. De olhos fechados, carregado à força, o sujeito sofre a morte de sua antiga identidade, renascendo com outra alcunha, outro espírito e função social, ainda mais desimportante do que planejava.

    Como em uma peça teatral, a divisão clara por atos permeia o filme, com uma virada no segundo tomo mostrando o herói falido como escravo, digladiando por sua vida e ganhando um sentido novo para a própria existência, ainda que a glória seja cantada ao nome que lhe deram. O Espanhol logo torna-se o mais carismático e amado guerreiro, exibindo uma tenacidade não antes vista nas arenas romanas, tão corajosa que visa, inclusive, desobedecer uma ordem imperial.

    Diante de seu inimigo mortal, Maximus pensa em dar um fim breve ao opositor, mas se demove da ideia ao vê-lo com a criança que se afeiçoou. Após revelar sua real identidade, consegue ganhar uma pequena fama, a ponto de ter soldados novamente dispostos a levantar sua bandeira, além de ter uma ajuda real por meio da apaixonada Lucila (Connie Nielsen), cujo amor incestuoso de Commodus não é correspondido. As coincidências do roteiro são coladas por uma liga demasiada fraca, conveniente demais aos desejos e desígnios do protagonista.

    Como se esperava, o megalomaníaco plano do gladiador em aplicar um golpe de estado no soberano tem seu destino selado. A grandiosidade e magnificência dos cenários da história e do Ethos de Maximus são elevados a patamares quase infinitos, mas perdem seu peso pela disputa final, disfarçada de embate físico desigual. A justiça dificilmente teria seu lugar no combate entre as contrapartes, entre os dois “filhos” de Marcus Aurelius. O problema é o quão apelativo é o confronto épico, banalizado pela teatralidade excessiva da batalha. O dramalhão enfraquece o plot de Maximus e o retorno da liberdade do povo romano. O sonho torna-se algo de cunho barato, feito para um público idiotizado, acostumado a mensagens felizes, não condiz com a época em que se passava o drama do general/gladiador. O merecido descanso do herói é enfraquecido por mais uma mensagem politicamente correta, mudando rumos históricos e traindo qualquer possibilidade de dignidade. Gladiador é considerado por muitos como um clássico, e até caracteriza-se por um expoente interessante na combalida filmografia de Ridley Scott, mas só garante bons momentos em meio às cenas de batalha, uma vez que seu roteiro só serve para tentar justificar porcamente todos os entraves.

  • Crítica | Ela

    Crítica | Ela

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    O quarto longa dirigido por Spike Jonze – o segundo sem Charlie Kaufman – inicia mostrando Theodore Townbly, o solitário personagem de Joaquin Phoenix exercendo seu ofício de desenvolvedor de mensagens amorosas para quem não tem tanta poesia nas palavras como este tem. Seu traquejo e talento visam esconder o sentimento de isolamento que o preenche, mas isto não funciona, pois a princípio observa-se o quão vazio é o seu cotidiano e a falta que sente de sua antiga parceira.

    É curioso notar como o roteiro de Jonze trata a questão da ausência de alguém, mostrando o desenvolvimento de um sistema operacional que vem para suprir essas carências. Samantha, dublada por Scarlett Johansson, causa uma impressão imediatamente chamativa e apelativa em Theodore, invadindo seu mundo idílico de escritor recluso para arrebatar a sua atenção, primeiro pela novidade, depois pelo conjunto de interesses atingido junto ao artista, que parece frustrado com sua condição não diferente do resto do mundo. A solidão é uma praxe na prática mundana, e seu ofício é uma das ofertas que buscam suprir essas demandas.

    Suas prioridades se rivalizam entre pornô, videogames e internet, como a rotina de muitos solteiros de meia idade da contemporaneidade. O rombo que ficou após seu término o deixou vulnerável às “investidas” de uma máquina que emula as características de um ser do sexo feminino, especialmente nos aspectos ligados à graça e leveza das mais doces mulheres. Além, é claro, da sensual e rouca voz.  Exceto pela ausência de carne, este seria o par perfeito, e a percepção de Theodore sobre isso se dá muito cedo e aumenta com a chegada dos e-mails que destacam a papelada do divórcio.

    Samantha busca ter manias e defeitos, a fim de ser falha como os humanos e transpirar uma maior verossimilhança. A avidez por tentar reabilitar o protagonista da sua separação é irônica, pois num mundo moderno onde os problemas humanos têm dificuldade em subsistir, é um ser mecânico que tende a solucionar a questão de maior problema naquele tempo. A mecanização das relações encontra em um objeto inorgânico uma solução paliativa e que age entropicamente, supostamente por uma ação fora dos padrões de programação. Até a dúvida a respeito entre a veracidade dos sentimentos e a programação original é discutida com afinco, e gera interessantes dúvidas sobre a solidão de ambas as figuras. A relação sexual consegue ser perfeita sem uma imagem sequer. Ele inclusive prefere discutir com ela o pós-coito, algo que talvez não fizesse com uma mulher de carne e osso. Ou seja, a todo tempo sua existência é posta a prova.

    Jonze tem uma predileção por assuntos e temáticas lúdicas e repletas de situações idílicas, mesmo quando justificadas pelo leve avanço no futuro e na tecnologia. Apesar de utópico, o porvir ainda contém uma aura fantástica exacerbada e repleta de lirismo visual. A amplitude da sala em que Theodore vive aumenta a sensação de vazio, pois a casa mal parece ter outro cômodo que não aquele, assim como a falta de opções em que a personagem se vê depois de provar Samantha. Ele e ela agem tolamente, como apaixonados experimentando uma arrebatadora sensação de forma pioneira.

    É a carência de Theodore que permite a ele se afeiçoar por Samantha, e a necessidade parece gerar nela também as sensações únicas e até a capacidade dos humanos de pensar de forma diferenciada. A conclusão de que “o passado é só uma história que contamos a nós mesmos” não seria tirada pela maioria dos homens viventes.

    O modo como as pessoas vivem seu tempo é engraçado, com jogos que simulam a maternidade, mas que são consumidos por solteirões sem filhos. O desamparo e solidão não permeiam só a vida de Theo, mas a de seus amigos também, mostrando que tal mal assola a sua geração como um todo. A predominância da cor vermelha nos ambientes após alguns percalços do protagonista ajuda a evidenciar o quão triste é sua vida após uma autoanálise. Até o SO de Samantha é julgado neste momento, e, claro, discutida a validade de manter viva uma relação como esta. Até avatares físicos são usados para apimentar o caso, tornando-o mais tácito, mas a concentração é quebrada por um gesto banal, de forma equivalente a diversas outras relações entre um homem e uma mulher.

    A proximidade de Samantha da realidade torna-se incômoda para o seu parceiro, é como um banho de água fria nas suas intenções. O que ele procurava era algo ideal, irrealista e sem confrontos. Mas a amante é tão emotiva, desequilibrada e passional como qualquer mulher (e o alarme de feminismo apita um som estridente e ensurdecedor). O limite entre a existência ou não deste relacionamento é tênue e discutível. A generalização feita a respeito da ausência de sentimentos de um SO é muito semelhante ao lugar comum de algumas mulheres ao julgar os homens como ser igualmente insensíveis entre si.

    A situação chega a um impasse quando o homem percebe que não usufrui de um sentimento exclusivo e que Samantha é apaixonada por mais 641 homens. A percepção de que o amor é expansivo e quanto mais é praticado mais há a necessidade de ser compartilhado, é um ótimo paralelo ao argumento poligâmico. Samantha era para Theodore como uma compensação, um substituto para a sua carência afetiva e para o vazio que ficou em seu peito após o rompimento com sua alma gêmea. A busca para uma solução para a dor o fez moldar sua musa segundo suas vontades e isso causou nele dores insuportáveis, mas o fizeram se aproximar de outra alma igualmente desolada pelo abandono, mas ainda assim sem muita expectativa de êxito. A última rejeição o fez amadurecer ao ponto de não querer projetar mais nada quanto a vida sentimental e até a perdoar quem o feriu no passado.

    Ela é uma ode à luta entre a solidão e a carência. Spike Jonze traz um roteiro fino, tocante e emocional, abrilhantado pela ótima encarnação que Joaquin Phoenix dá ao solitário homem comum e real.

  • Crítica | Era Uma Vez em Nova York

    Crítica | Era Uma Vez em Nova York

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    James Gray começa seu quinto longa-metragem retratando o drama de estrangeiros aportando nos Estados Unidos nos anos 10, focando principalmente na dupla de irmãs polonesas, Ewa Cybuslki (Marion Cotillard) e Magda. As personagem são impedidas de entrar no país por motivos diferentes, a segunda supostamente por ter contraído tuberculose, e a primeira em virtude de um boato que só se comprovaria mais a frente. Ewa é impedida de ser deportada por um agente da Ilha Ellis, chamado Bruno Weiss, Joaquin Phoenix, que é aparentemente um sujeito bom e respeitável, mas esconde uma faceta bastante sombria.

    O filme explora um assunto bastante controverso e não faz cerimônia ao mostrá-lo logo de cara: a prostituição de imigrantes quase como única forma de sustento para uma mulher solteira e recém-chegada à “terra das oportunidades”. O cotidiano é mostrado de forma horrenda para a maioria das profissionais, apesar de não haver nenhuma cena explícita dos atos ou abusos sexuais, nesse ponto o roteiro é bastante ameno, até porque o assunto a ser discutido é outro.

    O enfoque é em Ewa e nas ações que ela se vê obrigada a tomar, para obter uma pequena fortuna, no intuito de libertar sua irmã da deportação de volta à Polônia, ações essas que passam a reduzir a auto-estima dela a zero. A premissa é muito boa e a atuação de Marion Cotillard é esplêndida como sempre, mas a abordagem da temática é muito leve e morna, seu personagem sofre com uma construção de caráter mal resolvida, pois ela é absurdamente desconfiada de Bruno, e com razão, mas é completamente crédula na bondade das outras pessoas, se agarrando desesperadamente a qualquer chance de fuga do seu inferno. O seu erro persiste até mesmo em seu derradeiro final e na confissão de culpa de seu nêmesis.

    O filme é morno, apresenta uma rivalidade familiar que possui um passado interessante, mas que se perde em meio a uma confusão de roteiro. Alguns personagens não tem muito aprofundamento e tal coisa foi assim idealizada para manter uma aura misteriosa em torno deles, mas falha miseravelmente ao criar curiosidade no espectador, o que poderia ser um ponto fortíssimo no filme torna-se absolutamente desprezível, a despeito até das boas atuações de Jeremy Renner e Phoenix.

    Apesar da entrega de Marion Cotillard e da culpa que consome a alma de sua Ewa Cybulski, a maneira como o roteiro conduz até o final é tristemente mal executada. Apesar de não ser mal escrito e ter em seu conteúdo uma boa quantidade de situações emocionantes, falta ineditismo e sem razão, visto que o tema não é tão explorado de forma competente no passado. A temática contestadora e polêmica poderia ser mais visceral com facilidade, mas ao invés de ter um enfoque maior nas agruras e no sofrimento de Ewa, tem a atenção voltada para a confusão mental/emocional de Bruno, o cafetão apaixonado e arrependido de ter deixado o seu bem mais precioso escapar por entre seus dedos, da forma mais natural possível para um homem como ele, transformando um sentimento que poderia ser terno em puro ressentimento, carregado de sujeira e podridão.

  • Crítica | O Mestre

    Crítica | O Mestre

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    A trama se passa em 1950. Um veterano da Marinha, Freddie Quell (Joaquin Phoenix), volta da guerra instável e sem certeza de seu futuro. Como tantos outros, tem dificuldade de se situar na sociedade após o retorno, não só pelas sequelas psicológicas da guerra, mas também por ser um alcoólatra. Depois de abandonar vários empregos, principalmente por causa de seu temperamento explosivo, vagando pela cidade, entra no barco de Lancaster Dodd (Philip Seymour Hoffman), que o acolhe. Dodd é o criador de uma espécie de seita ou religião – “A Causa” – que prega a existência de vidas passadas, usa a hipnose como forma de cura e métodos psicológicos pouco usuais como tratamento de problemas diversos. Quell vê-se arrebatado pela Causa e por seu carismático líder. Ele enxerga em Dodd a figura paterna que não teve. E Dodd enxerga em Quell não apenas o seguidor perfeito, como também a cobaia perfeita para testar uma nova metodologia de “tratamento”.

    Americanos gostam de fazer – e assistir a – filmes que tratam das guerras em que seus soldados lutaram, seus feitos, sua volta ao lar, sempre embebidos de um tom ufanista que costuma irritar aos que não compram essa visão idealizada do “sonho americano”. Para contrabalançar, há os que optam por mostrar o avesso desse sonho. E é o que Paul Thomas Anderson faz n’O Mestre, assim como em seus filmes anteriores. Neste, o foco está no dia a dia dos soldados, nas sequelas da guerra, na nem tão triunfante volta ao lar, na dificuldade de reinserção no cotidiano. Em suma, se o espectador for ao cinema em busca apenas de diversão, esta definitivamente não é a melhor opção. Mas se a busca for por um bom roteiro, regado a ótimas músicas, com performances dignas de nota, este filme merece ser visto.

    Mesmo com certa polêmica criada ao redor do fato de que Dodd é inspirado em L. Ron Hubbard, o criador da Cientologia, esse detalhe é, na verdade, menos relevante do que pode parecer. Não há dúvidas de que o diretor se vale da história também para mostrar como é criada uma seita, como se desenvolve, como angaria seguidores – e os manipula -, enfim, como ganha dinheiro explorando a crença alheia. Mas não é este o ponto central. O cerne da narrativa é o relacionamento entre Quell e Dodd. Importa mais a dinâmica mestre-discípulo (ou cientista-cobaia), a relação quase simbiótica que se estabelece desde o momento em que se conhecem, do que o questionamento sobre o quão charlatão Dodd é, o quanto ele acredita no que diz e no que faz seus seguidores acreditarem. É interessante reparar que, em várias situações, enfatizando o paralelismo – ou o contraste – entre eles, são mostrados lado a lado, como na excepcional cena da cadeia. Freddie dá vazão a toda sua raiva numa cela, enquanto Dodd pondera calmamente na cela ao lado, até que Freddie duvida da veracidade das ideias da Causa, momento em que Dodd se exalta e dá vazão, de seu lado, a toda a irritação por ter suas ideias postas em dúvida.

    A trama é sinuosa, por vezes errática, dando a impressão (errônea) de que a narrativa segue desgovernada em alguns momentos. Ledo engano. A aparente falta de rumo é a representação fiel tanto dos caminhos tortuosos que Freddie seguiu depois da guerra quanto do modo como sua mente funciona. É significativo que, durante o filme, Dodd pergunte várias vezes a Freddie: “Is your behavior erratic?” (“Seu comportamento é errático?”).

    Apesar de toda a força dos dois personagens centrais, há outro que a princípio parece não ter tanta importância mas que se revela essencial à ascensão de Dodd como líder da seita: sua esposa, Peggy. É a figura mais dominadora – e quiçá fanática – do filme. Sua presença, por vezes aterrorizante, é quase mais forte que Freddie e Dodd juntos. A cena do toalete, em que ela o masturba enquanto lhe diz como agir, beira o aterrorizante, demonstrando o controle que mantém sobre Dodd e sobre a condução de sua carreira e vida pessoal. E a atuação de Amy Adams é excepcional, corroborando de forma essencial a construção da personagem. Seus olhares recriminadores conseguem deixar até o espectador com sensação de culpa.

    Não apenas a performance de Adams é digna de nota. A força dos personagens centrais em cena deve-se em grande parte à atuação de Phoenix e Hoffman. Enquanto este último confirma ser um dos melhores atores da atualidade, alternando entre a autoconfiança do líder e a instabilidade emocional ao ser questionado, Phoenix nos entrega o que talvez seja a melhor atuação de sua carreira. Antes de mais nada, pelo aspecto físico. Extremamente magro, assume uma postura ligeiramente encurvada, retraída (exceto ao visitar a casa da “mulher de seus sonhos”), a todo momento em busca de apoio – basta reparar nas mãos constantemente apoiadas no quadril. Falando pouco, com a boca meio fechada e os dentes cerrados, dá a impressão – que se confirma ao longo do filme – de estar sempre prestes a explodir e tenta evitar isso sendo o mais contido possível. E a riqueza de detalhes na interpretação, as minúcias nas variações de humor, as nuances na entonação da voz beiram a perfeição.

    Adicione-se a tudo isso a fotografia competente e a trilha sonora bastante provocativa e tem-se um filme que vale a pena ser visto. Apesar de, a princípio, parecer que será lembrado apenas como “aquele em que o Joaquin Phoenix está irreconhecível de tão magro”, ou então, “aquele que faz alusão à religião de Tom Cruise, sem nomeá-la”, O Mestre vai muito além dessa primeira impressão.

    Texto de autoria de Cristine Tellier.