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  • Crítica | Precisamos Falar Sobre o Kevin

    Crítica | Precisamos Falar Sobre o Kevin

    Precisamos falar sobre tantos Kevin, para tentar entender como se forma sua complexa personalidade. Mas que precisamos, acima de qualquer coisa, “falar com o Kevin”, talvez a principal mensagem deste filme (We Need to Talk About Kevin, 2011), cuja trama é um constante provocar de questionamentos, sem respostas conclusivas, sem vereditos sobre culpados ou inocentes.

    Os créditos finais já haviam terminado, mas a película parecia permanecer intensa e dinâmica na minha mente, até que o latido do meu cachorro me trouxe de volta à realidade. Não que a história não estivesse, indissociavelmente comprometida com tantas realidades, em seu foco estrutural, e nas ramificações sugeridas subjetivamente. Mas até então eu continuava sentindo o peso e o cansaço de limpar “paredes” sujas de tinta vermelha, e percorrer o silêncio dos “corredores”.

    Percebi que a análise a ser feita precisa abranger dois vieses distintos. E acabei percebendo também que os mesmos acabam se tornando complementares, uníssonos na composição da narrativa cinematográfica.

    A diretora Lynne Ramsay fez um brilhante trabalho ao filmar uma adaptação do livro de Lionel Shriver, cujo roteiro foi escrito a quatro mãos (Ramsay e Rory Kinear). O filme recebeu várias indicações pelas organizações que premiam o cinema, ganhou o Festival de Londres e a Menção Especial ao Mérito Técnico no Festival de Cannes.

    O romance em si, publicado em 2003, é uma narração, em primeira pessoa, de Eva Khatchadourian, a qual desabafa nas cartas para o marido a luta travada entre a liberdade desejada e a maternidade imposta, assim como a angústia sobre a origem dos comportamentos que tiveram como desfecho a tragédia que caiu sobre sua família.

    A cineasta, embora mantendo o olhar de Eva como lente narrativa, preferiu poupar na oralidade e “desenhar” este suspense psicológico através da inteligente montagem de Joe Bini, da belíssima fotografia de Seamus McGarvey, e da adequadíssima trilha de Jonny Greenwood. Bini usa cortes secos para intercalar as transições cronológicas e, artisticamente, cria um painel de semelhanças subjetivas entre mãe e filho, proposto pela cineasta, como por exemplo na cena em que Eva mergulha o rosto na água, e ele se transforma, enquanto emerge, no rosto de Kevin.

    McGarvey sabe dar a a fluidez certa (ou a falta desta) e a intensidade vibrante (ou opaca) ao vermelho que permeia os 110 minutos de imagens, assim como sugere as recordações que vão sendo apagadas por outra realidade, quando altera o foco daquelas. Greenwood intensifica tudo isto com uma trilha que caminha paralela à angustia que cobre todo o enredo, com acordes que chegam a nos causar desconforto. Por último, e acima de tudo, há a impecável atuação de Tilda Swinton (Eva), indicada ao Globo de Ouro de Melhor Atriz (2012) e premiada pelo Cinema Europeu, na mesma categoria. Temos ainda a qualidade do desempenho de John C. Reilly (Franklin, o marido) e Ezra Miller (Kevin na segunda fase).

    Ramsay recorre, sabiamente, à identificação da angústia (ou sentimento de culpa) de Eva através do vermelho que, além de ser constante, inicia o filme, mostrando a protagonista mergulhada nele, e aparece em repetidas cenas (que servem de ponto de transição entre o pós tragédia e as lembranças) onde a mãe de Kevin limpa as paredes (pintadas por outras pessoas, numa manifestação de vandalismo), desesperadamente, como se isso pudesse limpar também tudo o que tivesse levado ao trágico desfecho.

    Nos momentos de negligência, de irritação, e até mesmo de tentativas em ser amável com Kevin, o desconforto de Eva é quase palpável, e a cineasta nos sugere que isso talvez seja a curva crescente de uma revolta que se originou numa gravidez não desejada. O bebê parece ter sentido toda a rejeição, e se manifesta em incessantes choros, os quais provocam uma das cenas mais marcantes do filme: quando Eva para o carrinho em frente a um canteiro de obras, quase em estado de êxtase pelo som da britadeira, pelo fato de este se sobrepor ao choro.

    A relação mãe/filho mergulha na dualidade do frágil e do intenso, na ação e reação, sem que fique claro de quem vem uma ou outra.

    Mas a única coisa que a diretora nos deixa clara é que o filme não pretende definir vítimas ou culpados, não tem a intenção de promover um juízo de valores, não permite a simples observação da superfície das personagens. O filme envolve-nos numa busca por um olhar mais profundo, num emaranhado de perguntas, e mesmo que pensemos ter encontrado algumas respostas, em algum momento, o que teremos ao final da película será um ótimo tema para reflexão. E a reflexão consiste em quê? Em mais questionamentos.

    Contar mais alguma coisa sobre a obra, (já que se trata de um suspense, meticulosamente elaborado para que nada seja explicitamente revelado ou explicado), me tornaria spoiler. No entanto, preciso falar da questão central da trama e, assim como a autora ou a diretora, não expor diagnósticos, mas criar pontos de reflexão.

    A família é o primeiro grupo com que a criança interage, e do qual ela extrai os mais básicos modelos de comportamento, partindo para a construção de seus valores. No entanto, outros fatores, como o meio externo, também terão uma grande influência nas suas escolhas e na sua conduta, além de que devemos também contar com o subjetivo de cada um. A diversidade de características pessoais é imensurável, é isso que torna o ser humano apaixonante, em sua complexidade.

    Mas é irrefutável que certas atitudes se constroem através da prática, dos conceitos internalizados, da compreensão do outro e de si mesmo e dos diálogos estabelecidos. Pois bem, o que menos se percebe nesta família, são exatamente os diálogos, quer seja entre Kevin e qualquer outro dos membros, quer seja entre os pais, sobre as variáveis do misterioso comportamento que o mesmo vem apresentando desde criança.

    Não se trata de buscar um culpado para a violenta conduta de Kevin. Trata-se de estar atento para as suas linguagens, e aprender a decifrá-las, inclusive nas entrelinhas (nem que para isso seja necessária a ajuda de um terapeuta). Trata-se de não ver apenas aquilo que se quer ver porque é mais confortável ou, quando se enxerga, não tentar “consertar”, com comportamentos autopunitivos, num esforço de enfatizar a presença através de uma pressuposta atenção, quase mecânica. Trata-se de procurar desde sempre, um equilíbrio no cuidar, sem tender à autoridade ou à permissividade, exercendo um controle e estabelecendo regras, mas oferecendo um apoio suficiente para a construção da autonomia.

    Não existe uma fórmula! Pais não estão isentos de falhas, e filhos nem sempre aprendem o que ensinamos, da forma como ensinamos! Mas temos o compromisso de zelar pelo clima emocional em que a criança cresce, promovendo um desenvolvimento saudável.

    Um comportamento antissocial é inato ao ser humano ou decorre do ambiente?

    Mais uma pergunta que permanecerá sem resposta, como tantas outras!

    Precisamos Falar Sobre o Kevin é um filme imperdível, por sua qualidade cinematográfica, por toda a reflexão a que a trama nos conduz, e pela mensagem que ele nos deixa: precisamos falar com Kevin, com Eva, com Franklin!

    Texto de autoria de Cristina Ribeiro.

  • Crítica | Vício Inerente

    Crítica | Vício Inerente

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    Assistir a este filme e decifrar seus signos narrativos é assistir a uma esponja absorvendo um balde d’água de dois litros: uma especulação angustiante e estranha. Paul Thomas Anderson, o cineasta pós-Sangue Negro e o ultra-autoral O Mestre, não parece mais, finalmente, ter a necessidade de impressionar ninguém, o que é tão bom quanto ruim, e faz seu filme mais erótico até agora – esqueça Boogie Nights: Prazer Sem Limites.

    Vício Inerente é anos 70, é trilha sonora de domingo, é Brian de Palma e Jim Jarmusch em algum lugar do cinema ítalo-americano daquela época, perdido ou integrado informalmente em pleno 2015. Não é de se surpreender o estranhamento, não só pela forma e essência, atemporal e universal, mas principalmente estrutural, numa abordagem tão literária quanto fluida e linear, evitando ser episódica, o que poderia tornar confusa a trama já confusa – de propósito e no bom sentido, no melhor sentido, na verdade. Temos na história todos os elementos e recursos de uma investigação filmada: conversas misteriosas em ruas sombrias, figuras cômicas de tão inusitadas, diálogos que sugerem mais do que revelam, policiais, suspeitos, etc. O quanto esses recursos são usados pelo artista, e como são interpretados a favor de um contexto policial, é a aliança que consagra o filme e garante uma boa impressão no final, ainda que não tão boa e poderosa quanto outros filmes do seu diretor, isso é indiscutível.

    A energia de Magnólia vai pra debaixo dos panos e surge a paranoia, por exemplo, extra e intertextual no filme, feito em Embriagado de Amor, comédia romântica cheia de segundas e terceiras intenções e que muito tem a ver com a história de Doc, personagem fantasmagórico de Joaquim Phoenix, perfeito debaixo da peruca afro e óculos escuros. Um agente policial mais interessado em ser primeiro o símbolo de sua época libertária e depois resolver o desaparecimento de um milionário, em meio a um painel de contatos e informantes que contribuem mais com a trama imprevisível e tortuosa do que com a responsabilidade de ser coadjuvantes em torno de Doc, talvez a figura mais icônica do Cinema de Anderson depois do petroleiro Daniel Plainview.

    Martin Scorsese e Michael Mann, dois dos maiores diretores americanos em atividade, filmam a América escancarada, nua e crua tanto em forma, tanto em alma emergencial, como se o mundo (ou o país) fosse explodir amanhã, e um último registro precisasse e devesse ser filmado já, como um atestado rupestre em vídeo a ser imortalizado. Anderson, não; filma o que já passou para entender o presente filmado pelos outros. Mas isso não quer dizer nada, não a longo prazo. O que importa e engrossa o caldo é a relevância que ele, Tarantino e outros filhos dos anos 90 dão ao processo de revitalização do cinema americano, quase perdendo o posto de ser um dos melhores do mundo. Mas se ainda é, é por causa de gente assim, que aposta no próprio poder de persuasão artística e cultural para convencer o público que ainda vale a pena assistir a filmes como O Lobo de Wall Street, Colateral, Django Livre e Vício Inerente, somados no retrato nacional de um estilo de vida. Doc é a personificação desse estilo: vivo, porém na beira da overdose.

    O filme parece ser improvisado naquela abordagem de época já comentada, apesar de que fica claro ser o bom roteiro adaptado que sustenta suas cafonices deliciosas e bem-vindas, até o final, numa bela conversa conclusiva sobre o amor e suas contradições. Mas Vício Inerente não é suas contradições: é adaptação, inclusive a nossa, de uma plateia pós-moderna assistindo a glórias e pesares de uma época precoce, diante de uma ex-realidade que a atual deve muito de seus vícios e fraturas, vitórias e valores por mais ambíguos que tudo isso possa ser. Não é tampouco um livro filmado ou folhetim de um crime: é, isso sim, o romance homônimo publicado por Thomas Pynchon em 2009, tratado na tela de forma moderna, sem limitações de mídia que não poderíamos esperar de quem adaptou de forma épica o romance de Upton Sinclar, em 2008. Alguém achou que juntar Os Infiltrados com Embriagado de Amor era uma boa ideia. Talvez a obra de Pynchon não precise ter o mesmo poder e escala dados ao livro de Sinclair, por mais viciante que foi aquela força profunda molhada de petróleo, aqui cheirando a maconha e com 1/3 da profundidade. O problema é que o filme não se leva a sério, quando Anderson tem talento o bastante para ser pretensioso numa boa.