Tag: John C. Reilly

  • Crítica | Gangues de Nova York

    Crítica | Gangues de Nova York

    “Não era uma cidade. Estava mais para uma fornalha.”

    Costuma-se dizer que só dois cineastas conseguiriam fazer o filme definitivo sobre Nova York, e esses filhos da Big Apple com certeza já tentaram fazê-lo, uma porção de vezes: Woody Allen e Martin Scorsese. O primeiro só com Manhattan e Annie Hall já resumiria com todo humor e irreverência possíveis os conflitos que seres-humanos, adoravelmente imperfeitos, conseguem enfrentar em suas estripulias e pequenas aventuras cômicas num caos urbano sempre ironizado nas paranoias de Allen. Já o caos de Scorsese é visto pelos olhos da noite dos becos e ruas perigosas onde o bom-humor nem sempre dá o tom. Conhecido pela sua violência e realismo dramáticos, a Nova York de Scorsese só pode ser embalada pelo jazz (como de fato é, mas só em Nova York, Nova York) quando se propõe a tirar os pés do chão, e viver seus sonhos que só acontecem mesmo na Broadway.

    E nós já sabemos disso. Gangues de Nova York é o resultado frenético da progressão de Scorsese sobre os olhares da megalópole em que nasceu. Se essa ótica começou com grande propriedade em Caminhos Perigosos, evoluiu ao longo de décadas de filmes sempre a mostrar uma cidade ou no auge dos seus problemas, ou que merece ser homenageada por uma época que já virou um passado recente. No caso do épico de 2002, filme rodado na Itália e dependente, em absoluto, da sua ambiciosa e grandiloquente ambientação, uma iconografia decadente e ao mesmo tempo atraente, como se a Nova York do filme fosse um cenário primitivo ainda a ser explorado, Scorsese quis mostrar as raízes da sua cidade e seus habitantes pra aqueles que rejeitam ideais romantizados.

    Para isso, faz questão de lavar nos primeiros minutos seu chão de sangue, e é nele que as pessoas vão se banhar, e os prédios irão se erguer – com o povo já “civilizado” de Se Meu Apartamento Falasse substituindo a barbárie do séc. XIX. Logo em seguida, após o massacre que iria mudar para sempre a vida de Amsterdan Vallon, o garoto volta para NY, já homem, e antes de pisar na cidade, joga fora a bíblia que levava consigo. Não há mais lugar para o divino. Numa trama de vingança de Amsterdan com Bill – o Açougueiro, homem poderoso e influente que assassinou seu pai a sangue frio naquela tarde em que a neve das ruas ficou vermelha, o filme acaba sendo mais longo do que poderia ser, uma questão (e muitas vezes um problema) recorrente dos filmes de Scorsese, um eterno apaixonado por Cinema e pela arte e as artimanhas de fazê-lo.

    E é nessa duração excessiva que o cara por trás de Touro Indomável deita e rola, agora com Leonardo DiCaprio sendo seu novo pupilo e não mais Robert de Niro, nos entregando uma versão ainda inédita sobre uma cidade sem glamour algum. Suja, nojenta, e que só não nos lembra uma Londres vitoriana no auge da peste negra devido os tons mais quentes do visual, e a falta de sotaque britânico nos personagens. Gangues de Nova York evidencia a promessa amaldiçoada que a cidade foi, por muito tempo, muito por causa da violência do seu povo. A violência mora na alma predadora dos americanos, diz Scorsese em cenas chocantes como a do teatro, em que Bill percebe o plano de Amsterdan e combate sua vingança com grande fúria, mostrando em público o motivo de ser respeitado, e chamado de O Açougueiro.

    A edição brilha, os cenários mais ainda, mas os atores ainda mais. Daniel Day-Lewis é um titã, mestre irrefreável que desaparece nos seus personagens de forma assombrosa, sujando e chupando o sangue do rosto do seu Açougueiro como se ambos tomassem banho nele toda noite – e não duvidamos disso. Se Lewis é um monstro, tendo aprendido a usar facas e machados igual sua nova persona agressiva, DiCaprio e Cameron Diaz não deixam o nível da atuação ser inferior. Um apenas quer vingança, e a outra alguém a quem confiar para ganhar a vida em meio a uma selvageria masculina e uma brutalidade sem fim. Scorsese sempre extrai o melhor das atrizes e atores sob sua demanda, e Gangues de Nova York é mais um ótimo exemplo disso. A adaptação do livro de Herbert Asbury ganhou as telas pelas mãos certas, porém de forma um tanto excessiva, refletindo a cobiça do cineasta que tomou conta da história. Um tratado inconsistente, ainda que absurdamente expressivo sobre as raízes da América.

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  • Crítica | WiFi Ralph: Quebrando a Internet

    Crítica | WiFi Ralph: Quebrando a Internet

    Após o sucesso de Detona Ralph, criou-se uma grande expectativa para uma continuação, que chegou aos cinemas estrangeiros no ano passado e finalmente chegou ao Brasil. WiFi Ralph: Quebrando a Internet começa com Vanellope (Sarah Silverman) e Ralph (John C. Reilly) discutindo sobre depilação, utilizando Zangief de Street Fighter como exemplo de alguém que escolhe ter pelos em apenas alguns lugares do corpo, simetricamente escolhidos. Pode parecer só uma piada, mas esse é o início de uma discussão existencial que abarca até a humanidade, pois a garota se pergunta se há algo além de viver jogando, pois para o mundo, eles são apenas algoritmos Zero e Um diante do universo, e essa simplicidade é pouca para a menina.

    A vida dos personagens de games está bastante confortável e pacata, e Vanellope deseja de qualquer forma ter uma nova pista para jogar, mas no velho fliperama só chega o Wifi, para que os clientes possam usufruir da internet, afinal que o frequenta geralmente são os jovens, e em 2018 e 2019 a natural que todos façam uso disso.

    Ralph tenta ajudar sua amiga, mas como é de sua praxe e natureza, ele acaba estragando as coisas, não para Vanellope, que adora seu gesto, mas para o Sugar Rush, que é desativado por conta de uma quebra de controle. O dono do fliperama, Mr. Litwak pensa em consertar, mas a fábrica do game está fechada e a reposição da peça via eBay é muito cara, e é curioso como o roteiro de Phil Johnston brinca com um paradigma típico da internet, que são os preços exorbitantes que vendedores do eBay, Mercado Livre e semelhantes praticam, ao ponto de não terem para quem vender. É a partir daqui que se desencadeia o plot de viagem pela internet, em que Ralph leva Vanellope por ela claramente estar deprimida com essa situação.

    A situação mais curiosa vista nessa continuação é que as relações dos personagens evoluiu. Felix (Jack McBrayer) e Calhoun (Jane Lynch) estão casados há seis anos, e querem apimentar a relação, e até Ralph e Vanellope percebem que precisam evoluir e alcançar um novo nível de relacionamento, um que compreenda o novo nível de interdependência entre os dois, e obviamente que não se explorará isso através da super exposição de um casal comum, afinal é um filme infantil, e se precisa de todo um verniz de relação não sexualizada, até por conta da diferença física entre os personagens, pois Vanellope tem uma aparência de criança embora seu jogo seja de décadas atrás.

    A viagem a internet é tímida no início, com a dupla de protagonistas navegando entre os sites, e enfrentando alguns muitos spams, e Ralph se perdendo com isso, mas o novo cenário traz novos desafios aos jogadores que são tão diferentes do que geralmente vivem. O filme tem um tom critico curioso e normalmente não muito presente nas fitas antigas da Disney, e muito menos nos enlatados recentes, que só miram o dinheiro de espectadores com mais e mais continuações, ao menos o roteiro de Johnston faz comentários adultos e inteligentes sobre o comportamento de pessoas na internet, sejam os haters ou comentaristas ofensivos, bem como faz um mea culpa no esperado encontro entre as princesas Disney, que são meninas interessantes para muito além do fato de precisarem ser salvas por alguém forte, e que podem ser entretidos por coisas simples, como camisetas e moletons.

    É curioso com Rich Moore e Johnston trabalham com a temática da internet. A dupla havia feito Zootopia antes, e ao mesmo tempo que há um flerte com discussões sobre os algoritmos e com os trolls chatos que comentam muita besteira, há uma ideia meio datada do ambiente que a internet tem, os personagens novos não tem muita influência de fato na historia, falta tempo par eles, e o modo as coisas que viralizam são mostradas parece feito pela ótica de pessoas que não entendem como as novas gerações tratam do universo on-line que se abre. Os usuários do ambiente conectado parecem fúteis, e por mais que a futilidade seja a tônica para muitos que frequentam fóruns e redes sociais, é meio generalista demais considerar que o todo é assim, e o roteiro faz isso, tomando isso como uma regra praticamente sem exceção. A vontade de se prender a arquétipos muito quadrados já estava lá em Zootopia e a dupla parecer ter trazido isso para este filme, de maneira bem equivocada para quem tem a pretensão de fazer uma historia inclusiva.

    A beleza de Vanellope mora em sua simplicidade e no fato de não precisar se encaixar em padrões não só de beleza, mas também de comportamento. A Disney em suas animações acompanhou a evolução temporal, na renascença colocava personagens como Ariel, Pocahontas, Bela, que eram inteligentes e independentes em algum nível, mais capazes de fazer escolhas e de fazer a diferença nos filmes que protagonizavam, mas com Frozen, Enrolados e até a continuação de Detona Ralph esses níveis foram atualizados, e o exemplo para as crianças se estabelece de que uma pessoa pode não se adequar a certos padrões e pode ser o que seu coração deseja que seja e que não há grande problemas com relação a isso, e a maneira como lição moral é digerida foge do panfletarismo, embora no final a toxicidade do comportamento masculino gere um rival nada sutil para os heróis, dessa vez claramente apelando para um viés mais lacrador e que desnecessariamente desconstrói toda a evolução que Ralph, mostrando ele como um sujeito egoísta e que não aprendeu nada com as agruras que sofreu.

    O modo como o monstro gigante se mobiliza contra a real protagonista do filme, Vanellope é um pouco exagerado, embora não incomode e também não denigra o todo o filme – exceto é claro se o espectador em questão for tão inseguro que não pode ver sua frágil condição de macho alfa discutida – mas a solução final, para manter Ralph vivo mesmo depois de tudo é muito bem pensada, envolvendo cores e referências as personagens clássicas dos filmes mais famosos do estúdio, selando de uma forma saudável a relação entre Ralph e Vanellope, denunciando o quanto a possessividade entre pares pode ser prejudicial par todos, não só para a mulher, mas também para o homem.

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  • Crítica | Sing : Quem Canta Seus Males Espanta

    Crítica | Sing : Quem Canta Seus Males Espanta

    Sing : Quem Canta Seus Males Espanta mais nova animação dos criadores de Meu Malvado Favorito, chega cheio de energia e recheado de canções capazes de encantar o público.

    Na história um Coala que preside um decadente teatro, resolve inovar e promover um gigantesco concurso de talentos musicais, visando assim trazer o anfiteatro de volta para seus tempos áureos. Desde o início somos apresentados aos futuros concorrentes que buscam seu lugar ao sol no mundo do show business através de seu talento musical, personagens que vão desde um Gorila que contraria as expectativas de seu pai para buscar seu sonho de ser cantor até uma Elefoa dona de uma bela voz que espera ansiosamente ser descoberta e provar seu valor.

    A animação segue uma cartilha bastante habitual e nada ousada e é aí que reside seu grande ponto falho. Por mais que o filme seja bem feito e conte com grandes dublagens, ele não ousa ir além e se acomoda em sua fórmula. A obra tem boas sacadas como à escolha da trilha que se alterna o tempo todo e acentua bons momentos com canções que vão do clássico ao pop, de Stevie Wonder até Carly Rae Jepsen. Infelizmente a pluralidade de sua ótima playlist acaba não conseguindo se sustentar por si só.

    Há medida que história avança, ela vai deixando pelo caminho a oportunidade de explorar melhor tudo àquilo do qual ela (a história) dispõe, não se aprofundando em seus personagens e acabando com isso por não gerar ou estabelecer uma grande conexão entre suas estrelas centrais e o telespectador. O final que vai sendo construído o para ser catártico o tempo todo,  acaba se transformando em uma simples resolução dos fatos apresentados. O tão almejado grand finale inerente há musicais e há histórias que buscam consagrar seus indivíduos acaba por soar sem peso suficiente.

    Curiosamente, o filme não é de todo descartável, a narrativa tem seus ápices ao conseguir muitas vezes encantar através da suas respectivas interpretações musicais, é competente em sua comicidade e de certa maneira inspiradora na retratação da obstinação de suas personagens e seus sonhos. Sing : Quem Canta Seus Males Espanta pode não acertar o tempo todo, porém, está longe de ser um desastre. No frigir dos ovos vale a pipoca, vale a diversão.

    Texto de Tiago Lopes.

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  • Crítica | O Conto dos Contos

    Crítica | O Conto dos Contos

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    É sempre peculiar assistir como o mitológico, o lendário, é reciclado e moldado nas possibilidades pictóricas dos estilos de Cinema que resgatam reinações, hábitos e exercícios em prol de uma experiência cada vez mais refinada, na melhor das hipóteses, numa arte secular, palco de larga miríade de contos, crônicas e tantos outros compêndios narrativos.

    O Conto dos Contos não carrega o estigma de clássico imediato, isso só o tempo para afirmar. Tampouco carrega uma exasperante mise-en scène ou outros atributos de milhões de dólares, e muito menos o hype europeu e o preciosismo visual de outra fábula recente, A Assassina, o mais sublime dos catetos de Hsiao-Hsien Hou. Mas talvez seja esse “menos” que permita que o filme seja tão bom quanto poderia ser. Quando um rei e uma rainha desejam cegamente um filho, no seu reino de bobos-da-corte, um gatilho emocional e tão ligado às necessidades de uma família real, o diretor Matteo Garrone (Reality: A Grande IlusãoGomorra) convoca seus exageros e vaidades, e então a história começa a perder fôlego, fazendo o filme ostentar constante e humildemente uma vitalidade, mitologia e identidade próprias, e certamente, do começo ao fim das histórias interligadas, acima do lugar-comum.

    Um repertório de esmeros e elegantes encenações, elevando a perspectiva cármica dos tediosos contos de Cinema que apenas galgam a superfície de suas dimensões, seus potenciais às vezes desperdiçados, como por exemplo a decepcionante trilogia das Mil e uma Noites de Miguel Gomes, em sua versão autônoma e desalmada dos clássicos ramo-sírios contados por Xerazade. O Conto dos Contos comporta, senão luxo em sua produção, o respeito mais nobre e satisfatório pela tradição de se contar uma história, simples assim, e nos apresentar, economicamente, pouco mais do que precisa para ser um ótimo filme, de grandes inspirações e atores (Salma Hayek, destruidora).

    Um filme-primavera, desses que nascem para trazer respiro a um subgênero mais interessado em mostrar, do que saber contar. Garrone sabe onde pisa, e não se explica através do que filma, mas filma para poder explicar, no caso a confiança que possui e alimenta enquanto cineasta, melhor a cada obra. Um filme com um frescor criativo que Terry Gilliam e outros veem como ode e desculpa para traduzir suas bizarrices e besteiras de carnaval. O infortúnio em O Conto dos Contos (filme que de pretensioso tem só o título), no âmbito do uso de sua mitologia criada para o filme não existe, e, se o há, há senão no gosto de cada um de nós, críticos por natureza. Garrone apenas abre um leque tangencial para o deleite dos públicos mais diversos, e exigentes, num conto de situações e condições das mais empáticas possíveis – em especial, se comparado com outras produções de hoje em dia.

  • Crítica | Precisamos Falar Sobre o Kevin

    Crítica | Precisamos Falar Sobre o Kevin

    Precisamos falar sobre tantos Kevin, para tentar entender como se forma sua complexa personalidade. Mas que precisamos, acima de qualquer coisa, “falar com o Kevin”, talvez a principal mensagem deste filme (We Need to Talk About Kevin, 2011), cuja trama é um constante provocar de questionamentos, sem respostas conclusivas, sem vereditos sobre culpados ou inocentes.

    Os créditos finais já haviam terminado, mas a película parecia permanecer intensa e dinâmica na minha mente, até que o latido do meu cachorro me trouxe de volta à realidade. Não que a história não estivesse, indissociavelmente comprometida com tantas realidades, em seu foco estrutural, e nas ramificações sugeridas subjetivamente. Mas até então eu continuava sentindo o peso e o cansaço de limpar “paredes” sujas de tinta vermelha, e percorrer o silêncio dos “corredores”.

    Percebi que a análise a ser feita precisa abranger dois vieses distintos. E acabei percebendo também que os mesmos acabam se tornando complementares, uníssonos na composição da narrativa cinematográfica.

    A diretora Lynne Ramsay fez um brilhante trabalho ao filmar uma adaptação do livro de Lionel Shriver, cujo roteiro foi escrito a quatro mãos (Ramsay e Rory Kinear). O filme recebeu várias indicações pelas organizações que premiam o cinema, ganhou o Festival de Londres e a Menção Especial ao Mérito Técnico no Festival de Cannes.

    O romance em si, publicado em 2003, é uma narração, em primeira pessoa, de Eva Khatchadourian, a qual desabafa nas cartas para o marido a luta travada entre a liberdade desejada e a maternidade imposta, assim como a angústia sobre a origem dos comportamentos que tiveram como desfecho a tragédia que caiu sobre sua família.

    A cineasta, embora mantendo o olhar de Eva como lente narrativa, preferiu poupar na oralidade e “desenhar” este suspense psicológico através da inteligente montagem de Joe Bini, da belíssima fotografia de Seamus McGarvey, e da adequadíssima trilha de Jonny Greenwood. Bini usa cortes secos para intercalar as transições cronológicas e, artisticamente, cria um painel de semelhanças subjetivas entre mãe e filho, proposto pela cineasta, como por exemplo na cena em que Eva mergulha o rosto na água, e ele se transforma, enquanto emerge, no rosto de Kevin.

    McGarvey sabe dar a a fluidez certa (ou a falta desta) e a intensidade vibrante (ou opaca) ao vermelho que permeia os 110 minutos de imagens, assim como sugere as recordações que vão sendo apagadas por outra realidade, quando altera o foco daquelas. Greenwood intensifica tudo isto com uma trilha que caminha paralela à angustia que cobre todo o enredo, com acordes que chegam a nos causar desconforto. Por último, e acima de tudo, há a impecável atuação de Tilda Swinton (Eva), indicada ao Globo de Ouro de Melhor Atriz (2012) e premiada pelo Cinema Europeu, na mesma categoria. Temos ainda a qualidade do desempenho de John C. Reilly (Franklin, o marido) e Ezra Miller (Kevin na segunda fase).

    Ramsay recorre, sabiamente, à identificação da angústia (ou sentimento de culpa) de Eva através do vermelho que, além de ser constante, inicia o filme, mostrando a protagonista mergulhada nele, e aparece em repetidas cenas (que servem de ponto de transição entre o pós tragédia e as lembranças) onde a mãe de Kevin limpa as paredes (pintadas por outras pessoas, numa manifestação de vandalismo), desesperadamente, como se isso pudesse limpar também tudo o que tivesse levado ao trágico desfecho.

    Nos momentos de negligência, de irritação, e até mesmo de tentativas em ser amável com Kevin, o desconforto de Eva é quase palpável, e a cineasta nos sugere que isso talvez seja a curva crescente de uma revolta que se originou numa gravidez não desejada. O bebê parece ter sentido toda a rejeição, e se manifesta em incessantes choros, os quais provocam uma das cenas mais marcantes do filme: quando Eva para o carrinho em frente a um canteiro de obras, quase em estado de êxtase pelo som da britadeira, pelo fato de este se sobrepor ao choro.

    A relação mãe/filho mergulha na dualidade do frágil e do intenso, na ação e reação, sem que fique claro de quem vem uma ou outra.

    Mas a única coisa que a diretora nos deixa clara é que o filme não pretende definir vítimas ou culpados, não tem a intenção de promover um juízo de valores, não permite a simples observação da superfície das personagens. O filme envolve-nos numa busca por um olhar mais profundo, num emaranhado de perguntas, e mesmo que pensemos ter encontrado algumas respostas, em algum momento, o que teremos ao final da película será um ótimo tema para reflexão. E a reflexão consiste em quê? Em mais questionamentos.

    Contar mais alguma coisa sobre a obra, (já que se trata de um suspense, meticulosamente elaborado para que nada seja explicitamente revelado ou explicado), me tornaria spoiler. No entanto, preciso falar da questão central da trama e, assim como a autora ou a diretora, não expor diagnósticos, mas criar pontos de reflexão.

    A família é o primeiro grupo com que a criança interage, e do qual ela extrai os mais básicos modelos de comportamento, partindo para a construção de seus valores. No entanto, outros fatores, como o meio externo, também terão uma grande influência nas suas escolhas e na sua conduta, além de que devemos também contar com o subjetivo de cada um. A diversidade de características pessoais é imensurável, é isso que torna o ser humano apaixonante, em sua complexidade.

    Mas é irrefutável que certas atitudes se constroem através da prática, dos conceitos internalizados, da compreensão do outro e de si mesmo e dos diálogos estabelecidos. Pois bem, o que menos se percebe nesta família, são exatamente os diálogos, quer seja entre Kevin e qualquer outro dos membros, quer seja entre os pais, sobre as variáveis do misterioso comportamento que o mesmo vem apresentando desde criança.

    Não se trata de buscar um culpado para a violenta conduta de Kevin. Trata-se de estar atento para as suas linguagens, e aprender a decifrá-las, inclusive nas entrelinhas (nem que para isso seja necessária a ajuda de um terapeuta). Trata-se de não ver apenas aquilo que se quer ver porque é mais confortável ou, quando se enxerga, não tentar “consertar”, com comportamentos autopunitivos, num esforço de enfatizar a presença através de uma pressuposta atenção, quase mecânica. Trata-se de procurar desde sempre, um equilíbrio no cuidar, sem tender à autoridade ou à permissividade, exercendo um controle e estabelecendo regras, mas oferecendo um apoio suficiente para a construção da autonomia.

    Não existe uma fórmula! Pais não estão isentos de falhas, e filhos nem sempre aprendem o que ensinamos, da forma como ensinamos! Mas temos o compromisso de zelar pelo clima emocional em que a criança cresce, promovendo um desenvolvimento saudável.

    Um comportamento antissocial é inato ao ser humano ou decorre do ambiente?

    Mais uma pergunta que permanecerá sem resposta, como tantas outras!

    Precisamos Falar Sobre o Kevin é um filme imperdível, por sua qualidade cinematográfica, por toda a reflexão a que a trama nos conduz, e pela mensagem que ele nos deixa: precisamos falar com Kevin, com Eva, com Franklin!

    Texto de autoria de Cristina Ribeiro.

  • Crítica | Guardiões da Galáxia

    Crítica | Guardiões da Galáxia

    guardiões da galáxia

    Os filmes de super-heróis se consolidaram com um gênero cinematográfico de tal maneira, que os vídeos estão cada vez mais parecidos com os quadrinhos. Não no sentido de fidelidade nas adaptações, mas em estruturas que podem ser reconhecidas em ambas as mídias. Temos continuações, cronologias confusas, reboots, e no meio desse emaranhado, fãs discutindo qual é o melhor. Agora, realizadores tentam faturar um pouco mais com personagens de baixo escalão. O segredo, nesses casos, parece ser a pouca pretensão por parte de quem produz e as baixas expectativas por parte de quem consome. Guardiões da Galáxia partiu da desconfiança total para uma leve curiosidade, e acabou se revelando mais um acerto do Marvel Studios.

    Embora exista há décadas e tenha passado por várias reformulações, o grupo nunca foi muito conhecido, nem mesmo entre os leitores de HQ. Até porque, a parte cósmica do Universo Marvel sempre foi um nicho dentro de outro. Entretanto, isso permitiu grande liberdade na hora da transposição para a telona: ainda que os personagens sejam, em sua maioria, fiéis às atuais versões dos gibi, o tom do filme vai por outro caminho. O humor sempre foi parte marcante nas produções do estúdio, mas Guardiões da Galáxia é, de longe, a que mais se assume como comédia. Ou melhor dizendo, uma aventura que não se leva a sério, com cara e alma de anos 80. Não à toa, a cultura pop dessa época é reverenciada ao longo de todo o filme, como por exemplo, a citação, gritantemente óbvia a Star Wars.

    Nessa linha descompromissada, o diretor James Gunn (co-roteirista ao lado de Nicole Perlman) não se preocupa em construir um plot elaborado, ou mesmo em estabelecer os detalhes do cenário em que a história se passa. Temos a sutil noção de uma história que se passa em um universo grande, multicultural, e com narrativa pregressa. Em um canto limitado desse universo, uma arma poderosa ameaça, não apenas a frágil paz entre duas civilizações, mas também todos os seres do cosmo. Argumento inegavelmente clichê, mas que não se mostra um problema, justamente por se apresentar-se desde o início, como uma justificativa para juntar uma galerinha do barulho que vai se meter em altas confusões – e garantir uma diversão insana durante a jornada.

    Os aspectos técnicos são irrepreensíveis, principalmente a trilha sonora, inspirada e perfeitamente conectada com a narrativa. Mas a chave para o filme funcionar é a maravilhosa interação entre os protagonistas. Todos têm espaço para se diferenciar enquanto indivíduos, ganhando um carisma que só aumenta conforme o grupo vai se formando. A união pode até ser rápida, mas convence. Em comum, eles são anti-heróis imperfeitos que, por baixo da pose, escondem traumas verdadeiros. Seres solitários que, mesmo sem entender ou admitir, são tocados por uma amizade que surge de forma natural, porém nada piegas, já que, como amigos de verdade, eles vivem zombando uns dos outros, comprovando que a zoeira não tem limites.

    Nessa conexão com a loucura espacial está o terráqueo Peter Quill, abduzido quando criança, logo após perder a mãe, e criado por saqueadores espaciais. Ele se torna um aventureiro canastrão que se autodenomina Senhor das Estrelas. O ator Chris Pratt começa atuando com um ar abobalhado, o que soa muito forçado, mas se recupera brilhantemente, conforme novas camadas são adicionadas ao personagem: um malandro que mostra ter bom coração e ser capaz de atos heroicos de pura abnegação, embora, logo em seguida, exija ser reconhecido e louvado por isso. As cenas são tão impagáveis quanto sua visão de Footloose e Kevin Bacon, que simplesmente valem o ingresso.

    Zoë Saldana como Gamora, repete com qualidade o papel que já representou várias vezes (Avatar, Star Trek, Os Perdedores, etc), a durona que esconde uma certa fragilidade. O conceito da “mulher mais perigosa do universo”, presente nos quadrinhos, foi levemente ignorado, mas o resultado foi uma personagem menos unidimensional e mais interessante. Drax, o Destruidor, encenado pelo competente Dave Bautista, seguiu um caminho parecido. Entretanto, seu background mostra-se denso e sombrio, o que destoa um pouco do contexto.  A solução para encaixá-lo foi manter sua postura séria e criar um humor involuntário em cima disso, como pode ser notado em suas sensacionais interpretações literais das gírias de Peter.

    Os membros mais estranhos do grupo são também os mais marcantes. É impressionante o carisma conseguido por Groot, uma árvore humanoide que só repete uma mesma fala. O personagem, (na voz de Vin Diesel) tem sido comparado a uma versão muito mais simpática de Chewbacca. E por fim, Rocket, o célebre Guaxinim com Trabuco que ganhou a voz, quase irreconhecível de Bradley Cooper, mostrando a versatilidade do ator nesse trabalho. Rocket é um gênio tecnológico e planejador, irônico, mordaz, sacana, carente e raivoso; mais um caso em que as camadas compõem um ótimo personagem.

    O restante do elenco conta com nomes notáveis em participações discretas, como Glenn Close (líder da Tropa Nova), John C. Reilly (oficial da mesma Tropa), Djimon Hounson (capanga do vilão) e Benicio Del Toro (mais uma vez como o afetado Colecionador, já visto na cena pós-créditos de Thor – O Mundo Sombrio). Michael Rooker se destaca um pouco mais, como o divertido Yondu, “pai adotivo” de Peter e Lee Pace se encaixa perfeitamente no estilo religioso fanático do vilão Ronan, o Acusador, personagem visualmente interessante, mas pouco desenvolvido. Karen Gillan também faz um bom trabalho, irreconhecível como a ajudante de Ronan, Nebulosa. O pai da moça, ninguém menos do que Thanos, aparece rapidamente, e ainda que seu interesse pelas Joias do Infinito seja citado explicitamente, sua sombra ameaçadora permanece apenas nas margens do filme, de forma que somente os bons amantes da Marvel entenderão.

    A conexão com o restante do universo cinematográfico da Marvel é tímida. A cena pós-créditos, por sinal, é tão desconexa quanto a de Homem de Ferro 3. Disso, porém, resulta algo de positivo. Guardiões da Galáxia mostrou potencial para ser uma franquia com identidade e atrativos próprios, e não apenas um laboratório para apresentar e testar conceitos a serem utilizados nos filmes dos astros do estúdio. A sequência, já anunciada, prova não apenas o conhecido planejamento da Marvel Studios, mas também sua capacidade de continuar expandindo e explorando novas propriedades.

    Texto de autoria de Jackson Good.

  • Crítica | Deus da Carnificina

    Crítica | Deus da Carnificina

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    Dois casais, Penelope e Michael Longstreet (Jodie Foster e John C. Reilly) e Nancy e Alan Cowan (Kate Winslet e Christoph Waltz) encontram-se no apartamento dos Longstreet para conversar a respeito de uma briga em que os respectivos filhos se envolveram. E o encontro, comprovando o princípio entrópico, avança e degenera rumo ao caos, transformando-se na carnificina do título.

    A exemplo de Who’s Afraid of Virginia Woolf?, o filme é adaptado de uma peça de teatro em que dois casais estão confinados num único ambiente – casa ou apartamento. Contudo, diferente deste, em que os recém-casados Nick e Honey (George Segal e Sandy Dennis) presenciam a lavação de roupa suja do casal “mais veterano”, Martha e George (Elizabeth Taylor e Richard Burton), em Deus da carnificina os casais parecem ter mais ou menos o mesmo tempo de vida em comum e as batalhas verbais ocorrem entre todos. Mesmo assim, é difícil não traçar um paralelo, já que em ambos os casais usam o conhecimento advindo da intimidade para que suas palavras causem o maior dano possível. A ironia, o sarcasmo, a acidez de algumas falas revelam que cada um conhece o ponto fraco do outro e mira ali propositalmente. Contudo, o diferencial do filme de Roman Polanski é que as discussões vão além do relacionamento entre os casais – por exemplo, o capitalismo despudorado de Alan versus o idealismo esquerdista de Penelope.

    O fato de ser uma adaptação de uma peça poderia se tornar um complicômetro. Porém, o diretor soube usar a técnica cinematográfica a seu favor, fazendo algo que no teatro não seria possível e, assim, direcionando o olhar do espectador a seu bel-prazer. Os atores surgem em planos e contraplanos, aos pares, trio, quarteto, acompanhando, como num passo de dança, a intensidade dos diálogos. E, assim como Sidney Lumet em 12 Homens e uma Sentença (também baseado numa peça), Polanski usa a câmera para controlar o ponto de vista do público e intensificar sua reação ao que acontece em cena. É interessante notar que o confinamento dos casais nesse ambiente deve-se totalmente ao acaso – o café oferecido na hora de ir embora, o sinal do celular que falha a caminho do elevador, entre outros pequenos eventos que fazem o casal Cowan sempre voltar ao interior do apartamento.

    E, já que o desfecho não é inesperado (sabe-se desde o trailer para onde se encaminha a trama), o interessante é acompanhar como isso acontece. Ver a evolução dos personagens. A civilidade e as convenções sociais sendo deixadas de lado. A polidez dando lugar à sinceridade extrema. As máscaras caindo à medida que os ataques verbais se sucedem. Situações triviais deflagrando reações desmedidas e aparentemente irracionais. A conversa, que se inicia de forma trivial, evolui de tal forma que deixa o ambiente tenso. Comentários normalmente inofensivos tornam-se o estopim para uma saraivada de reclamações e observações sarcásticas. E as protagonistas das discussões vão se alternando – casal versus casal ou um contra um em todas as combinações possíveis.

    A tensão que se instaura desde o início gera até uma reação física em Nancy. É estranho lembrar-se de um filme e referenciar-se a ele por causa de uma cena de vômito. Mas a cena foi tão bem feita e encenada, tão verossímil – tem-se a impressão de sentir aquele odor acre característico – que fica difícil não citá-la. Principalmente por que é a partir daí que a situação degringola. Se o espectador fica ao mesmo tempo surpreso e chocado com a cena, o mesmo ocorre com os personagens. O vômito parece servir de gatilho para os bons modos serem abandonados enquanto todos se sentem no direito de, a partir desse momento, expressar livremente seus pensamentos.

    Kate Winslet está perfeita nesta cena. Mas não apenas nesta: destaque também para o declínio do seu grau de sobriedade após alguns goles de um ótimo scotch. Aliás, todo o elenco está acima da média. Mesmo não tendo mais nada a provar, há tempos não se via Jodie Foster tão bem num papel. Numa obra em que a trama é calcada em personagens e diálogos, a excelência das atuações é algo essencial e que garante a fluidez da narrativa. O espectador consegue acompanhar, em closes e planos-detalhe, os gestos, maneirismos, micro-expressões de cada um dos atores, nuances dos personagens que seriam impossíveis de observar num teatro.

    Não é o melhor filme de Polanski. Mas mesmo um filme menor do diretor consegue conceder ao espectador uma experiência cinematográfica gratificante, mesmo que incômoda. Afinal, enxergar-se nas atitudes dos personagens não é nada agradável.

    Texto de autoria de Cristine Tellier.

  • Crítica | Detona Ralph

    Crítica | Detona Ralph

    poster detona ralph

    Desde a parceria com a Pixar, as animações da Disney apresentaram uma significativa queda de qualidade, perdendo um espaço que antes era dominado por seus clássicos. Tentando reverter este quadro, o estúdio riu de si mesmo em Encantada, mistura de animação com live-action, resultando em uma ótima bilheteria e dando abertura para que Bolt – O Supercão, A Princesa e o Sapo e Enrolados trouxessem rentabilidade ao estúdio e recuperassem parte de seu prestígio.

    Detona Ralph foi aguardado e esperado pelo público desde que sua trama foi anunciada, principalmente por se conectar à nostalgia de uma época em que o videogame era a principal diversão da maioria dos jovens. A cada novo material promocional divulgado, ainda mais os que continham a participação de clássicos personagem dos games, a expectativa aumentava e, antes mesmo de sua estreia, havia uma parte do público ansiosa pela produção.

    A maior preocupação em realizar uma história que adentra profundamente um passado nostálgico é saber se ele é capaz de fundamentar-se além da colagem de referências, elemento que sempre agrada o público. E a resposta mais rápida para está questão é sim, o filme é bem-sucedido.

    A premissa retoma um conceito de Toy Story: a ideia de que todos os personagens dos jogos ganham vida após o game over e podem sair de seus jogos e conviver em uma área pacífica de descanso até o início do expediente no dia seguinte.

    O detonador Ralph, do clássico jogo Conserta Feliz Jr, criado há trinta anos, está cansado de ser o vilão da história. Deseja ser reconhecido por seus colegas e sai à procura de conquistar o que demonstre seu valor. A nostalgia vista nas peças de divulgação concentra-se nos trinta minutos iniciais da trama, tempo que deixa qualquer jogador com um sorriso no rosto ao ver tantos personagens clássicos interagindo entre si, como na cena em que diversos vilões realizam uma terapia em grupo assumindo sua função má sem preconceito.

    Após as referências tão aguardadas, a história se concentra no conflito de Ralph, que abandona seu jogo ao descobrir outro em que o vencedor ganha uma medalha do final. É o ponto de partida para que a personagem quebre uma das regras primordiais entre os videogames: não se pode entrar em outro jogo sem provocar danos e nem problemas de programação. Durante sua jornada, Ralph conhece a pequena Vanellope von Schweetz e, com ela, forma a dupla central da história, unindo a força bruta do grandalhão à sensibilidade e à inocência de uma criança.

    O desenvolvimento da trama segue a estrutura de outros desenhos do estúdio: parte de um deslocamento das personagens centrais, produzindo uma história de conquista centrada na ideia de nunca abandonar quem se é nem desistir dos sonhos. A diferença é que, enraizada em uma história nostálgica, com personagens carismáticos, a repetição do argumento não deve ser vista como um problema, mas sim como uma base primordial de diversas animações que, se bem contadas, são eficientes para compor um bom filme.

    Mesmo que não se queira comparar ou competir, Detona Ralph é mais bem sucedido em sua proposta que Valente, a animação da Pixar que falha devido a um roteiro simplista, como uma tentativa de despir-se de camadas mais profundas, tão características do estúdio da luminária.

    O público brasileiro, traumatizado por Luciano Huck em Enrolados, teceu reclamações sobre a dublagem feita por Tiago Abravanel, Marimoon e Rafael Cortez. Porém, ela é competente e muito próxima da original, feita por John C. Reilly, Sarah Silverman e Jack McBrian.

    O sucesso da produção prova que a Disney ainda é capaz de realizar boas animações sem a necessidade de se apoiar na Pixar. Mas hoje, devido à demanda e à concorrência, é necessário maior esforço para se manter como a grande idealizadora dos clássicos como foi outrora.

  • Crítica | O Ditador

    Crítica | O Ditador

    O Ditador

    Ao começar O Ditador com a dedicatória “À memória do querido de Kim Jong-il”, Sacha Baron Cohen mostra novamente a que veio. Dessa vez ele deixa de lado as situações pseudo-reais dos anteriores, Brüno e Borat, mas novamente coloca um estrangeiro nos EUA fazendo piadas machistas, escatológicas e politicamente incorretas com o objetivo de fazer graça da nossa sociedade, modo de vida, governo e hipocrisia com alguma crítica social entre uma piada e outra.

    Sacha Baron Cohen interpreta o líder supremo, Aladeen, da república de Wadiya – nome que em português ficou ainda melhor. Somos introduzidos às excentricidades de seu general, como reduzir o dicionário de Wadiya e introduzir vários significados para a palavra Aladeen (uma referência clara a 1984 e à novilíngua), trazendo uma piada instantânea, com um médico dizendo que a um paciente que ele é HIV-Aladeen, e este em dúvida se chora ou se ri. Além disso, carros folheados a ouro, jardins esculpidos com a face do líder e um próprio discurso em que o general não consegue conter a risada ao dizer que seu programa nuclear será usado apenas para fins pacíficos e medicinais.

    Dirigido por Larry Charles, o filme tem roteiro do próprio Sacha Baron Cohen, além de Alec Berg, David Mandel e Jeff Schaffer. A maior parte do filme se passa nos EUA, onde Aladeen pretende discusar para a ONU, “colocando-os em seu lugar”, mas acaba caindo em uma conspiração para tirá-lo do poder, organizada por seu tio e conselheiro, Tamir (Ben Kingsley). Este o entrega para um agente americano interpretado por John C. Reilly (que não é creditado no filme), e ambos protagonizam uma cena hilária na qual, além de cortar a “barba sagrada” do opressor supremo, passam por uma discussão sobre os equipamentos de tortura ultrapassados do agente.

    A partir daí, Aladeen é obrigado a se passar por um qualquer, já que não é reconhecido sem sua barba, e é quando conhece Zoey (Anna Farris): uma ativista vegetariana, feminista e completo oposto do ditador, mas que o completará e, mesmo sem saber, o ajudará a retomar o poder. Além disso, ela e sua loja de produtos orgânicos são o estopim de uma quantidade imensa de piadas machistas e politicamente incorretas, que atingem em cheio defensores de ecologia, feministas, entre outros grupos. E tudo isso funciona, muito por todos esses estereótipos e o sarro tirado serem em função do próprio humor e uma crítica aos seus exageros, e não apenas por agressão banal a um grupo determinado.

    Além de Zoey, outro personagem importante é Omar (Sayed Badreya), um físico nuclear exilado de Wadyia que, nos EUA, trabalha como Apple Genius. Juntos eles farão planos mirabolantes para que o ditador volte ao poder, e assim ele terminará seu projeto nuclear “pacífico”.

    O roteiro tem seus problemas, seus furos, não é original – afinal, a mesma estrutura do estrangeiro deslocado já foi usada tanto em Borat quanto Brüno -, mas é aceitável, tanto pelo nonsense do que vemos na tela como por ele cumprir exatamente o que se propõe: fazer o espectador rir, por mais escabrosa que seja a situação representada.

    Outro ponto positivo para O Ditador é a trilha sonora com várias músicas de sucesso regravadas em arábe, como Everybody Hurts, do R.E.M., ou The Next Episode. As versões muito bem inseridas no filme já são motivo de riso imediato.

    O Ditador finaliza, então, com aquela figura infantil, mimada pelo poder e completamente deslocada da nossa própria realidade, que é Aladeen, fazendo um discurso contra a democracia e a favor de sua ditadura, usando argumentos que são justamente a realidade que vivemos em nossas democracias modernas: 1% do povo com toda a riqueza, a mídia manipuladora e controlada por apenas uma pessoa e suas famílias, entre outras. A cena me parece uma homenagem ao estilo Sacha ou até mesmo uma antítese do clássico de Charles Chaplin, O Grande Ditador, de 1940, que nos levanta o questionamento: mesmo tantos anos depois, talvez os nossos problemas continuem sendo os mesmos, apenas com outras figuras e uma nova roupagem.

    Não espere, é claro, o filme mais engajado e político dos últimos tempos. Ele é apenas uma comédia com um bônus bem-vindo que é sua crítica social, e que muitas vezes espera que o próprio espectador se sinta culpado por achar aquilo tão engraçado. Vale lembrar que Sacha é judeu e algumas das melhores piadas do filme são justamente anti-semitas.