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  • Crítica | O Apartamento

    Crítica | O Apartamento

    O prédio está rachando e todos debandam de suas casas, esquecendo seus faustos para a retirada de seus parentes, tudo às pressas. Colocando na balança o valor humano da tragédia, e mais nada, percebe-se a fragilidade e o drama reais do ser, enquanto o Aquarius e suas janelas racham e o imbróglio anuncia o que, senão catástrofe? O casal Emad e Rana se abriga então num novo edifício, ciente do drama que por pouco escapara, mas inconsciente do que lhe espera, e não por obra novamente do destino, mas porque ninguém até hoje conseguiu responder a uma simples pergunta: Teria o ser-humano as rédeas que moldam nossa antropologia de antemão, ou sobretudo seriam os cenários e as suas regras impregnadas que moldam seus habitantes; quem vem primeiro?

    Pouco se tem esclarecido, também, acerca da relação do novo trabalho de Asghar Farhadi com o teatro que substancialmente o inspirou (A Morte do Caixeiro Viajante, Arthur Miller, 1949), obra considerada por inúmeros teatrólogos uma das grandes peças do séc. XX. Uma joia da Broadway agora re-significada para o Cinema e circunstâncias mais atuais, mas cujo os principais temas dramatúrgicos, relatados a seguir, tornam-se intrínsecos aos elos dramáticos dos personagens de O Apartamento num jogo singelo de encenações, numa viagem entre moral e imoralidade e num verdadeiro embate entre humano versus ambientação impressionante, opulento às esferas do material original e visualmente detalhista onde tudo, absolutamente tudo na tela é essencial para a compreensão do todo. Pra começo de conversa, vale afirmar que ao estarmos diante de um poderoso aparelhamento audiovisual, feito este e boa parte das obra-primas do mais famoso cineasta iraniano vivo, devemos ter a noção não apenas das dimensões expostas em cascata pelo mesmo. Nota-se, principalmente que, apesar da enorme curadoria na precisão de elementos sentidos e à vista, ou seja, na racionalização esplêndida das peças de um quebra-cabeças de sentidos gigantes, há sempre espaço para algo maior, e melhor: A afirmação de um artista tijolo por tijolo – ou obra após obra, sendo mais contextual.

    Pela maneira ainda muito mais elegante e refinada que Alejandro Iñarrítu arma sua linguagem metalinguística no seu ótimo Birdman, pelo seu domínio ímpar e opulento tanto de sua mise en-scène, quanto na identidade que constrói para o seu olhar de mestre, sem me estender assim muito mais, ratifico que nenhum cineasta americano, da Groenlândia ao Chile, hoje, infelizmente, ostenta a mesma naturalidade no uso de uma câmera e de uma visão artística que Farhadi no seu cosmos muçulmano nos apresenta. Seja na cadência de seu movimento, seus debates ou no poder reflexivo de suas cenas, ele é único. É claro que essa naturalidade, objetivamente, transparece na maneira que seus temas, suas histórias e inspirações, também, desabrocham para o público num sem-número de interpretações possíveis, em escolhas visivelmente pessoais que o cineasta usa para esculpir suas verdades, tão autorais e tão compreensíveis por qualquer um que mora em sociedade e nutre suas relações da forma mais humana possível.

    O Apartamento faz parte de um Cinema que sempre existiu, que julga essas humanidades como numa encenação magistral recorrente a Carl Theodor Dreyer ou Luis Buñuel para fins socialmente irresponsáveis, debulhando na sétima das artes (e apenas na conta dela) o lado contestável do incontestável social e mudando, por excelência; jogando luz às trevas do arcaico e ao nevoeiro de algumas tradições e suas vicissitudes ao homem, pobre homem, seja qual for sua nacionalidade. Sim, é uma questão de independência. A temática original da peça norte-americana, na qual o ótimo roteiro de Farhadi não toma como releitura, serve para o filme decifrar seus mistérios e reflexos para seguir seu próprio caminho de arquétipos, sem adaptar nada, mas encenando sua narrativa literalmente num palco: Iluminado e organizado, em paralelo com o descortinamento moral de uma família presa à rudeza de um Irã conturbado (numa profunda e cronicamente amotinação). Essa temática então escapa desse palco de situações artificiais e invade a privacidade de personagens vítimas de seus triunfos e fracassos sociais. São debatidos portanto a Realidade, a Ilusão, e o Sonho. Na peça de Miller, além de sua época, o sonho americano…

    …e no filme, peça-chave para sentirmos a maturidade do criador de A Separação (2011) e O Passado (2014), o sonho de se viver em paz e nada mais; utopia essa (na era das distopias mas ainda participativa do cotidiano daquela gente) de quem demole seus ganhos sociais e sua estrutura coletiva também pela hiper-valorização de seus dogmas imutáveis, seus preconceitos, ritos e ritmos nacionalistas, mas não menos universais e atraentes a observação que Farhadi, não o cidadão, faz questão de encapsular sob a luz natural do meio-dia ou da noite iraniana. Um cineasta livre o suficiente para estar imerso na realidade de seu país, mas ainda bastante imparcial como o protagonista curioso de Cidade de Deus, isso sim, bisbilhotando o (terceiro) mundo pela rachadura de uma parede, ou às vezes aonde a luz não entra – mas onde uma câmera consegue facilmente se infiltrar e extrair de lá uma magnífica consciência da ação geral. Um tempo e espaço enfim presentes num belíssimo registro limítrofe entre as impressões que a arte e a vida, siamesas como só, podem colocar sobre os fortes ombros da realidade mundana.

     

  • Crítica | O Conto dos Contos

    Crítica | O Conto dos Contos

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    É sempre peculiar assistir como o mitológico, o lendário, é reciclado e moldado nas possibilidades pictóricas dos estilos de Cinema que resgatam reinações, hábitos e exercícios em prol de uma experiência cada vez mais refinada, na melhor das hipóteses, numa arte secular, palco de larga miríade de contos, crônicas e tantos outros compêndios narrativos.

    O Conto dos Contos não carrega o estigma de clássico imediato, isso só o tempo para afirmar. Tampouco carrega uma exasperante mise-en scène ou outros atributos de milhões de dólares, e muito menos o hype europeu e o preciosismo visual de outra fábula recente, A Assassina, o mais sublime dos catetos de Hsiao-Hsien Hou. Mas talvez seja esse “menos” que permita que o filme seja tão bom quanto poderia ser. Quando um rei e uma rainha desejam cegamente um filho, no seu reino de bobos-da-corte, um gatilho emocional e tão ligado às necessidades de uma família real, o diretor Matteo Garrone (Reality: A Grande IlusãoGomorra) convoca seus exageros e vaidades, e então a história começa a perder fôlego, fazendo o filme ostentar constante e humildemente uma vitalidade, mitologia e identidade próprias, e certamente, do começo ao fim das histórias interligadas, acima do lugar-comum.

    Um repertório de esmeros e elegantes encenações, elevando a perspectiva cármica dos tediosos contos de Cinema que apenas galgam a superfície de suas dimensões, seus potenciais às vezes desperdiçados, como por exemplo a decepcionante trilogia das Mil e uma Noites de Miguel Gomes, em sua versão autônoma e desalmada dos clássicos ramo-sírios contados por Xerazade. O Conto dos Contos comporta, senão luxo em sua produção, o respeito mais nobre e satisfatório pela tradição de se contar uma história, simples assim, e nos apresentar, economicamente, pouco mais do que precisa para ser um ótimo filme, de grandes inspirações e atores (Salma Hayek, destruidora).

    Um filme-primavera, desses que nascem para trazer respiro a um subgênero mais interessado em mostrar, do que saber contar. Garrone sabe onde pisa, e não se explica através do que filma, mas filma para poder explicar, no caso a confiança que possui e alimenta enquanto cineasta, melhor a cada obra. Um filme com um frescor criativo que Terry Gilliam e outros veem como ode e desculpa para traduzir suas bizarrices e besteiras de carnaval. O infortúnio em O Conto dos Contos (filme que de pretensioso tem só o título), no âmbito do uso de sua mitologia criada para o filme não existe, e, se o há, há senão no gosto de cada um de nós, críticos por natureza. Garrone apenas abre um leque tangencial para o deleite dos públicos mais diversos, e exigentes, num conto de situações e condições das mais empáticas possíveis – em especial, se comparado com outras produções de hoje em dia.

  • Crítica | Vocês, os Vivos

    Crítica | Vocês, os Vivos

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    Segunda parte da trilogia sobre a existência, Vocês, Os Vivos também é regida por Roy Andersson, mas tem seu formato diferente do anterior, Canções do Sétimo Andar, a começar pelo fato das cenas serem vinhetas realizadas sobre filmagem estática. Os pedaços do roteiro de Andersson envolvem a aleatoriedade da vida que, em uma análise visto o produto final, faz um sentido narrativo maior, ainda que os significados das 57 esquetes sejam únicos em si.

    As semelhanças com a primeira produção estão na métrica de explorar a alma do homem por meio de situações grotescas, valendo-se de arquétipos humanos comuns, repletos de defeitos, que visam democratizar a face estranha da humanidade a um modo universal. Um dos elementos escolhidos para estabelecer a narração no roteiro é o uso indiscriminado da trilha sonora incidental por vias de um modo semelhante aos musicais clássicos.

    O caráter agridoce neste é mais presente do que a felicidade indiscutível que normalmente permeiam os musicais famosos. A temática abordada envolve elucidações com a vida, morte, solidão, desprezo, doença, volúpia e amores não correspondidos, sempre com um aspecto visual que flerta com estranhamento ou que se baseia nessa sensação, uma vez que as personagens são enquadradas em um perfil estético normalmente distante do pregado pelo cinema comercial norte-americano.

    A variação entre personagens, quase nunca nominados, apesar de evocar situações inexoráveis a rotina do homem, também produz uma forte dose de enfrentamento, seja no visual da nudez ou nos diálogos travados nas cenas onde a erotização é a tônica. Mesmo estas cenas de cunho sexual, além de desafiar o conceito de erotização ocidental, apelando para fetiches, também transcorrem em meio a discussões sobre finanças, em um paralelo nada sutil da velha discussão sobre a capitalização da sexualidade e da banalização do coito em detrimento da moeda e do que o capital produz.

    A escolha estética de Vocês, Os Vivos inclui ao final uma pequena parcela de cenas de jovens, interagindo entre si em um momento onde a sexualidade deveria aflorar, pós casamento, ainda que a localidade temporal não seja exatamente uma noite para as núpcias. Os momentos que seguem a vinheta final fazem referência ao vazio existencial em que o homem pode se inserir através de uma passeata de pessoas e eventos grotescos, frutos do mundo e universo pensado por Andersson que, em análises herméticas, representam o cenário comum aos homens atuais.

    Compre: Vocês, Os Vivos

  • Crítica | Mr. Turner

    Crítica | Mr. Turner

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    O Cinema está muito mais para a cozinha que para a pintura. É que assistir a um filme e analisá-lo remete, muito mais, ao exercício gourmet que as pinceladas e ao mero observar de um painel, até porque só observar Era Uma Vez no Oeste, por exemplo, não é o bastante: É preciso degustar a obra de Sergio Leone, aliás sua filmografia inteira se possível. Mas e o fazer Cinema? Nisso, talvez, seja possível juntar as duas artes. Cinema é tempero, é ponto certo, ou ponto propositalmente errado, pode ser ebulição, mas também é cor, é visual, é harmonia pictórica e o escambau. Tudo junto e misturado, no que compete aos grandes filmes, mas não no caso de Mr. Turner.

    O filme de Mike Leigh é de uma beleza acachapante, tanto que é possível até sentir o cheiro de uma direção de arte e belezas naturais que explodem na tela. Mas se o Van Gogh de Robert Altman se assemelha ao valor estético de uma obra do genial pintor dos girassóis, o filme de Leigh, no erro de separar o homem do seu ofício, não consegue se apropriar ou sequer plagiar a graça de A Erupção do Vesúvio, de 1817, um dos quadros mais célebres de um grande artista. Grande demais para ser estudado a partir do homem, e não da riqueza que se esconde por trás da obra.

    Quando Timothy Spall, soberbo e vencedor de Cannes pelo papel, olha pela janela de seu ateliê quente e terminal, em busca d’um raio de inspiração, a cena sintetiza, por ironia, a maior deficiência do filme: A incapacidade de olhar para dentro de si mesmo, do que comandava as mãos daquele pintor, e apontar a direção certa para o degustar de uma cinebiografia insegura, com muito para dizer, mas que se apoia mais na dialética não-crítica do mostrar. É o exato oposto de filmes como Batman: O Cavaleiro das Trevas Ressurge, que, por mais interesses que carregava, falou mais do que mostrou, e também naufragou, feito outro dos quadros de Turner. Cinema é equilíbrio.

    Já a encarnação de Van Gogh por Maurice Pialat, em 1991, seja, talvez, o melhor “filme de pintor”. Acontece num espaço-tempo quando uma leve fidelidade aos fatos reais encontra uma condução perfeita, sem agressividades de nenhum tipo às vericidades do que é original, a fim de realçar tons e dar a outros um caráter mais abstrato, inclusive libertino. O bom gosto jamais é afetado pela vida inquieta do artista, mas pela interpretação livre tanto do homem quanto do seu ambiente – um trabalho europeu dos mais eloquentes, na razão de que qualquer arte submetida ao Cinema é naturalmente subvertida a sétima-arte, dado o poder de uma câmera diante de pincéis ou instrumentos musicais.

    O filme de 2014 muitas vezes não resiste e entrega quadros em movimentos, tamanho o espetáculo dos planos guiando-nos por uma visita ao museu das vaidades. Sim, pois é triste ver como Leigh deixa suas presunções dominarem momentos onde a liberdade criativa confunde-se com a ostentação de um cineasta já experiente, inclusive de suas manias, mas que deixa o filme à mercê de suas pompas e outros vícios. Cineasta ama brincar de Deus, e Mr. Turner não tem tempo pra transar; ele precisa criar e pintar quem está na cama o esperando; o mesmo diz-se de Leigh: não há tempo oportuno para cozinhar propostas na exposição de uma vida bem vivida. O diretor de Segredos e Mentiras é rápido e foca no icônico, e quando gira sua câmera ao coração e às artérias do artista, o filme perde totalmente seu fôlego. Foca tanto no expôr, de novo e de novo, que esquece o sugerir, o caro e valioso elemento do “pode ser”. E do jeito que foi feito para ser, Mr. Turner só não é um filme acadêmico dos mais caros porque Leigh, sabiamente, deixa Turner falar mais do que fala por ele.

    Eis a maior qualidade de uma cinebiografia, bem representada aqui. Seja como for, a meia hora final é como assistir, em slow motion, a alguém jogar baldes de leite em quadros de cores quentes. Nada se decompõe, mas a percepção emocional do “quadro geral” avisa-nos que, no contraste com a vida do pintor, não há muita energia restante na linguagem perto do fim. Estimular percepções é trabalho de mestre, triunfo que artistas do nível de Leigh ou do pintor britânico já atingiram, sem comparações de habilidade, mas pelo tempo de serviço, cada um em sua arte, cada um na sua época. O Cinema deve muito a Pintura, em especial ao pós-impressionismo de Gogh e Cézanne, mas pelo que de mais imensurável habite os painéis (nada gratuitos nas intenções) do nosso conturbado William (e que de fato se esconde), o visualmente belo Mr. Turner, tal várias teorias de comunicação e o cubismo cafona de Romero Britto, já nasceu ultrapassado.

  • Crítica | Reality

    Crítica | Reality

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    Matteo Garrone ganhou projeção internacional  em 2008 com Gomorra. Sua adaptação do polêmico livro de Roberto Saviano foi elogiado em festivais como Cannes e Veneza, e celebrado como um retorno do cinema italiano ao neorrealismo: filmes voltados para a crítica social e tão comprometidos com um retrato acurado da realidade que diversas vezes utilizavam amadores em vez de atores profissionais.

    Gomorra é um filme cru e violento, um soco na cara do espectador que em momento nenhum pede desculpas ou tenta amenizar o terror daquilo que conta. Reality é exatamente o contrário. O novo trabalho de Garrone é novamente filmado com não atores, no sul da Itália e falado em napolitano, mas é uma comédia, uma sátira ácida e divertida, um filme agradável sobre um tema tão pertinente quanto a máfia italiana.

    Luciano é um pescador de Nápoles, querido no bairro. Ele vive com sua mulher e filhas, todas elas obcecadas com a versão italiana do Big Brother. Um dia, em um passeio pelo shopping, ele decide se inscrever para a seleção apenas para que elas fiquem felizes. Um tempo depois Luciano é chamado para uma segunda fase do processo de seleção e passa a ficar obcecado com a ideia de se tornar uma estrela de reality show.

    O filme acompanha o crescimento do delírio e da paranoia de Luciano enquanto espera a convocação para o programa. Ele vende a peixaria, compra roupas novas, age como se tornar-se uma celebridade fosse questão de tempo. Poderia ser ridículo e engraçado, e é, mas é também patético e dolorido e Garrone acerta ao balancear e explorar todos esses sentimentos.

    Aniello Arena, que interpreta Luciano, não é ator, mas seu carisma é um dos grandes trunfos do filme. O personagem é simpático, amável e extremamente humano. Luciano se veste de mulher no casamento dos amigos, diverte os clientes da peixaria, canta e dança nas festas locais. Em sua comunidade, Luciano é um homem especial e a queda que ele sofre é justamente a descoberta de que no fundo ele é apenas ordinário.

    Em oposição a Luciano, o filme apresenta Enzo, um desses ex-BBBs que acabam se tornando celebridades por um mês graças a uma mistura de beleza e clichês de auto-superação. Enzo tem apenas uma frase de efeito, nenhum carisma, nenhum talento, mas a televisão fez dele uma estrela. Enzo foi escolhido entre milhões de italianos e, portanto, deve ter algo de especial, algo que o destaca da multidão e é essa confirmação, a confirmação de estar destinado a grandes coisas que Luciano aguarda.

    Reality é uma comédia, Aniello e Garrone constroem um Luciano simpático e garantem que o espectador ria o tempo todo de seus delírios de grandeza. Ao mesmo tempo o diretor não poupa acidez e não hesita em desnudar o que realmente faz com que reality shows tenham tanto sucesso e causem tanto fascínio. Ao contrário de Gomorra, aqui o tema incômodo vem embalado em açúcar, mas isso não diminui em nada a sua força. Reality é um filme incômodo, forte e com um final maravilhoso.

    Texto de autoria de Isadora Sinay.

  • Crítica | Amor

    Crítica | Amor

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    Michael Haneke é um cineasta com um projeto muito claro: colocar na tela aquilo que o espectador preferia não ver. Violência gratuita, perversão sexual e as origens do nazismo já foram seus temas e em Amor, ganhador da Palma de Ouro em Cannes no ano passado, ele realiza o que parece ser seu filme mais íntimo, ao mesmo tempo em que trata de um dos assuntos mais onipresentes do universo: a morte.

    Anne e Georges são um casal idoso que vive em Paris. A sequência inicial do filme nos mostra um casal extremamente próximo, íntimo e independente que vai a concertos ver antigos alunos. Haneke constrói, nos primeiros 15 minutos de seu filme, um breve retrato de um casal em que o marido, aos prováveis 50 anos de casamento, ainda diz como sua mulher é bonita. É breve, mas essencial para que se entenda o que vai ser perdido mais tarde.

    Anne sofre um derrame e a cirurgia que se segue a deixa com a perna e o braço esquerdos paralisados. A perda de movimentos parece pequena; no entanto, Anne deixa de ser um ser humano independente, deixa de ser dona de suas vontades e, mais do que isso, traz para o casal a consciência da morte. Algo ali se quebra assim que Anne volta, e Haneke faz questão de demonstrar isso visualmente: o escritório onde o casal passa seus dias é todo decorado em cores quentes, tons de amarelo e laranja; a iluminação usada acentua esses tons e as vestimentas de todos os personagens que passam por ali são sempre em tons de marrom, exceto as de Anne, sempre em cores frias, como se já não pertencesse ao lugar onde a vida se dá.

    O derrame de Anne anuncia a morte, e o filme anuncia seu segundo capítulo com a visita de um ex-aluno. Ele chega de preto, de surpresa, e sua visita lembra a personagem de sua idade, de tudo de que ela já não lembra e do início de sua decomposição. Pouco depois ela tem um segundo ataque e começa uma espécie de segundo ato.

    Nessa segunda parte o que vemos é um ser humano que definha, morre devagar e dolorosamente em uma tela de cinema. Progressivamente Anne perde a dignidade, a personalidade e passa a ser tratada como uma coisa, um corpo doente e nada mais. Ao mesmo tempo, Haneke discute o próprio filme, ao opor a recusa feroz  da filha de Anne e seu marido a aceitar a morte da mãe à conformidade de Georges. Eva, a filha, está no lugar do espectador que preferia não entender aquilo que o personagem, e o cineasta, insistem em dizer que é inevitável.

    Amor é um filme claustrofóbico: ele se passa inteiro em um apartamento, os planos são fechados e são feitos muitos closes dos rostos dos personagens. Ao mesmo tempo, esse apartamento é decorado de forma agradável, íntima, e a luz quente e difusa aumenta a sensação de conforto. É um pouco como o longa: duro, contido, cruel, mas cheio de momentos de ternura e graça.

    Perto de A Fita Branca, seu trabalho anterior, Amor a princípio parece um filme menor e menos ousado. Mas, conforme ele se desenrola, a honestidade de Haneke mostra que o minimalismo ali fala muito. Amor é essencialmente sobre o que nos faz humanos: a morte, a resistência a ela, o amor como forma de aceitação e, finalmente, os limites desse amor. É profundo e visceral e confirma Haneke como um dos maiores cineastas em atividade.

    Texto de autoria de Isadora Sinay.