Baseado na aleatoriedade da filmografia recente de Woody Allen, que apresenta quase sempre um filme interessante seguido de um rançoso, Homem Irracional é tão assertivo quanto uma bala que penetra a testa após uma roleta russa. O trailer e materiais promocionais apontavam para mais uma simples história de superação, onde o deprimido e resignado escritor e mestre Abe Lucas – executado por Joaquin Phoenix em uma forma rotunda quase irreconhecível – chega a um novo ambiente: uma universidade pequena para lecionar, onde conhece a jovem e apaixonante Jill (Emma Stone), que provocaria nele uma virada de perspectivas, comum em tantas comédias românticas recentes.
O fato da premissa se assemelhar com a do filme de Marc Lawrence, em seu recente Virando a Página, quase fez o filme sofrer o mesmo estigma que A Origem sofreu quando teve seu drama comparado ao de A Ilha do Medo. Mas o paralelo só serviu de despiste, o primeiro de tantos outros, uma vez que o argumento não se rende a essa solução fácil de inspiração baseada em outrem para funcionar.
A saída para a crise existencial de Abe não é ligada a libido, ou ao frescor causado pela volúpia de consumir “carne nova”. Pelo contrário. Suas mudanças posturais ocorrem em decorrer da nova motivação que toma para si e para os efeitos que seguem após suas atitudes mais enérgicas na tentativa de mudar o status quo – ou ao menos é esta a desculpa que o homem entrega para si.
A escolha de Allen por um estilo diferenciado em Homem Irracional se prova uma saída excelente para a mesmice que sua filmografia insistia em cair, dando um motivo metalinguístico plausibilíssimo para a verborragia que normalmente permeia suas obras. Justifica até as narrações variadas entre Jill e Abe, em um resgate e quase homenagem a tradição de Scorsese vista em Os Bons Companheiros, ainda que o mote e os significados sejam bastante diferentes neste do que foi no pretenso filme de máfia, guardando algumas poucas e notáveis semelhanças entre os dois produtos.
O texto tem bastante do conteúdo ideológico de Um Homem Sério, ainda que as semelhanças pareçam muito mais ideias que ululam pela cabeça do roteirista do que influência direta. O caráter da discussão no entanto é muito parecido, como se fossem estes parentes distantes, cujo ideário cresceu similar apesar da gritante distância entre um e outro.
O jogo de cores que Woody Allen escolhe tanto nos figurinos quanto nos cenários faz com que todo o falatório sirva apenas para explicar, para as plateias menos ávidas pela temática de mistério, o que transcorre na tela, como um autêntico mcguffin, tão comum nos filmes de suspense. A tonalidades das vestimentas de Abe evoluem para tons fortes, com o decorrer de sua mudança ideológica, passando de tons átonos para grafismos mais vívidos e claros, retornando a tons graves após as tomadas de decisões polêmicas que tomam. Todas as transformações espirituais que acometem o personagem são notadas pela sua mudança de vestuário, aspecto que também acolhe Jill.
O estigma visual torna o roteiro ainda mais inteligente, valorizando o acaso primeiro em relação ao conteúdo teórico, e depois refutando a questão instintual, discussão esta tão repetida nos diálogos, mas que somente ganha contornos reais quando mostrado no ecrã, sem descrições de falas. Quando a imagem diz tudo por si só. Allen faz um brilhante retorno aos primórdios do cinema mudo, em que a narrativa imagética era o suficiente para entreter e embasbacar seu público, e no qual o inverter de expectativas era um aspecto básico da arte.