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  • Resenha | Por Que Não Sou Cristão – Bertrand Russell

    Resenha | Por Que Não Sou Cristão – Bertrand Russell

    Certas obras nascem com o propósito nobre, e aguerrido, de serem desacreditadas por seus detratores inevitáveis. Eles certamente aparecerão, na publicação dela, e tratarão de deslegitimar o seu valor – seja em qual mídia essa criatividade se manifestar. Russell tinha como dom a verdadeira provocação sobre tudo aquilo que falava, em plena Inglaterra e Estados Unidos do século XX, e na coragem histriônica que um homem histórico carrega nas costas, libertava suas noções feito ovelhas desgarradas para que o mundo, sempre pronto e ligeiro, entregasse o julgamento, qualquer que fosse.

    Sua maior bravura, entretanto, a mais polêmica e famosa pelo menos, tem nome e direção: Por Que Não Sou Cristão é um conjunto de ensaios, ou melhor, faz-se como uma extensa indagação cujas diversas respostas, desdobradas ao longo de poucas e ousadas páginas, são tão orgulhosamente mundanas quanto estimulantes, em prol da discussão do que é indiscutível para a maioria das pessoas. Aqui, todo tabu seria exterminado pelo escritor, explodindo a zona de conforto que traz a figura de um altar, uma cruz, a fé cega pelo invisível – mais do que em nós mesmos. Talvez Russell enxergava demais, mas para muitos, era certamente míope.

    Questionador, fazia jus a primeira dedução, ainda que duvidosa, ao revirar e explorar o potencial da consciência humana em detrimento da confiança absoluta em Deus, já que todo cego corre o risco de tropeçar. Assim, a fé e seus dogmas são sondados pela luz reconfortante e sempre válida da filosofia, por mais agressiva que ela possa parecer ser, aqui, aos cristãos que se aventuram pela leitura. Aviso: não há ataques, não há a rebeldia que muitos autores poderiam tecer em busca de uma “guerra pelo certo”, com o leitor. Porém, se hoje podemos enxergar sua postura como totalmente crítica, e inquieta, ainda nos anos quarenta isso afetou profundamente a sua reputação pública.

    Numa época em que as liberdades de pensamento ainda passavam pelo filtro da religião, da sua moral e dos seus bons costumes ainda tão zelados pela Igreja, o escândalo das resoluções de Russell, que questionavam explicitamente a moralidade “irrefutável” do que era lei, se fez apenas uma questão de tempo. Não deu outra: foi expulso da Faculdade Municipal de Nova York, difamado e formalmente julgado, até finalmente ser condenado a não lecionar nunca mais em nenhuma escola dos Estados Unidos da América – intolerância esta que o fez retornar a Inglaterra, e, hoje, emblema um dos mais célebres casos de perseguições a filósofo modernos.

    Contudo, nota-se que não há entre os ensaios de Por Que Não Sou Cristão uma última palavra, e sim a existência democrática, e libertária de pensamentos, a respeito dos silêncios generalizados que existem em torno das doutrinas religiosas, e seus amplos efeitos no nosso comportamento individual, e coletivo. Indo muito além de discutir apenas a fé pelo divino, é portanto admirável o quanto Russell se estende em suas reflexões, e analogias, sem jamais perder o fio da miada, ou tampouco parecer um analista severo demais ao cristianismo, e as virtudes das faculdades humanas, uma vez que a dinâmica de sua escrita consegue ser divertida e instigante. Ao mesmo tempo.

    Estamos falando de uma verdadeira coletânea de catorze ensaios, sendo o primeiro datado de 1927, e publicada exatos quarenta e seis anos depois do filósofo vencer o grande prêmio Nobel de literatura, em 1950, ainda em meio à crise envolvendo sua imagem pública e non grata, em muitos lugares. No Brasil, tivemos em 2013 a chance da L&PM Editora traduzir os intrépidos pensamentos do britânico que defendia que “pessoas muito simpáticas são aquelas que têm mentes repulsivas”, a ponto de termos o prazer de acompanhar, em língua portuguesa, o ponto mais alto destes ensaios atemporais do cara: um debate do próprio acerca da existência de Deus com o padre F.C. Copleston, um sacerdote astuto, cujos argumentos certamente lavam a alma de muitos cristãos, até o clímax do livro. Um duelo de titãs que, por si só, já vale a leitura.

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  • Crítica | Maria Madalena

    Crítica | Maria Madalena

    O universo semântico da religião cristã é extremamente enriquecido por simbolismos, e praticamente insondável em suas diversas significações latentes. No campo do cinema, fica difícil lembrar de um cineasta que melhor trabalhou elementos religiosos que o dinamarquês Carl T. Dreyer em seus filmes colossais como em Dias de Ira, ou no seminal A Palavra. Nos títulos aqui lembrados, ou ainda no brasileiro O Pagador de Promessas, o peso e o valor de uma religiosidade onipresente atuando sobre o que é humano chega a ser plenamente inseparável da própria dimensão atmosférica, tanto realista quanto lúdica que esses grandes filmes do passado carregam, e por conta disso, continuam influenciando e insuflando trabalhos de arte contemporâneos na exploração pelo sagrado, nas suas mais variadas interpretações, ao longo de séculos de releituras criativas bem-sucedidas, ou não.

    Dito isso, é possível notar uma digressão e um certo abuso dessa mitologia nesse Maria Madalena, de Garth Davis, diretor do super estimado Lion: Uma Jornada para Casa. Para David, a religião é um desafio constantemente posto à prova, quase um sacrifício dos homens para com um sentido maior, o que rivaliza com a imagem histórica da mulher homônima, vulgo prostituta como passou a ser mais reconhecida que cruzou o caminho do próprio Cristo, em tempos de conflito para ambos. O filme de 2018 trata de sondar a vida pré-envolvimento da mulher com a figura superior cujo contato a transformou num dos ícones femininos mais ligado ao filho de Deus. Pela primeira vez no Cinema, Madalena passa de coadjuvante da história mais famosa de todos os tempos, para a protagonista dos seus desafios pessoais, seu próprio drama e do seu próprio ponto de vista melancólico sobre o tempo presente que viveu, e resistiu, tal qual o homem que tanto admirou.

    Longe de convertê-la numa Jorna D’Arc, o que talvez não seria de todo mal para o empoderamento da personagem, a Madalena de Rooney Mara sente o peso da sua vida como se o aceitasse, como se estivesse ligada permanentemente ao divino; em algo extra mundano que a acalentasse além das agruras da sociedade – em seu primeiro contato com Jesus e seus apóstolos, o vento sopra como se a conduzisse para onde ela anda ao encontro do mar, para onde todos se dirigem. Nesses breves momentos, a expressão da espiritualidade se funde com o avanço da narrativa que, ao final, carece de atitude, de substância, invariavelmente abatida por sutilezas em excesso. Uma sensibilidade que parece indicar o medo do cineasta de investir impactos emocionais em momentos de grande potencial polêmico.

    Uma encenação a favor dos atores, acima de tudo, servindo mais a eles que a história e suas situações, entre inúmeros cenários barrocos e áridos sempre sob uma luz azulada e leitosa, assumindo nessa iluminação a presença do divino. Mara e Joaquin Phoenix, ótimo como sempre, estão contidos e hiper sóbrios no papel do messias e sua seguidora, mas limitados pela própria iconicidade intocável dos seus papéis. Nesse exercício de reler pela enésima vez uma situação fadada ao conflito, e a tragédia, o lado interessante do filme nunca é revelado, sendo assim mais um suspense histórico que o drama que pode se vender para o público que compra sua imagem de “obra devota a figuras emblemáticas”, cujo verdadeiro lado expressivo e simbólico o filme esvazia a cada cena, preferindo manter seu potencial enrustido a cada instante.

    Claro que um tema desses, tão difundido e sensível por toda a humanidade afora, é um desafio e tanto para os atores e para a sua direção, apática e quase inexpressiva, gélida e beirando a preguiça – a sensação é essa em vários momentos –, deixando sempre o peso de algumas sequências falar por si só (saudades de Martin Scorsese), como quando Cristo opera seus milagres e revive um homem já ligado a suas moscas fúnebres, e terminais. Desses momentos já esperados, e mal aproveitados, até a inevitável crucificação tocante do ícone, o filme falha em discutir o poder da fé, e tenta reviver sua própria simbologia para torná-la valiosa e o mais útil possível em prol do desdobramento frouxo da trama. Nisso, Maria Madalena acaba caindo no lugar comum das adaptações bíblicas que se amontoam na tevê, nessas celebrações de fim de ano.

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  • Crítica | A Vida de Brian

    Crítica | A Vida de Brian

    O nonsense, enquanto categoria de humor, foi reinventado pelo Monty Python. A Vida de Brian (1979, no original inglês Life of Brian), escrito por  Graham ChapmanJohn Cleese, Eric IdleTerry JonesTerry Gilliam e Michael Palin, com direção também de Terry Jones, é outro filme da companhia britânica que explora o inusitado, o absurdo, o sem sentido, enquanto conta a trajetória de um galileu. Contudo, ao invés de contar o martírio de Jesus, acompanhamos a trajetória de Brian, um cidadão da Galileia que nasceu na mesma data e horário do Filho de Deus.

    Para que este texto (ou o filme) não seja mal interpretado como uma sátira da religião alheia, transcrevo algumas frases de Eric Idle, um dos Pythons, sobre qualquer tentativa de associar o filme a ridicularizarão cristã. “Ele (Jesus) não é particularmente engraçado. O que ele diz não é motivo de piada, são coisas muito apropriadas”. Dito isso, o longa conta a odisseia de como o vendedor de quitutes do “Coliseum da Galileia” se tornou líder religioso e foi crucificado.

    O filme é uma sequência de situações cômicas (sketches) da vida do personagem principal e daqueles que orbitam ao redor dele. Dessa forma, temos múltiplos dramas explorados. Logo no começo somos apresentados à Frente de Libertação da Galileia, um movimento popular que deseja chutar os romanos para fora da cidade, ao qual Brian se alia por ódio aos colonizadores. Os romanos, por sua vez, são liderados por César, um imperador com problemas para pronunciar certas consoantes (e de entender trocadilhos nos nomes).

    Combatendo pela Frente de Libertação, Brian resolve se disfarçar como profeta para passar despercebido pelos romanos. O estratagema dá certo, mas as massas começam a suspeitar que mesmo aquele palavreado incoerente guarda algum tipo de salvação. Não demora muito para que ele angarie seguidores e se torne o novo Messias da Galileia. A escalada dos eventos discute como as pessoas, muitas vezes com liberdade cerceada e carentes de líderes representativos, por vezes aguarda um salvador, mas este é apenas uma farsa (nesse caso, uma comédia).

    Brian e sua mãe começam a ser cultuados como milagreiros e libertadores com uma fila de alienados seguindo-os. Ele esquece o objetivo principal (acabar com os romanos), e começa a sofrer as consequências por ter sido o líder das multidões. O que foge à explicação, cabe ao nonsense. Piadas certeiras, humor com trejeitos impecáveis, e uma diversidade de personagens, que, mesmo com os atores principais da companhia se revezando entre dezenas deles, têm, cada um, um toque de vivacidade impressionante.

    Nonsense é um gênero que divide facilmente o público. Ou você gosta ou não, não têm muitas pessoas no meio termo. Enquanto expectadores ficam se perguntando o motivo da situação absurda ou do desfecho ilógico da sketch, o apreciador do gênero se delicia com o inesperado rumo das ações. As situações ficam colossalmente inusitadas (ou ridículas) e qualquer tentativa de encontrar lógica naufraga frente o humor despropositado e sem sentido. A lógica é não ter qualquer lógica.

    Curiosamente, o longa foi filmado na Tunísia, onde tinham acabado de gravar Star Wars: Uma Nova Esperança, de George Lucas, e Jesus de Nazaré, de Franco Zeffirelli, onde inclusive vieram a utilizar o resto de figurino e cenário do filme de Zeffirelli. A Vida de Brian contou ainda como principal financiador o beatle George Harrison, grande fã da companhia, que veio a investir 4 milhões de dólares na produção, o que veio a render um pequeno easter egg no final do filme, onde o cantor de Always Look on The Bright Side of Life fala bem baixo “Eu contei pra ele, eu disse ‘Bernie, eles nunca terão esse dinheiro de volta’”.

    Por fim, o longa apresenta o humor no estilo mais primitivo, irônico, inusitado, ilógico, e algumas vezes até ingênuo, que possa imaginar. Simplesmente uma obra-prima do nonsense.

    Texto de autoria de José Fontenele.

    https://www.youtube.com/watch?v=Z6tzMvbbkzQ

  • Resenha | Maria Chorou Aos Pés de Jesus

    Resenha | Maria Chorou Aos Pés de Jesus

    A Bíblia 2.0, por Chester Brown.

    Resultado de novas interpretações de passagens bíblicas, Maria Chorou Aos Pés de Jesus: Prostituição e Obediência Religiosa na Bíblia, de Chester Brown (Pagando Por Sexo), publicação da editora WMF Martins Fontes e tradução de Érico Assis, adapta ao quadrinho oito histórias, a saber: “Caim e Abel”, “Tamar”, “Raabe”, “Rute”, “Betsebá”, “Os talentos”, ”Mateus”, e “O filho pródigo”. Em comum, as histórias femininas lidam como a prostituição e as outras sugerem uma nova visão sobre as designações que o Senhor dá aos seus filhos. Ao final dos quadrinhos, um Posfácio de quase cem páginas onde o autor explica o embasamento teológico por trás do desenvolvimento das histórias recontadas.

    Em “Caim e Abel”, “Os talentos” e “O filho pródigo”, Brown sugere, teologicamente, que “Deus admira e valoriza aqueles que desafiam o édito da história, e que ousam fazer o melhor para si de maneira que conflitem com a ordem que lhes foi criada”. A justificativa acima, Brown retira de A Filosofia das Escrituras Hebraicas, de Yoram Hazony. Segundo o autor, isso justifica Deus, em “Caim e Abel”, ter preferido a oferenda de carne oferecida por Abel, que o trigo oferecido por Caim. Caim fica insatisfeito com a predileção do irmão visto que Adão ensinou aos dois que, após expulsos do Paraíso, Deus mandou eles apenas se alimentarem de frutos da terra. Abel ultrapassa esse mandamento e é preferido por Deus, o que, segundo o autor, fez nascer a ira e posteriormente o assassinato cometido por Caim.

    Em “Os talentos” e “O filho pródigo”, as histórias coincidem com personagens que herdam fortunas e escolhem gastar com mulheres e entretenimento. Contudo, não são repreendidos pelos seus senhores/familiares, mas premiados. Segundo Brown, esse contrassenso é justificado teologicamente porque “Deus não vê suas leis como absolutas”. Ousar, portanto, mesmo ultrapassando as leis, pode fazer parte dos desígnios divinos.

    Em “Tamar”, “Raabe”, “Rute” e “Betsebá”, Brown trata de prostituição como uma atividade que garantia sobrevivência às mulheres. Como o patriarcado por vezes relegava à mulher posições menos privilegiadas na sociedade daquela época (e atual também), a prostituição era (ou é) utilizada como uma alternativa que por vezes garantia a sobrevivência delas, seja por ganharem dinheiro com isso, seja por utilizarem como forma de driblar o sistema das casamentos ruins/fracassadas.

    Em “Mateus” o tema também é prostituição. A história contada por Brown sugere que Maria era prostituta e que Mateus buscava colocar essa informação no evangelho que estava escrevendo, mas, sabendo que seria censurado nas traduções posteriores, buscava uma alternativa para passar a informação adiante. A solução foi elencar a genealogia feminina de Jesus, ou seja, ao invés de informar sobre o pai e os pais de Jesus, o que seria o correto para a época, Mateus escolheu começar o evangelho pela ascendência das mães dele, assim, segundo Brown, ele poderia dar a informação que Maria era prostituta ao elencar outras meretrizes historicamente famosas.

    Em termos gráficos, os desenhos são tecnicamente simples. Quatro quadrinhos por páginas com variações de preto e valorização dos espaços em branco. Poucos closes e em nenhum momento a boca dos personagens está aberta nos diálogos. O posfácio de Brown responde todas as dúvidas sobre as escolhas narrativas feitas e as referências utilizadas pelo autor. Vale a leitura.

    Texto de autoria de José Fontenele.

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  • Crítica | Últimos Dias no Deserto

    Crítica | Últimos Dias no Deserto

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    O deserto é um ambiente iluminado e obscuro, permeado por uma vida subterrânea e um relevo duro e instável. É o cenário perfeito para se perder, e talvez para se encontrar. E este caráter polissêmico do deserto reflete nas 3 religiões concebidas no deserto, cristianismo, judaísmo e islamismo, e suas mitologias, sendo no deserto o local onde a fé é confrontada, idealizada e onde o silêncio ou a insolação permitem que homens de fé ouçam Deus.

    Essas características são tratadas neste novo filme sobre a trajetória de Ioshua, como chamava Maria, ou Jesus (Ewan McGregor, que já nasce como uma escolha problemática pela perpetuação da visão eurocêntrica de Jesus). A fim de encontrar sua fé e a si mesmo, Ioshua peregrina para si no deserto e confronta-se com a tentação do Diabo que o acompanha na intenção de dirimir o relacionamento entre filho e deus-pai e assim tentar o homem santo. Seu jejum é hoje cumprido e celebrado na quaresma, período que antecede a Páscoa. Nesta apresentação de Rodrigo García, na última tentação de Ioshua a característica de sua filmografia de estranheza sobre o mundo ao redor se mantém, com tons bem menos sensacionalistas que seus pares, vemos um Jesus transformando-se em Cristo a partir da provação imposta a si, e punindo-se por não poder salvar a todos. Durante a jornada, Lúcifer (também interpretado por McGregor) surge como um reflexo seu na água, uma visão distorcida de si mesmo, mais charmoso e alegre, mas com uma estranheza e carência tocantes. Aqui o Lúcifer é demonstrado como um filho que perdeu o amor do pai e assim sente-se deslocado de si e do mundo, apresentando-se como um anjo caído e trágico. A interpretação de Lúcifer como uma visão do próprio Jesus demonstra ideia de que o Diabo não apenas como uma figura mítica, mas também uma face do próprio Jesus caso ousasse descer a ladeira escorregadia da perda da fé.

    O deserto é apresentado como uma forma de restauração, pois embora a vida ou fé se mostrem difíceis de serem cultivadas em um local tão árido, é lá onde ambos se tornam mais fortes. O povo do deserto é forte, é robusto, moldado pela geografia e quase sendo uma parte inalienável da mesma. O sofrimento torna o pobre forte e mata o pobre de espírito. A fé é então tão mais forte quanto mais posta a prova. A fé surge neste ambiente porque é então tudo que resta à quem está perdido.

    Toda a mitologia judaico-cristã tem como temas relevantes a solidão, a provação e a devoção. Neste ponto o deserto apresenta participação central, pois suas características representam muito do que se obtém dessas religiões, onde a vida realmente satisfatória é a pós vida. A vida no deserto não é satisfatória, mas olhar Jerusalém ao horizonte é suficiente para alimentar a esperança, e viver no amanhã de sua fé.

    Para apresentar este capítulo da vida de Jesus, o diretor Garcia volta-se para uma abordagem menos glamourosa, evitando o uso de filtros e de trilha sonora, colocando a jornada filmada em perspectiva e inserindo o espectador na trama. Em determinado momento nos é apresentada uma família de nômades do deserto. Pessoas sem nome que são representadas apenas pelos seus papéis e assim, o reflexo desses papéis nas elucubrações de Jesus. O Pai, o filho e a Mãe, em uma trindade pré cristo. O pai, potencialmente perigoso, de alma boa, porém árida, incapaz de conversar com seu filho mesmo quando este está ao seu lado, mesmo quando tentava. A falta de carinho, a falta de fala, a dispersão apesar de dizer seu amor. “Não fale, aja, e quando não puder agir, o silêncio”, diz Jesus à si mesmo em determinado momento. Assim a fala do amor sem sua ação dispersa-se e gera a raiva, a morte do amor e da fé. “Eu não sou um mal filho”, grita o Filho (O excelente Tye Sheridan, porém aqui aquém de sua performance possível) e isto reflete em Jesus, que sem saber o que esperar, implora uma resposta de Deus aos seus apelos. A Mãe adoece, e ameaça ruir aquela família com sua doença. Jesus sente então em si a dificuldade de ser não apenas Santo, mas ser pessoa, flertando com seus sentimentos e sensações apresentando tanta empatia quanto estranheza, sem jamais se encontrar em vida.

    Texto de autoria de Marcos Paulo Oliveira.

  • Crítica | Jesus Camp

    Crítica | Jesus Camp

    Fundamentado em um discurso bastante constrangedor que visa trazer a “America” – somente o país do norte, com a bandeira azul, branca e vermelha – para as mãos de Cristo, o documentário de Heidi Ewing e Rachel Grady mostra em seu começo a multiplicidade do pensamento cristão protestante, distinguindo, em um programa de rádio, duas linhas de pensar a função do evangelho dentro da sociedade secular. Em meio a essa afronta, investiga-se um local específico, onde crianças de idades variadas aparecem em um peça teatral, trajando farda e camuflagem diante dos pais e responsáveis.

    O Jesus Camp é um espaço pensado a partir da mentalidade batista, inspirada no testemunho do conhecido pregador Billy Graham. O objetivo do acampamento é isolar as crianças dentro de um ambiente onde sua atenção, seus corações e mentes poderiam proliferar e cultivar a mensagem cristã. Aos mancebos é dada a mensagem de que seria a função deles mudar o mundo externo, recebendo uma educação específica, repetindo frases feitas cujo efeito reflete em suas almas, voltando-as para um estado de transe em que os pequeninos começam a falar uma língua indistinguível. A questão de ser esta uma viagem é logo refutada pela líder do culto, Becky Fisher, que é filha de um pastor e responsável por ministrar as palestras às crianças.

    Logo, o discurso pacífico e conciliador é posto de lado, com Fisher declarando abertamente que seu objetivo em passar a “Palavra” aos infantes é estratégico, o que em si contém uma declaração de guerra. Seu discurso é repleto da retórica do medo. Segundo sua fala, a religião e modo de viver correriam risco de se extinguir caso não se esforçassem em evangelizar o maior número de meninos possíveis, uma vez que os palestinos fazem o mesmo esforço, assim como todo o Islã. Para vencer seu opositor, os “justos” precisariam se valer das mesmas armas, que ao ver dos cristãos são fajutas, mas quando são usadas por si tornam-se somente uma arma de salvação de almas.

    Mesmo as mães, ao travar conversas com seus herdeiros, transparecem um preconceito desmedido, diminuindo o pensar científico, indicando aos pequeninos que respondam à altura caso o criacionismo sofra qualquer impropério. O pensamento falacioso e sofista é plantado desde cedo no ideário dos pré-adolescentes, para que, ao crescer, eles respondam do mesmo modo, rejeitando qualquer argumento educacional, fortalecendo o ideário bélico que complementa a aversão islamofóbica. Sem perceber, tornam seus filhos e filhas em selvagens.

    A mensagem que Jesus deixou no evangelho de Mateus é sumariamente ignorada. Em troca do sujeito humanista, preocupado com o ambiente social e perseguido por esses ideais, entra uma figura fascista que tem interesse na mentalidade alienada de seus devotos e massifica uma mensagem excludente de que somente os que seguem “seus” preceitos arcaicos têm direito à felicidade e a uma boa vida. Os pequenos são teleguiados a não viver mais suas vontades, tendo em suas palavras e atos o resumo dos dizeres religiosos incontestáveis, fáceis de desbaratar mesmo com a eterna negação de sua fraqueza de consistência.

    Fisher, em um novo ambiente chamado “Kids on Fire” – fogo é um termo cristão que denota o poder de Deus –, pede “autorização” para, em uma pregação, falar sobre Harry Potter, declarando que os magos são inimigos do Divino, portanto indignos, e caso fosse na saudosa época do Velho Testamento ele seria morto, como castigo carnal, e teria a eternidade no fogo do inferno para repensar seus atos. A crença da punição é passada sem qualquer receio às mentes ainda em formação.

    O objetivo dos documentaristas não é produzir uma versão caricata do modus operandi dos evangélicos, e sim exibir uma faceta mentirosa da conversão cristã, em que o mais importante é manter as mentes dos adeptos presas a um ideal inalcançável, para basicamente fazer deles soldados que trabalhem em prol dos interesses mesquinhos e preconceituosos de seus patriarcas e dos pregadores, aprendendo desde cedo a diferenciar pejorativamente os membros de sua família em deus dos ditos anormais, a saber: sodomitas, homossexuais e demais pessoas ignoradas pela Graça.

    Uma das meninas entrevistadas declara achar “legal” (very cool) morrer por sua fé sob os gritos de “mártir”. A câmera de Grady e Ewing somente observa a vida selvagem e o discurso se alastrando. Não julga seus analisados, somente os expõe em posições constrangedoras para que o veredito final seja dado pelo público. O lado escolhido é claramente discutir a validade do discurso fundamentalista, pouco diferente do de crianças islâmicas que portam metralhadoras e fuzis. Uma arma ideológica que ignora completamente o estado democrático e a distinção do arquétipo religioso.

    O máximo de conflito presente na fita é a fala do advogado e radialista Mike Papantonio, que não suporta os desmandos de tais cristãos. Antes de subirem os créditos finais, Becky Fischer dá seu último suspiro, mais uma vez esbravejando contra seus inimigos, para então entrar em um lava a jato e aumentar o som de sua pregação, abafando qualquer palavra externa. A água avermelhada caindo sobre seu para-brisa associa seu estilo de vida irresistivelmente ao sangue e a transferência pura e simples do radicalismo às crianças. A conduta extremamente condenatória parecia mesmo estar enraizada na mentalidade dos infantes, que precisariam de muita ajuda externa para sair desta situação.

  • Crítica | O Filho de Deus

    Crítica | O Filho de Deus

    Son of God

    Vésperas de Páscoa e Natal, as duas ocasiões preferidas pelas distribuidoras para o lançamento de filmes com mensagens cristãs ou obras sobre o próprio Jesus. Teoricamente, é nesse período em que muitos dos que se denominam adeptos ao cristianismo, mas quase não se lembram do fato, trazem à tona a suposta admiração que nutrem por este personagem histórico e seus feitos registrados e conhecidos por meio dos evangelhos da Bíblia Sagrada.

    Na cronologia da sétima arte já tivemos boas películas sobre o ícone religioso. Nicholas Ray trouxe O Rei dos Reis em 1961. O mesmo rigor formal e habilidade técnica, testemunhados em sua obra-prima Juventude Transviada, podem ser encontrados neste relato honesto da história narrada pelo Novo Testamento. Contando com a presença de Orson Welles como produtor e narrador da obra, este é, indubitavelmente, o melhor filme sobre Cristo já lançado. Mas temos também a versão contada pelo italiano Franco Zeffirelli (A Megera Domada), que foi responsável pelo material mais extenso sobre a vida do Filho de Deus, chegando a lançá-lo como minissérie, e somente depois relançando-o numa montagem alternativa, e ainda assim enorme, como longa-metragem. Ninguém mais ninguém menos do que Martin Scorsese também debruçou-se na análise do personagem, e desta surgiu em 1988 A Última Tentação de Cristo, outra ótima obra que, se não abrange todos os períodos da vida de Jesus, esbanja elementos de seus momentos mais emblemáticos, e com toda a competência esperada do diretor de Taxi Driver e Touro Indomável. Mel Gibson, por sua vez, matou (inclusive literalmente) vovozinhas de tristeza nas salas de cinema ao registrar toda a ultraviolência (e nada mais do que realista) na abordagem do período denominado como A Paixão de Cristo, também nome do filme (que ficou mais conhecido como A Paixão de Cristo de Mel Gibson). Falada em aramaico, a película é corajosa e traz um “quê” fidedigno de um novo e eficaz olhar sobre a desgastada história adaptada tantas vezes de forma rasteira por cineastas pouco talentosos no intervalo entre A Última Tentação e A Paixão.

    E, agora, eis que surge O Filho de Deus, dirigido por Christopher Spencer. Quem é este? Famoso por seus documentários no canal National Geographic e sem nenhum longa-metragem de ficção no currículo. E é exatamente esta completa inexperiência em dirigir uma história que Spencer exala em todos os insuportáveis e intermináveis 138 minutos de projeção. Em tela, o que parece é que o cineasta reuniu manuais e manuais dos mais batidos recursos cinematográficos e decidiu utilizar todos de uma vez. Então não falta nenhum dos inúmeros clichês que já não funcionam recorrentemente e soam piores ainda na readaptação de uma história tantas vezes já contada. Temos narração em off mal utilizada, que serve apenas para costurar os buracos do péssimo roteiro; flashbacks (apenas um dos elementos da terrível montagem do filme); diálogos expositivos; panorâmicas e mais panorâmicas que enfatizam os absurdos cenários digitais desenvolvidos para a obra; trilha sonora que pontua cada nova palavra dos personagens –  e quase ordena: “emocione-se com Jesus”, “tenha raiva dos Romanos”, “atente-se para as atitudes de Judas, ele é o traidor” –; cenas em slow com o acompanhamento da edição de som para causar “maiores” e previsibilíssimos impactos – a pedra que cai no chão e é acompanhada por um som de canhão disparando, a cruz que é derrubada enquanto Jesus cai lentamente e novamente ouvimos um estrondo grave. E, realço, tudo isso acontecendo diversas vezes em um filme com mais de duas horas de duração.

    E o que mais assombra na longa obra do Spencer é que não existe NADA de novo, a não ser o fato de Maria Madalena também ser mostrada, desde o início, como uma seguidora de Jesus, algo que o cinema, por vezes, não quis mostrar. A não ser por esse fato, O Filho de Deus é um mais do mesmo piorado à milésima potência. Jesus aparece como um Rockstar da Galiléia, bonitão, com um sorriso no rosto, realizando mágicas – que é como soam os milagres nas mãos do péssimo diretor – e com as criancinhas correndo atrás dele, gritando seu nome e pedindo autógrafos (ok… esse último eu inventei, mas não me surpreenderia caso acontecesse). Baixo orçamento ou não – e não acredito que os 22 milhões de dólares gastos na produção sejam baixo orçamento – nada, e faço questão de repetir, NADA justifica o desleixo com os efeitos especiais e com a direção de arte do longa. A introdução do filme, com cenas que vão desde a criação do mundo ao nascimento de Cristo, já mostra a baixa qualidade do que será visto a posteriori. A estrela de Belém… o figurino dos Reis Magos… A tomada panorâmica de Jerusalém… O interior dos templos judaicos… Tudo artificial e completamente “incrível”. Parece que alguém brincou de ser supervisor e designer de efeitos especiais e chamou um amigo para a brincadeira pra se fazer de diretor de arte.

    Como dito anteriormente, o roteiro é péssimo, forçando o espectador a manter uma empatia com o protagonista, interpretado pelo fraco ator português Diogo Morgado, e seus discípulos, que alternam atuações risíveis a vergonhosas. Os diálogos abusam da obviedade e acompanham o completo desinteresse das cenas cada vez mais insuportáveis da projeção. O diretor da obra não consegue concluir uma cena sem que seus cortes transmitam a enorme sensação de que estamos vendo uma obra displicente, sem nenhum apuro técnico, nem ao menos uma revisão do material final. Será que ninguém da produção notou os drásticos erros de continuidade nas cenas da multiplicação dos pães e peixes, ou até mesmo no momento em que o povo escolhe Barrabás a Jesus. Inconcebível.

    E o mínimo esperado, o sofrimento do Filho de Deus nos transmitindo algum tipo de emoção, não acontece. Talvez por A Paixão de Cristo de Mel Gibson ter retirado de nós quase todo arroio sentimental que teríamos em relação às chicotadas ou às marteladas imputadas ao personagem, ou talvez por nova incompetência da obra (que é, na realidade, a tese mais provável), as cenas “de sofrimento” são apenas isso: sofríveis; assim como o resto do filme, que se encerra numa tentativa de transmitir esperança, mas faz o contrário: nos assusta quanto à qualidade das próximas adaptações de conteúdo religioso que estão para estrear neste e no próximo ano. Que ao menos não contem com a direção de Christopher Spencer, verdadeira mostra de como não realizar um longa-metragem.

    Texto de autoria de Rodrigo Rigaud.