Tag: editora WMF

  • Resenha | Uma Vida Chinesa – III. O Tempo do Dinheiro

    Resenha | Uma Vida Chinesa – III. O Tempo do Dinheiro

    Philippe Ôtié, parceiro criativo de Li Kunwu na autobiografia Uma Vida Chinesa, menciona no prefácio da derradeira edição, O Tempo do Dinheiro, a mudança da concepção da obra no decorrer de sua finalização. Enquanto estudavam uma maneira de apresentar uma história de um homem comum que, ao mesmo tempo, representasse a evolução da China no último século, os traços de Kunwu ganharam novas formas, bem como a abordagem procurou um meio-termo sem agredir a própria História.

    Lançado pela WMF Martins Fontes em 2017, o terceiro volume é o desfecho da trama iniciada em I. O Tempo do Pai. Mesmo sendo uma obra única em três volumes, cada edição foi trabalhada em um ritmo próprio. A primeira configurava com mais detalhes o panorama chinês que marcou a libertação, forma pela qual os chineses se referem ao levante comunista. Em II. O Tempo do Partido, a obra transita entre a evolução do personagem central, que se aproximou do Partido Comunista, desenvolvendo sua carreira como desenhista, como nas próprias modificações da China após a morte de Mao-Tsé Tung, o Grande Timoneiro. No terceiro volume, a trama reflete o ritmo acelerado do crescimento do país, inserindo diversos acontecimentos de maneira rápida, dando maior dinamismo a história.

    Os autores optaram por utilizar pouco a narrativa em off no último volume. Inicialmente, selecionaram dois momentos temporais, o final dá década de 80 e o ano de 2010, para apresentar duas etapas no amadurecimento de Xiao Li, uma delas registrando o encontro dos autores que resultou na graphic novel. Um processo semelhante ao segundo volume do clássico Maus de Art Spiegelman, quando o volume um da obra recebia grande recepção crítica e tal fato foi registrado na trama.

    Cientes de que quanto mais se aproximam do presente mais difícil fica uma análise dos fatos, a terceira parte desenvolve um mergulho maior na personagem, evitando a abordagem da vida chinesa em alguns capítulos. Um dos momentos mais significativos e controversos da China, o protesto da Praça da Paz Celestial (Tian’anmen) em 1989 é evitado. O protesto contra o PC Chinês foi suprimido pelo governo pela força, causando grande número de baixas civis. Como o narrador estava distante dos fatos, preferiu se abster de qualquer comentário como se, nessa parte, deixasse o julgamento para o leitor. Se muitas obras falham pela parcialidade, Ôtié e Kunwu encontraram uma boa saída ao explicitar a dificuldade objetiva de analisar o momento. Como o Partido Comunista Chinês ganhava poucas críticas explícitas da população, é coerente a timidez em abordar um momento difícil no país.

    Ao mesmo tempo, ao evitar mostrar tal fato, a obra demonstra como há diversas Chinas dentro de uma, com parte de seus cidadãos descontentes com a abertura econômica e outros grupos, distantes dos centros, vivendo em harmonia, focado nas próprias vidas sem grande envolvimento político. Evidente que a ausência do tema pode causar discussão mas, tratando-se de uma biografia, a saída encontrada foi honesta.

    Enquanto a personagem central amadurece, termina seu casamento e obtém maior sucesso como desenhista a frente do periódico chinês, observamos uma China dividida entre a ideologia comunista e a inserção do capitalismo como um meio para preservar o socialismo. Embora não explicite nenhuma contradição nesse discurso, a trama apresenta cenas de contraste, demonstrando como a inserção do capital privado modificou parte do pensamento chinês, com grupos tentando concentrar se em grandes cidades – mesmo com os censos que evitavam o êxodo rural – e realizando ações desproporcionais que, mesmo tutelados pelo estado, traziam benefícios próprios aos envolvidos. Uma reflexão que nos faz imaginar que independente do sistema político, a corrupção é possível (a corrupção já havia sido denunciada no volume anterior, em cenas com soldados do Partido Comunista).

    Outro exemplo da abordagem econômica da China, é vista pela personagem de Lili. Apresentada em um dos capítulos e dividida entre os benefícios do estado e a possibilidade de subir na vida ao investir no capital privado. Uma boa inserção na trama para explicar as tensões da época. Como a história registrada aborda um longo período de tempo, é perceptível que a população jovem desconhece parte da própria trajetória do país, sendo que somente os mais velhos mencionam sobre o período em que Tse-Tung governou, sem nenhuma abertura econômica. Demonstrando como, mesmo que se procure uma sequência natural da trajetória chinesa, o país é dividido por momentos conflitantes entre si.

    A narrativa de Uma Vida Chinesa termina em 2010, no ano novo chinês. Na época, Xiao já havia ido para o exterior, exibido seus desenhos na França e a graphic novel estava em desenvolvimento. Em uma das reflexões finais, o autor-personagem analisa a trajetória da China e a análise da própria vida diante da autobiografia em quadrinhos. A obra consegue realizar um eficiente registro histórico a partir de um homem comum, um chinês simples que reconhece erros e acertos de seu povo, mantendo sempre o patriotismo em alta diante de um pais que, independente de tais fatos, é seu lar.

    Compre: Uma Vida Chinesa – III. O Tempo do Dinheiro.

    Acompanhe-nos pelo Twitter e Instagram, curta a fanpage Vortex Cultural no Facebook, e participe das discussões no nosso grupo no Facebook.

  • Resenha | O Barril Mágico de Lena Finkle

    Resenha | O Barril Mágico de Lena Finkle

    Um dos segredos de um bom novelista é saber dosar a graduação do conflito ao longo da trama. Com poucos problemas a serem resolvidos, a história tende a ficar insossa, sem graça, se torna um desses livros que largamos antes da página sessenta. De forma contrária, com muitas lutas e pouca explicação, o leitor absorve uma caoticidade que pode fatigá-lo pelo excesso de interrogações. Agora imagine quando além do texto, você tem que se preocupar com o grafismo que complementam a informação textual. Tudo isso sem deixar a atenção do leitor cair. Haja habilidade. Essa destreza é a chave da russa Anya Ulinich em O Barril Mágico de Lena Finkle (WMF Martins Fontes), uma ambiciosa novela gráfica.

    A história começa de forma acanhada e muito particular: Lena Finkle é uma imigrante russa que chegou aos Estados Unidos nos anos de 1990, torna-se escritora e é chamada para voltar à Rússia 20 anos depois para dar palestras sobre seus livros (grande parte da trama é baseada na história de vida da autora). Voltando ao país de origem, a novela segue para as diferenças culturais (principalmente sobre sexo), entre os dois países. A personagem narra o despertar sexual nos EUA em comparação ao que ela sabia de sexo na Rússia. As discrepâncias intensificam a narrativa porque a autora utiliza flashbacks para aprofundar o nosso conhecimento sobre a personagem principal.

    Daí em diante a obra vai tomando corpo e os conflitos intensificam-se: Lena tem dois casamentos falidos, duas filhas, um caso com um russo ex-namorado de infância, problemas com os pais (a mãe se tornou bem sucedida nos EUA enquanto o pai está quase desaparecido), conflitos com o modo de vida americano, com a situação das amigas, e com os novos affairs que ela conhece ao frequentar aplicativos para namoro online.

    O Barril Mágico de Lena Finkle é uma novela gráfica ambiciosa que entrega tudo o que promete. Ao construir o ambiente ao redor de Lena Finkle, a autora discute relacionamentos abusivos, sexo, internet, imigração, família, modo de vida americano, capitalismo, feminismo, violência, machismo, auto-estima, filosofia, psicologia, tudo dramaticamente dosado, sem excessos ou falta de qualquer componente. Por conta disso, os grafismos que compõem a trama são esticados ou comprimidos para se adequar ao propósito de cada cena. Isso explica o aparente caos na arrumação das imagens.

    Mas, ao contrário do que possa parecer sobre os traços grossos e obtusos que por vezes aparecem na trama, há uma harmonia estética que visa demonstrar por meios visuais o redemoinho de responsabilidades ou insinuações que turvam a sobrevivência da personagem. Cada componente, seja o amor, os relacionamentos abusivos, a imigração, a família etc, deixam a marca na protagonista e ela escolhe exibir como tatuagem ao leitor. Quem lê, nesse caso, também é puxado ao redemoinho da personagem, contudo, tem a opção de estar a salvo.

    Lena Finkle não, principalmente quando o assunto são relacionamentos. Por sinal, este é o ponto de virada da trama. A ida à Rússia catalisa os ditames amorosos que prendem a personagem do meio ao fim da história. São essas situações de amor, ou quase-amor, que detonam os outros assuntos. A autora, portanto, cria os pretendentes de sua protagonista e, a partir deles, constrói e desconstrói os paradigmas que formam o estilo de vida americano pelo espelho da personagem, uma imigrante quarentona, irônica e com duas filhas. O que fica mais notável (uma necessidade à trama, talvez), é que apesar de Lena ser muito inteligente emocionalmente, isso não a impede de sofrer na mão de homens falhos em muitos sentidos. A personagem guarda uma forma de esperança enferrujada que a faz mergulhar na procura de um homem que caiba exatamente no conceito dela de companheiro. Mas mesmo quando o encontra, não é salva.

    Um quadrinho fantástico. A forma como a autora constrói e interrompe diálogos é criativo e inovador. A caoticidade, novamente, perambula por todos os aspectos do livro, mas não se engane, a ordem também é resultado do caos. Não há ponta soltas, não há desconexões arbitrárias, não é o caos por si só, é o caos pela arte, fotografado e exibido como interpretação irregular do cotidiano.

    Texto de autoria de José Fontenele.

    Compre: O Barril Mágico de Lena Finkle.

  • Resenha | Uma Vida Chinesa – II. O Tempo do Partido

    Resenha | Uma Vida Chinesa – II. O Tempo do Partido

    A segunda parte de Uma Vida Chinesa, lançado pela WMF Martins Fontes, dá sequência imediata a história vista na parte I – O Tempo do Pai. Porém, nessa parte intitulada O Tempo do Partido, a obra ganha um contraste emotivo maior, bem como o enfoque aprofunda o personagem central, Li, testemunha ocular da evolução da China.

    A primeira parte da história focava em seu pai, apresentando as modificações da China a partir da instauração do socialismo, liderados por Mao-Tse Tung. Produzindo um relato ao mesmo tempo pessoal sobre as turbulências passadas pela família e contextual sobre as modificações sofridas pelo país no período. Na segunda parte, encontramos um Li mais maduro. Observando com maior atenção os contrastes de seu país sem estabelecer uma postura crítica negativa como apresentada no início. Com a morte de Mao, a China passa por novas mudanças, estabelecendo pequenas aberturas externas bem como reconhecendo que algumas ações do passado, como a revolução cultural, tiveram seus excessos. Revendo seus próprios erros em um processo chamado autocrítica, o partido procurou avançar sempre com o apoio da população.

    O período abarcado pela trama, entre 1976 a 1980 é fundamental para que Li amadureça. O roteiro opta por aprofundar sua transformação sem destacar em demasia as modificações da China na época. O registro se torna pessoal apresentando o crescimento da personagem tanto profissionalmente como desenhista, melhorando seus traços, como intelectualmente, através de duas experiências ligadas ao socialismo chinês: defender a pátria e compreender o valor do campo. Dessa forma, o personagem se alista no Exército e, posteriormente, responsabiliza-se pelos cuidados de um campo de plantação. Ainda que o período seja curto, viver tais momentos geram uma outra visão na personagem, compreendendo na prática parte dos valores propostos pelo Partido Comunista Chinês, bem como reconhecendo que nem tudo funciona devido a corrupção de pequenos grupos.

    Tornando-se um homem correto, de regras e trabalho duro, Li segue os preceitos de ordem verificando na prática a importância do trabalho no campo. Fatores que o fazem desejar entrar para o Partido. Mesmo a prisão do pai, enviado por dez anos a reeducação, não se torna um fator negativo, afinal, tratava-se de um novo momento na China em que tais erros não seriam mais cometidos. Sua indicação é realizada através de sua arte, publicada em alguns jornais até chamar atenção da publicidade e propaganda do partido que o convida a integrá-lo para ajudar na divulgação dos novos líderes políticos do país.

    Uma Vida Chinesa – II. O Tempo do Partido enfatiza mais a jornada pessoal de Li do que o contexto da China. Uma estratégia bem composta em, inicialmente, apresentar a história Chinesa para que o leitor compreendesse melhor as motivações de seu personagem central, demonstrando como ele viveu durante esses anos de transição e, por consequência, compreendendo como o povo chines viveu na época.

    Compre: Uma Vida Chinesa – II. O Tempo do Partido.

    Acompanhe-nos pelo Twitter e Instagram, curta a fanpage Vortex Cultural no Facebook, e participe das discussões no nosso grupo no Facebook.

  • Resenha | Maria Chorou Aos Pés de Jesus

    Resenha | Maria Chorou Aos Pés de Jesus

    A Bíblia 2.0, por Chester Brown.

    Resultado de novas interpretações de passagens bíblicas, Maria Chorou Aos Pés de Jesus: Prostituição e Obediência Religiosa na Bíblia, de Chester Brown (Pagando Por Sexo), publicação da editora WMF Martins Fontes e tradução de Érico Assis, adapta ao quadrinho oito histórias, a saber: “Caim e Abel”, “Tamar”, “Raabe”, “Rute”, “Betsebá”, “Os talentos”, ”Mateus”, e “O filho pródigo”. Em comum, as histórias femininas lidam como a prostituição e as outras sugerem uma nova visão sobre as designações que o Senhor dá aos seus filhos. Ao final dos quadrinhos, um Posfácio de quase cem páginas onde o autor explica o embasamento teológico por trás do desenvolvimento das histórias recontadas.

    Em “Caim e Abel”, “Os talentos” e “O filho pródigo”, Brown sugere, teologicamente, que “Deus admira e valoriza aqueles que desafiam o édito da história, e que ousam fazer o melhor para si de maneira que conflitem com a ordem que lhes foi criada”. A justificativa acima, Brown retira de A Filosofia das Escrituras Hebraicas, de Yoram Hazony. Segundo o autor, isso justifica Deus, em “Caim e Abel”, ter preferido a oferenda de carne oferecida por Abel, que o trigo oferecido por Caim. Caim fica insatisfeito com a predileção do irmão visto que Adão ensinou aos dois que, após expulsos do Paraíso, Deus mandou eles apenas se alimentarem de frutos da terra. Abel ultrapassa esse mandamento e é preferido por Deus, o que, segundo o autor, fez nascer a ira e posteriormente o assassinato cometido por Caim.

    Em “Os talentos” e “O filho pródigo”, as histórias coincidem com personagens que herdam fortunas e escolhem gastar com mulheres e entretenimento. Contudo, não são repreendidos pelos seus senhores/familiares, mas premiados. Segundo Brown, esse contrassenso é justificado teologicamente porque “Deus não vê suas leis como absolutas”. Ousar, portanto, mesmo ultrapassando as leis, pode fazer parte dos desígnios divinos.

    Em “Tamar”, “Raabe”, “Rute” e “Betsebá”, Brown trata de prostituição como uma atividade que garantia sobrevivência às mulheres. Como o patriarcado por vezes relegava à mulher posições menos privilegiadas na sociedade daquela época (e atual também), a prostituição era (ou é) utilizada como uma alternativa que por vezes garantia a sobrevivência delas, seja por ganharem dinheiro com isso, seja por utilizarem como forma de driblar o sistema das casamentos ruins/fracassadas.

    Em “Mateus” o tema também é prostituição. A história contada por Brown sugere que Maria era prostituta e que Mateus buscava colocar essa informação no evangelho que estava escrevendo, mas, sabendo que seria censurado nas traduções posteriores, buscava uma alternativa para passar a informação adiante. A solução foi elencar a genealogia feminina de Jesus, ou seja, ao invés de informar sobre o pai e os pais de Jesus, o que seria o correto para a época, Mateus escolheu começar o evangelho pela ascendência das mães dele, assim, segundo Brown, ele poderia dar a informação que Maria era prostituta ao elencar outras meretrizes historicamente famosas.

    Em termos gráficos, os desenhos são tecnicamente simples. Quatro quadrinhos por páginas com variações de preto e valorização dos espaços em branco. Poucos closes e em nenhum momento a boca dos personagens está aberta nos diálogos. O posfácio de Brown responde todas as dúvidas sobre as escolhas narrativas feitas e as referências utilizadas pelo autor. Vale a leitura.

    Texto de autoria de José Fontenele.

    Compre: Maria Chorou aos Pés de Jesus.