Tag: aborto

  • Crítica | Jesus Camp

    Crítica | Jesus Camp

    Fundamentado em um discurso bastante constrangedor que visa trazer a “America” – somente o país do norte, com a bandeira azul, branca e vermelha – para as mãos de Cristo, o documentário de Heidi Ewing e Rachel Grady mostra em seu começo a multiplicidade do pensamento cristão protestante, distinguindo, em um programa de rádio, duas linhas de pensar a função do evangelho dentro da sociedade secular. Em meio a essa afronta, investiga-se um local específico, onde crianças de idades variadas aparecem em um peça teatral, trajando farda e camuflagem diante dos pais e responsáveis.

    O Jesus Camp é um espaço pensado a partir da mentalidade batista, inspirada no testemunho do conhecido pregador Billy Graham. O objetivo do acampamento é isolar as crianças dentro de um ambiente onde sua atenção, seus corações e mentes poderiam proliferar e cultivar a mensagem cristã. Aos mancebos é dada a mensagem de que seria a função deles mudar o mundo externo, recebendo uma educação específica, repetindo frases feitas cujo efeito reflete em suas almas, voltando-as para um estado de transe em que os pequeninos começam a falar uma língua indistinguível. A questão de ser esta uma viagem é logo refutada pela líder do culto, Becky Fisher, que é filha de um pastor e responsável por ministrar as palestras às crianças.

    Logo, o discurso pacífico e conciliador é posto de lado, com Fisher declarando abertamente que seu objetivo em passar a “Palavra” aos infantes é estratégico, o que em si contém uma declaração de guerra. Seu discurso é repleto da retórica do medo. Segundo sua fala, a religião e modo de viver correriam risco de se extinguir caso não se esforçassem em evangelizar o maior número de meninos possíveis, uma vez que os palestinos fazem o mesmo esforço, assim como todo o Islã. Para vencer seu opositor, os “justos” precisariam se valer das mesmas armas, que ao ver dos cristãos são fajutas, mas quando são usadas por si tornam-se somente uma arma de salvação de almas.

    Mesmo as mães, ao travar conversas com seus herdeiros, transparecem um preconceito desmedido, diminuindo o pensar científico, indicando aos pequeninos que respondam à altura caso o criacionismo sofra qualquer impropério. O pensamento falacioso e sofista é plantado desde cedo no ideário dos pré-adolescentes, para que, ao crescer, eles respondam do mesmo modo, rejeitando qualquer argumento educacional, fortalecendo o ideário bélico que complementa a aversão islamofóbica. Sem perceber, tornam seus filhos e filhas em selvagens.

    A mensagem que Jesus deixou no evangelho de Mateus é sumariamente ignorada. Em troca do sujeito humanista, preocupado com o ambiente social e perseguido por esses ideais, entra uma figura fascista que tem interesse na mentalidade alienada de seus devotos e massifica uma mensagem excludente de que somente os que seguem “seus” preceitos arcaicos têm direito à felicidade e a uma boa vida. Os pequenos são teleguiados a não viver mais suas vontades, tendo em suas palavras e atos o resumo dos dizeres religiosos incontestáveis, fáceis de desbaratar mesmo com a eterna negação de sua fraqueza de consistência.

    Fisher, em um novo ambiente chamado “Kids on Fire” – fogo é um termo cristão que denota o poder de Deus –, pede “autorização” para, em uma pregação, falar sobre Harry Potter, declarando que os magos são inimigos do Divino, portanto indignos, e caso fosse na saudosa época do Velho Testamento ele seria morto, como castigo carnal, e teria a eternidade no fogo do inferno para repensar seus atos. A crença da punição é passada sem qualquer receio às mentes ainda em formação.

    O objetivo dos documentaristas não é produzir uma versão caricata do modus operandi dos evangélicos, e sim exibir uma faceta mentirosa da conversão cristã, em que o mais importante é manter as mentes dos adeptos presas a um ideal inalcançável, para basicamente fazer deles soldados que trabalhem em prol dos interesses mesquinhos e preconceituosos de seus patriarcas e dos pregadores, aprendendo desde cedo a diferenciar pejorativamente os membros de sua família em deus dos ditos anormais, a saber: sodomitas, homossexuais e demais pessoas ignoradas pela Graça.

    Uma das meninas entrevistadas declara achar “legal” (very cool) morrer por sua fé sob os gritos de “mártir”. A câmera de Grady e Ewing somente observa a vida selvagem e o discurso se alastrando. Não julga seus analisados, somente os expõe em posições constrangedoras para que o veredito final seja dado pelo público. O lado escolhido é claramente discutir a validade do discurso fundamentalista, pouco diferente do de crianças islâmicas que portam metralhadoras e fuzis. Uma arma ideológica que ignora completamente o estado democrático e a distinção do arquétipo religioso.

    O máximo de conflito presente na fita é a fala do advogado e radialista Mike Papantonio, que não suporta os desmandos de tais cristãos. Antes de subirem os créditos finais, Becky Fischer dá seu último suspiro, mais uma vez esbravejando contra seus inimigos, para então entrar em um lava a jato e aumentar o som de sua pregação, abafando qualquer palavra externa. A água avermelhada caindo sobre seu para-brisa associa seu estilo de vida irresistivelmente ao sangue e a transferência pura e simples do radicalismo às crianças. A conduta extremamente condenatória parecia mesmo estar enraizada na mentalidade dos infantes, que precisariam de muita ajuda externa para sair desta situação.

  • Crítica | Blood Money: Aborto Legalizado

    Crítica | Blood Money: Aborto Legalizado

    blood money - poster

    Sinopse: Uma investigação sobre a indústria do aborto nos Estados Unidos, do ponto de vista dos ativistas contrários à prática, conhecidos como pró-vida. O documentário pretende mostrar que o aborto legalizado é sinônimo de assassinato de bebês, que as mulheres sofrem traumas irreparáveis com essa prática, e que a intenção por trás do aborto é apenas a ganância e a vontade de diminuir a quantidade de negros nos Estados Unidos, já que as mulheres negras representam a maioria dos abortos no país.

    De acordo com o diretor, o documentário Blood Money foi idealizado em 2004, no período das eleições presidenciais, ao perceber que o tema apenas virava assunto de debate nessa época com nítidas intenções eleitoreiras, sem acrescentar informação ou qualquer esclarecimento.

    David K. Kyle estreia na direção com este documentário – narrado por Alveda King, sobrinha de Martin Luther King Jr. – cuja sinopse dá a impressão de que se trata de uma denúncia referente à monetização do aborto nos Estados Unidos. Contudo, o roteiro alterna entre militância pró-vida e denúncia, sem muito cuidado na transição de um a outro, o que dá a impressão de que a montagem foi feita aleatoriamente. A sequência de depoimentos e apresentação dos fatos parece não seguir uma linha narrativa. Mesmo tratando-se de um documentário, as ideias poderiam estar melhor alinhavadas, de modo a apresentar o tema da maneira mais sucinta possível. O que, em vários momentos, não ocorre.

    É ponto pacífico que a melhor maneira de defender um ponto de vista não é mostrar apenas o seu lado da questão, mas sim mostrar os dois lados e, com argumentos, demonstrar que seu lado é o melhor. E o roteiro não faz isso. Todos os entrevistados compartilham do ponto de vista do diretor/roteirista. Qualquer espectador mais crítico com certeza fica à espera de depoimentos que façam o contraponto. E, na tentativa de aproximar o público do drama de algumas entrevistadas, o exagero nos closes é entediante – o excesso causa desconforto.

    Certamente, seria mais interessante ao público caso a parcela de denúncia do documentário tivesse sido investigada com maior profundidade. A exploração da indústria do aborto, a “criação” de clientes em potencial, a eugenia e o controle de natalidade, o ‘modus operandi’ das clínicas e afins são mostrados bem superficialmente. Enquanto que os depoimentos dos entrevistados que são nitidamente contra o aborto – muitos deles sem qualquer base científica ou jurídica – ocupam mais de 60% do tempo.

    Não cabe aqui discutir ser a favor ou contra as ideias apresentadas no documentário, mas vale frisar que o tom de “catequização” talvez seja um tiro no pé nas intenções do diretor de suscitar o debate sobre o assunto.

    Texto de autoria de Cristine Tellier.