Tag: Charlotte Rampling

  • Crítica | Duna

    Crítica | Duna

    Minhas expectativas para Duna estavam em xeque, não li a série de livros do Frank Herbert, tampouco sou um admirador da adaptação cinematográfica de 1984. Não tenho qualquer valor afetivo pelo material, aliás, não tinha, pois o novo longa de Denis Villeneuve me deixou esfaimado por mais. Isso seria bom se o próximo filme já estivesse confirmado, mas é uma estratégia arriscada quando a progressão da história depende de seu sucesso financeiro. Duna (que começa com o subtítulo parte um) é maravilhoso, mas perde o sentido se não tivermos direito a uma continuação.

    Não vejo problema em dividir uma obra em duas ou três partes, mas é preciso uma cautela narrativa em relação à codependência das histórias, pois cada filme precisa funcionar individualmente. Peguemos como exemplo o final de Kill Bill: Volume 1. Todos sabemos que a jornada da personagem de Uma Thurman não acabou, ela quer matar Bill, e precisaremos de mais um filme para isso. Funciona porque a épica batalha contra os crazy 88, e o confronto com O-Ren Isshii dão ao espectador algum senso de desfecho, pelo menos a nível estrutural. A história vai continuar, mas o filme tem um ato final, e isso não acontece com Duna, que abruptamente acaba.

    Nosso protagonista é um jovem duque que vem lidando com sonhos premonitórios, super poderes de persuasão, e que pode ou não ser “o escolhido” de acordo a uma profecia. Ele acompanha seu pai até ao planeta Arrakis (Duna), que possui a cobiçada substância “spice” (funciona basicamente como magia), além de minhocas gigantes e areia. O que segue é um drama político sci-fi grandioso que me fez coçar a cabeça lá e cá. Muitos conceitos são tangencialmente abordados, gestos ou menções que presumem um conhecimento que pode desorientar a quem está explorando esse universo pela primeira vez. Da iconografia meticulosamente criada, às diretrizes culturais do figurino, à fantástica e plausível mitologia, há tanto para explorar aqui que me senti um pouco extraviado, mas não a ponto de perder o foco do conflito central que, como sempre, é motivado pela fortuna (invasão de um planeta para extração um recurso precioso, yada yada yada…).

    Villeneuve não gosta de economizar planos, é um diretor paciente, que exige o mesmo do seu público, e o recompensa com incansáveis ostentações composicionais. É como se ele competisse com ele mesmo a cada corte pelo melhor ângulo, pelo enquadramento perfeito, pela simetria sublime, e ele costuma vencer. Pra melhorar, ele tem Hans Zimmer fazendo a música, que cria um climão de guerra com a percussão (a cinematografia ajuda a compor essa atmosfera, e notam-se as homenagens a clássicos como Apocalypse Now e Lawrence da Arábia). Há uma ou outra batida onde a melodia quis me levar na marra, mas é uma trilha lamuriosa e ao mesmo tempo berrante. A gaita de fole não rolou pra mim, mas lembrei de Coração Valente, então ficou tudo bem.

    Tudo é desbundante em Duna, mesmo sendo todo cinza ou bege. Tecnicamente o filme é perfeito, mas a eutimia narrativa do diretor continua sendo um gosto adquirido. Se Blade Runner 2049 te pôs pra dormir, aqui provavelmente não será diferente. E não é um estilo que favorece as sequências de ação, que apesar de muito vistosas, precisavam de uma energia que quebrasse a melancolia subjacente. As minhoconas, por exemplo, prometem mais do que cumprem.

    Os efeitos visuais são perfeitamente integrados aos práticos, a criação de mundo é um barato (adorei os helicópteros insectóides), e eu preciso enaltecer o simples e eficiente uso do escudo com o contraste azul x vermelho, e como é satisfatório vê-lo no lugar daquela aberração de 84.

    Timothée Chalamet tem carisma de sobra. Ele se porta exatamente como um duque em construção, deixando transparecer a insegurança de quem carrega uma série de incertezas. E o diretor sabe que ele é um fofo, abusando dos close-ups do nosso herói contemplando sobre a vida com seu cabelo formidável. Rebecca Ferguson tem uma intensidade fortíssima nos olhos, o elemento de sua angústia materna é responsável pelas cenas mais emocionalmente carregadas do filme. A comunicação dela com o filho é bem trabalhada, e as camadas da dinâmica desse relacionamento estão apenas começando a cair. Oscar Isaac não atrapalha, mas não parece completamente confortável com o personagem. Ainda assim, uma de suas cenas certamente será lembrada. Jason Momoa tem uma das piadas do filme, é engraçadinha. Ele traz uma energia necessária ao ritmo remansoso, e sua ausência é frequentemente sentida. A outra piada é do Javier Bardem, ele não tem muito mais pra fazer, mas a cena é, de novo, engraçadinha. Há uma baixa dose de humor aqui, suficiente para pequenas descontrações sem afetar o tom austero predominante. A personagem de Sharon Duncan-Brewster é subdesenvolvida, Josh Brolin funciona (seus diálogos não ajudam), e Dave Bautista não. Ele não parece ter um lugar nesse universo, é apenas um bruto que é grandão porque sim, e a cena em que ele precisa demonstrar indignação é difícil de assistir. Stellan Skarsgård faz um vilão excepcionalmente grotesco e genuinamente ameaçador. Quero distância total desse cara, eca! Zendaya está no filme para soltar um trocadilho bem bolado e estimular o público com a possibilidade de mais tempo com sua presença celeste no filme seguinte.

    Duna pode parecer derivado, mas é justamente o contrário. O material fonte é tão influente que se tornou vítima das futuras criações que inspirou. Quando vi o elemento da Voz, lembrei imediatamente de Obi-Wan Kenobi usando a Força em 77, e não me pareceu justo. Mad Max, Alien, Blade Runner… muitos clássicos beberam alguma dose dessa fonte, preciso criar vergonha na cara e ler o primeiro livro.

    Nota: 8.9

  • Crítica | Hannah

    Crítica | Hannah

    De Andrea Pallaora, Hannah é um filme que tem como protagonista uma mulher que se vê obrigada a mudar toda a sua rotina graças a ausência de seu marido. Aos poucos, a personagem de Charlotte Rampling tenta se adaptar a um mundo de solidão, onde sua rotina pára de girar em torno da mesma pessoa para então ser vivida por ela.

    Há um bom número de cenas onde o silêncio prevalece como elemento maior, basicamente para explicitar que o cotidiano seria assim, moroso e com cenas apenas de chaves caindo, maçanetas sendo viradas e bicas expelindo água. Hannah tenta a todo custo viver apesar do vazio que são seus dias, e a depressão que a toma facilmente é passada para o espectador. O conjunto de sensações que a protagonista possui é facilmente compreendido por quem está assistindo seu drama, até por serem bastante tangíveis, além do excelente desempenho de Rampling. Sua expressão, seu modo de andar, tudo transborda melancolia e sensação de não-pertencimento a esse mundo onde o isolamento lhe é imposto e os acontecimentos que ocorrem com a personagem provocam reflexões em quem a acompanha.

    Próximo do final, ela tenta se reabilitar para o mundo, vai a reuniões onde deveria expressar seus sentimentos, dores e sentidos, mas nada consegue prosseguir ali. A sensação de estar incompleta não é aplacada por qualquer frase feita que lhe é imposta ou por pensamento positivo raso. Hannah não é otimista, aliás, é bastante calcado na realidade de quem tem que lidar com qualquer tipo de estado depressivo.

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  • Agenda Cultural 65 | Car Wash, Lionélson ataca novamente, 1000 edições de Superman

    Agenda Cultural 65 | Car Wash, Lionélson ataca novamente, 1000 edições de Superman

    Bem-vindos a bordo. Flávio Vieira (@flaviopvieira) e Filipe Pereira (@filipepereiral) recebem o convidado Wilker Medeiros (@willtage) para bater um papo sobre o que rolou nos cinemas, as polêmicas envolvendo a série “O Mecanismo”, a edição comemorativa de Actions Comics e muitos mais.

    Duração: 93 min.
    Edição: Julio Assano Junior
    Trilha Sonora: Flávio Vieira e Julio Assano Junior
    Arte do Banner: 
    Bruno Gaspar

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    Review O Mecanismo – 1ª Temporada (Vídeo Cinema Raiz)
    Jessica Jones – 2ª Temporada

    Cinema

    Crítica Projeto Flórida (Alerta Vermelho #68)
    Crítica 15h17: Trem Para Paris
    Crítica Operação Red Sparrow
    Crítica O Passageiro
    Crítica Tomb Raider: A Origem
    Crítica Círculo de Fogo: A Revolta
    Crítica A Melhor Escolha
    Crítica Jogador Nº 1

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  • Crítica | Operação Red Sparrow

    Crítica | Operação Red Sparrow

    Francis Lawrence e Jennifer Lawrence têm uma parceria de anos, o diretor comandou os últimos três filmes da franquia que levou a jovem atriz ao estrelato, Jogos Vorazes. O trabalho de Francis na série de filmes sobre a revolucionária Katniss foi marcado pela grandiosidade que ele deu à franquia, com um controle requintado de cinematografia e design de produção, mas focando mesmo nas artimanhas e temáticas mais adultas e sérias que os últimos filmes possuíam. Jennifer Lawrence seguiu o mesmo caminho. A parceria dos dois rendeu frutos preciosos que chegam até ao novo filme deles, Operação Red Sparrow, que acaba sendo nada mais do que o esperado.

    Dominika (Jennifer Lawrence) é uma ex-bailarina prestigiada que acaba sendo recrutada para o mais importante programa de espionagem russo, que treina “sparrows”, homens e mulheres que usam da sensualidade e sedução para conseguirem o que o Estado precisa. O treinamento é violento, Dominika se destaca e recebe a importante missão de encontrar um traidor, para isso terá que se relacionar com o agente americano Nathan (Joel Edgerton).

    Tecnicamente, Francis está ainda mais apurado, a cinematografia cinza contínua dá espaço para momentos de uma fotografia mais quente muito bem colocados e coerentes. O filme não foca na ação, mas quando a situação é mais violenta, o amarelo fica presente e sempre destaca a cor mais presente em todo o longa, o vermelho. Presente no título, a cor vermelha está em todas as cenas, ela segue os passos da protagonista desde suas apresentações de dança até seu constante contato com sangue, dá identidade á personagem principal e ao próprio longa.

    O longa está mais para um thriller denso do que um filme de ação como a promoção dele possa ter deixado parecer, os muitos diálogos costuram acontecimentos arrastados e blocos claramente separados, essa estrutura dá um tom significativo para o longa mas acaba o enchendo de excessos, alguns dos blocos só servem para esticar a trama principal e criar novas subtramas que fazem o filme perder ritmo, principalmente no confuso segundo ato. A sensação é que a história se acha mais complexa do que realmente é e tenta dar meias voltas enquanto um espectador um pouco mais atento já consegue enxergar os caminhos que a história vai levar, as opções são muito limitadas para a trama querer parecer tão complexa.

    A protagonista carrega o filme inteiro, mas parece que Francis não soube diferenciar o trabalho com a atriz nos seus últimos filmes e nesse. É uma interpretação inexpressiva boa parte do tempo e que ocasionalmente explode, isso funcionava com a Katniss, e por isso não parece caber na personagem Dominika, parece repetido. O restante do elenco é funcional, mas nenhum tem grande tridimensionalidade, o personagem de Edgerton ganha um espaço desnecessário antes dele se tornar de fato importante na trama e soa pura encheção de linguiça.

    Com um plot bastante interessante, como o de se treinar espiões e espiãs especialistas em sedução, Operação Red Sparrow é uma doa indicação, mas é uma pena que o filme não decida o que quer ser e acabe deixando bons filmes que ele poderia ser pelo caminho. Tem um tom emergente e violento muito imersivo e seus melhores momentos são em cenas mais gráficas, a violência e a nudez cabem no contexto e dão a verossimilhança necessária. Mas a parceria de Francis e Jennifer segue os moldes dos últimos trabalhos dos dois e por isso não surpreende, como temática avançam, mas como execução pararam no tempo, não digo que não quero mais um trabalho juntos porque sempre pode acontecer uma surpresa, mas acho que Francis Lawrence vai ter que tirar um tempo para se repensar.

    Texto de autoria de Felipe Freitas.

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  • Crítica | 45 Anos

    Crítica | 45 Anos

    45 Anos - poster

    As relações amorosas e a convivência diária são comumente associadas em uma equação paradoxal. O tempo sempre é citado como aquele que desgasta a base das relações e, salvo a possibilidade de uma renovação constante, é natural que afetividades se arruínem. Se a maturidade possível do crescimento carrega uma maior carga de sabedoria, a qual se imagina certo manejo ao lidar com adversidades, nem sempre o equilíbrio entre a razão e o lado emotivo é funcional. A dúvida atinge a todos, independente da idade, ainda que na maturidade a trajetória do casal seja significativa para eclipsar qualquer armadilha sentimental.

    Baseado em um conto, Another Country do escritor britânico David Constantine, 45 Anos apresenta em cena um casal maduro formado pelos competentes Tom Courtenay e Charlotte Rampling. Prestes a completar 45 anos de casado, o marido recebe uma carta da Alemanha informando que o corpo de sua paixão juvenil, Katya, morta em um acidente nas montanhas, foi encontrado por bombeiros e, devido ao gelo, está preservado como se o tempo fosse inexistente. A partir deste acontecimento e da reação excessiva de Geoff, a esposa Kate coloca em perspectiva sua longa relação sobre a dúvida de ter sido amada de fato ou se viveu à sombra desta paixão anterior.

    A história foi baseada em um acontecimento real na França sobre um pai desaparecido na década de 30. Ao ser encontrado anos depois com o corpo intacto, o filho, que nunca conhecera o pai, teve um choque psicológico traumático irrecuperável. Constantine move o mesmo impacto para uma relação amorosa, espaço mais passível de efeito dramático pela ausência de um laço sanguíneo.

    O roteiro de Andrew Haigh, que também dirige a produção, focaliza um recorte de uma semana na trajetória desse casal, uma semana anterior à comemoração das bodas de platina. Contrapondo um espaço de tempo ruim, despertado pela revelação do corpo, há um casamento duradouro que, no início da história, é inferido como bem-sucedido. A contraposição é delicada e parece executada para gerar uma discussão sobre o desgaste das relações e a desconstrução que a memória nostálgica é capaz de realizar.

    A narrativa conduz o público aos conflitos internos da mulher, denotando, assim, uma maior ênfase em sua defesa. Em nenhum momento se conhece os sentimentos do velho Geoff em relação a este fatos. A interpretação contida dos atores abre espaço para esta discussão. É presumível que um casal que permanece tanto tempo unido possui laços fortes. Em cena, porém, fica claro que o tempo, acrescido de fatos que naturalmente promovem um choque momentâneo, causa rupturas.

    A falta de comunicação entre o casal reside nas entrelinhas. O homem chocado com a informação recebida age de maneira indelicada com a parceira; ela, por outro lado, mergulha em um medo interno e se torna incapaz de compreender o quão impactante a notícia foi para o marido. A trama aponta afirmativas universais sobre uma relação como a impossibilidade de conhecer por completo o ser amado, bem como o incômodo do passado, principalmente aquele nostálgico e afetivo, causa impacto mesmo em uma relação vivida intensamente. A discussão é deixada ao público para ponderar se a relação das personagens foi ou não sustentável. Apesar de uma semana parecer incapaz de abarcar toda a relação de quase 50 anos, o longa suscita a fragilidade de cada um diante de seus lugares escuros e a incompletude de que qualquer casal será vítima.

    Sutil como uma boa prosa narrativa, cujo tema está em suas entrelinhas, 45 Anos trabalha com qualidade os dramas das personagens, os quais se elevam graças às intensas interpretações de seus atores, não à toa indicados e premiados em diversas premiações por estes personagens.

  • Crítica | Orca: A Baleia Assassina

    Crítica | Orca: A Baleia Assassina

    O velho artifício de tentar fazer sucesso baseado no sucesso de outrem é uma máxima hollywoodiana a muitos e muitos anos. A excessivamente longa introdução mostra uma contagem regressiva, que registra os sons típicos do mamífero gigante, acompanhado, é claro, da sempre competente trilha de Ennio Morricone – até nisto o filme busca inspiração no “episódio original”, pautando seu sucesso em outro gênio musical ligado ao cinema. A trilha é tão característica que torna-se impossível não esperar a vinda de um cowboy mal encarado e suado, mas o que se vê é um show de acrobacias, de baleias se exibindo enquanto o sol se põe.

    Após a intro, registra-se um mergulho em mar aberto, com a figura perigosa de um tubarão se aproximando do mergulhador, mas nem de longe fazendo o estardalhaço do filme spielberguiano. A primeira surge somente aos cinco minutos de exibição, para logo ser transferida até um dos closes característicos do western spaghetti, que focava os rostos das pessoas assistindo o perigo de modo sensacionalista.

    Após se surpreender com a identidade do mergulhador, mostrando Rachel Bedford, vivida pela voluptuosa Charlotte Rampling, que junto aos marinheiros, assiste a morte do tubarão branco. Todos estão surpresos, ela não, pois mesmo antes da câmera de Michael Anderson registrar, ela já sabe o que acometeu o animal: uma baleia assassina, claro, afinal, convenientemente ela é uma especialista neste tipo de animal.

    Para enfrentar este perigo periclitante, é escalado o capitão do navio que captura crustáceos, Nolan, no que seria certamente o papel de sua vida. Ele é o Mister Quint (caçador de Tubarão, vivido lá por Robert Shaw) da vez, suas frases de efeitos são tão fortes quanto os arpões que impinge a si mesmo, e seus adversários são igualmente ardilosos, como a baleia boazinha que é atacada por ele, e que após ter um arpão atravessando seu corpo, ainda tenta se matar, jogando sua cabeça contra a ventoinha do barco. Para acabar com a moral do sujeito, o mamífero ao ser fisgado dá a luz a uma baleinha, numa cena que desconstrói qualquer possibilidade de bom gosto dentro da proposta do filme. A tragicômica historieta termina com uma lágrima descendo dos olhos da baleia morta, num enorme close, enquanto seu “parceiro” em alto mar emite grunhidos tocantes e finos, como o choro de um cachorro.

    A vingança dos seres marítimos não tarda, o viúvo retorna com sede de sangue, focando o Dumbledore ainda jovem com seus expressivos olhos. Todo o subtexto presente em Tubarão é completamente inexistente neste filme. Orca trata de uma rivalidade, um imbróglio pessoal entre Nolan e a Baleia do bem que se tornou do mal porque o marinheiro se confundiu. Após algumas conversas edificantes com um índio – alguém que naturalmente tem conexão com a natureza, ao menos para o parco pensamento estadunidense – o capitão passa a pensar na possibilidade do problema com o mamífero gigante ter uma origem espiritual. A única coisa que não chega a ele é a possibilidade desse roteiro esdrúxulo estar sendo levado demasiado a sério.

    O caçador – repare a quantidade absurda de alcunhas deste – entende ser a hipnose o melhor artifício para alcançar seu vilão. Sua psiquê está confusa, tão caótica quanto a continuidade da fita, que apresenta as faíscas de explosão sendo levados para leste e em segundos, levados para oeste. Aquela baía tem um complexo sistema eólico, sem dúvida alguma. E incrivelmente, a baleia parece saber até onde o seu nêmese está alojado.

    O estridente ruído produzido pelo animal maldito é tão agudo que quebra taças de vidro contendo vinho: é a força da natureza, mostrando que não está fácil. Os ataques da baleia são certeiros, pontuais, pois acertam cada um dos entes queridos de Nolan, devastando a moral do marinheiro, deixando-o prejudicado moralmente. O marujo decide ir até o lugar em que teve o primeiro embate com o gigante, porque tinha certeza que ali seria um bom ponto de encontro. É interessante notar que a série de mortes que ocorreram entre os conhecidos de Nolan não aconteceriam se as pessoas estivessem alojadas longe da costa, uma vez que a baleia não tem poderes suficientes – a priori – para atacar em terra firme.

    A baleia se desloca para uma área gélida, e os heróis decidem segui-la, até por que esse é o principal motivo do filme ser feito. Engenhoso, o animal empurra um bloco de gelo para cima do navio e afunda o transporte do seu inimigo. No último momento em que os rivais estão frente a frente, o homem hesita, deixando de atirar no animal mal intencionado. Ele cai na água, enquanto a orca o circunda. Todas as reflexões que deveriam ser feitas nesse momento sublime não o são, ao contrário, o “peixe” prefere matar seu nêmese como em um fatality, jogando sua carcaça contra a sólida rocha, para que ele morra em terra e deslize, caindo sobre a superfície aquática, tendo assim dois caixões. É deste modo, repleto de pseudos-significados que o filme de Michael Anderson se encerra, sem qualquer brilho semelhante ao filme que copiou.

  • Crítica | Coração Satânico

    Crítica | Coração Satânico

    coração satanico

    A música de Trevor Jones, aliada ao clima esfumaçado, dá à cidade um tom gótico não condizente com a sua temporalidade, mas muito ligado à trama espiritual narrada na Nova York de 1955. A neblina causada pelo cigarro de Harry Angel, um detetive interpretado pelo ainda jovem Mickey Rourke, combinada à lembrança do brutal assassinato que ocorre no início da trama, faz da história uma reimaginação dos conceitos vistos em filmes noir, com hediondos homicídios, personagens decadentes no papel de avatares da justiça e claro, com alcunhas repletas de trocadilhos.

    A escolha de filmar a obra em cores é justificada pelo desejo de destacar o sangue, condição que atravessa o gênero, fazendo ligação com a temática sobrenatural abordada pelo filme. A dualidade de Louis Cyphre (Robert De Niro) começa pela escolha da alocação: seu quartel general é acima de igreja protestante frequentada por negros, e é lá que ele recebe o investigador, que deveria ir atrás de um sujeito, Johnny Favorite. A inserção do ator no papel do cliente misterioso é curiosa, pois em sua volta há uma aura diferente, como se ele vivesse acima das preocupações comuns aos homens daquele tempo, embora ainda mantivesse um pé neste mundo.

    É curioso que, nesse quesito, ele se assemelha ao personagem de Al Pacino em O Advogado do Diabo, John Milton, que viria à tela do cinema uma década depois. No entanto, Louis é mais discreto em sua relação com o anti-herói da vez, não se envolvendo com ele de maneira estreita, somente por meio de pistas pouco evidentes, que exigem um bocado de atenção e perícia.

    A rotina de Angel varia entre seus cigarros Camel e a apuração das pistas. Por onde ele passa há um rastro de sangue, na verdade, dois, um por vias de morte, e outro, mais estranho, passando por lugares sagrados, como parte de um sacrifício ainda pagão, mas dentro da realidade católica. Esse detalhe se torna algo muito curioso, uma vez que nas religiões de matrizes cristãs não se executa mais animais em seus ritos. Quanto mais mergulha dentro da trama, o detetive encontra mais e mais elementos de ocultismo que remetem visualmente às tribos caribenhas, que aos olhos dos colonizadores, tinham contato direto com Satã.

    A volúpia, o crime, a morte e a religião convivem dentro da rotina do detetive, mas sem uma divisão clara ou interseção entre um assunto e outro. Todos os pares convivem harmoniosamente naquele micro-universo, e se tornam ainda mais homogêneos quando o desespero leva Harry até as paragens de Louisiana. O horizonte lodorento e pantanoso é o cenário perfeito para toda a sorte de indiscrições morais de seus personagens, assim como os pecados de morte que ele averigua.

    Como um jornalista gonzo, Harry se infiltra em meio à rotina daquela cidade, e passa a agir, falar e se vestir como um local, até para ajudar em seu raciocínio dedutivo. Em meio a tais emoções e sensações, ele ouve um comentário sobre Favorite, mas que se encaixa no modo de agir da maioria dos personagens da trama: “A crueldade é algo bem simples para algumas pessoas”. Angel só se mostra legitimamente assustado ao ver uma roda sacrificial, onde negros fazem o seu culto, liderados por Epiphany Proudfoot, uma moça negra, de boa aparência, que já exercia a função de sacerdotisa desde os 13 anos. A personagem de Lisa Bonet vive nas fantasias de Harry e permeia até os seus sonhos de conteúdo violento e excessivamente sangrento ao estilo gore.

    A decadência humana é vista até nos elementos fora do escopo assassino. A arquitetura interna dos prédios, com suas paredes descascando, o ranger das escadas antigas, tudo remete ao fim e à morte que ocorre entre todos os envolvidos no estratagema da investigação. As sutilezas do roteiro são ainda mais flagrantes que os óbvios elementos de terror, como as mortes e órgãos dilacerados habitando os cenários e os ventiladores que rilham em um som incômodo demais e não produzem quase vento nenhum. Não há qualquer possibilidade de alívio na existência típica daquele lugar, nem espaço para redenção ou epifania.

    Em uma conversa entre o detetive e seu contratante, Angel assume que detesta o ambiente das igrejas porque o ar gótico do local o deixa apreensivo e ansioso. Sempre que é tomado por qualquer questão religiosa, o personagem reafirma sua origem do Brooklyn, uma zona urbana demasiado castigada e mazelada. Segundo ele, o ambiente onde cresceu não o permitiria vislumbrar o mundo por um viés tão otimista quanto o pensamento religioso normativo exige e, por isso, sua incredulidade estaria justificada, ainda que, em sua intimidade, sejam observados inúmeros símbolos iconoclasticamente canônicos, como a vontade de fazer justiça e a moralidade disfarçada de cinismo, mais uma vez copiada das películas quarentistas em preto e branco. O modo como Alan Parker conduz sua fita é excelente, pois toma emprestado a experiência que teve em drama, notável em Asas de Liberdade e a viagem ácida de The Wall para montar os elementos de thriller psicológico vistos em Angel Heart.

    As relações carnais do detetive têm ligação direta com o mar de sangue em que a história estaciona. Na primeira cena em que o sexo é finalmente consumado, e não mais sugerido, há uma viagem recordatória que mostra os pecados de luxúria lado a lado com o montante de óbitos que ocorreram frente à câmera. A magia negra parece ser algo flagrantemente de péssima influência para todos os personagens entrevistados, menos para aquele a quem o drama de Favorite interessa.

    Os momentos finais são cortados por um som semelhante a um grito de desespero, que imediatamente entrega ao expectador a peça que faltava naquele estranho ardil. O mistério pelo qual Angel foi contratado para investigar nunca esteve longe de ser resolvido, na verdade só fora negligenciado o tempo inteiro. Mesmo ante a verdade sobre seu passado e sobre seus pecados, Johnny/Harold nega o óbvio e recusa a percepção de que fora instrumento daquilo que sempre declarou não crer, o que piora com as lembranças de quando cometia os seus delitos e com seu consequente salário, a danação eterna.

    O estado físico em que Angel se apresenta no final demonstra cansaço, estafa por ter de lutar contra a sua própria natureza, contra a condição que fez dele um sujeito ainda vivo, porém triste, consequência de toda a sua jornada de sexo, morte, misantropia e egoísmo. A cena em que, simbolicamente, ele desce em um elevador antigo, representa o final do personagem e onde ele passaria o pós-vida, um lugar que ele sempre evitou, rejeitou e que, por breves instantes, até evitou ir, mas que, inexoravelmente, deveria ser sua última paragem, seu destino final.

  • Crítica | Jovem e Bela

    Crítica | Jovem e Bela

    Jovem e Bela

    Isabelle desde o início da película é um objeto a ser observado, ela é vigiada por olhos desejosos de si, ainda que alguns desses o façam de forma inconsciente (questão esta dúbia e discutível, visto o desenrolar da trama). A sexualidade nela é aos poucos aflorada, e como é sublime ver um corpo juvenil se auto-descobrindo, especialmente antes de ser tocada por mãos masculinas que as ferem tal monumento a beleza. É impossível não se afeiçoar minimamente pelas feições e curvas de Marine Vatch

    Os beijos que recebe dos presentes em seu aniversário são desferidos quase todos próximos de sua boca, isto, aliado a música da trilha e sua letra profética, prenunciam uma carência que começa a crescer e que evoluiria dentro de sua psiquê. Havia um desejo por mais, uma necessidade de auto-exposição, que não seria satisfeito num estilo de vida normal e extremamente regrado.

    O seu novo ofício é organizado, ela só atenderia as tardes, nunca a noite ou em finais de semana: seu intuito era o de ter uma carga horária o mais comum e normativa possível, visto que a natureza de seu trabalho não era usual. Seus clientes tem gostos e preferências muito diversas, alguns são exigentes, outros desonestos, outros preferem não ser tocados – o que é esquisito dada a natureza do serviço, sua adaptação é plena e se dá aos poucos, mesmo com (alguns) insultos que recebe de quem a contrata.

    A opção pelo emprego não a exime do constrangimento, que a faz se lavar obsessivamente, para se livrar dos sinais e odores dos homens que a possuem. No entanto, sua insatisfação é crescente, só faz aumentar, mesmo com a pequena fortuna que vai acumulando. Há mais que somente o código moral a incomodando, e ela não consegue entender o que está lhe causando isso.

    A segunda parte da história, a partir do Momento Inverno, mostra a aposentadoria forçada de Isabelle e a decepção de sua mãe ao descobrir seus serviços. A profundidade da questão é abordada muito bem, sob os olhos da figura materna, que procura a culpa em todos os fatores externos a sua própria ação. O sentimento que ela tem pela filha é de asco pelas atitudes que considerava erradas por essência e também de medo do vício que ela adquiriu. Ao final ela não consegue entender a confusão que se passa na mente da moça.

    François Ozon apresenta uma história única, que não é condescendente com o público em momento algum, não o poupando das vicissitudes da questão primordial, mostrando esta sobre várias facetas, desde a comum associação satânica, até a fantasia e fetiche de muitas mulheres – fetiche no caso correspondente o ato de “auto-comercialização”, declarado por uma das personagens. O desfecho, em aberto, levanta inúmeras possibilidades para o futuro de Isabelle, nenhuma dessas porém garantem a si um futuro sem traumas ou lembranças vis.