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  • Crítica | A Festa

    Crítica | A Festa

    E no começo, tudo é festa. Eles e elas chegam em casa com flores, sorrisos, comida no forno, drinks pra lá e pra cá na iniciação de uma tarde amistosa que tem tudo pra dar certo, afinal, entre amigos está tudo bem. A gente já viu esse filme, essa estória um milhão de vezes (ou mais), principalmente em belas casas inglesas onde quase tudo rola por trás da serenidade aparente. Mesmo assim, A Festa não parece ter vontade alguma de reciclar conceitos narrativos e de aproveitamento da mise-en-scène criativa tão antigos quanto o próprio Cinema, quanto a própria arte de reunir meia dúzia de pessoas naturalmente diferentes em uma mesa sala, sob o mesmo teto, e ver o circo pegar fogo devido a própria natureza conflituosa que surge entre um, e outro.

    Para comemorar a nomeação como Ministra da Saúde, Janet chama os amigos mais próximos a sua casa, afinal é uma data especial que não rola todo dia, só que a cineasta Sally Potter não tem O roteiro em mãos para ao menos conseguir brincar, decentemente, de Mike Nichols e Roman Polanksi. Até mesmo a escolha da imagem gratinada em preto e branco, nos dando o deleite de ver todas as matizes de prata que surgem dessa escolha estética, nos remetem ao desejo de recriar parte do clima, do charme e da força acachapante de um Quem Tem Medo da Virgínia Woolf?, conseguindo, no máximo, comparações honestas e mais humildes com Deus da Carnificina, o bom e “contido” filme esquecido de Polanski.

    Duas características que francamente tem muito a ver com A Festa, uma vez que revelações começam a surgir entre suas personagens que parecem pertencer com suas raízes aos cômodos e aquela mobília, por onde dançam suas paranoias, seus vícios e o cansaço que começa a tomar conta dessa tarde coletiva, tal um demônio sorrateiro embaixo da cama fazendo um casal brigar ao invés de transar a noite. O filme é um verdadeiro show de atuações, da calmaria a flor-da-pele, e merece a alcunha de ser um palco dramático para um grande elenco, em especial o velho mestre Timothy Spall, impressionantemente magro, em fascinante e silenciosa presença em cena.

    Ele é o velho sol no qual todos gravitam em volta, e quando anuncia ter prazo de vida, o filme de Potter, um elegante turista pela terra do banal e do lugar-comum, vira uma catarse semi esquizofrênica onde ninguém sabe o que fazer, e muito menos o que há para se perder. Assistir a adultos e idosos convidados por Janet agindo de forma cada vez mais inconsequente, voltando a essência da adolescência que cabe em suas ações, é divertido por demais, e apenas por isso a sessão aqui vale a pena – Potter tem um ótimo ritmo narrativo. A ironia e o absurdo de certas situações casa-se perfeitamente bem com o julgamento do personagem de Spall, sempre em sua poltrona e que começa a ser interrogado por suas ações que começa a confessar; um Dionísio arrependido a caminho da cova, fazendo sua esposa se revirar e se morder no túmulo antes dele.

    Contudo, com os préstimos devidos, porque o banal A Festa não decola a ponto de extravasar o ótimo filme que existe, em todo o seu potencial embrionário? Talvez haja uma categoria cinematográfica (e que certamente pode se estender para outras formas de arte) de certas obras que não precisam ser monumentais; nascem e veem a luz de um projeto para serem miniaturas, não grandes estátuas. Não há erro algum nisso, numa bela catarse simplista e produzida para ser assim, por mais que aqui fique na boca um gosto forte de quero mais, e uma sensação suspeita que Potter não soube extrair do seu projeto, sucesso no Festival de Berlim de 2017, nada de fato marcante para se destacar entre tantos outros murais sobre as relações humanas que nos guiam, rumo ao céu, rumo ao inferno que está nos outros. Não só nos outros.

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  • Crítica | Dunkirk

    Crítica | Dunkirk

    O cinema se compõe a partir da junção de imagem e som, e uma das máximas dessa arte é a velha alcunha de que é melhor mostrar do que falar. A filmografia de Christopher Nolan é conhecida especialmente por suas atmosferas grandiosas; seus cenários grandiloquentes; seu caráter autoral; e em alguns filmes, pelos diálogos expositivos. Após críticas negativas ao seu último trabalho Interestelar – especialmente no que diz respeito as explicações excedentes – Dunkirk prometia ser diferente, mesmo porque esse seria um filme que fugiria muito do texto e dependeria mais da imagem.

    A resposta para indagação do público se seria esse realmente um produto com poucos diálogos é cumprida à risca. O roteiro conta como foi a retirada estratégica dos britânicos, da fracassada empreitada conhecida como A Batalha de Dunquerque. Até por ser uma história muito cara ao povo inglês, Nolan tinha uma preocupação em universalizar os dramas ali passados, para que o espectador pudesse sentir o que sentiram os alistados que estavam ao lado dos aliados na Segunda Guerra Mundial. A opção do diretor foi de apelar para o sensorial, abusando do trabalho de som, que serve de atalho para quase todos os temores, medos e sensações daqueles que sofrem com a guerra.

    Hans Zimmer já é um colaborador contumaz de Nolan, e nesse trabalho seus esforços se provam ainda mais valorosos. Mesmo quando o texto corre o risco de soar piegas, é a música de Zimmer que ajuda a tirar o produto final dessa pecha. Ainda assim, por mais que em alguns momentos haja um certo exagero patriótico, o longa não soa ofensivo as plateias não-inglesas, ao contrário, já que o argumento dribla o ufanismo exacerbado, indo na contramão do cinema de guerra norte-americano.

    Há alguns problemas com as identificações dos personagens, uma vez que a maior parte do elenco é composta por atores jovens e desconhecidos. Apesar das enormes semelhanças físicas entre esses, tal situação faz valer ainda mais a sensação de empatia, já que a maior parte dos rostos famosos – Mark Rylance, Cillian Murphy, Keneth Branagh e Tom Hardy – não estão exatamente no front, portanto, qualquer um ali pode morrer. Os sons estrondosos das bombas e os estragos feitos em meio aos que compõe as barricadas são de uma precisão sonora e visual impressionante, algumas vezes compondo cenas belíssimas, semelhantes à telas de aquarela, em outras retratando o puro horror do conflito, sem necessitar mostrar qualquer tipo de dilaceração ou gore, como havia ocorrido por exemplo com o recente Até o Ultimo Homem, soando tão ou mais grave que esse mesmo sem utilizar os mesmos recursos.

    Dunkirk é um filme de guerra, mas não há enfoque sobre o conflito. Mesmo os soldados que tem armas em punho estão lá para sofrer. Nesse ponto, ele é o perfeito filme do meio, servindo a si à perfeição de filme anti-guerra. Certamente eram exageradas (e pretensiosas) as comparações de Interestelar a 2001: Uma Odisseia no Espaço, mas certamente o caráter deste se assemelha muito a outra obra kubrickiana menos valorizada do que deveria, que é Glória Feita de Sangue, embora métrica, atmosfera e trabalho técnico sejam inteiramente diferentes, ambos falam de fracassos militares e de desperdícios de vida, no meio de um conflito bélico. A mensagem é passada de forma certeira, sem precisar lançar mão de artifícios expositivos, soando até poético em alguns momentos.

    https://www.youtube.com/watch?v=b7v_6hIa5Ok

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  • Crítica | No Coração do Mar

    Crítica | No Coração do Mar

    No Coração do Mar - poster

    A tradição oral sempre esteve presente conosco. Ela, sem dúvida, é um dos ritos mais antigos que ainda carregamos, e através dela, antes mesmo de conseguirmos ler, são passados medos, lições e principalmente as histórias. E é através do interlocutor que essas passam a ganhar vida, mesmo que verdade ou não. Basicamente, é questão de acreditar no que está ouvindo. E é nessa passagem que todo o clima e atmosfera do filme No Coração do Mar, que estreia nos cinemas no próximo 3 de dezembro, constrói sua narrativa.

    O cinema do diretor Ron Howard tem se dedicado nas suas últimas obras a relatar histórias reais através de suas produções, e certamente atingiu muitos acertos, como Uma Mente Brilhante, obra na qual realiza uma cinebiografia, ou em conflitos reais como Frost e NixonRush – No Limite da Emoção. Mesmo que hoje possamos perceber com enorme frequência filmes voltados a contar histórias reais, origens de grandes fatos históricos e personagens numa tentativa de ressurgi-los mais uma vez, arrecadando milhões em bilheteria, é muito fácil destacar esses três filmes como obras muito bem realizadas no meio de tantos produtos semelhantes. Mas o que acontece quando ele decide contar uma história que na verdade deu origem a uma obra que é tão poderosa quanto a história que a inspirou?

    Na trama de No Coração do Mar, o futuro autor de Moby Dick, Herman Melville (Ben Whishaw) convence o velho Thomas Nickerson (Brendan Gleeson) a contar a história de quando ainda era um marujo (interpretado por Tom Holland) e o que ocorreu de fato por trás da destruição do navio Essex em 1820, que saiu em busca de caçar baleias, comandado pelo capitão George Pollard Jr. (Benjamin Walker) e seu Imediato Owen Chase (Chris Hemsworth)

    Já que o filme se passa unicamente no mar, seria mais do que função dessa produção trabalhar bem a construção do que se passa exatamente dentro e fora de um navio. O filme não só faz isso com excelência, mas consegue dosar numa montagem competente a simples busca por um vento favorável como algo completamente emocionante. As cores dos enquadramentos são propositalmente sóbrias nas cenas externas no mar para dar vida ao navio muitas vezes, assim como as cores das roupas do capitão Pollard, dourado das armas da tripulação e dos olhares dos tripulantes.

    Infelizmente, como muitas produções hoje carecem de uma imersão fidedigna ao que elas se propõem, existe um excesso de enquadramentos em close nos atores quando é necessária uma cena que exija um movimento mais preciso, ou uma ação coordenada em alguma direção da câmera. E, por outro lado, é muito difícil dizer quando estamos encarando uma baleia por CG ou por uma gravação pré-produzida com uma montagem competente. Vale ressaltar que, apesar da trilha claramente Hans Zimmeriana, ela encaixa perfeitamente nas cenas, assim como os efeitos sonoros da grande baleia branca que aterroriza a tripulação do Essex.

    Durante toda a passagem do filme, foi difícil não pensar no fato de que ele por si só já era a metalinguagem de outra história já contada, sendo contada para o seu autor. Os poucos momentos em que os personagens do Essex têm diálogos expositórios sobre sua condição, é muito claro a contraposição com a própria natureza da obra Moby Dick e que se estende até o fim do filme. Seu desfecho, amargo e doloroso, é resultado de uma condição miserável em que alguns poucos seres humanos sobreviveram para contar. Apesar de alguns veículos de comunicação terem divulgado a foto do ator Chris Hemsworth com pouquíssima massa muscular para interpretar o período à deriva da tripulação é possível dizer que o filme não abusa em demonstrar tal aspecto físico, exibindo-o pontualmente durante alguns trechos,

    A tradição oral é talvez um dos espelhos mais poderosos que temos para revelar o que se esconde de sombrio no coração do homem; tornar simples palavras em monstros e em assombrações depende unicamente do que existe de mais sombrio em cada um de nós. Quem sabe transpor o que deveria nos atormentar de tamanha forma com palavras em imagens talvez não seja a maneira mais efetiva de contar essa história.

    Texto de autoria de Halan Everson.

  • Crítica | Transcendence: A Revolução

    Crítica | Transcendence: A Revolução

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    Com aproximadamente cinquenta trabalhos em fotografia cinematográfica, divididos entre longas-metragens, curtas e videoclipes, Wally Pfister estreia na direção, com uma ficção científica que recorre a uma das tradições do gênero – o futuro como visão pessimista do presente – para desenvolver seu argumento.

    Transcendence: A Revolução apresenta um futuro destruído e primitivo em relação ao mundo contemporâneo. A trama retorna anos antes para a bem-sucedida vida do cientista Will Caster (Johnny Depp) e de sua esposa (Rebecca Hall). Considerado uma das grandes mentes vivas, o doutor é responsável por desenvolver o primeiro sistema com inteligência artificial autônoma. Após descobrir-se portador de uma doença terminal, decide transferir sua consciência para uma máquina – uma evolução de seu projeto de inteligência artificial – para permanecer vivo mesmo que em circuitos elétricos.

    Diferentemente de seus personagens mais conhecidos, destacados pela interpretação levemente afetada e apoiada em caracterizações distintas, Depp faz um cientista sem muitos arroubos e nenhum estilo próprio. A ausência de qualquer elemento bizarro parece enfraquecer a interpretação do ator em um roteiro raso feito por Jack Paglen (estreante no roteiro de longas). Um material que não fornece nuances à personagem central além da natural mudança de comportamento, quando o Dr. Caster de carne e osso se transforma em um conjunto gigantesco de bytes.

    A evolução das máquinas, e a tecnologia que proporciona tal avanço, foi o tema escolhido como estrutura da ficção científica. Dentro do sistema digital, o cientista perde as nuances humanas e torna-se um sistema de ação e reação, equilibrado em uma analise matemática que visa uma melhora tecnológica em escala global, mesmo que infrinja a lei para estes meios. Em contraparte dramática, há um grupo de ativistas (liderado pela personagem de Kate Mara) avessos à tecnologia e contra a evolução transcendental que prende o doutor.

    A história desenvolvida além da superfície apresenta a análise filosófica sobre a evolução das máquinas e um futuro consciente a respeito da existência da tecnologia e de robôs artificiais que se tornariam mais inteligentes que a máquina humana. Sob este aspecto, torna-se evidente que Transcendence utiliza-se de um elemento da ficção científica como conflito e não como estilo, semelhante ao desenvolvimento de Oblivion, estrelado por Tom Cruise, que recorre a um futuro distópico somente como base para desenvolver a ação.

    Retratando de maneira frívola o conceito da inteligência artificial em um argumento simples, a produção não se insere em linhas de estudo sobre robótica ou neurociência atuais que aproximariam a história de um senso de realidade, nem funciona como um produto genuíno da ficção científica pela falta de um rico material argumentativo que demonstre teses e teorias no interior da narrativa especulativa.

    Vendida como história deste estilo, não à toa a recepção foi considerada inferior da esperada. O argumento breve pode conter potencial, mas ao ser executado no roteiro resulta em uma história que se demonstra precária, e o conflito do homem transformando-se em máquina, um mero apelo dramático. Um recurso que poderia ser substituído por outros sistemas narrativos igualmente interessantes em sua essência.

    Levando-se em consideração as primeiras notícias que saíram na pré-produção do longa, o roteiro seria mais próximo de uma história de ficção científica, apoiada na evolução da tecnologia e nos consequentes avanços medicinais. Talvez procurando um apelo mais simples e universal – que sempre suscita uma intenção financeira por trás da obra – destruiu-se o verdadeiro potencial dramático e filosófico que a história poderia entregar. Uma transcendência que se transformou em blefe não correspondido, demonstrando que até um nome em alta como o de Christopher Nolan – que produziu o filme – não pode sustentar uma obra composta de maneira desequilibrada.

  • Crítica | A Origem

    Crítica | A Origem

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    É fácil olhar hoje para a carreira de Christopher Nolan e ver nele um exemplo de cineasta de grandes feitos e em quem os estúdios confiam, seja pela franquia de super-heróis da Warner que deu certo (vide o insucesso de O Homem de Aço e Lanterna Verde, só para citar os mais recentes), assim como em produções caríssimas, como O Grande Truque. A Origem é um projeto bastante antigo de Christopher Nolan, engavetado na época graças à escassez de efeitos especiais adequados ao roteiro apresentado. Mas também relegado ao limbo por ter em sua concepção um preço absurdamente alto para os padrões de um cineasta iniciante. Foram precisos seis longa-metragens no currículo para confiarem a ele o orçamento estimado em 160 milhões de dólares.

    O visual do filme impressiona, a fotografia, edição, tudo é belíssimo. A escolha por narrar a trajetória de Cobb (Leonardo DiCaprio) por meio de flashbacks é uma opção muito inteligente. A história, contada de forma linear, não teria metade do impacto que teve como produto final. Além disso, a estratégia de usar a máscara de filme de assalto para abordar uma coisa tão complexa como o funcionamento da psiquê e seus segredos dentro do ambiente misterioso do sonho é brilhante, e, aliada à estética noir, fazem da fórmula do filme algo único. O didatismo de Nolan, tão criticado nos filmes do Morcego, é muitíssimo necessário neste evento em particular.

    A cartilha de Joseph Campbell é cumprida à risca: todos os arquétipos são desenhados e representados de forma bastante óbvia. O intuito é de não deixar qualquer dúvida acometer o público, a não ser em relação à realidade tangível. O grave problema de Inception é a motivação dos personagens. Cobb é um herói falido típico, que não consegue ter controle sequer sobre o destino de suas ações. Toda a gigantesca trama, os roubos de informações, os sequestros e outras tantas atitudes fora da lei protagonizadas por ele só acontecem graças à sua reticência. A humanidade não é um problema, mas a contradição de seus atos o são. Para alguém que lidera uma operação tão complexa, é simplesmente inaceitável a sua falta de pulso, mesmo levando-se em conta o seu trauma. Outra questão que influi na percepção do público quanto à atuação do ator principal foi a proximidade entre o lançamento de A Origem e Ilha do Medo, de Scorsese, cujas premissas dos personagens centrais são bastante parecidas.

    O segundo erro capital é a personagem que deveria ser a orelha, a inserção do espectador dentro da experiência como um todo. Ariadne, de mesmo nome da libertadora de Teseu do labirinto do Minotauro, deveria ser uma promissora arquiteta que, ao ser desafiada, mostra-se muito competente no que faz, mas ainda assim é neófita e inexperiente. Uma vez que o papel de Ellen Page sabe perverter as regras do mundo dos sonhos, ela se torna uma deusa, que desliza sem dificuldades pelos segredos da mente e que molda a estrutura das construções compartilhadas entre os aventureiros. Sua evolução é rápida e até admirável, mas passa muito do ponto, pois instantaneamente se torna presunçosa e moralista, pondo o dedo em riste, acusando o seu contratante, como se ela fosse onipotente. Tais pecados podem ser explicados pela inexperiência, mas não são tão bem justificados quanto facilmente poderiam. Mais uma vez a omissão de Cobb é demonstrada, e assim como a vilã, Ariadne se usa disso para se achar maior do que realmente é, ignorando a possibilidade de, uma vez no subconsciente, perder a noção do que é verdade e do que é sonho. Ela carrega tanta arrogância sem causa que não consegue amadurecer ao tomar conhecimento das experiências alheias, algo que claramente faz falta ao perceber que a mente de Fischer era treinada, desmoralizando Cobb por cultivar tais pensamentos.

    A ideia de Nolan é discutir filosoficamente os limites do tecido da realidade. Antes de completar 60 minutos de exibição, um simples funcionário de um “dormitório” indaga Cobb sobre a veracidade da dimensão sonhada e qual destas é a mais verídica de fato. Primeiro ele desmistifica a questão da “elitização da verdade”, pondo um mestiço comumente ignorado e fadado a ser taxado como simplório como o detentor da informação primordial e do questionamento fundamental. Depois ele joga no colo do herói a interpretação do seu maior anseio, fazendo ele confrontar seus próprios demônios. Viver no passado é sedutor, e o avatar curvilíneo e as belas feições de Mal (Marion Cotillard) representam toda essa volúpia de forma ímpar. Cobb deseja tanto sua beleza quanto anseia se encontrar com os seus filhos novamente. Toda a sua reticência é voltada para a dificuldade de escolha da realidade que terá de fazer.

    A escolha de Mallory em ignorar a verdade é parte da utopia do mundo ideal, onde somente ela e seu amado vivem, alienando-se totalmente ao que acontece na vida real. A projeção de um conto de fadas é maximizada e elevada a níveis altíssimos, numa alegoria clara à fuga da inconveniente verdade do fruto proibido. A personagem Mal é como uma louca Eva, que, ao provar da árvore do Bem e do Mal, não consegue mais viver sua antiga rotina. O cotidiano é démodé demais para os seus gostos, e sua tentativa de voltar ao ideal condena o seu amado a uma vida sem realizações que lhe são prazerosas e necessárias.

    A utilização dos elementos externos a quem dorme dentro da camada inferior de sonho é uma ótima forma de representar o nonsense e descompromisso com as regras físicas dentro desta alternativa efetivamente verdadeira. A perseguição frenética e apressada em relação até mesmo ao tempo acrescido se dá graças ao mergulho dentro das camadas de transe. A contradição ajuda a aumentar o suspense da história.

    O limbo que é a prisão de Mallory representa uma amostra decadente de como o mundo idílico era e de como ele se tornou assustador com o decorrer do tempo. O passado é amedrontador e contém muitos dos medos de Cobb. A simples chance de olhar no rosto de suas crianças dentro de sua fantasia causa asco no herói. Sua incessante busca é pelo real: poder tocar seus herdeiros, aqueles a quem ele abandonou, primeiro ao se isolar e depois por motivos de força maior. A ideia, implantada em Mal, de que tudo muda parecia ser a maldição de sua própria vida. Enfrentar a sua própria verdade inconveniente e ter de assumir a sua parcela de culpa o consome e só não dói mais do que a distância de seus filhos, Sam e Phillipa. A dificuldade em liberar sua alma do sentimento de Mal é intenso, e a despedida é emotiva, especialmente para a projeção da mulher. Já Cobb parece, pela primeira vez, seguro de si e do que quer. A questão da dualidade no final é agravada pelos olhares do protagonista e cada um dos seus companheiros de jornada, dos cenários e cenas idênticos aos que se propagam em seu imaginário.

    A Origem é o momento mais autoral de Christopher Nolan, e a prova do quão prolífico é o seu cinema. Uma promessa para filmes ainda melhores do realizador britânico.

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  • Crítica | Extermínio

    Crítica | Extermínio

    28 days

    Danny Boyle  em 2002 lançava 28 Days Later, sua interpretação do que seria um mundo pós-apocalíptico. O filme encaixa-se nos gêneros de Ação e Terror e é muitas vezes excluído das listas de filmes de zumbis – e  essa é uma polêmica que nem vale a pena ser discutida, apesar de nele conter uma série de semelhanças com filmes de sobrevivência aos mortos: isolamento, medo de infecção, perseguição, mundo contaminado, ausência de meios de comunicação e condições de vida extremas. A diferença mais gritante entre as criaturas (Zumbis x Infectados) é que em Extermínio os seres não tem corpos putrefatos.

    Logo nos primeiros minutos é mostrado o motivo da contaminação. O espectador acompanha o personagem Jim, interpretado por Cillian Murphy, que sai de um hospital e percebe-se só, até encontrar alguns opositores, que obviamente querem sua vida. Ele é resgatado por um pequeno grupo de sobreviventes. Aos poucos mais pessoas vão se achegando.

    No topo de um prédio, uma dupla de sobreviventes é mostrada tentando captar água da chuva, distribuindo baldes e recipientes plásticos pelo terraço – estratégia interessante e quase exitosa, não fosse à falta de chuva que acometia Londres.

    A edição do filme é frenética, quase todas as execuções são em alta velocidade até porque os infectados são muito velozes, isso faz com que os combates fiquem engraçados em determinados momentos. Nos outros filmes de zumbi existe um motivo crível para ainda haver alguma resistência por parte dos humanos, pois mesmo que os infectados estejam em um número esmagadoramente maior, os mortos ainda sim são estúpidos, e em Extermínio não é o caso, pois as criaturas são ágeis e muito fortes, seria impossível resistir a eles sem armas, e na maioria das situações os personagens estão de mãos nuas.

    As cenas de ação poderiam ser amedrontadoras, mas sempre há um evento externo para quebrar o clima de suspense. Talvez a ideia que Boyle tentou passar seja que tal calamidade causaria sérias mudanças na humanidade e no mundo, o modo de vida conhecido até então entraria em colapso.

    A evolução dos personagens também deixa a desejar. Jim torna-se um assassino a sangue frio calculista e super poderoso de um instante para o outro, ao ponto de aniquilar um grupo inteiro de soldados treinados, desarmado na maior parte do tempo. Naomie Harris atua de forma sofrível, seu personagem é sem profundidade e sua execução é muito fraca. Ponto positivo são as participações de Brendan Gleeson e Megan Burns como dois sobreviventes que ajudam os protagonistas e do major West, um vilão reticente, bem personificado por Christopher Eccleston.

    A mensagem final do filme é esperançosa, mas não muita, e não fica clara se a contaminação aconteceu em escala global ou somente no Reino-Unido. Extermínio é um exercício de um diretor iniciante, muito aquém de seus trabalhos vindouros.

  • Crítica | Sunshine: Alerta Solar

    Crítica | Sunshine: Alerta Solar

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    Sunshine – Alerta Solar é uma ficção científica de 2007, dirigido por Danny Boyle (dos excelentes Extermínio e Cova Rasa). Já tinha ouvido falar bem do filme, e por ser fã do gênero sci-fi, resolvi conferir.

    Na trama, a Terra do futuro corre o risco de ter toda a vida extinta, pois o sol está para desaparecer. A última esperança é a nave espacial Icarus II e sua tripulação de 8 pessoas (Michelle Yeoh, Cillian Murphy, Chris Evans, Rose Byrne, Cliff Curtis, Troy Garity, Hiroyuki Sanada e Benedict Wong), que transporta uma bomba atômica do tamanho da ilha de Manhattan, que teoricamente alimentará uma nova vida dentro do Sol. Porém, durante a viagem e sem contato com a Terra, eles descobrem o sinal de S.O.S. da Icarus I, a nave enviada 7 anos antes com o mesmo objetivo e cuja causa do fracasso é desconhecida. A tripulação fica dividida entre alterar a trajetória da missão, de forma a obter a bomba existente na Icarus I, o que traria à missão mais uma chance de sucesso, ou seguir o plano original. A decisão recai sobre Capa (Murphy), o físico da tripulação, que decide ir à outra nave. Porém a mudança de trajetória causa avarias à Icarus II, iniciando uma série de problemas enfrentados na reta final da missão.

    A princípio, o filme começa bem, falando sem explicar muito que, num futuro mais ou menos distante, o sol brilha menos, a terra é um lugar congelado, e uma segunda missão (já que a primeira sumiu sem deixar rastro) foi enviada para tentar detonar uma mega-bomba atômica no sol na tentativa de fazê-lo voltar a brilhar.

    As explicações sutis de como a nave funciona, as razões pelas quais estão ali, algumas neuras de personagens a tanto tempo isolados no espaço são bem encaixadas, e a falta de explicações tão comuns no gênero não incomoda, por realmente não importar, naquele momento, as razões pelas quais o sol está acabando. O problema é que, a partir do 2º ato, a história passa de uma ficção científica bem construída para um terror-espacial ao estilo Alien um pouco pobre, com alguns toques de 2001 – Uma Odisséia no Espaço.

    Está tudo lá. A nave antiga abandonada sem razão aparente, a tensão gerada pelo silêncio, a Inteligência Artificial que é desligada, o ocupante misterioso que caça cada um dos tripulantes e tudo mais. Porém, no meio de todos os fatores conhecidos, o espectador ainda consegue se perder em meio a tantos acontecimentos. A escolha do uso expressivo da cor amarela em tantas cenas (para demonstrar a força e potência do sol) é boa e causa um impacto interessante, mas prejudica a narrativa pois nos impede, também pelo trabalho precário de câmera, de entendermos realmente o que está acontecendo. O filme também peca ao abordar diálogos grandiosos sobre Deus e o Homem, e a tentativa de negarmos o nosso destino, de uma forma um pouco infantil e clichê, em um “deus ex machina” que não traz muita coisa de novo a quem conhece bem o gênero.

    Apesar de toda a virtuosidade técnica e do excelente início, o que marca o filme é o seu final, deixando no espectador essa marca, fazendo-o esquecer um pouco dos conflitos e motivações de cada personagem, deixando o drama de lado e favorecendo mais as cenas de ação e tensão, que também poderiam ter sido melhor construídas se respeitassem a premissa inicial.

    Texto de autoria de Fábio Z. Candioto.

  • Crítica | Poder Paranormal

    Crítica | Poder Paranormal

    Poder Paranormal

    O diretor espanhol Rodrigo Cortés, do competente Enterrado Vivo, retorna com um elenco forte em seu novo filme, Poder Paranormal, e conduz de maneira débil e pretensiosa o olhar do espectador ao longo da trama.

    No roteiro, também de Cortés, temos Tom Buckley (Cillian Murphy) e Margaret Matherson (Sigourney Weaver) como dois cientistas que investigam eventos paranormais. O objetivo de ambos é descobrir fenômenos metafísicos, mas só o que encontram são charlatões. Margaret deposita toda a razão de sua vida em desmascarar supostos psíquicos, porque seu filho vive em um coma irreversível há anos, e o único apoio para que ela não desligue seus aparelhos é encontrar alguma evidência do sobrenatural.

    Sob outro ponto de vista, somos apresentados a Simon Silver (Robert de Niro), um vidente cego mundialmente conhecido que reaparece depois de mais de 30 anos fora dos holofotes, após um episódio polêmico envolvendo sua última apresentação. Com esse retorno, Tom fica obcecado em desmascará-lo, mas Margaret é contrária à ideia de investigar Simon.

    A estrutura de Poder Paranormal procura reproduzir o momento do “prestige” dos ilusionistas, conduzindo o olhar do público para fora do alcance de onde ocorre o truque, algo já abordado por Christopher Nolan em O Grande Truque, mas parece se render a uma reviravolta típica dos filmes do cineasta indiano M. Night Shyamalan – porém, sem o mesmo talento dele. O que tem início com uma trama promissora e cheia de potencial pouco a pouco se perde em algo extremamente raso e com muito pouco a dizer.

    O principal problema do longa são os ares extremamente pretensiosos do diretor em nos levar a crer que estamos diante de algo diferente, mas que no final das contas deixa claro ser apenas mais um produto bobo e risível. Não que a trama não dê sinais do que está por vir: muito pelo contrário, isso fica claro em vários diálogos do personagem de Cillian Murphy. O problema está na forma como algumas reviravoltas são expostas ao longo da trama, que chega ao ponto de se tornar insustentável.

    As atuações são extremamente competentes, porém a construção dos personagens é falha. Tom cai nas convenções de protagonista do gênero e não parece saber a que veio; Margaret e Simon ensaiam um embate que, infelizmente, nunca acontece. Mas nem tudo são erros, Cortés soube utilizar a iluminação como parte fundamental da narrativa, bem como a edição do filme, com cortes precisos que colaboram para a apresentação do truque que está sendo criado.

    Cortés propõe um diálogo entre ciência e fé, mas não oferece argumentos sólidos para nenhum dos dois lados, impossibilitando qualquer possibilidade de debate. Apesar de tudo, Poder Paranormal traz uma atmosfera interessante e um enredo promissor. Uma pena se perder na metade final do filme em um crescendo de frustrações para um final inverossímil.