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  • Review | Westworld – 3ª Temporada

    Review | Westworld – 3ª Temporada

    A terceira temporada de Westworld se inicia dirigida por Jonathan Nolan, mostrando uma ação na China, que remete a outra série do mesmo criador, Person of Interest. Não há demora em mostrar a Dolores de Evan Rachel Wood num prólogo, brilhando muito enquanto liberta uma mulher da mesma escravidão que ela mesma sofreu.

    Os primeiros episódios apresentam novos conceitos, enquanto os antigos personagens estão em um novo cenário, não mais no simulacro. No entanto, o que se vê na realidade é uma produção visualmente interessante, mas uma completa ausência de desenvolvimento narrativo para qualquer um dos personagens. O personagem de Aaron Paul, Caleb, é um protótipo de novo herói, como Jimmi Simpson foi na  primeira temporada, mas ao contrário do primeiro ano, aqui também não há gravidade ou desenvolvimento dramático, somente alguns elementos de fan service e cenas de ação bem coreografadas, porém, quase sempre vazias de significado.

    A história se desenrola numa linha temporal diversa da temporada anterior. No início, mantém um mistério sobre a exatidão de sua cronologia, para logo depois mostrar que não há muita criatividade na abordagem de passado e futuro, sendo retilínea no presente. Nolan e Joy podem desenvolver o que quiserem, e incrivelmente, quando seu parque de diversões se expande, eles parecem ter sérias limitações.

    Westworld teve um bom hiato, seu último episódio havia sido exibido em 2018, então pressa não é uma boa desculpa para as  fragilidades de seu roteiro, e o pior, a expansão da história a outros lugares não garantiu novos rumos, mas uma série de tramas genéricas. Outro aspecto incômodo e que não é funcional, são as viagens pelo globo atrás das manifestações dos anfitriões no mundo externo. Isso ajuda a diluir partes da historia que poderiam soar interessantes, tudo fica muito frio e impessoal. Algumas cenas de ação até são bem apresentadas, mas nada que faça a série ultrapassar a linha da mediocridade. As lutas boas não justificam o motivo delas não fazerem sentido nas suas motivações. É até interessante que uma série traga uma atmosfera cyberpunk para a televisão, mas a completa falta de assunto e discussão faz o texto final soar bobo. Os momentos finais ainda guardam péssimas referências a Exterminador do Futuro 3: A Rebelião das Máquinas e Clube da Luta.

    Na semana do episódio final, foi anunciada a renovação para uma quarta temporada, ainda sem data para ocorrer, mas o que se espera é que a próxima aventura seja menos baseada em sensacionalismo e fan service barato, e mais em um bom texto e um desenvolvimento de personagens mais aprofundado.

  • Review | Westworld – 2ª Temporada

    Review | Westworld – 2ª Temporada

    Dois anos após a Westworld – 1ª Temporada, o seriado finalmente voltou ao ar, com um previously de quatro minutos, a fim de tentar rememorar os eventos importantes que ocorreram no outro tomo. Após algumas cenas de flashback, que mostram Bernard (Jeffrey Wright) conversando com Dolores (Evan Rachel Wood), é mostrado o destino de ambos, depois da revolta que aconteceu no parque.

    Nos primeiros momentos da segunda temporada, mostra-se também os rumos que a revolução tomou, e os passos dos antigos anfitriões são dados de maneira gradativa. O desenrolar dos planos de expansão são bem lentos, fato que faz esse episodio soar muito lúdico, beirando a irrealidade, cortada obviamente pelo momento em que Bernard acorda na areia da praia, para contemplar um grupo de anfitriões mortos na beira do mar e também alguns humanos que estão lá para conter o que quer que tenha de fato havido no território da Companhia Delos.

    A fagulha de favoritismo que Arnold plantou em Dolores cresce, para ser ela a líder da rebelião das novas formas de vida. Seu modo de agir é implacável, não por  ser essa sua natureza, mas por sofrer estímulos de ódio e violência há muito tempo. As cenas onde ela persegue seus inimigos, com musica clássica instrumental ao fundo tem um pouco de humor fino em meio a violência absurda, em uma combinação de sabor semelhante a quando se usa queijo para quebrar o doce. O assassinato e as baixas entre programadores e funcionários do parque fazem lembrar que movimentos revolucionários não ocorrem só com ações propositivas pacificas, mas sim sangue dos opositores e a posição de Dolores é bem incisiva nisto.

    Já a Maeve de Thandie Newton, que ganhou a habilidade de comandar as hordas de anfitriões age de maneira independente também, no sentido de dominar o parque mas por outras vias, até de conciliação aparente. Para a personagem , o mais importante ali é conseguir achar a filha que programaram para si, para conseguir entender se a historia que ela conhece tem contornos sentimentais naturais seus ou simplesmente programados como boa parte dos acontecimentos que lhe ocorrem.

    Na primeira temporada havia um uso enorme de retornos no tempo, mas por conta dos mistérios que envolviam a criação do parque e suas conseqüências, esse excesso foi de certa forma corrigido aqui. Mesmo as participações de Ed Harris como Homem de Preto/William fazem mais sentido, acrescentando camadas a mitologia por trás da engenharia que envolve a Delos. Mesmo as participações de Jimmi Simpson são mais pontuais, estando ali para basicamente aludir a depressão e a vaidade, refletindo bem sobre as escolhas que o sujeito fez dentro e fora do simulacro.

    Alem de avançar bem sua trama, Westworld nessa segunda temporada se dedica a expandir seu universo, mostrando outros cenários, como o Shogun World ou Nação Fantasma. Neste ponto a ação da trama principal não corre tanto, mas o arco de Maeve (talvez o mais rico desse segundo ano) consegue expandir bem. Boa parte dessas ideias foram aludidas em  Futureworld, continuação de Westworld: Onde Ninguém Tem Alma, chamada no Brasil de Ano 2003:  Operação Terra, em especial sobre o replicar de humanos nos anfitriões, enquanto o início, tem semelhanças com a trama do filme Mundo Perdido – Jurassic Park, em especial por mostrar que a natureza dá seu jeito de continuar a evoluir seja em qual for o ecossistema. Os escritores deixam claro a admiração pelo trabalho de Michael Crichton, escritor do livro Jurassic Park e de sua continuação, além de ser o diretor do filme que deu origem a série.

    A Terra Prometida transcende a condição de paralelo com o cristianismo, o lugar em si não é necessariamente físico, e sim mental, ou no caso em se tratando de bio ciência e de androides/anfitriões, claramente é sobre um lugar onde se transporta só a consciência em forma de memória backup para esse espaço, um lugar onde possivelmente não haveria como ocorrer interferência de qualquer programador ou humano, um legado de Ford.

    Jonathan Nolan e Lisa Joy contraria as expectativas, e dessa vez não demora tanto a revelar mistérios que vão se tornando evidentes com o tempo, como fez com relação a identidade de William próximo do fim da primeira temporada. Seu desfecho tem um tom poético, em especial na libertação de alguns personagens. Os touros e búfalos que correm pelos corredores, regidos pela musica orquestrada e pela câmera lenta reforçam o tom de tragédia e de uma luta que aparentemente será incessante até que praticamente todas as partes faleçam. A gênese da rebelião sempre foi Dolores, e seus últimos momentos são dignos de uma heroína quase onipotente. A perversão do sistema e a cena pós credito lida com liberdade de escolha, e com o inexorável destino dos antigos anfitriões, para que possam finalmente agir com algum nível de livre arbítrio. Westworld termina com expectativas enormes para a terceira temporada, e que segundo seus produtores, ainda estaria longe de terminar seu drama.

  • O Cavaleiro das Trevas – Dez Anos Depois: As Três Faces de um Conto do Batman

    O Cavaleiro das Trevas – Dez Anos Depois: As Três Faces de um Conto do Batman

    Em julho de 2008, o mundo veria um libelo da cultura pop mainstream nascer e se mostrar como uma obra capaz de ultrapassar as discussões sobre a influência de um personagem para além das questões de nicho nerd e dos aficionados por historias em quadrinhos, gerando muitas discussões inclusive entre estudiosos de filosofia e historia.

    Os seis palhaços que organizariam um assalto a um banco da Máfia de Gotham City fariam um movimento ousado e claramente impensado caso não fosse planejado por uma mente inventiva do crime. A genialidade do plano se iguala de certa forma a mentalidade por trás do roteiro de Jonathan Nolan e Christopher Nolan, pois tanto os ladrõesm  dentro da trama, vão se canibalizando, quanto este consegue de certa forma tornar a maioria dos filmes de heróis  obsoletos e meros comerciais para vender brinquedos, não só por não terem um pé na realidade mas também por ter quase todas as suas ações com ao menos um significado mais profundo. Mesmo quando a  movimentação em adaptar quadrinhos em tela grande deu certo no pós Cavaleiro das Trevas, se deu exatamente por não tentar replicar o que deu certo aqui, como na Marvel a partir de Homem de Ferro de 2008, sua continuação, O Incrível Hulk e por aí vai.

    O filme é tão garantido em si que não contém o nome do herói no original, tampouco há créditos iniciais, como foi em Batman Begins. Ele se passa nove meses após esse útilmo, e essa historia dura 9 e dias e noites. Nolan, durante os primeiros dias de filmagem parou com o elenco e passou uma série de filmes, para que o elenco e produção entendessem o que ele queria fazer nesta obra, foram eles: Fogo Contra Fogo (1995), Sangue de Pantera (1942), Cidadão Kane (1941), King Kong (1933), Batman Begins (2005), Domingo Negro (1977), Laranja Mecânica (1971), e O Inferno Nº 17 (1953).

    A tentativa deste artigo é falar um pouco sobre os bastidores e um pouco da gênese e construção dos três pilares de Cavaleiro das Trevas, o Coringa, Harvey Duas Caras e obviamente o Batman discorrendo um pouco sobre o que acontece no filme e tentando fazer paralelos com os quadrinhos e materiais que serviram de base para a construção da historia.  Tal qual havia ocorrido com Begins, esse também teve um nome fake em seu roteiro original, chamava-se Olivers Army. Christopher Nolan sempre quis filmar no formato IMAX e finalmente conseguiu isso neste, seis grandes sequências de ação, foram filmadas com estas câmeras e equipamentos e isso gerou uma grande dor de cabeça pois inúmeros problemas surgiram, por conta do barulho que o  equipamento produzia, obrigando a redublar boa parte das falas na pós produção e também pela inesperada demora para revelar o filme. Mas é fato que há uma diferença visual grotesca entre esta versão e a do filme de 2005.

    Enfim, a analise das figuras virá segmentada logo abaixo.

    O Duas Caras

    Uma das criticas frequentas a TDK é de que ele constrói tão bem seus vilões que passa então a ser um filme sobre os antagonistas. Isso não é inédito com o cruzado encapuzado, em Batman o Retorno essa acusação também ocorreu, mas no caso desta obra isso é uma falácia. Talvez essa acusação tenha ocorrido muito por conta da péssima construção de Duas Caras e Charada em Batman Eternamente e de Hera Venenosa, Senhor Frio (e Bane) em Batman e Robin, mas fato é que o Harvey Dent de Aaron Eckhart é bem construído de um jeito que seu destino trágico é realmente digno de lamento quando finalmente ocorre.

    O chamada Cavaleiro Branco de Gotham, é capaz de muito, tanto de conquista o amor da mulher que o Bruce Wayne sempre pleiteou, como é  capaz de revidar a violência que sofre ao desferir um soco no bandido que tentou matá-lo em pleno tribunal, numa clara alusão a um momento de O Longo dia Das Bruxas, onde Harvey era desfigurado com o ácido em seu rosto. Ao mesmo tempo, ele é idealista o suficiente para não entender o pragmatismo de James Gordon ao ter que lidar com policiais corruptos, já que se o tenente insistir em afastar todos os investigados, certamente não teria pelotão patrulhar, proteger a lei e servir o povo. Fato é que o desenrolar dos fatos não deixa Dent sem razão, mas ainda assim ele consegue ser tão idealista que soa até pueril.

    Quando Harvey discute a política de Gotham em uma mesa de restaurante, com sua amada, Wayne e uma bailarina russa, há uma boa discussão sobre o Império Romano. Rachel menciona Júlio César, o que leva Dent a dizer: Você morre um herói ou vive o suficiente para se tornar um vilão. Em Júlio César, de William Shakespeare, o personagem titular é retratado como um homem de notável ignorância, cuja surdez parcial implica que ele apenas ouve aquilo que julga relevante, em vez de ser um líder de mente aberta. O discurso de Dent já se aproxima do totalitarismo antes mesmo da provação do Coringa, antes da A Piada Mortal ser posta em prova, antes de perder o seu centro…ele só precisava de fato de um empurrão.

    Avançando um pouco no tempo, no rescaldo da transformação de Harvey Dent em sua persona Duas Caras, ele perde seu senso de razão, em vez de ser racional ele  apenas discute assuntos relacionados ao assassinato de Rachel e a”traição” que Gordon e o Batman teriam feito com ele. A loucura que se estabelece ali não permite qualquer argumento que não seja simplista. Quando Batman o “mata” por cruzar a linha invisivel e proibida aos benfeitores, quase se espelha a morte de César por Brutus, pois o golpe final é dado por um homem que era seu aliado, mas a analise de que o Morcego cometeu esse crime é igualmente simplista, e há de se lembrar que o antigo promotor já não mais servia povo da maneira que ele mesmo jurou. É nessa ruptura que Harvey deixa de ser o homem justo e bom que não estava nas historias em quadrinhos para se tornar um vigarista vil e vilão típico.

    Solução para a ferida de Harvey é muito criativa e emocional. A forma como é mostrada e a percepção , na cama do hospital de que realmente havia perdido sua amada é de uma catarse monstruosa, e o Grito silencioso  de Harvey é claramente a mostra visual de aquele era o começo da psicopatia, ou a evolução da mesma, já que o roteiro deixa em aberto se ele era ou não insano a esse ponto. O Coringa parece persuasivo, pois uma das partes de sua fala é verdade: o palhaço ele é louco, e não corrupto e isso une os dois personagens. Dent, mas o fato de não ser corrupto não faz dele um sujeito honesto. Quando o advogado recebe a visita de Gordon, ele  promete que o policial sentiria na pele a dor da perdaque ele sentiu,  isso antes de o palhaço aparecer no hospital, mais uma vez e como num dejavu a sensação do empurrão é estabelecida.

    Há um segmento nos extras dos DVDs da época, chamado Gotham Tonight, que era o programa jornalístico de televisão Mike Engel (Anthony Michael Hall) e que tem alguns momentos estendidos aqui. A maior parte do que se mostra aqui são momentos meio bobos, mas o desdobrar político de Gotham e as eleições de Dent são bem discutidas, assim como as impressões do Comissário Loeb (Colin McFarlane) e de Sal Maroni (Eric Roberts) que aparecem conversando com o jornalista da GCN. Além de repercutir a toxina do medo do Espantalho, Mike deixa claro o quanto acha Batman um mal para  a cidade, por ninguém saber sua origem, seu nome ou mesmo se é humano ou não. O jornalista sensacionalista bem ao estilo Datena e Marcelo Rezende revela seu gosto contrário ao Morcego e o coloca no mesmo balaio dos bandidos que ele caça e a surpresa dele é tamanha quando o promotor, ao ser entrevistado por ele (antes obviamente da morte de Rachel e dos acontecimentos do filme) declara que não há uma opinião formada sobre o vigilante. Dent não poderia em um programa de audiência grande se declarar favorável a um louco que se utiliza de teatralidades para fazer justiça, mas claramente ele tem uma predileção por esse comportamento, que em ultima analise nesse universo escapista mas ainda calcado na realidade que Nolan estabelece, é quase um abraçar a insanidade.

    No entanto, com o filme em andamento, isso muda. Em um estudo sobre o filme, o filosofo Slavo Zizek afirma que  o verdadeiro rival de Batman não é o Coringa, e sim Harvey Dent, o “cavaleiro branco”, que é um tipo de vigilante oficial com uma batalha fanática ás vezes inconsequente. Zizek acha que Dent é como uma resposta à ordem legal da ameaça de Batman com o sistema gerando seu próprio excesso ilegal, seu próprio vigilante e defensor, muito mais violento que Batman, violando diretamente a lei e é por isso que existe  uma justiça poética no fato Dent roubar a identidade secreta do Batman de Bruce, pois ele seria mais Batman que o próprio Batman, fato que fortifica ainda mais o final, onde Batman assume os crimes do homem da lei, retribuindo-lhe o favor, e retomando o protagonismo que muitos acusaram ele de perder, em um gesto simbólico. Zizek não poderia estar mais correto, sua visão sobre Harvey é certeira, e ele ainda voltaria seus olhos o outro vilão, o palhaço do crime.

    O Coringa

    A primeira participação do Coringa é enigmática, envolve o já citado assalto a um banco mas também um estranho sinal de obsessão com ônibus escolares, que aparecem não só na sequencia inicial, como na hora em que explode- um hospital de Gotham. Aliás, ambas ocorrem logo após ele praticas uma de suas sádicas piadas, sendo a primeira com uma bomba de gás na boca do gerente do banco e a segunda se travestindo ao falar com Dent. Não há confirmação oficial, até por conta de não se ter certeza sobre a origem do bandido, mas isso pode ser eco da infância do personagem.

    O número quase circense da sequencia inicial que o Coringa de Heath Ledger orquestrou seria só uma mostra de como a criminalidade de Gotham precisava mudar e mudar rápido, para se adaptar ao Batman, e nem o Espantalho e Ras All Ghull de Batman Begins chegam perto disso. Mesmo no encontro entre Checheno (Ritchie Coster) e Crane (Cillian Murphy) para comprar drogas se nota que até o vigilantismo mudou, e que o Morcego gerou uma reação na população que busca se armar e agir como milícia sem ter o preparo que Wayne se submeteu. Esse tipo de reflexão que Nolan propõe não é inédita, e pergunta se Batman é um lunático ou não é discutida ao longo dos 152 minutos de filmes, e vai além da simples sentença de usar ou não armas de fogo ou proteção de hockey, por mais que o vigilante tente simplificar a conversa nesse sentido.

    Heath Ledger passou vários meses trabalhando com um treinador vocal na voz do Coringa. Ele usou bonecos de ventríloquo como inspiração para a qualidade desconexa e zombeteira, além das (hoje obvias) referencias tão discutidas, como Sid Vicious do Sex Pistols e o protagonista de Laranja Mecânica, Alex DeLarge.

    O filosofo Slavo Zizek, ao analisar Batman : O Cavaleiro das Trevas Ressurge, ao comparar o Coringa e Bane diz que a imensa popularidade da figura do Coringa se dá pelo fato dele clamar por anarquia na sua mais pura manifestação, enfatizando a hipocrisia da civilização burguesa como ela existe, mas é impossível traduzir suas visões em uma ação de massa, enquanto Bane é uma ameaça existencial ao sistema de opressão e sua força não é apenas a psique, mas também sua capacidade de comandar as pessoas e mobilizá-las rumo a um objetivo político. O Bane de Nolan é mais profundo que o do quadrinhos, no entanto ele não tem o fascínio do Coringa de Heath Ledger, e isso não se explica obviamente só pelo carisma do ator, que era encarado como um sujeito mal quisto, pois seu passado com comédias românticas meio bobas.

    Evidente que as razões que Zizek apontam explicam os motivos ideológicos, mas na questão cinema, foi Ledger que ao ter liberdade para construir seu personagem que conseguiu tornar tudo isso mais crível. Ledger dirigiu as duas cenas que são filmadas pelo Coringa, e essa sugestão veio do realizador, Nolan acreditava tanto no ator que o deixou conduzir a cena, lembrando que em Begins e em TDK houve segunda unidade, em todos os momentos que a câmera estava ligada o cineasta estava presente.

    O personagem assassina/mata 34 pessoas no filme, aliás a perseguição que ele faz ao povo, matando pessoas para que Batman apareça faz referencia a primeira aparição do personagem nos quadrinhos dos anos quarenta, presente em Batman Crônicas, onde ele vai matando criminosos para acabar com a concorrência e para tomar posse do dinheiro dessas pessoas. Aqui evidentemente ele é anárquico e foge da necessidade do dinheiro, como disse Zizek e a referencia mais uma vez a O Longo Dia das Bruxas, também invertida, pois quem queima o dinheiro na revista é o Batman e Harvey.

    A música estridente de Hans Zimmer, nas descrição de Why So Serious amedronta e põe enigmas, refletindo um som de Anarquia. O ideal que Zimmer mirava em algo provocativo e odioso para as pessoas, e seu objetivo foi plenamente alcançado. Se ouvida sozinha, a canção gera naturalmente uma aversão aos tons altos estabelecidos ali, que vez por outra são quebrados pela presença do Coringa. O Coringa é o vilão de muitas faces diferente de Harvey. Se Duas Caras tem a duplicidade o conjunto de anomalias mentais e até parafilias é tão grande quanto a quantidade de cartas no baralho, o palhaço do crime é de certa forma a amálgama da galeria vasta de vilões do Morcego. Para Nolan a resposta lógica a um herói como Batman é  uma contra resposta violenta igual, o seu real oposto, a diferença básica entre eles mora nos lados da lei que os personagens abraçam.

    O Batman

    O herói e protagonista  do filme talvez seja resumida em uma das falas residente na conversa que Christian Bale e Michael Caine tem, onde Bruce afirma que não se dá ao luxo de conhecer os seus limites. A utilização de frases de efeito poderia soar como algo ruim, mas claramente é bem utilizado.

    O Batman deste tomo dois da saga que Nolan estabelece tem capacidade de vestir mais de uma máscara, seja a do herói que luta pela justiça e que é apoiada por parte da plebe e da burguesia de Gotham, assim como a do herói invasivo,  capaz de usar a tecnologia do Sonar que evoluiria para o re-percussor de ondas dos celulares, e que seria a versão de Nolan para o Oráculo. O conceito de transformar cada telefone como se fosse um rádio, invadindo a intimidade das pessoas, para encontrar o  antagonista, em uma invasão de privacidade que o dá vantagem e faz ele ser por um breve momento, onipotente e como diz o Lucius Fox de Mogan Freeman, isso é errado em muitos níveis, pois as pessoas não tem direito a escolher nada. Hoje toda essa celeuma perdeu o sentido, pois as redes sociais as pessoas expõem tudo o que querem e em alguns ponto até o que não querem e percebendo ou não a auto evasão de informação é voluntaria.

    A rivalidade entre Batman e Coringa sempre foi grande nos quadrinhos e a cena em que os dois finalmente se encontram é tardia passados aproximadamente 52 minutos. Mesmo no começo, quando Coringa faz piadas com o sumiço da caneta, onde enfrenta Gambol (Michael Jai White) e fala em matar o Batman, claramente isso é uma bravata, e ele nem precisa declarar isso, como faz depois. Os ataques constantes a moral do herói tem seu alvo acertado, por mais que Bruce/Batman finja-se de intransponível, como quando Gordon cai. A suposta morte do policial faz o Morcego largar seu estilo stealth, e invadir uma boate onde Maroni tatá, para liberar sua raiva em uma catarse violenta. Aliás, o Batman é mais agressivo com o mafioso italiano do que com o seu nêmesis, até para não ter a tentação de mata-lo, semelhante em muitos pontos a morte do Coringa em O Cavaleiro das Trevas.

    Há um bom material complementar, um documentário de pouco mais de quarenta minutos chamado Batman Unmasked, que trata da psicologia do Homem Morcego e que trata de alguns dos detalhes falados aqui. Evidentemente que em Batman Begins e TDKR há um aprofundamento maior e mais detalhado no Batman do que neste TDK, mas o desfecho, com Gordon fazendo um discurso ao seu filho de como o personagem é o Cavaleiro das Trevas e de como seu heroísmo não é o ideal, mas sim o necessário para que Gotham permaneça equilibrada.

    Por mais clichê que pareça, Batman retoma o poder quando age assumindo a culpa que não era dele, pois a característica básica do heroísmo é o sacrifício pessoal em prol da maioria, foi assim com Cristo, com Moisés, Davi e a maioria dos mitos cristãos, é assim com os heróis Teseu, Hercules, Orfeu na mitologia grega e é como sempre fez Homem Aranha e Super-Homem em tantas historias. O Batman de Bale não tem qualquer pudor em se entregar, pois a sua função maior é isso, fazer com que Gotham seja um lugar seguro, como era o sonho de Thomas Wayne, e evidentemente que esse preço seria cobrado, e só por isso já justifica a construção de Batman o Cavaleiro das Trevas Ressurge que repercute o erro de maturidade de Batman, que foi impulsivo e precisava ter sua historia fechada, finalmente.

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  • Review | Westworld – 1ª Temporada

    Review | Westworld – 1ª Temporada

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    Remake do filme setentista Westworld: Onde Ninguém tem Alma, a produção da HBO era cercada de expectativas positivas, principalmente graças a produção executiva do trio J.J. Abrams, Jonathan Nolan e Lisa Joy, com esses dois últimos trabalhando também nos roteiros. O exploitation que mistura elementos do velho-oeste e alta ficção-científica tem seu piloto dirigido por Nolan, que já havia feito um trabalho nos roteiros ao lado de seu irmão, Christopher Nolan, em filmes como Batman: O Cavaleiro das Trevas e O Grande Truque.

    Em seu primeiro capítulo, a série demonstra um cunho muito mais reflexivo e cerebral em comparação ao filme original. A nudez das personagens é apresentada de maneira fria, apesar da beleza de quase todos os intérpretes. A primeira personagem apresentada é Dolores, vivida por Evan Rachel Wood, que é uma das androides, que funciona como uma simples camponesa dentro do roteiro planejado a si, mas que guarda um potencial, tendo em seu comportamento de estranheza com o cenário, o primeiro dos indícios de que um dia despertará para uma clarividência de tudo aquilo que ocorre em Westworld. Em seu núcleo narrativo são mostrados em primeiro plano dois personagens, Peter Abernathy (Louis Herthum), seu pai; e Teddy (James Marsden), seu interesse romântico. Ambos tentam protege-la da hostilidade que vem de fora do parque- dos que não são tão autômatos – chamados de anfitriões – e é nesse ponto que se revela o personagem Homem de Preto, interpretado por Ed Harris, um sujeito aparentemente cruel, mas que tem uma complexidade comportamental bem maior do que aparenta ser nesses primeiros capítulos.

    Outro núcleo apresentado é o dos cientistas, comandados pelo Doutor Robert Ford (Anthony  Hopkins) e acompanhado de Bernard Lowe (Jeffrey Wright) um dos homens que trata da engenharia dos androides. A partir dali começa toda uma discussão que mistura elementos presentes nos romances e contos de Isaac Asimov, principalmente na questão da coisificação e na capacidade que seres robóticos tem de sentir e de ter atitudes humanas, e claro em Blade Runner e demais contos de Phillip K. Dick, na situação teórica de não sabedoria a respeito

    Uma das dúvidas mais presentes nos mistérios que envolvem Westwordl é até onde podem se estender os limites morais humanos caso não haja qualquer restrição culposa, de justiça ou escrúpulos. Há um mcguffin em relação a um personagem humano nesse quesito, mas a parte realmente interessante dentro dessa proposta, é o despertar da cafetina Maeve (Thandie Newton), primeiro diante daqueles que cuidam de si, depois para a situação de controle em que se encontra.

    Outra das questões entre as maiores discutidas, se não o maior é se a perversão do status quo ocorre com os revoltosos a partir de alguma programação prévia, ou como resposta sináptica não programada. A serie suscitou durante sua exibição um número infindável de teorias, semelhante ao fenômeno ocorrido com Lost, sendo quase todas essas teorias ligadas as duas personagens femininas mecânicas, com Maeve ao poucos sendo estimulada a suas lembranças antigas, por meio de um visitante mais benevolente, de nome William (Jimmi Simpson), e Maeve, que se envolve com seus cuidadores Sylvester (Ptolemy Slocum) e Félix (Leonard Nam). Ambos arcos possuem eventos interessantes e outros nem tanto, reunindo questões de sensacionalismo bastante evidente e sonegação de informação pura e simples, obviamente montada para não revelar demais tão cedo. Dentre essas, há algumas incongruências, que somente são notadas ao observar o todo, ainda que grande parte dessas lacunas possa ainda ser respondida em temporadas vindouras.

    A exploração do tema relativo as lembranças dos anfitriões ajuda a aumentar a importância do debate ético levantado, propondo a questão de que se os seres automatizados podem sentir, reter memórias e ter consciência própria, não se deveria ter o direito de coisificá-los, ao contrário, já que esses escravos de narrativa e vivência tem muitas semelhanças com o homem que os criou, feitos a imagem e semelhança de Ford e do misterioso programador Arnold. As discussões que o personagem de Hopkins e Bernard tem sobre os detalhes de programação e backgrounds dos anfitriões mostram um complexo e onipotência enorme sobre o inventor de tudo aquilo.

    Maeve transporta o comportamento indócil que tem nos laboratórios a sua rotina dentro do parque. A cooperação que recebe dos que fazem sua manutenção põe em cheque se seus auxiliadores são humanos ou construtos, fato que serviria para mais um plot twist. O cenário da Guerra Civil Americana faz lembrar visual e espiritualmente o clássico de Sergio Leone Três Homens em Conflito, com Teddy fazendo às vezes de pistoleiro sem nome com o ímpeto do Django de Franco Nero e Sergio Corbucci.

    Uma das maiores riquezas no texto do programa é o modo lírico com que ocorrem as manipulações, seja dos organizadores do parque ou com os próprios anfitriões. Ford é um sujeito controlador e astuto, não parece ter qualquer culpa em tratar suas criações como meros utensílios, ludibriando-as mesmo quando apresentam uma vontade categoricamente oposta a si. Sua contra parte contraria pode ser vista em Maeve, não só na dicotomia presente entre criador e criatura, mas também na velha guerra dos sexos, mostrando ambos usando suas armas para moldar a atitude dos que o cercam ao seu bel prazer, sem levantar a voz ou ameaçar de qualquer forma.

    O parque é um lugar onde tudo é permitido. Até então, a pecha do Onde Ninguém Tem Alma presente no subtitulo brasileiro do filme não havia feito tanto sentido como neste ponto, uma vez que a diversão e prazer dos que lá chegam é intimamente ligada a dor e sofrimento de outrem. A banalidade que habita o ideal dos visitantes é a de fazer suas próprias dores passando ao usar e abusar de seres inteligentes, que em suma, são tão humanos quanto eles mesmo, com o diferencial de que a maioria dos anfitriões é indefesa perante a programação, que por sua vez também é organizada pela raça opressora.

    Para Dolores sobra a revolta via dor, enquanto Maeve se vinga por maus tratos. A aproximação da lembrança de um amor não correspondido e transformando em terror no futuro a faz se tornar amarga e com um desejo insaciável de violência e truculência. Ao final, o desfecho das duas personagens não é mais tão diferenciado quanto foi em toda trajetória de Westworld, e apesar das múltiplas explicações do season finale – e que mataram quaisquer saudades de Interestelar e A Origem – há uma conclusão catártica e visceral, com alguns cliffhangers, mas nada absurdamente desrespeitoso com a audiência. Para o publico médio, essa temporada pode soar de difícil compreensão, mais aos olhares mais atentos, certamente a empreitada de Joy, Nolan e Abrams ainda tem muitíssimo a discutir e elucubrar, sobre os porões da alma humana e os anseios do sujeito em tornar-se igual o seu objeto de adulação, renovando as leituras sobre a mito de Prometeu e da Árvore do Bem e do Mal que Adão e Eva desfrutaram, ainda com todo um horizonte a se explorar e refletir.

  • Crítica | Interestelar

    Crítica | Interestelar

    Interestelar

    Desde que o primeiro homem andou sobre esse planeta, o céu e as estrelas exercem uma fascinação na espécie como nenhum outro fenômeno da natureza. Não à toa, praticamente todos os povos terrestres tinham como deuses planetas e estrelas, dadas sua magnitude, distância e beleza. Portanto, nada mais natural que, na era moderna, as artes tentem reproduzir esse senso de admiração pelo desconhecido. Dentre todas, o cinema é a que chega mais próxima de construir e reproduzir essas sensações para o público dito “comum”, que em meio à correria do dia a dia, mal tem tempo de olhar para o lado, quanto mais para cima.

    Desde Georges Méliès, passando pelo sempre cultuado 2001 – Uma Odisseia no Espaço, Contatos Imediatos de Terceiro GrauContato e, mais recentemente, por Gravidade, o Universo exerce um fascínio por sua exuberante beleza, ao mesmo tempo que assusta por suas escalas inimagináveis de grandeza e a sensação de que, ali, estamos perto de ser literalmente nada. Ciente de todas essas questões, o cultuado diretor britânico Christopher Nolan se lançou em uma empreitada arriscada, a de fazer uma história que se passa nesse cenário e que, ao mesmo tempo, possa emplacar um sucesso comercial.

    Interestelar gira em torno do piloto Cooper (Matthew McConaughey), que cuida de sua fazenda no interior dos EUA junto a sua família. Em um futuro não muito distante, que flerta com uma distopia onde a humanidade não foi destruída, mas passa por dificuldades e tenta viver normalmente, a sociedade não precisa mais de engenheiros e pilotos, pois a exaustão natural do planeta, junto ao crescimento da população, provocou a escassez de comida, sendo essa a atual função de Cooper, que nunca superou o fato de não ter levado adiante sua vocação. Sua filha, Murph (Mackenzie Foy/Jessica Chastain/Ellen Burstyn), mostra uma grande inteligência e inclinação para a ciência, enquanto seu filho, Tom (Timothée Chalamet/Casey Affleck), se mostra contente em seguir seus passos de fazendeiro, tudo aos cuidados do pai de sua falecida esposa, Donald (John Lithgow).

    Cooper tenta ao máximo se esforçar para cumprir suas tarefas como fazendeiro e pai, mas a frustração de não ser piloto sempre o impede de dar a tudo a atenção e importância que merecem. A passagem em que ele discute com os responsáveis da escola de seus filhos, onde os livros de história sobre a exploração espacial foram alterados, é excelente na medida em que mostra o descompasso entre aquele estágio da humanidade, que se contenta em apenas sobreviver, e a reminiscência de um passado sonhador, na figura de Cooper, que imaginava expandir as fronteiras da humanidade rumo ao espaço. A discussão a respeito do pioneirismo da exploração espacial – relembrando o Velho Oeste -, e o papel da ciência como salvadora da humanidade também poderia ser mais problematizada. O filme ignora condições sociais e ideologias das quais a ciência é fruto. Ela não existe sem seres humanos dotados de vontade produzindo-a, e da mesma forma que ela é tratada sozinha como a salvadora da humanidade, também poderia ter sido a causadora de sua extinção.

    Dentro deste mundo, os fenômenos naturais com os quais estamos habituados não acontecem mais do mesmo jeito. Elementos como uma poeira constante (que às vezes se transforma em tempestades) e alterações na gravidade por vezes acontecem, mas a preocupação com o dia a dia é tão grande que poucos ligam. Menos Murph. A criança percebe em seu quarto que algo estranho, que ela chama de “fantasma”, acontece, já que os livros de suas estantes sempre caem sozinhos. Cooper diz a ela para compilar dados e analisá-los, para depois se chegar a uma conclusão, como manda a lógica científica. Prontamente, Murph realiza o pedido do pai e em pouco tempo descobre uma mensagem codificada, em código Morse, e que, para a surpresa e espanto de Cooper, os leva a uma instalação secreta da NASA.

    Lá, Cooper reencontra um antigo amigo de seus tempos de piloto, o professor Brand (Michael Caine), e conhece a filha dele, Amelia Brand (Anne Hathaway). Então, a história dá uma guinada. Cooper é convidado para fazer parte de um projeto de tentativa de salvação da humanidade, que será extinta por uma “praga” que consome nitrogênio e altera o balanço da atmosfera. O projeto, que estava em andamento há anos, levou equipes diferentes de cientistas para outra galáxia através de um buraco de minhoca posicionado perto de Saturno por “alguém”, que ninguém sabe quem, mas que não estaria ali por acaso. E esse seria o caminho da viagem, o qual envolveria muitos riscos, provavelmente sem retorno.

    Nesse momento, o desenvolvimento dos personagens e suas angústias é parado para dar vazão a uma velha mania de Nolan, que é explicar para o espectador tudo o que os especialistas do filme pretendem fazer. Nesse caso, o professor Brand explica todo o passo a passo para Cooper, e o fato de escolherem um ex-piloto e fazendeiro, que apareceu por acaso naquela base para pilotar a missão mais importante da humanidade, causa um certo estranhamento, em que a explicação dada, onde “algo” o enviou ali, convence o espectador mais crédulo, mas não aquele mais exigente. A explanação do professor Brand sobre os planos A (resolução de sua equação e retirada da população da Terra para outro planeta) e B (popular o novo planeta com material genético guardado) também é acometida por isso.

    Chamado de volta a sua vocação, Cooper aceita a missão e precisa deixar a família, para o desespero de sua filha. A promessa do retorno do pai não resolve o conflito, que ecoará para sempre na vida de ambos. O relógio que Cooper dá a Murph como uma tentativa de criar um elo sentimental e temporal entre ambos também falha nesse sentido.

    Ao abandonar a Terra e ir para o espaço, o filme toma outra proporção, e as discussões científicas entre os personagens, para decidirem o próximo passo da missão, são sempre explicativas dentro de um limite do aceitável, mas bem perto deste limite. Para um espectador sem nenhum tipo de conhecimento científico, talvez ajudem-no a entender alguns conceitos básicos e o que estaria acontecendo em determinados momentos. Porém, para este mesmo espectador, explicação alguma ajudaria a entender fenômenos mais complexos, como o que acontece dentro de um buraco negro, o que, na verdade, ninguém sabe. Se em A Origem o excesso de explicações sobre uma trama relativamente simples acaba entediando o público, em Interestelar isso não acontece, pois as informações estão inseridas em um contexto totalmente diferente do que estamos habituados, e os diálogos ajudam-nos a familiarizar tanto com o tema quanto com as motivações por trás de cada personagem. Obviamente, escorregões acontecem, quando Amelia Brand discorre sobre o amor, mas são poucas as vezes.

    A sequência de aproximação, e quando entram no buraco de minhoca, é belíssima e lembra muito a viagem de Ellie, em Contato, ao transformar uma viagem espacial sob condições inéditas e extremas em uma aventura por si só. Ao mesmo tempo, a chegada ao local se transforma em uma paisagem visual para o vislumbre do espectador e dos protagonistas. Juntos na viagem estão os outros cientistas Doyle (Wes Bentley) e Romilly (David Gyasi), além dos computadores com inteligência artificial TARS (voz de Bill Irwin) e CASE (voz de Josh Stewart), que garantem bons alívios cômicos.

    Ao transformar o desconhecido do espaço em potenciais riscos para os astronautas, Nolan consegue criar situações de tensão de forma eficiente, e utilizando-se de toda a complexidade de estar em uma realidade com tempo e espaço totalmente diferentes, o horror da situação aumenta ainda mais, como na excelente sequência dentro do planeta aquático onde estava uma das cientistas que buscavam mundos habitáveis. Lá, tudo o que poderia dar errado, deu, em referência a uma própria brincadeira do filme com a “Lei de Murphy”. O fato do planeta estar próximo do buraco negro Gargantua faz com que poucas horas ali se transformem em quase 30 anos perdidos na Terra, e o peso de tais erros, ainda mais brutal sobre os tripulantes. Ao retornar à nave, percebem que se passaram 23 anos na Terra, e muita coisa aconteceu. Os filhos de Coop cresceram, e Murph, que agora trabalha com o professor Brand na NASA, ainda não superou a partida do pai, enquanto Tom permanece cuidando da fazenda. A teoria da relatividade é citada, usada e explicada extensivamente no filme e serve de fundo para explicar a motivação de Coop para tentar retornar logo para a Terra.

    Por perderem muito tempo e combustível nesse planeta, sobram mais dois para visitarem: um do Dr. Mann (Matt Damon), brilhante cientista, e outro do Dr. Edmmonds – que tinha um relacionamento amoroso com Amelia -, ambos com motivos para serem visitados. Porém, o lado racional de Cooper fala mais alto e eles seguem para o planeta de Mann, que, desesperado pela solidão e medo da morte, manda o sinal mesmo sem ter encontrado nada para tentar escapar, o que também garante boas sequências de ação e tensão, mesmo que previsíveis, com os velhos discursos do vilão e tudo mais. Aqui, ele poderia encarnar de forma mais enfática o papel crítico sobre a ciência, mas foi feita a escolha mais simples.

    A transformação do homem racional e altruísta em um homem egoísta, contradizendo todos os argumentos racionais de Cooper para escolherem aquele planeta, é feita de forma rasa ao contrapor o velho “sentimento versus razão”. A fuga do Dr. Mann danifica o equipamento espacial que acopla as naves, e a sequência para tentar encaixar a nave pilotada por Cooper e Amelia lembra bastante Gravidade, ao colocar seres humanos em risco no espaço, realizando manobras praticamente impossíveis para tentarem se salvar, mas sempre sem abusar da expectativa e tensão, que poderia cansar caso fosse esticada demais.

    Nesse momento, é também revelado para Murph e para Coop e Amelia que o plano original do professor Brand sempre foi o B, e a sua equação gravitacional não resolveria o problema de como salvar a humanidade, que sempre esteve condenada. Portanto, a viagem de volta de Coop seria impossível.

    Com o gasto excessivo de combustível, agora não havia o suficiente nem para Cooper voltar para casa, nem para irem ao planeta de Edmmonds. A solução é usar os recursos para contornar Gargantua e usar sua força para impulsionar a nave, mas Cooper engana Amelia e solta sua nave, caindo no buraco negro. E dentro do buraco negro onde Nolan se rende a homenagear, à sua maneira, o clássico espacial de Kubrick. Se em 2001 – Uma Odisseia no Espaço estamos sozinhos com Dave, dando a cada imagem o nosso próprio significado, Cooper faz questão de perguntar ao computador TARS cada passo da etapa no qual se encontra, em uma conversa que não chega a incomodar, mas tira um pouco o poder do espectador de ter a mesma epifania visual e criativa que Kubrick corajosamente permitiu.

    Assim como em 2001, a estrutura de dentro do buraco negro falou diretamente com Cooper, dando a ele elementos de sua natureza para conseguir se comunicar – no caso, a biblioteca do quarto de Murph quando criança. Lá, todas as condições são radicalmente diferentes de tudo o que conhecemos, e tanto o tempo quanto a gravidade são distorcidos. A estrutura consegue distorcê-los de forma padronizada, fazendo com que Cooper envie os dados da equação gravitacional que resolveria o problema de como salvar a população da Terra, ou seja, ele era o fantasma de Murph quando criança tentando se comunicar com ela. Todas essas cenas dentro do buraco negro, apesar de serem atrapalhadas por tanta explicação, brincam com conceitos da física, ao mesmo tempo que garantem uma gama enorme de emoções, em grande parte por causa da brilhante atuação de McConaughey.

    Após enviar a mensagem para Murph usando o mesmo relógio que havia dado à menina, ela consegue decifrar os dados e salvar a humanidade, enquanto Coop é reenviado pela estrutura do buraco negro e encontrado pelos terráqueos do futuro em Saturno. Nessa conclusão, um pouco da magia inicial se perde, pois o objetivo principal do desenlace é explicar e resolver praticamente todas as pontas soltas do filme, não deixando margem para praticamente nada, a não ser o paradeiro e situação de Amelia Brand. O reencontro de Coop com Murph, já idosa e prestes a morrer, não garante muitas emoções, e o passeio turístico dentro da estação espacial em Saturno soa desnecessário.

    Porém, em relação ao aspecto técnico, a produção funciona muito bem. As sequências no espaço, sempre em silêncio, garantem uma atmosfera de suspense que se mantém, até misturar com o som dos ambientes fechados dos atores. O jogo de luzes dentro das naves, remetendo sempre ao sol (o nosso, ou não), é sempre interessante de acompanhar. A também já criticada parceria com Hans Zimmer mostra sinais de cansaço, mas ainda funciona para compor canções que, por vezes, casam perfeitamente com os momentos vividos na tela, em especial nas cenas finais.

    Muito se tem comparado Interestelar a outras produções do gênero, mas nenhuma comparação é justa. Nolan, como qualquer artista, retira influências de suas obras preferidas e as coloca ali, misturadas a seus próprios elementos dentro de uma narrativa própria, que tenta fazer uma homenagem não só à ficção científica, mas ao próprio sentimento humano de querer saber o que existe além. Quem condena a exploração espacial por ser gasto inútil de dinheiro não consegue ver mais adiante. Como o próprio filme cita, a tecnologia espacial gerou vários outros frutos para a humanidade, como as comunicações via satélite e a máquina de ressonância magnética, que poderia ter salvado a vida da esposa de Coop. Se a humanidade gasta dinheiro à toa, ali realmente não é o lugar. O Professor Brand também afirma que cada pedaço de metal sendo usado na construção daquelas naves poderia ser utilizado na fabricação de uma bala de uma arma, então, de certa forma, tudo aquilo foi positivo. É junto a esse conceito básico e humanitário que o filme se posiciona e se constrói, em como a ciência, ao desvendar o funcionamento por trás da natureza, nos ajuda a entender como ela é bela e, principalmente, nos torna mais humildes e capazes de admirar tudo o que está lá fora.

    Texto de autoria de Fábio Z. Candioto.

  • VortCast 17 | Christopher Nolan

    VortCast 17 | Christopher Nolan

    Bem vindos à bordo. Flávio Vieira (@flaviopvieira), Rafael Moreira (@_rmc), Amilton Brandão (@amiltonsena), Isadora Sinay (@isasinay), Mario Abbade (@fanaticc), Levi Pedroso (@levipedroso) e Carlos Brito se reúnem para comentar a filmografia de um dos grandes diretores da atualidade, Christopher Nolan. (mais…)