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  • Crítica | O Show de Truman: O Show da Vida

    Crítica | O Show de Truman: O Show da Vida

    O Show de Truman: O Show da Vida narra a história de Truman Burbank (Jim Carrey), um sujeito cuja vida inteira foi vigiada e transmitida a partir de um experimento bizarro, transformado em programa de televisão. Dirigido por Peter Weir (o mesmo de Sociedade dos Poetas Mortos), a trama se desenrola lentamente, sem grandes exposições, dando pistas ao público de como funciona esse paradigma caótico e de como a sociedade civil vê o experimento.

    A realidade proposta não é muito diferente da nossa, seja pelas ações de empresários ligados ao ramo da comunicação, visto principalmente no criador do programa Christoff (Ed Harris), ou nos espectadores que acompanham atentos cada momento do cotidiano da pequena ilha de Seahaven, em especial na performance do protagonista do show.

    A situação de rotina de Truman é incômoda, mesmo antes dele perceber que algo está errado. O tempo todo o personagem parece ter o desejo de fuga daquele paradigma de vida perfeita. Nada parece real. Fazendo um paralelo com outra produção que discute a realidade e a ficção, em Matrix , o personagem Agente Smith (Hugo Weaving) afirma que humanidade não suporta um mundo, seja simulado ou real, onde apenas a felicidade ocorre. E embora Burbank não saiba o que acontece consigo, claramente tem a percepção de que algo está errado.

    Carrey desenvolve bem o papel de homem que perde o controle aos poucos, prestes a entrar em colapso. Mas não por conta de um trauma, mas sim por mero acaso, pelo comum a uma existência ordinária. No roteiro de Andrew Niccol a distância entre paranoia e realidade é tênue para Truman. Devaneios parecem presságios. Há prazer por parte dos telespectadores para que ele descubra algo, uma curiosidade quase incontrolável que faz com que todos fiquem ávidos por assistir passivamente os dias de uma pessoa que mesmo desconhecida compartilha de uma intimidade forçada. Mesmo que a maior parte desses momentos sejam ordinários, como são os cotidianos de pessoas normais.

    O Show de Truman mistura simulacro com reality show em uma época em que esse tipo de programa não era tão popular. Na análise de pessoas pretenciosas há uma comparação que não cabe no drama exibido com a alienação causada a quem assiste reality shows de confinamento, especialmente quando esses consomem a atenção das pessoas massivamente.

    Aqui a tragédia de alguém se torna um espetáculo, uma exibição da intimidade sem escolhas. Não há curtição alguma e sim a sensação de estar sendo enganado. O argumento que põe esta obra e os realities em perspectiva é bobo, tenta colocar o entretenimento em castas completamente desnecessárias. O final do longa exala poesia. Toda a condução de Weir ajuda a favorecer o modo que o protagonista vê a vida, mesmo que na maior parte dela seu livre arbítrio tenha sido conduzido. O roteiro de Niccol faz comentários sobre os conceitos de Sociedade de Consumo do marxista Guy Debord e os eleva a um nível que se torna palpável. No entanto, não abre mão de enxergar as contradições do que é ser humano. Os mesmos que sustentavam o sistema que escravizava Burbank também comemoram sua saída, alguns até mudam de canal após tudo acabar, procurando novas formas de gastar seu tempo, pois é para isso que vemos televisão, fugirmos de nossas próprias misérias.

  • Review | Westworld – 3ª Temporada

    Review | Westworld – 3ª Temporada

    A terceira temporada de Westworld se inicia dirigida por Jonathan Nolan, mostrando uma ação na China, que remete a outra série do mesmo criador, Person of Interest. Não há demora em mostrar a Dolores de Evan Rachel Wood num prólogo, brilhando muito enquanto liberta uma mulher da mesma escravidão que ela mesma sofreu.

    Os primeiros episódios apresentam novos conceitos, enquanto os antigos personagens estão em um novo cenário, não mais no simulacro. No entanto, o que se vê na realidade é uma produção visualmente interessante, mas uma completa ausência de desenvolvimento narrativo para qualquer um dos personagens. O personagem de Aaron Paul, Caleb, é um protótipo de novo herói, como Jimmi Simpson foi na  primeira temporada, mas ao contrário do primeiro ano, aqui também não há gravidade ou desenvolvimento dramático, somente alguns elementos de fan service e cenas de ação bem coreografadas, porém, quase sempre vazias de significado.

    A história se desenrola numa linha temporal diversa da temporada anterior. No início, mantém um mistério sobre a exatidão de sua cronologia, para logo depois mostrar que não há muita criatividade na abordagem de passado e futuro, sendo retilínea no presente. Nolan e Joy podem desenvolver o que quiserem, e incrivelmente, quando seu parque de diversões se expande, eles parecem ter sérias limitações.

    Westworld teve um bom hiato, seu último episódio havia sido exibido em 2018, então pressa não é uma boa desculpa para as  fragilidades de seu roteiro, e o pior, a expansão da história a outros lugares não garantiu novos rumos, mas uma série de tramas genéricas. Outro aspecto incômodo e que não é funcional, são as viagens pelo globo atrás das manifestações dos anfitriões no mundo externo. Isso ajuda a diluir partes da historia que poderiam soar interessantes, tudo fica muito frio e impessoal. Algumas cenas de ação até são bem apresentadas, mas nada que faça a série ultrapassar a linha da mediocridade. As lutas boas não justificam o motivo delas não fazerem sentido nas suas motivações. É até interessante que uma série traga uma atmosfera cyberpunk para a televisão, mas a completa falta de assunto e discussão faz o texto final soar bobo. Os momentos finais ainda guardam péssimas referências a Exterminador do Futuro 3: A Rebelião das Máquinas e Clube da Luta.

    Na semana do episódio final, foi anunciada a renovação para uma quarta temporada, ainda sem data para ocorrer, mas o que se espera é que a próxima aventura seja menos baseada em sensacionalismo e fan service barato, e mais em um bom texto e um desenvolvimento de personagens mais aprofundado.

  • Review | Westworld – 2ª Temporada

    Review | Westworld – 2ª Temporada

    Dois anos após a Westworld – 1ª Temporada, o seriado finalmente voltou ao ar, com um previously de quatro minutos, a fim de tentar rememorar os eventos importantes que ocorreram no outro tomo. Após algumas cenas de flashback, que mostram Bernard (Jeffrey Wright) conversando com Dolores (Evan Rachel Wood), é mostrado o destino de ambos, depois da revolta que aconteceu no parque.

    Nos primeiros momentos da segunda temporada, mostra-se também os rumos que a revolução tomou, e os passos dos antigos anfitriões são dados de maneira gradativa. O desenrolar dos planos de expansão são bem lentos, fato que faz esse episodio soar muito lúdico, beirando a irrealidade, cortada obviamente pelo momento em que Bernard acorda na areia da praia, para contemplar um grupo de anfitriões mortos na beira do mar e também alguns humanos que estão lá para conter o que quer que tenha de fato havido no território da Companhia Delos.

    A fagulha de favoritismo que Arnold plantou em Dolores cresce, para ser ela a líder da rebelião das novas formas de vida. Seu modo de agir é implacável, não por  ser essa sua natureza, mas por sofrer estímulos de ódio e violência há muito tempo. As cenas onde ela persegue seus inimigos, com musica clássica instrumental ao fundo tem um pouco de humor fino em meio a violência absurda, em uma combinação de sabor semelhante a quando se usa queijo para quebrar o doce. O assassinato e as baixas entre programadores e funcionários do parque fazem lembrar que movimentos revolucionários não ocorrem só com ações propositivas pacificas, mas sim sangue dos opositores e a posição de Dolores é bem incisiva nisto.

    Já a Maeve de Thandie Newton, que ganhou a habilidade de comandar as hordas de anfitriões age de maneira independente também, no sentido de dominar o parque mas por outras vias, até de conciliação aparente. Para a personagem , o mais importante ali é conseguir achar a filha que programaram para si, para conseguir entender se a historia que ela conhece tem contornos sentimentais naturais seus ou simplesmente programados como boa parte dos acontecimentos que lhe ocorrem.

    Na primeira temporada havia um uso enorme de retornos no tempo, mas por conta dos mistérios que envolviam a criação do parque e suas conseqüências, esse excesso foi de certa forma corrigido aqui. Mesmo as participações de Ed Harris como Homem de Preto/William fazem mais sentido, acrescentando camadas a mitologia por trás da engenharia que envolve a Delos. Mesmo as participações de Jimmi Simpson são mais pontuais, estando ali para basicamente aludir a depressão e a vaidade, refletindo bem sobre as escolhas que o sujeito fez dentro e fora do simulacro.

    Alem de avançar bem sua trama, Westworld nessa segunda temporada se dedica a expandir seu universo, mostrando outros cenários, como o Shogun World ou Nação Fantasma. Neste ponto a ação da trama principal não corre tanto, mas o arco de Maeve (talvez o mais rico desse segundo ano) consegue expandir bem. Boa parte dessas ideias foram aludidas em  Futureworld, continuação de Westworld: Onde Ninguém Tem Alma, chamada no Brasil de Ano 2003:  Operação Terra, em especial sobre o replicar de humanos nos anfitriões, enquanto o início, tem semelhanças com a trama do filme Mundo Perdido – Jurassic Park, em especial por mostrar que a natureza dá seu jeito de continuar a evoluir seja em qual for o ecossistema. Os escritores deixam claro a admiração pelo trabalho de Michael Crichton, escritor do livro Jurassic Park e de sua continuação, além de ser o diretor do filme que deu origem a série.

    A Terra Prometida transcende a condição de paralelo com o cristianismo, o lugar em si não é necessariamente físico, e sim mental, ou no caso em se tratando de bio ciência e de androides/anfitriões, claramente é sobre um lugar onde se transporta só a consciência em forma de memória backup para esse espaço, um lugar onde possivelmente não haveria como ocorrer interferência de qualquer programador ou humano, um legado de Ford.

    Jonathan Nolan e Lisa Joy contraria as expectativas, e dessa vez não demora tanto a revelar mistérios que vão se tornando evidentes com o tempo, como fez com relação a identidade de William próximo do fim da primeira temporada. Seu desfecho tem um tom poético, em especial na libertação de alguns personagens. Os touros e búfalos que correm pelos corredores, regidos pela musica orquestrada e pela câmera lenta reforçam o tom de tragédia e de uma luta que aparentemente será incessante até que praticamente todas as partes faleçam. A gênese da rebelião sempre foi Dolores, e seus últimos momentos são dignos de uma heroína quase onipotente. A perversão do sistema e a cena pós credito lida com liberdade de escolha, e com o inexorável destino dos antigos anfitriões, para que possam finalmente agir com algum nível de livre arbítrio. Westworld termina com expectativas enormes para a terceira temporada, e que segundo seus produtores, ainda estaria longe de terminar seu drama.

  • Crítica | Mãe!

    Crítica | Mãe!

    Terror psicológico de proporções dantescas, Mãe é o sétimo longa metragem do diretor Darren Aronofsky. O filme protagonizado por Jennifer Lawrence mostra uma mulher reclusa, que acompanha seu marido, um escritor e poeta vivido por Javier Bardem. Seus dias são preenchidos por uma rotina bucólica, calma e isolada, em uma casa que é levantada basicamente por seus esforços, para tornar ali o lugar perfeito para que seu esposo encontre inspiração e tranquilidade em seu trabalho.

    O silencio e a solidão do casal são interrompidos com a chegada de visitantes, começando pelo personagem de Ed Harris, um homem misterioso que rapidamente adentra na intimidade dos dois, servindo de certa forma como catarse para algo a mais – ou mesmo como válvula de escape para que o personagem de Bardem enfim consiga reaver sua inspiração. Nesse meio tempo, uma série de eventos entrópicos ocorrem, pondo em cheque a confiança da protagonista em seu marido.

    O background de Aronofsky é repleto de signos. A inconveniência de alguns personagens são mostradas para contar algo, estabelecendo um sentimento universal. O infortúnio da personagem título não é à toa, ao contrário, todo o seu entorno parece louco. O texto em alguns pontos é uma ode ao incômodo, representando a repulsa ao convívio através da clara demonstração de desconforto da protagonista em ver sua casa habitada por completos estranhos.

    Essa repulsa a multidões e ao convívio é demonstrada através dos olhos da protagonista. O que não se sabe é se o isolamento que a pretensa família tem é causada pela vontade dela ou de seu companheiro, que claramente parece ter escolhido o exílio para conseguir conversar com seus próprios demônios em paz, encontrando assim o lirismo necessário para dar vazão ao seu próprio trabalho.

    As especulações em torno do filme, antes dele ser visto, eram ligadas a crença de que seria ele o Bebê de Rosemary da contemporaneidade, e tais prerrogativas não poderiam ser mais infundadas. Todo o cerne de Mãe contradiz e muito o ideal por trás do clássico de Roman Polanski, inclusive invertendo a figura de culto. Neste momento, não são os adoradores de Satanás os inimigos, mas sim aqueles que seguem cegamente um ideal repleto de frases bonitas e soluções fáceis. O declínio da humanidade é mostrado através do exploração comum ao culto de tolos, normalmente exemplificado em figuras religiosas, autores literários, coachs e afins.

    O longa é absolutamente angustiante, apesar de um certo exagero, em especial, nos momentos finais. O tom da crítica se perde em meio a uma histeria bastante inconveniente, mas até isso se justifica. O problema se dá em seu fechamento de ciclo, que já se desenhava antes mesmo do desfecho realmente ocorrer. Para um filme que pretende tanta profundidade, há um problema bastante grave na forma que a história se desenvolve. Aronosfky poderia ter acertado mais, mas seu saldo final é bastante positivo, principalmente por conta da entrega de Lawrence e a criação de tensão que a fotografia, figurino e cenários proporcionam, fazendo desse um conto melancólico a respeito da dependência emocional e da exploração dos sentimentos alheios.

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  • Review | Westworld – 1ª Temporada

    Review | Westworld – 1ª Temporada

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    Remake do filme setentista Westworld: Onde Ninguém tem Alma, a produção da HBO era cercada de expectativas positivas, principalmente graças a produção executiva do trio J.J. Abrams, Jonathan Nolan e Lisa Joy, com esses dois últimos trabalhando também nos roteiros. O exploitation que mistura elementos do velho-oeste e alta ficção-científica tem seu piloto dirigido por Nolan, que já havia feito um trabalho nos roteiros ao lado de seu irmão, Christopher Nolan, em filmes como Batman: O Cavaleiro das Trevas e O Grande Truque.

    Em seu primeiro capítulo, a série demonstra um cunho muito mais reflexivo e cerebral em comparação ao filme original. A nudez das personagens é apresentada de maneira fria, apesar da beleza de quase todos os intérpretes. A primeira personagem apresentada é Dolores, vivida por Evan Rachel Wood, que é uma das androides, que funciona como uma simples camponesa dentro do roteiro planejado a si, mas que guarda um potencial, tendo em seu comportamento de estranheza com o cenário, o primeiro dos indícios de que um dia despertará para uma clarividência de tudo aquilo que ocorre em Westworld. Em seu núcleo narrativo são mostrados em primeiro plano dois personagens, Peter Abernathy (Louis Herthum), seu pai; e Teddy (James Marsden), seu interesse romântico. Ambos tentam protege-la da hostilidade que vem de fora do parque- dos que não são tão autômatos – chamados de anfitriões – e é nesse ponto que se revela o personagem Homem de Preto, interpretado por Ed Harris, um sujeito aparentemente cruel, mas que tem uma complexidade comportamental bem maior do que aparenta ser nesses primeiros capítulos.

    Outro núcleo apresentado é o dos cientistas, comandados pelo Doutor Robert Ford (Anthony  Hopkins) e acompanhado de Bernard Lowe (Jeffrey Wright) um dos homens que trata da engenharia dos androides. A partir dali começa toda uma discussão que mistura elementos presentes nos romances e contos de Isaac Asimov, principalmente na questão da coisificação e na capacidade que seres robóticos tem de sentir e de ter atitudes humanas, e claro em Blade Runner e demais contos de Phillip K. Dick, na situação teórica de não sabedoria a respeito

    Uma das dúvidas mais presentes nos mistérios que envolvem Westwordl é até onde podem se estender os limites morais humanos caso não haja qualquer restrição culposa, de justiça ou escrúpulos. Há um mcguffin em relação a um personagem humano nesse quesito, mas a parte realmente interessante dentro dessa proposta, é o despertar da cafetina Maeve (Thandie Newton), primeiro diante daqueles que cuidam de si, depois para a situação de controle em que se encontra.

    Outra das questões entre as maiores discutidas, se não o maior é se a perversão do status quo ocorre com os revoltosos a partir de alguma programação prévia, ou como resposta sináptica não programada. A serie suscitou durante sua exibição um número infindável de teorias, semelhante ao fenômeno ocorrido com Lost, sendo quase todas essas teorias ligadas as duas personagens femininas mecânicas, com Maeve ao poucos sendo estimulada a suas lembranças antigas, por meio de um visitante mais benevolente, de nome William (Jimmi Simpson), e Maeve, que se envolve com seus cuidadores Sylvester (Ptolemy Slocum) e Félix (Leonard Nam). Ambos arcos possuem eventos interessantes e outros nem tanto, reunindo questões de sensacionalismo bastante evidente e sonegação de informação pura e simples, obviamente montada para não revelar demais tão cedo. Dentre essas, há algumas incongruências, que somente são notadas ao observar o todo, ainda que grande parte dessas lacunas possa ainda ser respondida em temporadas vindouras.

    A exploração do tema relativo as lembranças dos anfitriões ajuda a aumentar a importância do debate ético levantado, propondo a questão de que se os seres automatizados podem sentir, reter memórias e ter consciência própria, não se deveria ter o direito de coisificá-los, ao contrário, já que esses escravos de narrativa e vivência tem muitas semelhanças com o homem que os criou, feitos a imagem e semelhança de Ford e do misterioso programador Arnold. As discussões que o personagem de Hopkins e Bernard tem sobre os detalhes de programação e backgrounds dos anfitriões mostram um complexo e onipotência enorme sobre o inventor de tudo aquilo.

    Maeve transporta o comportamento indócil que tem nos laboratórios a sua rotina dentro do parque. A cooperação que recebe dos que fazem sua manutenção põe em cheque se seus auxiliadores são humanos ou construtos, fato que serviria para mais um plot twist. O cenário da Guerra Civil Americana faz lembrar visual e espiritualmente o clássico de Sergio Leone Três Homens em Conflito, com Teddy fazendo às vezes de pistoleiro sem nome com o ímpeto do Django de Franco Nero e Sergio Corbucci.

    Uma das maiores riquezas no texto do programa é o modo lírico com que ocorrem as manipulações, seja dos organizadores do parque ou com os próprios anfitriões. Ford é um sujeito controlador e astuto, não parece ter qualquer culpa em tratar suas criações como meros utensílios, ludibriando-as mesmo quando apresentam uma vontade categoricamente oposta a si. Sua contra parte contraria pode ser vista em Maeve, não só na dicotomia presente entre criador e criatura, mas também na velha guerra dos sexos, mostrando ambos usando suas armas para moldar a atitude dos que o cercam ao seu bel prazer, sem levantar a voz ou ameaçar de qualquer forma.

    O parque é um lugar onde tudo é permitido. Até então, a pecha do Onde Ninguém Tem Alma presente no subtitulo brasileiro do filme não havia feito tanto sentido como neste ponto, uma vez que a diversão e prazer dos que lá chegam é intimamente ligada a dor e sofrimento de outrem. A banalidade que habita o ideal dos visitantes é a de fazer suas próprias dores passando ao usar e abusar de seres inteligentes, que em suma, são tão humanos quanto eles mesmo, com o diferencial de que a maioria dos anfitriões é indefesa perante a programação, que por sua vez também é organizada pela raça opressora.

    Para Dolores sobra a revolta via dor, enquanto Maeve se vinga por maus tratos. A aproximação da lembrança de um amor não correspondido e transformando em terror no futuro a faz se tornar amarga e com um desejo insaciável de violência e truculência. Ao final, o desfecho das duas personagens não é mais tão diferenciado quanto foi em toda trajetória de Westworld, e apesar das múltiplas explicações do season finale – e que mataram quaisquer saudades de Interestelar e A Origem – há uma conclusão catártica e visceral, com alguns cliffhangers, mas nada absurdamente desrespeitoso com a audiência. Para o publico médio, essa temporada pode soar de difícil compreensão, mais aos olhares mais atentos, certamente a empreitada de Joy, Nolan e Abrams ainda tem muitíssimo a discutir e elucubrar, sobre os porões da alma humana e os anseios do sujeito em tornar-se igual o seu objeto de adulação, renovando as leituras sobre a mito de Prometeu e da Árvore do Bem e do Mal que Adão e Eva desfrutaram, ainda com todo um horizonte a se explorar e refletir.

  • Crítica | À Beira do Abismo

    Crítica | À Beira do Abismo

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    De maneira semelhante ao personagem Bill Halleck, de A Maldição do Cigano, a obra de Stephen King nos cinemas ou televisão carrega um fardo. O panorama dessas adaptações revela um gráfico desigual sem equilíbrio entre excelentes tramas ou versões descartáveis. A vasta obra do autor, tanto em romances quanto em contos, naturalmente, pode apresentar pontos altos e baixos. Porém, pressupõe-se que uma trama adaptada seja forte o suficiente para uma boa produção.

    Dessa forma, chega a ser incompreensível o contraste entre tais produções feitas com esmero e outras cuja história não ultrapassa a potência de uma ideia. Lançado em 2012, À Beira do Abismo se encaixa na segunda categoria. Baseada em um conto de Sombras da Noite, primeiro livro de histórias curtas do autor, a produção se desenvolve a partir da premissa de um ex-policial fugitivo que, para provar sua inocência, ameaça suicidar-se.

    A partir desta ação, a narrativa apresenta a motivação da personagem. A tentativa de suicídio, porém, é uma distração para revelar outra história paralela, tão inverossímil como a primeira. A situação extrema causa impacto mas se apresenta de maneira fria, sem uma justificativa plausível.

    Ainda aproveitando o sucesso de Avatar, Sam Worthington estrela a produção sem o impacto necessário em sua interpretação – um fato que atravessa sua carreira como um todo – sendo pontual somente na urgência do policial Nick Cassidy. A falta de credibilidade da personagem principal transforma em mais aparentes as falhas narrativas, ainda que o público anseie descobrir sua motivação e a das demais personagens.

    O fraco impacto do thriller não se sobressai nem mesmo em algumas cenas que tentam aprofundar-se nos personagens ao redor do policial, mas que parecem fora de tom em relação à obra em geral. Sendo uma potencial boa história de um excelente escritor que, mais uma vez, sofreu o peso da maldição de sua obra mal adaptada para o cinema.

  • Crítica | Poder Absoluto

    Crítica | Poder Absoluto

    Poder Absoluto - Poster

    Nem é preciso falar muito quando se trata de Clint Eastwood, um dos poucos sujeitos de Hollywood que é extremamente competente em atuação e direção. Embora seu talento para atuar e dirigir seja notório, o que talvez as pessoas não percebam é que Clint sabe contar histórias. Ele conta ótimas histórias já criadas, lançadas em papel, bons romances, muitas vezes desconhecidos, mas que guardam ótimas histórias. E esse é o caso de Poder Absoluto.

    O livro Poder Absoluto foi escrito por David Baldacci e roteirizado por William Goldman, dono de duas estatuetas da Academia, além de outras 14 indicações e assim, ficou “fácil” para Clint dirigir o sucessor de As Pontes de Madison. Dona de uma premissa simples, porém chocante logo num primeiro momento, a fita se desenvolve num ótimo thriller policial e político de encher os olhos, com cenas inteligentes, diálogos precisos, sem esquecer, inclusive, de uma ou outra cena de ação. E claro que não podemos deixar de citar o “trio de ferro” dos atores principais aqui presentes. Além de Clint como protagonista (ou seria antagonista?), temos Gene Hackman e Ed Harris.

    Luther Whitney (Clint Eastowood) é um conhecido e veterano ladrão de joias, que passou ausente boa parte da criação de sua filha, Kate (Laura Linney), tendo, portanto, uma relação conturbada com a moça, uma das promotoras de justiça da cidade. Além de ser expert em adentrar em residências super protegidas, Luther é o melhor no que faz e, assim, decide fazer um último furto para garantir de vez sua aposentadoria. Adentrando uma mansão vazia, furta todas as joias pertencentes a um casal milionário que está viajando. Porém, acontece que só o marido parece viajar, uma vez que sua esposa adentra à residência com seu amante. Luther se esconde num closet e testemunha, através de um espelho de uma face, as preliminares de um casal bêbado, que resulta num crime bárbaro.

    O detetive Seth Frank (Ed Harris) tem a certeza que o crime foi cometido por Luther, por conta do modus operandi para invadir a casa e das joias furtadas e isso intervém ainda mais na relação do veterano ladrão com sua filha. Luther presenciou um crime ao qual não pode revelar assim de forma aberta, pois o amante da mulher assassinada é o homem mais poderoso dos Estados Unidos, o presidente Allen Richmond, vivido por Gene Hackman.

    Assim começa o tradicional mas competente jogo de gato e rato, uma vez que Frank quer Luther preso e o presidente, assim como o marido da mulher assassinada, o querem morto. O interessante é que tal jogo não se estende somente a Luther, Frank e o presidente e é justamente onde reside a graça da trama. Há algo muito maior por trás deste “simples” crime.

    O destaque do filme fica pra atuação de Clint Eastwood e Ed Harris, mais precisamente quando estes dois dividem a tela. E também é sempre interessante acompanhar Luther com sua filha, além de todas as situações em que se coloca para conseguir provar sua inocência. Mas como dito, tem momentos em que parece que o filme não trata somente da história de Luther, o que o torna obrigatório.

    Poder Absoluto pode não estar na lista dos melhores filmes do diretor, mas a trama e o elenco cativam desde o começo, sendo simultaneamente inteligente e conduzindo bem os clichês, não aquele clichê que decepciona, mas aquele em que o espectador, ao assistir, proferirá algum palavrão, cuja tradução estará próxima de um sonoro “uau!”.

    Texto de autoria de David Matheus Nunes.

  • Crítica | Noite Sem Fim

    Crítica | Noite Sem Fim

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    Liam Neeson tornou-se uma espécie de reserva moral do cinema de ação. Mesmo que o filme em que ele participa não seja grande coisa, o que não é o caso desse, o ator consegue sempre uma boa performance que atenua os problemas da fita. Nessa terceira parceria com o diretor Jaume Collet-Serra (Desconhecido e Sem Escalas foram as anteriores), o irlandês novamente consegue uma ótima atuação, com o “agravante” de estar cercado de outros ótimos atores e de esse ser um thriller de ação dos mais eficientes.

    Na trama, Liam Neeson é Jimmy Conlon, um matador que há décadas desempenha o ofício sob as ordens do mafioso Shawn Maguire (Ed Harris). Quando o filho de Jimmy testemunha um crime cometido pelo filho de Shawn e passa a ser alvo, Conlon intervém e acaba matando o filho de seu chefe e grande amigo. Maguire então coloca todo o seu contingente de capangas atrás dos Conlon, que, além de sobreviver, têm algumas contas a acertar do passado.

    A maneira intensa como Collet-Serra filma esse Noite Sem Fim faz com que o espectador cole na poltrona. O diretor se aproveita do roteiro enxuto e orquestra momentos de tensão muito interessantes, principalmente na sequência do conjunto habitacional. Interessante observar também que, ao mesmo tempo que se utiliza de uma estética oitentista em certos momentos, o diretor espanhol faz algumas transições de cena bem modernas. Outro ponto muito bacana é o fato de que a cidade acaba se tornando um personagem do filme, não apenas um simples cenário. Collet-Serra também demonstra muito domínio nas sequências que envolvem diálogos tensos entre os personagens, um fato que diferencia Noite Sem Fim de outros filmes do gênero. O roteiro também é bem interessante e, combinado com a boa direção, entrega figuras com profundidade, não sendo apenas as personagens unidimensionais que povoam o gênero.

    Liam Neeson novamente entrega uma boa interpretação, fazendo com que se sinta uma certa pena do seu Jimmy Conlon, mas ao mesmo tempo, mostrando que o personagem tem enormes falhas de caráter. Joel Kinnaman, que interpreta o filho de Jimmy, também está ótimo em cena, formando uma boa dobradinha com Neeson, ainda que seu personagem caia no lugar-comum do filho revoltado com o passado do pai. Ed Harris está especialmente ameaçador como Shawn Maguire, e Vincent D’Onofrio, como um policial que observa toda a situação a distância, também está muito bem e passa credibilidade ao papel.

    Porém, como nada é perfeito, o filme acaba caindo em um velho clichê de redenção no seu desfecho. Ainda que o personagem de Neeson aproveite aquela noite para tentar se redimir com o filho e com si mesmo, a rota escolhida pelo roteiro termina por ser a mais fácil e previsível, fazendo com que o final da película perca um pouco de peso. Fica um gosto amargo de decepção com o que ocorre. Ainda assim, Noite Sem Fim é um ótimo filme, com ritmo frenético, boas atuações e bons personagens e possivelmente é o melhor filme dessa fase de ator de ação em que Liam Neeson ingressou.

  • Crítica | Uma Nova Chance Para Amar

    Crítica | Uma Nova Chance Para Amar

    Romances com personagens maduros são um tanto raros no mercado comercial. Dentre os poucos lançados anualmente, filmes sobre a maturidade, ou a velhice, são retratados com um exagero realista e com personagens desolados, quase fatalistas, vivendo a infelicidade até o fim de suas vidas. O cinema abre espaço para dramas existenciais, mas nunca reconhece a possibilidade de existência do amor em outras épocas, além da juvenil.

    Estrelado por Annette Bening, Ed Harris e Robin Williams (em um de seus últimos papéis em cena), Uma Nova Chance Para Amar apresenta Nikki, uma mulher devastada pela perda do marido, falecido em uma praia mexicana durante uma viagem amorosa. As cenas iniciais do longa demonstram com habilidade o passar do tempo da vida da personagem e de como a memória do cônjuge ainda se faz presente em seu imaginário, nos objetos em comum do casal e em situações cotidianas. Uma lembrança que lhe causa choque ao reconhecer, em uma galeria de arte, um pintor idêntico ao marido.

    A leveza agridoce do início do roteiro, composto com qualidade nas citadas cenas cotidianas, se intensifica em um melodrama que procura atingir o emocional do público. A princípio, a trama analisa a delicadeza do ser humano perante a perda de entes queridos, ainda mais em um acidente inesperado. A personagem central demonstra fragilidade interna e parece procurar neste homem, semelhante à sua alma gêmea, um retorno ao passado; fazer deste novo amor uma representação do marido.

    O roteiro direciona sua narrativa com maior intensidade para o romance que irá acontecer e à análise da necessidade de um mínimo de preparo psicológico para o conhecimento, a compreensão e a aceitação de outro ser humano. Embora a questão do duplo seja apresentada em breves diálogos, justificando que não há nenhuma pessoa genuinamente única, a trama focaliza a confusão interna da personagem nesta projeção semelhante de dois personagens.

    Ed Harris sustenta ambos os papéis, sendo capaz de entregar nuances diferentes para cada um deles: mais alegre para o marido falecido, mais irônico e contido para o pintor. A princípio, a semelhança causa estranheza também no espectador, e, sem estarmos cientes do enredo, é possível pressupormos a fragilidade da saúde de Nikki. Seria o público um cúmplice de um desvio psicológico ou quem corrobora com a semelhança de ambos? Novamente, o longa não parece interessado em analisar a negação do luto, mas foca diretamente o conflito entre homem e mulher em uma relação amorosa. Este enfoque dramático amplia-se conforme conhecemos a história oculta do passado de Nikki. Uma proposta arriscada por depender da recepção emotiva do público e da aceitação de que o enredo possui um conceito minimamente realista.

    Por outro lado, o enfoque romântico gera bonitas cenas de amor maduro e, distante de um fatalismo exagerado, compõe com naturalidade um quadro de personagens equilibrados mesmo em situações limite. Robin Williams, em uma de suas últimas performances, interpreta um viúvo que também sofreu a perda da esposa. Um laço que o une a Nikki como um triste clube que relembra a brevidade da vida. O bom elenco de veteranos produz a credibilidade deste roteiro sentimental e melodramático que atinge o espectador pelas interpretações, demonstrando que mesmo a maturidade física requer também apoio sensível para poder amar.

  • Crítica | Virada no Jogo

    Crítica | Virada no Jogo

    Após dois mandatos consecutivos, o presidente americano George W. Bush deixava a Casa Branca com um espantoso nível de rejeição. Uma porcentagem, divulgada em uma pesquisa da CNN, suficientemente alta para torná-lo o presidente mais impopular desde Nixon no caso Watergate. Na eleição presidencial de 2008, o Partido Republicano tinha dois objetivos na composição de sua campanha: a primeira era vencer o democrata Barack Obama, o senador americano considerado ponto de mudança na política mundial. Para isso, o candidato John McCain precisava demonstrar ao seu eleitor que, apesar de oito anos de governo Bush, o partido ainda era forte o suficiente para continuar na presidência do país e conduzir os Estados Unidos da América de maneira diferente daquela realizada pelo antecessor.

    Baseado no livro de John Heilemann e Mark Halperin, com roteiro de Danny Strong (O Mordomo da Casa Branca) e dirigido por Jay Roach (Os Candidatos), Virada no Jogo, lançado pela HBO, apresenta a versão republicana das eleições e a composição da chapa de McCain. (Considerando que toda história baseia-se em uma verdade parcial, além do universo político ser carregado de interpretações variadas, a análise seguinte enfocará o conteúdo apresentado por esta produção, sem um amparo maior no contexto americano e em especialistas políticos).

    Roach já realizou outra produção política para o canal: Recontagem, que analisa a eleição de 2000, em cuja contagem de votos elegia Al Gore mas fez George Bush o 43º presidente do país. Virada no Jogo é mais uma narrativa centrada em acontecimentos contemporâneos da política americana. Ed Harris personaliza o candidato republicado à procura de uma chapa forte o suficiente para derrotar Obama. Diante das poucas opções para vice-presidente, a equipe escolhe um caminho inédito e incômodo para a ala mais conservadora ao colocar Sarah Palin (Julliane Moore), governadora do Alaska, como representante.

    Entre partidos, havia um jogo silencioso de intenções. Se os Republicanos confiavam em um presidente que ganhava status de celebridade e promovia um novo contato com o público jovem, o partido opositor escolheu um representante que também apresentava novidade ao eleitorado e, neste caso, a escolha de Palin demonstrava a importância de um estado normalmente diminuto ou ignorado e evidenciava uma disposição partidária nova, a de escolher uma mulher como vice-presidente. Um embate oculto e absurdo que, silenciosamente, fazia da raça e do gênero, aliados.

    A princípio Palin demonstra coerência com os objetivos de McCain, porém, aos poucos, demonstra uma alienação disfuncional para um candidato desse porte, destacando-se na mídia não como ponto de mudança, mas sim por entrevistas e depoimentos inusitados, tornando-se constantemente alvo de deboche. A atriz Tina Fey, no programa Saturday Night Live, compôs uma das paródia mais elogiadas, em parte pela semelhança física de ambas. Uma representação que resumia de maneira exagerada um pensamento interno do partido: Palin poderia ser suficientemente boa para o Alaska, mas não possuía apelo nacional. Incapazes de retroceder e nomear outro líder, a governadora é dominada como pode, sendo vista com respostas decoradas e um discurso preestabelecido.

    A produção analisa a incoerência dentro do sistema político e o quanto é difícil unir políticos com visões díspares para representar os mesmo interesses. Palin reconhece os conflitos que surgiam, mas parece negar sua incapacidade. Impõe seu estilo em diversos momentos, causando desconforto no partido. Como mérito de uma história biografada, a composição física das personagens estabelece a credibilidade das cenas. Harris e a sempre talentosa Julianne Moore estão caracterizados com esmero. Além da maquiagem e figurino que os deixaram idênticos aos candidatos, a atriz compõe uma governadora que demonstra uma força interior destruída aos poucos, questionando a própria credibilidade como representante político.

    A obra é considerada fiel aos acontecimentos factuais. Porém, gerou discussão quanto à veracidade dos fatos, tanto da própria Palin quanto de militantes que apontam incongruências e mentiras nesta produção. Mesmo considerando uma possível parcialidade dos fatos, a trama demonstra a delicadeza do agressivo jogo político e do necessário alinhamento interno de um partido para selecionar seus representantes.

  • Crítica | Expresso do Amanhã

    Crítica | Expresso do Amanhã

    Expresso do Amanhã

    Os filmes sobre futuros pós-apocalípticos já constituem um gênero próprio no cinema. Por inúmeras razões diferentes, o planeta Terra já foi destruído e deu origem a diversas histórias sobre seus sobreviventes. Baseado na graphic novel francesa Le Transperceneige – escrita por Jacques Lob, Benjamin Legrand e Jean-Marc Rochette –, Expresso do Amanhã é o mais inventivo e surreal exemplar surgido nos últimos tempos.

    Dirigido pelo coreano Bong Joon-ho, responsável pelo maravilhoso O Hospedeiro, o filme tem como ponto de partida uma catástrofe ambiental que ocorre após um experimento fracassado que tinha como finalidade acabar com o aquecimento global e acabou dizimando praticamente toda a vida do planeta. Os poucos sobreviventes do evento cataclísmico vivem a bordo do Snowpiercer, um trem que roda todo o planeta em ciclos de 365 dias. Dentro da composição, há um desigual sistema de classes sociais em cada vagão. Porém, a classe mais pobre, que habita os vagões de trás, não está nada satisfeita com as condições que lhes são impostas e prepara uma revolução.

    Geralmente, existe uma certa dificuldade em unir estilo e conteúdo. Bong Joon-ho consegue com maestria essa união. O coreano é um craque e alguns diretores hollywoodianos deveriam aprender com ele. Na sequência da batalha com os encapuzados de machadinha, Joon-ho faz um magistral uso da câmera lenta sem em nenhum momento diluir a brutalidade do momento. Minutos depois, filma de maneira crua o prosseguimento da luta, usando o ponto de vista dos homens de capuz e seus óculos de visão noturna. Mais ainda, o diretor consegue transformar o trem em um personagem do filme, em vez de fazer dele um simples cenário. Outro ponto positivo é que em nenhum momento as emoções dos personagens são negligenciadas e nenhum close é gratuito. Tudo isso é filmado em um constante clima claustrofóbico.

    A cenografia do filme é muito interessante. Cada vagão tem uma “personalidade própria”, mesmo os mais simples que aparecem logo no início. Alguns são muito curiosos e belos, como o “vagão aquário” e o “vagão horta”. Entretanto, aquele que representa uma escola é especialmente perturbador. Os mais abastados são dotados de luxo, porém retratam a decadência da alta sociedade, numa clara analogia ao mundo real.

    O elenco do filme também é ótimo. Chris Evans faz o líder hesitante da revolução, em uma interpretação contida, mas marcante. Destaque para a cena em que ele expõe o que acontecia no trem no início da viagem. O ator faz um monólogo repleto de emoção sem cair na pieguice ou na canastrice. O veterano John Hurt interpreta com a habitual competência um ancião habitante do trem que serve como uma espécie de líder dos mais pobres e mentor de Evans. Song Kang-ho interpreta o homem que criou o sistema de portas do trem e é mantido prisioneiro. Sua atuação é completamente alucinada, já que seu personagem se viciou em uma droga chamada Kronol. Porém, quando é necessário que o tom seja mais dramático, Song não decepciona. Sua filha Yona, também viciada, é feita por Go Ah-sung em uma atuação que se assemelha a de Kang-ho. Ed Harris e Jamie Bell, respectivamente o idealizador da locomotiva e o fiel escudeiro do protagonista, entregam interpretações competentes, ainda que diferentes. Enquanto o primeiro consegue expressar bem a megalomania de seu personagem, o segundo demonstra muito bem toda a inquietação e a melancolia de seu papel, capaz de sacrificar tudo por seu melhor amigo, o protagonista (Chris Evans). Mas, o maior destaque é Tilda Swinton. Irreconhecível como uma espécie de chefe de segurança do trem, sua interpretação caricata ajuda a ressaltar o quão doentia a personagem é.

    Com um roteiro interessante e surreal executado com maestria por seu diretor, Expresso do Amanhã talvez seja o mais criativo filme de temática pós-apocalíptica que apareceu no cinema nos últimos tempos. Ficção científica de primeiríssima qualidade que merece todos os elogios que recebeu.

  • Crítica | Virgínia (2010)

    Crítica | Virgínia (2010)

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    Dirigido por Dustin Lance Black – em seu segundo trabalho como diretor, cujo currículo de roteirista inclui Milk: A Voz da Igualdade – o drama foca na personagem título, Virgínia (Jennifer Connelly), uma mulher de meia idade, residente de uma cidade pequena que é acometida de uma doença mental. Tal instabilidade a faz regredir anos, até a época quem que esta tinha um caso com Dick Tipton (Ed Harris), chefe da polícia local. A narrativa envolve a geração posterior a dos personagens citados e toca em questões primordiais para os envolvidos em sua trama, de um modo pessoal e tocante.

    A chamada nos créditos iniciais com uma animação 2D insere o espectador em um ambiente semelhante ao de um conto de fadas, a sensação é prolongada pela primeira música da trilha, executada em cima de imagens que exploram a área restrita de ocorrência criminal. A fotografia de Eric Edwards lembra muito alguns trabalhos de Gus Van Sant (não à toa, pois este é o produtor executivo) e de Sam Mendes, especialmente em Foi Apenas Um Sonho, onde as questões primordiais ligadas a discussão da sanidade mental são semelhantes, mas abordadas de modo e de ângulos diferentes, visto que em Virgínia a moralidade é aventada na questão da transa sexual de uma pessoa mentalmente débil com uma sã – julgada pela câmera – e a mesma transa entre pessoas de diferentes credos – esta interpretada pela mentalidade juvenil de Emmett (Harrison Gilbertson), filho de Virgínia.

    A perversão que ocorre, bem próxima dos olhos do menino, influi e muito no que ele entende passar com sua mãe. Ele enxerga a reluzente figura do xerife de forma bastante diferente do que a opinião pública costuma julgá-lo. Tipton é candidato a senador estatal, e a explanação de tal polêmica seria um desastre para a sua campanha.

    A multiplicidade de narradores/personagens mostra que a história tem muitos ângulos de análise, e a situação passa longe de ser simplória. Emmett busca incessantemente a identidade de seu anônimo pai, e ela passa pela pessoa de Tipton, o confronto entre os dois é extremo e o embate envolve até o entendimento de ambos sobre o Divino.

    A paranoia de Virgínia não é tão injustificada e muito menos pautada em suas sandices, suas preocupações ligadas a interceptação de sua correspondência (por exemplo) é evidenciada como algo real. A única pessoa genuinamente preocupada com o seu bem-estar é Emmett. O ego ferido da mulher tem iguais proporções (ou até piores) ao de uma mulher abandonada cuja sanidade é plena, Virgínia passa a declarar estar grávida para os populares da cidade, sem pensar na preservação da imagem de Tipton, já que este não a enxerga como ela pensa ser merecido: como uma segunda esposa. As ações da protagonista ganham contornos de uma variação demente da Gata Borralheira.

    A revelação da anormalidade de sua mãe não é uma total surpresa, visto que ele há tempos observava o seu comportamento “incomum”, mas a verificação do óbvio o faz com que seus planos de fuga sejam antecipados. O regime emergencial também atinge o seio familiar dos Tipton, a certeza da infidelidade abala a matriarca, que reage também de forma fugitiva. O desfecho é confuso, o que deveria ser um arremedo de inconsequência unido a tentativa de redenção da protagonista, acaba sendo um momento que carece de um maior aprofundamento, arranhando somente na superfície da questão proposta, faltou um pouco de esforço em pensar numa resolução melhor dos crimes cometidos, uma pena, visto que a primeira metade do filme é interessantíssima.

  • Crítica | Sem Dor, Sem Ganho

    Crítica | Sem Dor, Sem Ganho

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    Após passar alguns anos dedicando-se aos blockbusters de uma popular e milionária franquia, um cineasta resolve respirar novos ares. Orçamento baixo (estimado em 26 milhões de dólares), roteiro baseado em fatos reais… é de se imaginar algo mais intimista, mais “cabeça”, talvez? Não quando estamos falando do explosivo Michael Bay. Dinheiro e efeitos especiais à parte, a alma do diretor permanece em Sem Dor, Sem Ganho – uma divertida comédia de ação que até surpreendeu os detratores deste gênio incompreendido.

    Situada em meados dos anos 1990, a trama acompanha um trio de fisiculturistas de Miami que decide tentar um grande golpe pra mudar de vida. Daniel Lugo (Mark Wahlberg) é um personal trainer que assiste a uma palestra de auto-ajuda e sai iluminado: ao invés de ficar reclamando da vida, ele vai agir para ter aquilo que julga merecer. Com isso, entenda-se sequestrar um endinheirado frequentador da sua academia (Tony Shalhoub) e “convence-lo” a transferir seus bens pra ele. Os parceiros de crime de Lugo são Adrian Doorbal (Anthony Mackie), um simplório marombeiro que enfrenta problemas de disfunção erétil; e o ex-presidiário arrependido e hoje cristão, Paul Doyle (Dwayne “The Rock” Johnson). Atrapalhados até dizer chega, os fortões agem na base do improviso e tentativa e erro (e são muitos, muitos erros), e acabam tendo que se dedicar mais a consertar as próprias furadas do que a aproveitar o sucesso do plano.

    Como citado anteriormente, Michael Bay não deixou de lado suas marcas. Aspectos visuais impecáveis, apesar do orçamento reduzido, algo que faz lembrar da estreia de Bay em longa-metragens. O primeiro Bad Boys, de 1995, também se passava em Miami e trazia a ensolarada fotografia que aqui se repete. Ainda que Sem Dor, Sem Ganho tenha consideravelmente menos cenas de ação (pelo menos para o padrão do diretor), o ritmo ainda é frenético, com cortes e diálogos rápidos. Mesmo em cenas expositivas, a sensação de correria permanece. E claro, estão lá as câmeras lentas, a luz do sol estourando em diversos reflexos, e até mesmo uma explosãozinha básica, com direito ao trio de “heróis” de costas para ela, andando lentamente.

    O que acaba sendo um diferencial do filme é que o roteiro justifica – ou pelo menos acompanha – esses exageros visuais. Quando algo se anuncia como “baseado em fatos reais”, nossa reação normal é ligar o desconfiômetro e considerar a velha “magia do cinema”. Mas neste caso isso não afeta tanto, primeiramente porque ninguém duvida que os norte-americanos sejam capazes de maluquices. E depois, porque o filme se assume, desde o início, como um causo insanamente divertido, sem exibir qualquer pretensão documental/moralista.

    Nessa pegada, é uma diversão à parte especular até que ponto foram intencionais as zoações com o Sonho Americano. Começando com o protagonista dizendo que os EUA passaram de “um punhado de colônias mirradas” para “o país mais bombado do mundo” através de muito suor e trabalho duro. Conceitos de auto-ajuda tipicamente rasos se fundem tão bem, não só com o ideal capitalista estadunidense do “self-made man“, mas também com o simples (e povoado por mentes simples) universo da musculação. Impagável. E provavelmente involuntário, ou alguém acredita que Bay e os roteiristas Christopher Markus e Stephen McFeely se preocuparam em trabalhar camadas de ironia?

    Os atores que acompanham toda essa proposta escapista estão muito bem encaixados em seus papéis. Mark Wahlberg meio que repete seu papel em Ted, como um palerma que não se toca do quanto é estúpido. E, por se levar a sério e agir de acordo, acaba sendo muito mais engraçado do que seria se tentasse fazer humor. Abandonando um pouco a pose de fodão, The Rock também diverte como o incrivelmente ingênuo Doyle. Seja se entregando a Jesus ou à cocaína, ele consegue ser o mais tapado do grupo. Anthony Mackie e Rebel Wilson, ambos estereótipos, nada de especial. Ed Harris, ok trabalhando no automático. E Tony Shalhoub, o único que atua no filme, consegue fazer um personagem tão asqueroso que não desperta simpatia em momento algum, mesmo sendo uma vítima inocente. Ah, sim: a gatíssima Bar Paly confirma a habilidade de Michael Bay de transformar magrelas em deusas da gostosura na telona.

    Sem Dor, Sem Ganho não é, como alguns exagerados apontaram, o melhor trabalho de Michael Bay (isso só mostra que chega a ser irracional o ódio que muitos têm dele). É uma aventura descompromissada, um entretenimento bem executado. E deixa a interessante lição de que limites podem fazer bem ao diretor. Resta saber se ele entendeu isso, afinal, o quarto Transformers vem aí.

    Texto de autoria de Jackson Good.

  • Crítica | Medo da Verdade

    Crítica | Medo da Verdade

    gone baby gone

    Após um desgaste em sua carreira de ator, Ben Affleck decidiu se reinventar, dessa vez de maneira distinta do habitual, e acabou coescrevendo e dirigindo seu primeiro longa-metragem. Baseado no romance de Dennis Lehane, Gone Baby Gone, Affleck retrata as agruras do comportamento humano, em um thriller policial desesperançoso e melancólico.

    A adaptação cinematográfica da obra literária de Dennis Lehane traz um comparativo direto com o longa-metragem Sobre Meninos e Lobos, de Clint Eastwood, também de Lehane, ambos os diretores abordam a realidade de uma comunidade americana que está à margem da sociedade, repleta de seres marginalizados pela classe mais favorecida, e construindo assim, um viés sob a ótica desses personagens.

    Medo da Verdade traz como plano de fundo o desaparecimento de uma garotinha de 4 anos em um bairro do subúrbio de Boston. A investigação policial, coordenada pelo Capitão Jack Doyle (Morgan Freeman) e conduzida pelos investigadores Remy (Ed Harris) e Nick (John Ashton), não vem obtendo êxito no bairro, já que existe um código de silêncio que não pode ser quebrado por um fator externo. Por isso, os tios da menina decidem contratar uma dupla de detetives particulares da região que teriam contatos e informações que a polícia não teria acesso. Os dois detetives, Patrick (Casey Affleck) e Angie (Michelle Monaghan) aceitam o caso e imergem intensamente na investigação.

    A trama traz um thriller policial em sua essência, no entanto, assim como Eastwood em ‘Sobre Meninos e Lobos’, ou Scorsese em Ilha do Medo (também adaptado da obra de Lehane), Affleck usa o gênero para discutir outros temas. Conflitos sobre moralidade, religião e ética estão presentes de forma visceral nesta obra de Affleck.

    Os personagens da trama são todos extremamente bem construídos, profundos, reflexivos e repletos de nuances. Suas atuações eficazes carregam o longa dentro da atmosfera densa proposta pelo filme, tudo isso aliado a fotografia acinzentada e opaca da noite, que envolve suas personagens nas sombras, e a saturação amarelada do dia dos subúrbios de Boston. A direção de arte que confere veracidade a essa degradação proposta pelo filme, seja nos ambientes residenciais fechados ou nas ruas do bairro.

    Ben Affleck em sua estreia na direção, demonstra uma incrível habilidade em realizar uma desconstrução de valores e conceitos, colocando em xeque nossos ideais e questões éticas contra a parede à todo instante. Até qual ponto a verdade será a melhor de nossas escolhas? Quão frágil é nossa percepção sobre o que é certo e errado? Um excelente trabalho de estudo de personagens e de um grupo social.

    Ouça nosso podcast sobre Ben Affleck.