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  • Crítica | Sem Remorso

    Crítica | Sem Remorso

    Criado por Tom Clancy, o Ryanverse já foi adaptado para diversas mídias. Tudo começou com A Caçada ao Outubro Vermelho, filme que adaptou o livro homônimo que tinha o analista da CIA, Jack Ryan, como protagonista. Desde então, várias outras adaptações de livros para o audiovisual tem o personagem como central em suas histórias — recentemente um seriado do personagem chegou ao Amazon Prime Video.

    Ocorre que, nos livros, o escritor criou um universo muito rico com vários personagens interessantes que ganharam suas histórias próprias, tais como o esquadrão Rainbow Six (adaptado para uma longeva e bem sucedida série de games) e agora John Kelly, personagem de apoio de vários livros com Jack Ryan.

    Não é exagero dizer que Kelly é uma espécie de super soldado, pois nos livros ele é sempre mostrado como alguém extremamente competente e habilidoso. Isso o torna um dos personagens mais importantes que habitam o Ryanverse, presença recorrente nas obras literárias, tendo desenvolvido uma grande amizade com Jack Ryan à medida que vão trabalhando juntos. Devido a isso, Clancy detalhou sua origem no livro homônimo a esta adaptação, além de colocá-lo como personagem central em vários outros da linha principal do seu universo compartilhado, além de spinoffs, tais como Rainbow Six e os livros protagonizados por Jack Ryan Jr. Nos cinemas, antes de Michael B. Jordan encarnar o personagem, Kelly foi interpretado por Willem Dafoe em Perigo Real e Imediato, último filme da trilogia iniciada em A Caçada ao Outubro Vermelho e por Liev Schreiber no fracassado reboot do ano de 2001, A Soma de Todos os Medos.

    Na trama, após voltar de uma missão de resgate que quase terminou em desastre, Kelly tem sua casa invadida por um grupo de assassinos que mata a sua esposa e o deixa seriamente ferido. Acusado pela morte dela e envolvido em uma conspiração que vai aos altos escalões governamentais, Kelly parte em uma jornada violenta para descobrir quem matou sua esposa e expor toda a trama conspiratória.

    Roteirizado por Taylor Sheridan (A Qualquer Custo e Terra Selvagem) e Will Staples, e dirigido por Stefano Sollima (Sicario: Dia do Soldado), Sem Remorso difere dos filmes protagonizados por Jack Ryan na abordagem. Aqui o tom é muito mais pessoal, com todos os eventos gravitando em torno do protagonista. Mesmo em Jogos Patrióticos, filme estrelado por Harrison Ford em que Ryan se torna alvo da vingança de um terrorista irlandês, os eventos que se desenrolam dependem de outros aspectos da trama, desde a burocracia da CIA ao comportamento dos seus chefes. Aqui, a dinâmica é inversa: Kelly é a força motriz do filme e o seu entorno reage ao seu comportamento, tomando as ações a partir do que ele faz, fazendo a narrativa ser bem mais direta.

    Jordan demonstra mais uma vez ser um dos grandes atores da atualidade. Sua atuação confere profundidade emocional ao protagonista, evitando que ele seja somente uma máquina perfeita de matar. O ator é plenamente capaz de segurar um filme sozinho, pois une competência e carisma. Some-se isso à boa direção de Sollima, que consegue criar bons momentos de ação e tensão, tais como a fuga do prédio cercado, a sequência inicial de infiltração e o interrogatório onde Kelly incendeia um carro para conseguir informações. Além disso, nas sequências mais “burocráticas” que mostram os núcleos políticos e corporativos do filme, o diretor encadeia bem os eventos, deixando claro para o espectador o que está ocorrendo.

    Ainda que não seja um filme memorável, Sem Remorso é um eficiente thriller de ação com um bom roteiro de  Sheridan, direção segura de Sollima e uma ótima atuação de Jordan. Boa diversão e um bom ponto de partida para uma nova franquia.

  • Crítica | King Kong (2005)

    Crítica | King Kong (2005)

    Peter Jackson é um diretor diferenciado, na época em que fazia filmes B na Nova Zelândia como Trash: Náusea Total ou Fome Animal ele mostrava um grande amor pelos filmes de terror de baixo investimento e frutos do exploitation, o mesmo ocorre quando adaptou os romances de J.R.R. Tolkien, demonstrando um apreço ao texto original. Quando ele decidiu lançar a sua versão de King Kong, também foi assim. As críticas em volta da sua produção foram muitas, mas é indiscutível que existe um esforço para expandir a trama e a abordagem do King Kong de 1933.

    Quando foi lançado para o cinema, o longa já era muito extenso, e ao ser lançado para o mercado caseiro ainda teve o acréscimo de 14 minutos adicionais no que foi conhecido como a Versão Estendida do diretor. O filme é uma ode ao cinema, seja na apresentação que transforma o logo da Universal no que era comum em 1933 ou nas referências que o Carl Denham de  Jack Black faz a um certo Cooper, na verdade Merian C. Cooper, produtor e diretor do primeiro filme, além disso, o nome do navio é Venture Surabaya, em atenção ao cenário do começo de King Kong de 1976, que teve uma estratégia diferente em contar sua história.

    O roteiro Jackon, Fran Walsh e Philippa Boyens expande e dá substância ao universo criado, além de tempo de tela e propósito para os personagens humanos, de um modo que as outras encarnações não deram. As tramas humanas não são meros pretextos para ludibriar o macaco ou o público, embora passem longe de serem perfeitas, pois todos eles acabam com envolvimentos sentimentais em demasia, fazendo com que o filme soe melodramático em excesso.

    Da parte do elenco, não há muito o que reclamar. Por mais artificial que alguns diálogos pareçam (especialmente os da tripulação do Venture), Black, Adrien Brody, Naomi Watts, Thomas Kretschmann, Colin Hank, Jamie Bell e Kyle Chandler tem desempenhos assertivos. O design de produção unido ao esforço dramático dos atores criam uma atmosfera única, as vezes sabotada pelos maneirismos que Jackson emprega e pela falta de lógica no comportamento de criaturas selvagens.

    O macaco é visualmente impressionante. Os pelos, textura e tamanho aliado a atuação que Andy Serkis emprega dá peso e realidade ao personagem. Se Kong deveria agir como um gorila gigante ou como um outro passo evolutivo da espécie é uma discussão válida, mas dentro da escolha narrativa que Jackson faz, Serkis entrega um desempenho excelente, esforço que reforça a ideia de que natureza intocada é algo belo e harmônico, que só se mostra destrutiva quando ocorre a ação do homem, supostamente, civilizado.

    As cicatrizes, os dentes quebrados e o caráter arredio são mostras de que Kong lutou muito para sobreviver. O cuidado em tornar uma criatura digital lidar com o mundo selvagem e urbano foi bem retribuído, e são poucas as cenas em que os efeitos digitais parecem falsos. Na parte da cidade, o filme segue com os mesmos problemas ligados a pieguice. Certamente, King Kong de Peter Jackson é repleto de boas intenções e poderia ser tão querido quanto as encarnações de John Guillermin e Cooper foram na sua época, mas acabou se tornando o primeiro de vários filmes do diretor neozelandês que foram encarados como enfadonhos, ainda que seja repleto de méritos.

  • Crítica | À Beira do Abismo

    Crítica | À Beira do Abismo

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    De maneira semelhante ao personagem Bill Halleck, de A Maldição do Cigano, a obra de Stephen King nos cinemas ou televisão carrega um fardo. O panorama dessas adaptações revela um gráfico desigual sem equilíbrio entre excelentes tramas ou versões descartáveis. A vasta obra do autor, tanto em romances quanto em contos, naturalmente, pode apresentar pontos altos e baixos. Porém, pressupõe-se que uma trama adaptada seja forte o suficiente para uma boa produção.

    Dessa forma, chega a ser incompreensível o contraste entre tais produções feitas com esmero e outras cuja história não ultrapassa a potência de uma ideia. Lançado em 2012, À Beira do Abismo se encaixa na segunda categoria. Baseada em um conto de Sombras da Noite, primeiro livro de histórias curtas do autor, a produção se desenvolve a partir da premissa de um ex-policial fugitivo que, para provar sua inocência, ameaça suicidar-se.

    A partir desta ação, a narrativa apresenta a motivação da personagem. A tentativa de suicídio, porém, é uma distração para revelar outra história paralela, tão inverossímil como a primeira. A situação extrema causa impacto mas se apresenta de maneira fria, sem uma justificativa plausível.

    Ainda aproveitando o sucesso de Avatar, Sam Worthington estrela a produção sem o impacto necessário em sua interpretação – um fato que atravessa sua carreira como um todo – sendo pontual somente na urgência do policial Nick Cassidy. A falta de credibilidade da personagem principal transforma em mais aparentes as falhas narrativas, ainda que o público anseie descobrir sua motivação e a das demais personagens.

    O fraco impacto do thriller não se sobressai nem mesmo em algumas cenas que tentam aprofundar-se nos personagens ao redor do policial, mas que parecem fora de tom em relação à obra em geral. Sendo uma potencial boa história de um excelente escritor que, mais uma vez, sofreu o peso da maldição de sua obra mal adaptada para o cinema.

  • Crítica | Quarteto Fantástico

    Crítica | Quarteto Fantástico

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    Há um boom de filmes baseados em histórias em quadrinhos desde o renascimento da espécie como gênero, que se iniciou lá com X-Men. A ideia era excelente: tratar o filme de super-heróis como um gênero dentro do outro, e assim haveria abertura para que Bryan Singer fizesse uma bela Sci Fi com elementos de ação, necessária ao desenvolvimento da linguagem cinematográfica deste tipo de filme. Na mesma época, Homem-Aranha de Sam Raimi trouxe uma certa pureza aos super-heróis ao trabalhar temas típicos dos personagens de quadrinhos como responsabilidade, caráter, bondade e sacrifício — abordagem que se repetiu poucas vezes, como em Homem de Ferro, Vingadores e nas continuações de Homem-Aranha. Porém não era possível fazer isso com todo e qualquer material, e estabelecer gêneros maiores e então encaixar a mitologia do super-herói parecia uma decisão mais bem acertada. Christopher Nolan fez seu suspense policial numa Gotham City sem a aura mágica a qual normalmente se observa na cidade, e deu certo elevando o nível dos filmes de super-heróis para patamares mais ousados. Com os direitos de diversos personagens da editora Marvel nas mãos, a Fox buscou completar sua fatia do bolo com Demolidor – O Homem sem Medo e Quarteto Fantástico, ambos nada bem-sucedidos.

    Eis que aparentando novos rumos e visões depois do excelente X-Men: Primeira Classe, o estúdio enfim encontrou sentido para seus personagens. Precisando fazer algo para não perder os direitos sobre eles, resolveu que era hora de reiniciar o Quarteto Fantástico nos cinemas. Para a missão contratou o promissor Josh Trank (Poder Sem Limites) que, após este filme, estaria à frente de um dos filmes do universo Star Wars da Disney, e faria segundo suas palavras, um Sci Fi com referências de David Cronenberg, pitadas de horror e algo totalmente diferente do usual. Como parte de suas decisões artísticas o elenco seria formado por talentos inquestionáveis de uma nova geração que conta com Miles Teller (Whiplash – Em Busca da Perfeição), Michael B. Jordan (Fruitvale Station) nos papéis de Senhor Fantástico e Tocha Humana, e trataria de uma nova geração de também cientistas que estão agora no mundo com a missão de consertar as gerações passadas que destruíram ou renegaram. A genialidade de Reed Richards/Senhor Fantástico contrasta com sua inexperiência e cria um interessante personagem que nunca conseguiu se impor corretamente, mas que tem em si a sede por compreender o mundo à sua volta e que assim segue com a resiliência devida. Após ser descoberto pelo cientista Storm em uma feira de ciências, Richards tem a chance de fazer a diferença no mundo.

    Quando quase nada poderia dar errado, boatos sobre brigas no estúdio e a sorrateira substituição de Trank por Mathew Vaugh (X-Men: Primeira Classe) para “consertar” o filme surgiram por toda a internet, denunciando que ou o resultado teria ficado ruim, ou o estúdio queria na verdade uma outra coisa. O resultado das possíveis confusões se vê na tela em um filme sem foco, estrutura ou originalidade, e que de tão genérico é possível ter vislumbre de praticamente qualquer filme de super-herói recente, desde o recente Homem-Formiga, até O Homem de Aço. Não haveria muitos problemas caso esses vislumbres tivessem relação com os pontos fortes dos filmes citados, porém se percebe apenas a soma dos mais variados clichês recentes do cinema, como a ação artificial baseada em efeitos visuais fosforescentes. Está tudo lá como uma espécie de mapa mental das convenções de gênero que poderiam ser inseridas no filme, mas sem o filtro de qual combinação fazer.

    Embora o terceiro ato seja terrivelmente problemático, os dois primeiros têm dificuldades de conectar e trazer seus protagonistas para o centro da história e da ação, pois não consegue localizar a importância dos personagens à trama. Quem sofre particularmente com isso são os personagens Ben Grimm/Coisa (Jamie Bell) e Sue Storm (Kate Mara), que não podem contar nem mesmo com a grande qualidade de seus intérpretes, já que eles não têm espaço para atuar e são sufocados por exigências meramente performáticas e banais, além de inseridos na obra como pura convenção.  Para resolver este deslocamento, boa parte das soluções são apressadas e amadoras. A solução para dar alguma substância aos personagens é fazendo deles contrapontos das intenções do governo para o uso de suas habilidades, o que seria ótimo caso isso representasse alguma consequência para a trama, o que não foi possível, em muito pela metragem do filme – apenas 100 minutos. Aos demais personagens, resta como motivação para a maior parte de suas ações a necessidade de reconhecimento parental, porém este recurso perde-se em sua frivolidade por ser aplicada a praticamente todos os personagens, mesmo àqueles cujo desenvolvimento não ressoa.

    A falta de perigo, urgência ou gravidade é outro ponto fraco deste filme. Nem mesmo mortes recebem o impacto que merecem, como se o filme se apressasse para uma resolução numa tentativa de subir o ritmo rapidamente e assim criar o clímax. Ao perder-se sobre o que gostaria de mostrar, cria um segundo filme ao iniciar o terceiro ato e isso deixa óbvio que decisões foram tomadas no decorrer da produção e que essas decisões alteraram o material e ideia inicial, levando do Sci Fi com toques de terror prometido (e parcialmente entregue até então) a uma aventura boba de resolução fácil como nos filmes anteriores e alguns pares recentes do cinema de super-herói. Tal desconexão se vê inclusive na edição, que insere e retira personagens de lugares quase que teletransportando o elenco em cortes tão secos que chegam a perder o espectador por um segundo até que este se localize novamente, além de utilizar os recursos mais primários de passagem de tempo que poderiam existir.

    As boas interações do início do filme são desconsideradas com seu decorrer, dissolvendo os laços criados sem reconectá-los ao final, demonstrando uma certa falta de empatia com aqueles personagens. Neste ponto, é difícil de entender o porquê do espaço em tela para Victor Von Doom (Toby Kebbell), se sua participação efetiva como vilão seria apenas burocrática, desperdiçando um visual interessante e cenas de demonstração de poder corajosas. Ao fim, pela falta de sua presença, Doom não exerce o papel de vilão, ou seja, aquele que incita a situação para que o herói haja. Aqui, nenhum papel é bem definido com relação a uma estrutura usual de vilão e herói, adquirindo-a apenas ao final, quando o resultado destoa do desenvolvimento.

    Se o clima e personalidade são muito bons e as pequenas ousadias do roteiro têm capacidade de aliviar a tensão quando surgem, as dificuldades de relacionar suas qualidades ou de lidar com o número de personagens ressaltam sobre seus pontos positivos gerando uma obra no mínimo desconjuntada (que não chega a ser sempre terrível). Quando somada ao complicado terceiro ato, que além de curto e apressado representa uma outra estética e dinâmica de todo o resto, torna-se complicado olhar com mais afeto as licenças tomadas por personagens e trama.

    Texto de autoria de Marcos Paulo Oliveira.

  • Crítica | Expresso do Amanhã

    Crítica | Expresso do Amanhã

    Expresso do Amanhã

    Os filmes sobre futuros pós-apocalípticos já constituem um gênero próprio no cinema. Por inúmeras razões diferentes, o planeta Terra já foi destruído e deu origem a diversas histórias sobre seus sobreviventes. Baseado na graphic novel francesa Le Transperceneige – escrita por Jacques Lob, Benjamin Legrand e Jean-Marc Rochette –, Expresso do Amanhã é o mais inventivo e surreal exemplar surgido nos últimos tempos.

    Dirigido pelo coreano Bong Joon-ho, responsável pelo maravilhoso O Hospedeiro, o filme tem como ponto de partida uma catástrofe ambiental que ocorre após um experimento fracassado que tinha como finalidade acabar com o aquecimento global e acabou dizimando praticamente toda a vida do planeta. Os poucos sobreviventes do evento cataclísmico vivem a bordo do Snowpiercer, um trem que roda todo o planeta em ciclos de 365 dias. Dentro da composição, há um desigual sistema de classes sociais em cada vagão. Porém, a classe mais pobre, que habita os vagões de trás, não está nada satisfeita com as condições que lhes são impostas e prepara uma revolução.

    Geralmente, existe uma certa dificuldade em unir estilo e conteúdo. Bong Joon-ho consegue com maestria essa união. O coreano é um craque e alguns diretores hollywoodianos deveriam aprender com ele. Na sequência da batalha com os encapuzados de machadinha, Joon-ho faz um magistral uso da câmera lenta sem em nenhum momento diluir a brutalidade do momento. Minutos depois, filma de maneira crua o prosseguimento da luta, usando o ponto de vista dos homens de capuz e seus óculos de visão noturna. Mais ainda, o diretor consegue transformar o trem em um personagem do filme, em vez de fazer dele um simples cenário. Outro ponto positivo é que em nenhum momento as emoções dos personagens são negligenciadas e nenhum close é gratuito. Tudo isso é filmado em um constante clima claustrofóbico.

    A cenografia do filme é muito interessante. Cada vagão tem uma “personalidade própria”, mesmo os mais simples que aparecem logo no início. Alguns são muito curiosos e belos, como o “vagão aquário” e o “vagão horta”. Entretanto, aquele que representa uma escola é especialmente perturbador. Os mais abastados são dotados de luxo, porém retratam a decadência da alta sociedade, numa clara analogia ao mundo real.

    O elenco do filme também é ótimo. Chris Evans faz o líder hesitante da revolução, em uma interpretação contida, mas marcante. Destaque para a cena em que ele expõe o que acontecia no trem no início da viagem. O ator faz um monólogo repleto de emoção sem cair na pieguice ou na canastrice. O veterano John Hurt interpreta com a habitual competência um ancião habitante do trem que serve como uma espécie de líder dos mais pobres e mentor de Evans. Song Kang-ho interpreta o homem que criou o sistema de portas do trem e é mantido prisioneiro. Sua atuação é completamente alucinada, já que seu personagem se viciou em uma droga chamada Kronol. Porém, quando é necessário que o tom seja mais dramático, Song não decepciona. Sua filha Yona, também viciada, é feita por Go Ah-sung em uma atuação que se assemelha a de Kang-ho. Ed Harris e Jamie Bell, respectivamente o idealizador da locomotiva e o fiel escudeiro do protagonista, entregam interpretações competentes, ainda que diferentes. Enquanto o primeiro consegue expressar bem a megalomania de seu personagem, o segundo demonstra muito bem toda a inquietação e a melancolia de seu papel, capaz de sacrificar tudo por seu melhor amigo, o protagonista (Chris Evans). Mas, o maior destaque é Tilda Swinton. Irreconhecível como uma espécie de chefe de segurança do trem, sua interpretação caricata ajuda a ressaltar o quão doentia a personagem é.

    Com um roteiro interessante e surreal executado com maestria por seu diretor, Expresso do Amanhã talvez seja o mais criativo filme de temática pós-apocalíptica que apareceu no cinema nos últimos tempos. Ficção científica de primeiríssima qualidade que merece todos os elogios que recebeu.

  • Crítica | Ninfomaníaca – Volume 2

    Crítica | Ninfomaníaca – Volume 2

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    Sem qualquer circunlóquio, Lars Von Trier continua a história de onde parou, mostrando a insatisfeita Joe (ainda interpretada por Stacy Martin) tendo o coito com seu objeto de desejo, mas ainda sem atingir o êxtase. Quando sua narração corta a trama, ela é mostrada em um flashback, com 12 anos, tendo um orgasmo espontâneo que a eleva a um transe e enxerga perto de si duas criaturas totêmicas relacionadas à religião. Logo, a questão do profano e do divino relacionados ao sexo é abordada novamente. Curiosamente, os último fatos narrados no capítulo anterior têm muito do lúdico e da coincidência, a qual é caracterizada como destino pela religião.

    A questão conflitante para a protagonista do épico é a completa ausência de sensações sexuais. Ela parece proibida de sentir prazeres após tanto buscá-los. Sua liberdade caíra graças à luxúria. Seligman (Stellan Skarsgård), como dito por ele mesmo, é assexuado e virgem, e por este motivo pode ser o melhor ouvinte para a história incomum e bizarra de Joe (Charlotte Gainsbourg). Os dois são lados opostos da mesma moeda, contrapartes um do outro, e por isso a química entre os dois funciona.

    Voltando às reminiscências, a mulher assume que este tempo foi um dos mais tranquilos, muito graças ao prazer negado a ela e a desobrigação de gozar. A vinda de um herdeiro parece reacender a chama da libido, mas logo a necessidade de mais e mais relações sexuais se agravava, a ponto de o casal tomar uma postura pouco ortodoxa. O pilar familiar que os personagens erguem para si é demasiado grotesco e pautado no sofrimento de tentar viver uma vida normal, mas distante demais das atitudes basicamente comuns, diante do que a sociedade julga normativo. Joe permanecia longe do orgasmo, mesmo com tal multiplicidade de parceiros.

    A tentativa de fazer um ménage à trois prova-se difícil de ser executada, ganhando ares de Babel, onde nem os que falam a mesma língua conseguem se entender. Tal confusão é exacerbada diante da simplicidade da ninfomaníaca em classificar os homens pelos nomes que secularmente possuem, não se preocupando com o politicamente correto. A discussão a respeito da abolição de alguns termos é valiosa, mas secundária diante do mundo de experiências que Joe está prestes a explorar, pois, na tentativa de reabilitar seu prazer, ela se submete aos cuidados de K, um homem que usa um método humilhante, violento e de pouca sensibilidade no tratamento. O impacto das agressões é tamanho que é difícil até identificar o que é mais impressionante, se é o barulho acarretado pelos golpes ou a vermelhidão da pele atingida, tingida pela dor do chicote. Sua curiosidade e incontrolável vontade superam até seus predicados maternos e a fazem pensar somente em suas necessidades físicas, ignorando o seu papel como mãe, desejando ardentemente o que lhe é proibido, o falo negado a ela. Quando finalmente encontra prazer na dor, o preço é alto: não poder ver o seu filho.

    O abuso físico que fazia de seu sexo teve consequências à saúde. O sangramento clitoriano serve, entre outras coisas, como uma tentativa da natureza do corpo de paralisar o esforço que ela insiste em ter. A obrigação de se unir ao grupo de apoio a faz tentar reprimir seus impulsos. Ao quase alcançar seu objetivo de “se limpar”, ela prepara o discurso, mas enxerga a contraparte mais nova, que, como o Superego, passa por cima do consciente e assume a postura de viciada em sexo. Sem medo do julgamento alheio e obsceno, porque gosta de ser obscena e porque ama a sua condição e desejo sexual, mesmo que toda a população a veja como uma condenada.

    As digressões de Seligman nem sempre funcionam, mas ajudam o espectador menos afeito ao tema da livre sexualidade entender o pervertido lado da mulher analisada, mostrando paralelos de vivências mais comuns para os episódicos acontecimentos do curioso cotidiano da protagonista. O rompimento com o contrato social é bem exemplificado, tanto pela explicação analógica do sujeito quanto pelo ofício que ela exerce, evidenciando, através de atitudes marginais, os mais recônditos segredos e perversões sexuais de seus alvos. Para grande surpresa, o roteiro ainda apresenta uma boa argumentação sobre tipos de sexualidades encaradas como monstruosidades pela humanidade, de até onde tais práticas devem ser proibidas.

    A interdição ao sexo faz o tabu do corpo finalmente se tornar algo palpável dentro de sua vida, logo no momento em que encontra P (Mia Goth), sua possível sucessora no ramo de inquirições, extorsões e torturas. A rejeição que Joe sofre dói e avassala a alma, sendo humilhada até por aqueles que colaboraram com os seus “pecados abomináveis”. Até os hábitos mais corriqueiros a traem; o final de sua trajetória é repleto de atos falhos.

    Em última instância, Joe é, de certa forma, uma continuação de um pedaço do corpo de She (de Anticristo); personagem de mesma intérprete, ela é o clitóris cortado pela mulher, o desejo e volúpia sem precedentes e sem barreiras, tentando viver plenamente o que acredita ser o melhor. O descanso e ausência de perturbação jamais a deixam, mesmo quando tudo parece ter mudado em sua vida. A decisão é difícil, a libertação que é viver pelo que se quer, mesmo quando tudo e todos apontam o contrário e a condenam.