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  • Crítica | A Infância de Um Líder

    Crítica | A Infância de Um Líder

    Em 2015 foi lançado nos cinemas um filme de temática bem curiosa. O desenrolar da historia começa com cenas de arquivo, do cinema mudo, onde as pessoas estão alegremente se despedindo de alguém, com uma trilha sonora frenética, cuja música incidental causa uma certa  angústia. O ponto de partida de  A Infância de Um Líder é a viagem de uma família dos Estados Unidos que vai até a Europa, na França, para assinar o Tratado de Versalhes, mas eles, em especial o menino Prescott –aliás, o único membro da família que possui um nome – interpretado por Tom Sweet, acabam presenciando uma estranha gênese de ideologia.

    O modo como a história se desenrola é a principio bem inocente, com a ambientação da família a esse novo lar. Logo, uma conversa séria sobre intolerância é travada entre Charles (Robert Pattinson) e o Pai  (Liam Cunningham), em que um deles defende até segregação racial e isso ocorre quando eles simplesmente jogam sinuca e bebem na casa de um deles. Ali já se estabelece que uma atmosfera estranha ronda o menino que protagoniza o drama, pois as conversas dos adultos apresentam argumentos que a priori não deveriam estar entre os diplomatas que assinarão um tratado tão importante para humanidade, principalmente por conta do ponto de vista civilizatório.

    O histórico de Brady Corbet é de ator. Já havia trabalhado com Olivier Assayas (Acima das Nuvens) com Lars Von Trier (Melancolia) entre outros diretores. Sua experiência com grandes cineastas claramente o auxilia na construção da tensão assim como na condução dos atores, que conseguem embalar o espectador dentro dessa aura de estranhamento e desconforto que é presente no roteiro de Corbet e Mona Fastvold. Nenhuma pessoa que fica na frente da câmera parece estar plena de suas faculdades mentais e sentimentos, é como se uma maldição pairasse sobre aquela casa.

    Prescott é um menino peculiar. Ao mesmo tempo que tem uma aparência angelical e quase feminina, ele é incapaz de proferir qualquer palavra. A maior parte dos momentos o garoto se comunica por gestos ou por olhares, alguns deles bem lascivos, bem pequeno ele já olha para sua cuidadora (chamada de The Teachar) interpretada por Stacy Martin como se fosse um mero objeto, devorando-a com os olhos, imaginando como ela ficaria por baixo das comportadas vestes que usa. Ele a vê com ciúmes quando a funcionária conversa com seu pai e essa é somente uma das demonstrações de como seu comportamento é diferente de uma criança comum.

    Corbet não se preocupa em falar do ponto de vista histórico, seu mergulho é psicológico, é na construção mental do passado de um sujeito que fez parte evidentemente de uma parcela significativa da historia do homem sobre a Terra mostrando que já no início da vida havia algo ali, uma insensibilidade digna dos personagens de filmes de terror. Há um texto bem legal sobre o filme, de uma entrevista/analise presente no site Pontos de Vistas, e a comparação que o autor faz de Prescott com Mike Myers do clássico Halloween de John Carpenter é acertada, embora também se notem semelhanças com o personagem do anti cristo Damian, de A Profecia. Paralelos de líderes fascistas com  o Anti-Cristo são comuns e não é à toa.

    Há um plano sequencia, onde a criança tenta se aproximar de uma conversa que seu pai tem como notáveis, em sua casa, a respeito evidentemente do tratado a ser assinado que evidencia algo um pouco perturbador. Seu progenitor pede que Prescott saia dali, pois era uma reunião formal ali, e não poderia ser interrompida por uma criança. A negação de um desejo foi acompanhada da câmera, que o leva até seu quarto, mas esse ato de rebeldia teria uma segunda parte, com o menino andando nu, vestido apenas de um casaco que não esconde suas partes intimas pelos corredores da casa, fato que faz o chefe da família se irar, com a atitude rebelde do menino. A atitude dele pode até ter sido inconsciente, mas claramente não é em vão, e mira um protesto informal a um movimento político que mira a igualdade entre povos, um marco para a época.

    Os momentos finais do filme mostram o menino agindo como um ser incapaz de ouvir os outros e de viver em sociedade minimamente. Nesse caso a autoridade dos pais é desafiada, mais poderia facilmente ser qualquer outro espectro da inteiração social comum ao homem. Ele se torna indócil, irascível, esperneia e não adere a qualquer normal comum a todos, e sua resposta a esse tipo de questionamento é a violência contra quem lhe é querido, cometendo inclusive um atentado contra a personagem de Berenice Bejo, que faz sua mãe. O numero mimado que o garoto faz ganha tons dramáticos e uma música forte, em clima de ópera, que vai crescendo até o final apoteótico, com direito até a um epílogo, que mostra o líder já adulto, sendo saudado pelas forças militares e pelo povo, que abraçava o autoritarismo, de maneira cega e sem maiores julgamentos, tal qual os empregados que tratavam o menino sem impor limites, rédeas ou ordens. Segundo A Infância de Um Líder, a historia é cíclica, tende a se repetir, e o desfecho deste é bem semelhante ao seu início.

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  • Crítica | Vox Lux

    Crítica | Vox Lux

    Vox Lux é um filme dividido basicamente em dois pedaços, um primeiro mais introspectivo e ligado ao passado da personagem principal, Celeste, e outro histérico e engraçado, sobre a fase adulta da mesma. Entre essas duas partes, há em comum a narração de Willem Dafoe, afirmando que aquela historia começou no ano de 1986, que se referiria ao nascimento da personagem, mas o chamado a aventura começa de fato em 1999, com o prelúdio.

    Celeste, vivida aqui por Raffey Cassidy, é chamada alegremente pela professora para que faça uma intervenção em discurso. A oração que a menina faria é interrompida por uma invasão, de um rapaz que Celeste conhecia e que era fã de heavy metal. O mesmo abre fogo na sala de aula, deixando a todos desesperados, alveja a professora depois, ele conversa com a protagonista e atira nela, para logo depois se matar. O projétil acerta a espinha da menina e ela milagrosamente sobrevive, apesar de quase ficar paralitica.

    Os créditos iniciais são mostrados de maneira bem criativa, e de certa forma emulam o modo como o restante da historia. Os rumos que a vida de Celeste e de sua Irmã Eleanor (Stacy Martin) toma é completamente imprevisível. Para celebrar a vida e a sobrevivência elas gravam uma música, composta pela irmã que não sofreu o agouro mais cantada pela que levou o tiro. Aos poucos, o hobby se torna um trabalho, ao ponto delas precisarem de sessões profissionais de gravação. É disposto a elas um produtor pessoal, um manager que é interpretado por Jude Law e ele permanece junto as duas o filme inteiro, e tal qual boa parte das pessoas que não estão no epicentro da egotrip em que o filme se torna, ele simplesmente não tem nome.

    Quando o incidente toca Celeste ela só tem 14 anos, e uma das pessoas que a assessora junto a gravadora, a publicitária Josie, interpretada por Jennifer Ehls, diz que futuras músicas não serão necessariamente sucessos. Essa questão é minimizada por Law, mas se nota um ressentimento por parte da garota, ainda nesta fase. Um fato ocorre, em meio a uma das turnês, Celeste se envolve com um roqueiro, que faz lembrar o repertorio musical do jovem que protagonizou o atentado contra si e desse encontro vem um fruto, talvez ai more o fator de virada na vida dela, o fato que consumou sua fama para alem de uma cantora mirim de um sucesso só.

    Vox Lux conversa muito com o filme anterior de Brian Corbet. Em comum com Infância de Um Líder, há a exploração psicológica da criança protagonista – aqui no caso, adolescente, mas vá lá – mostrando esses dois personagens infantis como algo além da simples presença fofa e inocente que é comum a esse tipo de abordagem. Nem Celeste e nem o protagonista do outro filme Prescott são ingênuos e há em ambos a sensação de que se está explorando a gênese de um mal, sendo na outra as raízes do fascismo governamental e neste a origem de uma artista mesquinha e egocêntrica, capaz de humilhar todos que a cercam.

    Quando Natalie Portman entra no filme como a versão diva pop de Celeste o caráter muda e esse é o tomo dois da historia. A base construída até então serve para mostrar o declínio moral que a personagem teve, se rendendo completamente egotrip provinda da fama repentina, além de julgar que os exageros e excessos típicos da fama fazem prejudicar principalmente o desempenho artístico e a criatividade da, agora, musa. No entanto o insucesso emocional da personagem é muito bem utilizado no filme, e seus devaneios causam muito riso.

    Não se sabe os motivos para a transformação que Celeste tem, se todo o conjunto de defeitos que  ela demonstra estava adormecido e a perda da inocência tão jovem fez isso aflorar sem freio ou se ela ganhou esses predicados com o tempo. O filme não se preocupa em dar uma origem a isso, e tal qual A Infância de Um Líder, não há qualquer receio em se dar uma origem certeira para o egoísmo, e nesse ponto, é um acerto enorme de Vox Lux, pois o texto julga a personagem mesquinha, assim como trata os seus seguidores como uma horda de idiotas sem critério e que consomem qualquer lixo que venha com uma embalagem colorida e atrativa, tal qual seria com Prescott.

    Ainda no começo do segundo ato, chamado de Regência, acontece outro atentado, com pessoas vestidas com máscaras do clipe Hologram, que era um dos trabalhos anteriores de Celeste antes desse que dá nome ao filme. Por mais que não assuma, Celeste sofre um baque por ter os símbolos da sua carreira ligados ao terrorismo, e essa retro alimentação do terror faz ela reagir emocionalmente de maneira imatura, se deixando levar pela raiva ao responder os impropérios da imprensa, mas sem perder a pose de inabalável. Seu derramar de alma e espírito acontece para poucos, para os seus.

    Apesar de nessa fase adulta ela ser vaidosa, vazia e egocêntrica, dramática e odiável, em especial com sua irmã que sempre esteve consigo e com sua filha Albertine, que também é feita Cassidy, é impossível não se sentir seduzido pela face de Celeste que Portman emprega, não só pela beleza da estrela de Cisne Negro e outros produtos, mas sim por seu carisma. O histrionismo e over acting são muito bem empregados e há alguns climaces seguidos, e por incrível que pareça eles não enfraquecem uns aos outros, só fortificam, transformando a bad trip da personagem em um mini número de opera, grandiosamente filmado aliás, com toda insegurança, ansiedade e catastrofismo que uma estrela pode exercer e ter.

    O finale, com a chegada do show Vox Lux, acontece com uma apresentação praticamente perfeita, que surpreende por funcionar apesar de toda fogueira de vaidades que permeia as quase duas horas do filme. Incrivelmente, as duas horas passam extremamente rápido, dada a gangorra emocional que se agrava nos momentos finais do filme. A camada superficial é extremamente divertida, mas suas outras camadas são profundas e reflete sobre o que faz sucesso e porque faz sucesso, através de um personagem cujo ego é grande e que conta com uma mente destruída e um espírito falido e que faz perguntar se há ali um pacto satânico.

    https://www.youtube.com/watch?v=dolxUIZzb3w

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  • Crítica | O Formidável

    Crítica | O Formidável

    Biografias de figuras ligadas ao cinema tem sido algo comum no mainstream. Hitchcock e The Girl falaram cada um de um aspecto do mestre do suspense Alfred Hitchcock, bem como Capote e Confidencial mostraram a intimidade do roteirista de Bonequinha de Luxo ao pesquisar para um novo livro. O Formidável tem uma pretensão que aglomera características de tais filmes, ao retratar a figura de Jean-Luc Godard (Louis Garrell), principal símbolo da Novelle Vague e do cinema francês de sua época.

    O diretor Michel Hazanavicious (O Artista) se baseou no livro autobiográfico Un an après, da atriz e ex-esposa de Godard, Anne Wiazemsky. A história se passa logo após o diretor francês lançar o filme A Chinesa, protagonizado por Anne, interpretada por Stacy Martin. O começo de longa se dedica a remontar os pensamentos ideológicos caros ao diretor considerado unanimidade perante crítica e público cinéfilo. Tal pensamento se fundamenta em duas vertentes: a primeira, a teoria marxista, a segunda o desejo de morrer jovem, sem ter a oportunidade de se tornar velho. Tal junção de ideias é curiosa, por simplesmente não casar entre si. Essa confusão é bem exemplificada pelas piadas metalinguísticas ligadas a obediência dos atores, que se colocam na posição de se auto denegrir.

    A figura pintada em torno de Godard é a de um sujeito bufão e o centro das risadas jocosas. Seu comportamento é estereotipado, como uma caricatura pintada por um autor que leva pouco em conta as qualidades do homenageado. Todos os comentários elogiosos estão nas bocas dos personagens periféricos, e não nas atitudes registradas pela câmera, fator que soa curioso, uma vez que a carreira e figura do diretor de Acossado é quase irrefutável para toda a atual geração de cineastas franceses, incluindo ai o condutor deste Formidável.

    Como havia sido em Ninfomaniaca, a nudez de Stacy Martin acaba tendo um papel importante na dramaturgia do filme, ainda que o motivo para tal seja muito diferente da duologia de Lars Von Trier, sendo aqui um artigo metalinguístico, que brinca, principalmente, com as discussões que Jean-Luc propunha sobre o uso ideológico do nu, ao seu ver, fato desnecessário. Até essa pequena questão serve para se fazer comentários a respeito da moralidade do personagem principal, uma vez que Godard é mostrado normalmente como um sujeito egocêntrico, frustrado e controlador, inclusive em seu relacionamento. Seu ciúmes serve, basicamente, como desculpa para seu bloqueio criativo, uma vez que ele não consegue mais filmar nada.

    Todas as tentativas de fazer um filme novo resultam em fracassos. Em alguns pontos, até o engajamento político do herói da jornada parecem justificar o fato de não conseguir entregar um produto novo. Ao ver suas obras meramente como produtos, o diretor se reconhece como um sujeito burguês, distante do proletariado que tanto defende.

    Godard não sofre de academicismo, mas ao longo dos 107 minutos do filme em que é tema, há um desenrolar dramático que o mostra basicamente como um sujeito que tenta ser um revolucionário, mas que está o tempo inteiro solitário na causa, mesmo quando está cercado por conhecidos. Basicamente, o diretor não teria com quem dialogar de igual para igual, não por uma questão intelectual, mas sim por ser um sujeito quase inatingível. Mesmo sua esposa parece pouco íntima do indócil cineasta.

    Próximo do final, distante de seu par, a personagem passa a ter hábitos mais simples, manobrando agora ele próprio a câmera que usa para registrar os protestos, diferente da frieza com que conduz as cenas de A Chinesa, no início do filme. O retorno as origens de um cinema mais simples é apenas um ensaio, já que claramente não há nem uma evolução espiritual e ou política de sua figura, tampouco uma reconstrução de um estado mais humilde de sua figura.

    Em O Artista, Hazanavicious tencionava trazer um retrato do que era o cinema mudo, resgatando clichês para mostrar uma história trivial e barata, que tinha por interesse retomar os primórdios do cinema. Bem ou mal seu intuito foi atingido e a obra se tornou uma história reverencial, já O Formidável não alcança isso, mesmo porque o seu foco é na visão de Anne sobre seu antigo marido. A carga de ressentimento traduzido frente as câmeras é tanto que parece deturpar a humanidade e falibilidade do personagem. Ao espectador desavisado, a produção é quase um desserviço, uma vez que traça um perfil de Godard resumida a um sujeito temperamental, mimado e vitimado de gracejos e piadas do roteiro.

  • Crítica | Ninfomaníaca – Volume 2

    Crítica | Ninfomaníaca – Volume 2

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    Sem qualquer circunlóquio, Lars Von Trier continua a história de onde parou, mostrando a insatisfeita Joe (ainda interpretada por Stacy Martin) tendo o coito com seu objeto de desejo, mas ainda sem atingir o êxtase. Quando sua narração corta a trama, ela é mostrada em um flashback, com 12 anos, tendo um orgasmo espontâneo que a eleva a um transe e enxerga perto de si duas criaturas totêmicas relacionadas à religião. Logo, a questão do profano e do divino relacionados ao sexo é abordada novamente. Curiosamente, os último fatos narrados no capítulo anterior têm muito do lúdico e da coincidência, a qual é caracterizada como destino pela religião.

    A questão conflitante para a protagonista do épico é a completa ausência de sensações sexuais. Ela parece proibida de sentir prazeres após tanto buscá-los. Sua liberdade caíra graças à luxúria. Seligman (Stellan Skarsgård), como dito por ele mesmo, é assexuado e virgem, e por este motivo pode ser o melhor ouvinte para a história incomum e bizarra de Joe (Charlotte Gainsbourg). Os dois são lados opostos da mesma moeda, contrapartes um do outro, e por isso a química entre os dois funciona.

    Voltando às reminiscências, a mulher assume que este tempo foi um dos mais tranquilos, muito graças ao prazer negado a ela e a desobrigação de gozar. A vinda de um herdeiro parece reacender a chama da libido, mas logo a necessidade de mais e mais relações sexuais se agravava, a ponto de o casal tomar uma postura pouco ortodoxa. O pilar familiar que os personagens erguem para si é demasiado grotesco e pautado no sofrimento de tentar viver uma vida normal, mas distante demais das atitudes basicamente comuns, diante do que a sociedade julga normativo. Joe permanecia longe do orgasmo, mesmo com tal multiplicidade de parceiros.

    A tentativa de fazer um ménage à trois prova-se difícil de ser executada, ganhando ares de Babel, onde nem os que falam a mesma língua conseguem se entender. Tal confusão é exacerbada diante da simplicidade da ninfomaníaca em classificar os homens pelos nomes que secularmente possuem, não se preocupando com o politicamente correto. A discussão a respeito da abolição de alguns termos é valiosa, mas secundária diante do mundo de experiências que Joe está prestes a explorar, pois, na tentativa de reabilitar seu prazer, ela se submete aos cuidados de K, um homem que usa um método humilhante, violento e de pouca sensibilidade no tratamento. O impacto das agressões é tamanho que é difícil até identificar o que é mais impressionante, se é o barulho acarretado pelos golpes ou a vermelhidão da pele atingida, tingida pela dor do chicote. Sua curiosidade e incontrolável vontade superam até seus predicados maternos e a fazem pensar somente em suas necessidades físicas, ignorando o seu papel como mãe, desejando ardentemente o que lhe é proibido, o falo negado a ela. Quando finalmente encontra prazer na dor, o preço é alto: não poder ver o seu filho.

    O abuso físico que fazia de seu sexo teve consequências à saúde. O sangramento clitoriano serve, entre outras coisas, como uma tentativa da natureza do corpo de paralisar o esforço que ela insiste em ter. A obrigação de se unir ao grupo de apoio a faz tentar reprimir seus impulsos. Ao quase alcançar seu objetivo de “se limpar”, ela prepara o discurso, mas enxerga a contraparte mais nova, que, como o Superego, passa por cima do consciente e assume a postura de viciada em sexo. Sem medo do julgamento alheio e obsceno, porque gosta de ser obscena e porque ama a sua condição e desejo sexual, mesmo que toda a população a veja como uma condenada.

    As digressões de Seligman nem sempre funcionam, mas ajudam o espectador menos afeito ao tema da livre sexualidade entender o pervertido lado da mulher analisada, mostrando paralelos de vivências mais comuns para os episódicos acontecimentos do curioso cotidiano da protagonista. O rompimento com o contrato social é bem exemplificado, tanto pela explicação analógica do sujeito quanto pelo ofício que ela exerce, evidenciando, através de atitudes marginais, os mais recônditos segredos e perversões sexuais de seus alvos. Para grande surpresa, o roteiro ainda apresenta uma boa argumentação sobre tipos de sexualidades encaradas como monstruosidades pela humanidade, de até onde tais práticas devem ser proibidas.

    A interdição ao sexo faz o tabu do corpo finalmente se tornar algo palpável dentro de sua vida, logo no momento em que encontra P (Mia Goth), sua possível sucessora no ramo de inquirições, extorsões e torturas. A rejeição que Joe sofre dói e avassala a alma, sendo humilhada até por aqueles que colaboraram com os seus “pecados abomináveis”. Até os hábitos mais corriqueiros a traem; o final de sua trajetória é repleto de atos falhos.

    Em última instância, Joe é, de certa forma, uma continuação de um pedaço do corpo de She (de Anticristo); personagem de mesma intérprete, ela é o clitóris cortado pela mulher, o desejo e volúpia sem precedentes e sem barreiras, tentando viver plenamente o que acredita ser o melhor. O descanso e ausência de perturbação jamais a deixam, mesmo quando tudo parece ter mudado em sua vida. A decisão é difícil, a libertação que é viver pelo que se quer, mesmo quando tudo e todos apontam o contrário e a condenam.

  • Crítica | Ninfomaníaca – Volume 1

    Crítica | Ninfomaníaca – Volume 1

    Nymphomaniac

    Lars Von Trier usa a carreira de realizador de filmes para demonstrar algumas facetas bastante reais do ser humano, ainda que as que ele escolha sejam, na maioria das vezes, as mais inconvenientes segundo o ponto de vista de  parte esmagadora da população mundial alinhada com o conservadorismo e o ideal da moral e dos bons costumes. Restringindo o argumento a sua filmografia recente, pode-se exemplificar essa máxima com a discussão sobre o fim da humanidade de um ponto de vista inconveniente e deveras cínico em Melancolia; a problemática da inocência e complacência dos cidadãos comuns e simplórios diante do sofrimento alheio e do senso de justiça que movem essas pessoas no excelente Dogville; e a questão do papel do homem e da mulher no conjunto sexual da natureza. A dualidade de Ninfomaníaca não passa muito longe disso, e aborda outras tantas formas de enxergar a sexualidade e a necessidade de dar vazão a ela.

    Dividido em capítulos, o roteiro não tem medo ou receio de acarretar o choque no espectador, esfregando conceitos freudianos no rosto de quem assiste ao filme. As sensações sexuais de prazer não afloram somente na puberdade, mas vêm desde a infância para a pequena Joe, que, mesmo não se achando uma pessoa religiosa, auto intitula-se uma pecadora graças aos seus atos e à obsessão pelos limites do seu próprio corpo. A narração da protagonista já adulta, vivida por Charlotte Gainsbourg, dá a história biográfica um ar de confessionário, em que a mulher conta as suas memórias como se procurasse uma remissão por seus atos maus ou uma justificativa ao fazê-los – aparentemente.

    As primeiras experiências movidas pelo ato sexual, com Jerôme (Shia LaBeouf), deixam-na envergonhada por terem sido tão velozes e efêmeras, e, como uma super-correção, sua busca envolve uma contestação que visa chegar a uma satisfação por meio de uma grande quantidade de parceiros de coito. O prêmio do concurso, o saco de chocolates, faz referência à infância perdida, mas é uma clara distração para a sua real procura, que ainda aflora na forma de uma primitiva sexualidade. Mesmo com a inexperiência, ela encontra uma especialidade, uma arma final para atingir seu alvo.

    Diante da figura do mentor, Seligman (Stellan Skarsgård), ela implora pelo veredito de culpa, mas o sujeito, que a encontrou ao léu na rua, não a vê assim, não condena a sua feminilidade nem o seu poder sobre o falo: se um pássaro tem asas, por que não voar?. Nos relatos de sua juventude, vivida por Stacy Martin, em diversos estágios há uma união entre as mulheres contra o sentimento do amor, que seria somente um misto de luxúria e inveja, enquanto o sexo era algo “criminalizado”. A declaração delas visava a extinção do sentimento, o apego a figuras sentimentais, como namorados ou homens fixos.

    A questão de Joe não é uma parafilia, uma doença a qual ela refuta, ao menos não no início. Sua postura caracteriza-se pela decisão de dar vazão à libido e sensualidade, inclusive achando um avatar para o seu objeto de esforço bélico. Jerôme, antes chamado de J, seu primeiro homem e agora patrão, era o alvo de ódio e desprezo da protagonista. Mas, aos poucos, tal associação muda até que se perde de vez, tornando a mulher ainda mais desejosa daquele a quem ela primeiro rejeitou. Suas fantasias a seu respeito a envolvem, e não permitem outro alvo até o fim do segundo capítulo, em que ela declara seu fascínio por diferentes formas e tamanhos de falos, provando um pouco de cada um.

    O asco de Joe pelo sentimentalismo que acompanhava alguns de seus parceiros não invalida a situação constrangedora e tragicômica de ter de enfrentar a passiva esposa – vivida por Uma Thurman em uma atuação arrebatadora – de um de seus amantes, o qual decide viver com Joe. Em uma situação vergonhosa e doentia, as motivações da mulher abandonada são apresentadas na forma de uma conduta tão agressiva e insana que até os motivos de sua visita não são claros. A demolição do estandarte de uma família ainda não a faz sentir-se culpada. O vício não se assinalava na necessidade de se saciar, mas na luxúria, não conseguindo esconder seu eterno estado de solidão.

    A queda de sua figura de espelho causa nela uma sensação atroz de desespero e necessidade por uma fuga daquela realidade, mas nem seus escapes a livram do exaspero e do sofrer. Com o enfrentamento das figuras amedrontadoras e com a descoberta de que aquela condição viria para ficar, temor e tesão se fundem, e tal amálgama a faz sentir-se envergonhada.

    Curiosa é a forma como a câmera registra os “preferidos” de Joe, cada um à sua maneira, sendo tão singular que quase não há a necessidade de diálogos para descrever cada uma das distintas posturas. O dócil F (Nicolas Bro) é filmado em planos abertos, enquanto o dominador G (Christian Gade Bjerrum) é mostrado de maneira erotizada, cujas zonas do belo sexo são cortadas e não enquadradas. Mas é Jerôme quem desperta nela a real e mais plena forma de transar, elevando a frase dita ao pé de seu ouvido em uma máxima real: que o prazer maior do sexo é quando este é executado com amor, momento em que ela não consegue sequer alcançar o gozo, mostrando que sua caça, do ponto alto e idealizado do romance, não atingiu o ápice com o cavaleiro andante moderno. Não como na primeira vez.

    O fim abrupto está longe de ser algo perfeito, mas consegue desenvolver no espectador a vontade de assistir ao segundo volume. A sensação de interrupção no momento do orgasmo – simbolizado pela quebra de expectativa da revelação do segredo – é notória e muito difícil de evitar, especialmente para quem acompanha o trabalho de Von Trier. A avaliação da película em si precisa ser feita como a exploração de um arco, em uma história enorme que não pode ser contida em um único filme.