Tag: Casey Affleck

  • Crítica | A Luz no Fim do Mundo

    Crítica | A Luz no Fim do Mundo

    Casey Affleck é mais conhecido por seus trabalhos como ator, mas já havia dirigido curtas e um longa, o mocumentário Ainda Estou Aqui que mostrava Joaquin Phoenix em uma estranha experiência de abandono de sua carreira como ator para ser um rapper. A Luz no Fim do Mundo reúne as duas facetas de Affleck, como condutor de filmes e como astro desse que narra uma historia pós apocalíptica, onde a população feminina praticamente inexiste.

    Seu personagem tem a ingrata missão de cuidar de sua filha, Rag (Anna Priowsky), uma das poucas moças que sobreviveram a pandemia geral, fato que a torna rara e cobiçada obviamente. A relação entre pai e filha é bem carinhosa. Eles conversam muito e sempre estão dedicando carinho um ao outro, embora hajam atritos no trato entre os dois.

    As atuações do elenco são boas, e pontuam bem o inicio do filme, bastante tocante e singelo, a um significado bem legal para o nome original do longa (Light of My Life) e realmente se representa isso,  com a menina dando um bom motivo para seu pai seguir vivendo apesar das perdas que sofreu. O cuidado que ele tem para esconder a moça e para manter o cabelo baixo – menor ainda que o  seu – para não causar suspeita é só uma mostra das preocupações do sujeito.

    Casey não é tão habilidoso e experimentado como cineasta  quanto seu irmão, Ben Affleck, mas ele claramente quer falar de vários assuntos, uma vez que esse é bem diferente do longa anterior, bem como tem diferenças cabais de sua próxima produção, Far Bright Star, adaptação do livro de Robert Olmstead onde um grupo de aventureiros caça Pancho Villa.

    O filme se baseia demais nas atuações, e normalmente, quando não há muitas  discussões entre os dois principais personagens o que se assiste é um marasmo, uma calmaria entediante que prepara o espectador e os personagens para eventos que podem ser terríveis. Vale muito pela reflexão sobre o homem que tem que equilibrar seu estado emocional depressivo com os afazeres e cuidados com uma adolescente dita normal, e que é “perseguida” exatamente por essa  condição de normalidade.

    Os momentos finais causam sufoco e emoção, mas há uma mão bem pesada tanto na direção quanto no roteiro. Todo o drama pontuado pela música de Daniel Hart é esticado demais, mas seus momentos derradeiros são cortados por uma emoção bem forte, com conseqüências graves pros personagens que o público acompanhou durante as quase duas horas. Não fosse por essa questão de esticar o drama, Luz do Fim do Mundo poderia ser maior do que é, conseguindo ser mais certeiro em seu modo de registrar esse mundo diferente, violento e perseguidor aos que são diferentes.

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  • Crítica | Sombras da Vida

    Crítica | Sombras da Vida

    Apesar do terrível nome brasileiro – A Ghost Story, no original – Sombras da Vida é um longa que captura demais a atenção do espectador, ainda mais ávido por boas historias. O longa de David Lowery infelizmente não chegou aos cinemas brasileiros, mas é um belo exemplar de filme intimista e com muito a se discutir.

    O diretor de Amor Fora da Lei e do recente Meu Amigo Dragão traz a história de um ser que não consegue fazer a passagem para o outro mundo de maneira fluida. A história começa mostrando um casal vivido por Casey Affleck e Rooney Mara, que vivem em uma casa ampla, grande demais para um casal, e tem seus dias repletos de uma intimidade que não inclui muita conversa.

    Uma tragédia os acomete, e a moça fica sozinha, na casa e na vida, e a outra parte do casal se levanta, já defunto, levando o lençol que o cobria no leito hospitalar. Seguindo seus instintos mais básicos, ele retorna a tal casa, e fica por ali, por não saber exatamente o que fazer. Nesse ínterim, o tempo se confunde com a existência, há retornos e avanços na linha cronológica, que vão longe e permeiam também os momentos não só da vida do sujeito como pós-morte e até antes de sua existência. É como se a passagem para o limbo entre o mundo espiritual e o carnal propiciasse um novo tipo de existência, embora só sobrem os instintos, e até esse conceito de existir seja absolutamente discutível.

    Incrivelmente o filme tem pouquíssimos diálogos, é contemplativo, mas não parece pretensioso ou enfadonho, ao contrário, mesmo no silêncio é praticamente impossível não se afeiçoar a figura carente e desolada que nem expressão tem, pois o homem a ser reduzido aos mais básicos sentimentos, se torna universal, torna suas dores reais e indiscutivelmente tangíveis e de fácil compreensão, e isso ocorre demais aqui, mesmo que esse não seja um filme feito para o grande público.

    O cinema de Lowery é inteligente, sagaz e repleto de significados. Sombras da Vida talvez seja o ápice de sua curta carreira de cineasta nesse sentido, pois é simples em forma e profundo em conteúdo. O equilíbrio entre pragmatismo e escapismo é impressionante, e indiscutivelmente esta é uma pérola do cinema recente, muito menos falada do que merecia.

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  • Crítica | Manchester à Beira Mar

    Crítica | Manchester à Beira Mar

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    Muita expectativa cercava o filme dirigido por Kenneth Lonergan, especialmente pelas ótimas recepções de pública e crítica no Festival de Cannes, fato que o credencia para uma boa corrida ao Oscar de 2017. Manchester à Beira-Mar (Manchester By the Sea) tem uma linha temporal pouco usual e viaja entre períodos crônicos diversos, sem vinhetas para demonstrá-lo, fato que já exige do público uma maior atenção. A trama acompanha a rotina de Lee Chandler (Casey Aflleck), um zelador  de Boston, que esconde um passado sombrio por trás de uma personalidade anti social, usando essa como mecanismo de defesa perante o mundo hostil.

    O chamado à aventura é uma via tortuosa. Lee se vê obrigado a viajar para Manchester, a fim de cuidar de seu sobrinho, Patrick (Lucas Hedges), que está sozinho desde a morte de seu paí Joe (Kyle Chandler), graças a uma doença degenerativa que habita o imaginário familiar. É impressionante a riqueza de detalhes dos dois parentes, mesmo em pouca minutagem de tela, sendo Patty um adolescente carismático e interessante mesmo com a pouca idade e o falecido Joe um irmão que ajudou muito o protagonista quando este se via em uma situação de desolação.

    A profissão de zelador e faz tudo anuncia na forma de falta de especialização a completa indecisão do personagem em não conseguir decidir um rumo para sua vida. Seu profissionalismo é elogiado por seus patrões mas sua hostilidade o afasta de qualquer relação comum e minimamente hordeira. Em alguns momentos, ele parece um homem incapaz de mostrar sentimentos, como havia sido o personagem Nick Dunne em Garota Exemplar, vivido pelo irmão do interprete de Lee Ben Affleck, mas não é o caso dele, que contém em si uma culpa tremenda que o faz ser incapaz de expressar afeto até pelos poucos parentes que lhe restam. A riqueza de detalhes nas expressões, palavras e atitudes do personagem remetem a um conteúdo de discussão muito intenso, e empático absurdamente, especialmente para quem já se viu em situações limites como este.

    Lonergan usa o arquétipo do homem inabalável consagrado pelo cinema clássico americano para mostrar uma história cara e de emoções rasgantes. O sujeito forte e macho alfa dá lugar ao homem que tem que lidar com a culpa, perda e demais responsabilidades da vida adulta. As tragédias estabelecidas no filme não são tratas a uma moda banal e estapetacular e justificam plenamente a incapacidade de Lee em sentir (ou demonstrar esse sentir) além de seu silencio a respeito do todo.

    Os fatores mais impressionantes são a delicadeza e concisão de Lonergan ao retratar um drama que poderia facilmente se tornar piegas, além é claro da entrega absurda de Casey Affleck no papel principal, reunindo em si muitos homens em muitas sensações e situações terríveis, sendo ele capaz de apresentar todo esse conjunto de rejeições, acusações e adjetivações fazendo todas essas caracterizações fazerem sentido. Desde as brigas de bar quanto a inércia e anestesia até mesmo no flerte com mulheres é plenamente cabível, tanto em background quanto em atitudes.

    A custódia entregue ao personagem serve para reavivar todos os traumas, além de causar no herói falido mais uma vez o desejo de não existir. Existe um ensaio de superação, mas que não alcança êxito em momento algum. A mensagem principal em Manchester à Beira Mar envolve a continuação da existência mesmo após a destruição por completo do status quo, elucubrando sobre uma questão grave de depressão através da tentativa simples de se viver após ter todas as coisas, bens e pessoas tiradas sem qualquer chance de reversão de papel, além de não cair na falácia de que tudo ficará bem após os eventos ocorridos, fato que torna o filme ainda mais maduro, realista e interessante.

  • Crítica | Polícia em Poder da Máfia

    Crítica | Polícia em Poder da Máfia

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    John Hillcoat é um diretor que se tornou famoso pela crueza e pela intensidade de seus filmes. Oriundo dos videoclipes, desenvolveu alguns projetos com o músico Nick Cave, e acabou entrando de vez na rota de Hollywood ao enfileirar os ótimos A Estrada – baseado em um livro de Cormac McCarthy – e Os Infratores, com roteiro de Cave e estrelado por Tom Hardy e Shia LaBoeuf, até regressar com Polícia Em Poder da Máfia. Infelizmente, esse último não consegue chegar ao mesmo nível dos anteriores.

    Na trama escrita por Matt Cook, um grupo de assaltantes de bancos formado por ex-militares e policiais corruptos está sob constante chantagem da máfia russa. Após assaltar um banco para recuperar uma caixa de segurança que se encontrava dentro de um cofre, a organização exige que eles façam um último e arriscado serviço: resgatar alguns documentos num prédio governamental. Como o edifício tem um forte esquema de segurança, a quadrilha de assaltantes decide executar um policial, que recentemente tornou-se parceiro de um deles, e provocar um código 999 (referente a policial morto), uma vez que toda a força policial convergiria para o local do assassinato, deixando o caminho livre para o roubo ao prédio governamental.

    O roteiro de Cook até funciona durante um tempo, mas o excesso de personagens em tela acaba sendo prejudicial, uma vez que alguns são subdesenvolvidos. As relações interpessoais giram sempre em tornos de clichês, tais como policial veterano dando lições constantes ao novato, a mafiosa que só “dialoga” ameaçando ou dando ultimatos, os bandidos que se agridem durante o tempo todo. Outro problema: tudo é muito fugaz. Planos que deveriam ser melhor trabalhados são resolvidos rapidamente e não convencem, com exceção de algumas relações ambíguas que em determinado ponto acabam soando estranhas, e personagens que possuem comportamentos que não são condizentes com a personalidade que apresentam em tela durante boa parte da projeção.

    Porém, o bom argumento só se mantém até a primeira metade do filme. Nesse período, Hillcoat mostra-se como o ótimo diretor que demonstrou ser até o momento e constrói uma história tensa em que o espectador fica se perguntando sobre o que vai acontecer a seguir. A cena inicial mostrando o roubo ao cofre é sensacional e muitíssimo bem executada. Remete à cena de abertura do excepcional Fogo Contra Fogo, dirigido por Michael Mann. Porém, toda a tensão construída até o meio do filme vai se esvaindo, pois o restante abusa de soluções fáceis de roteiro. Ainda que não seja uma película curta em relação a outras obras do gênero, fica a impressão de que a produção deveria durar ao menos duas horas, para que tudo o estabelecido na primeira hora se solucione com maior qualidade e os personagens não aparentem tamanha unidimensionalidade.

    O extenso elenco conta com boas atuações de Chiwetel Ejiofor, Woody Harrelson, Anthony Mackie e Casey Affleck. Os três últimos, intérpretes de policiais na trama, são bem contrastantes entre si, sendo profissionais em diferentes momentos e situações da carreira. Clifton Collins Jr. e Aaron Paul sucumbem respectivamente aos estereótipos do policial corrupto e do junkie amargurado. Já Kate Winslet é uma caricatura ambulante como a matriarca da máfia russa. A bela presença de Gal Gadot serve somente como decoração, pois sua personagem tem pouquíssimo tempo de tela e praticamente não interfere no andamento do filme; já Norman Reedus tem uma participação breve, mas competente como sempre.

    Em resumo, Polícia Em Poder da Máfia tinha grande potencial para se tornar um épico do cinema policial, porém sucumbe a um roteiro cuja peça final é má desenvolvida, o que talvez justifique sua duração insuficiente e o acúmulo de respostas fáceis em que se apóia.

  • Crítica | Horas Decisivas

    Crítica | Horas Decisivas

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    Baseado no livro homônimo de Casey Sherman e Michael J. Tougias – com roteiro de Scott Silver e Paul Tamasy, e direção de Craig Gillespie – o filme conta a história, ocorrida em 1952, do naufrágio de dois petroleiros durante uma nevasca na costa de Cape Cod, Nova Inglaterra. Um barco de pequeno porte da Guarda Costeira consegue resgatar boa parte da tripulação de um deles, o SS Pendleton. O navio foi partido ao meio durante a tempestade, e a tripulação restante na metade que não submergiu luta para mantê-lo flutuando enquanto aguarda o resgate incerto.

    Uma vez que os oficiais do SS Pendleton estavam na parte que afundou, coube ao primeiro-engenheiro, Ray Sybert (Casey Affleck), a responsabilidade de orientar e comandar o restante da tripulação a fim de evitar o desastre iminente. Enquanto isso, no litoral de Massachussets, em Chatham, o oficial Daniel Cluff (Eric Bana) ordena que o capitão Bernie Webber (Chris Pine) organize uma operação de resgate apesar das condições adversas – por que não dizer? – suicidas.

    É uma temática que, mesmo sem saber qual estúdio produziu, seria fácil identificar como “filme Disney”. Há ali toda a ideologia de superação, de trabalho em equipe, de perseverança característicos das produções do estúdio. Os temas não são problema. O problema é a forma como são explorados no filme, do modo mais clichê possível, com frases de efeito que poderiam estar em para-choques de caminhão. E ainda há o agravante de que, por ser baseado em fatos reais, o espectador já começa a assisti-lo sabendo que os personagens terão sucesso e sobreviverão. Parte da tensão e do suspense já se vai aí.

    A narrativa alterna entre o navio prestes a afundar e Bernie com seus companheiros enfrentando o mar furioso em um barco diminuto. O que ocorre com a tripulação é extremamente tenso, com ótimas sequências de ação e momentos de suspense, contando com uma boa atuação de Affleck e dos demais, que conseguem manter o público interessado no futuro desses personagens. Por outro lado, Bernie é um personagem fraco, interpretado por um ator que carece de carisma, não conseguindo dar a Bernie a importância devida e, provavelmente por conta disso, incapaz de causar empatia com o público. Sem contar que o filme se inicia como se fosse uma história de romance água-com-açúcar, algo que talvez desencoraje muitos a continuar a vê-lo. E mesmo a única cena tensa na pequena embarcação – quando estão tentando ultrapassar os bancos de areia – perde força, pois já sabemos que eles conseguirão. Os roteiristas despenderam tempo mostrando as inúmeras tentativas de Bernie, enquanto poderiam ter optado por prolongar as cenas da tripulação do navio, onde realmente estava a tensão da narrativa.

    Não há dúvida de que os personagens são estereotipados. De um lado, Bernie, um oficial cujos companheiros não confiam e que não consegue impor respeito, principalmente por fazer tudo conforme as regras, mas que no final se redime ao tomar atitudes que garantem o resgate dos 32 tripulantes. De outro, Sybert, o engenheiro confinado à sala de máquinas do petroleiro, desprezado pelos demais e que acaba se tornando o herói relutante, por ser o único em condições de juntar a tripulação, já que era o único a ter ideia do que fazer para mantê-los vivos. A diferença é que Affleck dá a Sybert tridimensionalidade e torna-o um personagem que gera interesse do público. Enquanto que a atuação de Pine não muda de tom, mesmo depois de infringir as regras para efetuar o resgate ou após conseguir resgatar a todos.

    Ainda que visualmente o filme seja agradável, com a direção de fotografia de Javier Aguirresarobe – conhecido por seu trabalho em Os Outros -, o roteiro falha em manter o ritmo da narrativa, resultando em excessos que dão vontade de abandonar a história antes do desfecho. E se a fotografia é boa – exceto nas cenas românticas -, o mesmo não se pode dizer da trilha sonora que, excessiva, quer se fazer presente a qualquer custo, insistindo em conduzir os sentimentos do espectador.

    Longe de ser um épico, longe mesmo de ser memorável, é uma aventura Disney que enaltece o heroísmo e o espírito de equipe. Deixe-se assistir, apesar do romance mal encaixado e da falta de ritmo nas cenas do barco de resgate.

    Texto de autoria de Cristine Tellier.

  • Crítica | O Assassino Em Mim

    Crítica | O Assassino Em Mim

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    Em uma pequena cidade do Texas, em meados dos anos 1950, o sub-xerife Lou Ford está diante de um impasse. Atendendo aos pedidos da população, precisa dar um ultimato a uma moradora que mudou-se recentemente para o local, mesmo que não se sinta motivado para tal. Porém, a preservação dos bons costumes e a manutenção da ordem o obrigam a ir até a casa desta mulher, cuja profissão é deitar com outros homens por dinheiro e prazer, e pedir que saia gentilmente da cidade. O próprio sub-xerife se considera um homem honesto, trabalhador e com poucos vícios mas, ao ver a figura curvilínea de Joyce Lakeland, decide deixar estas qualidades de lado, cedendo a tentação inevitável.

    A história de O Assassino em Mim se baseia na obra homônima de Jim Thompson, autor americano reconhecido pela crueza de suas histórias. A trama é apresentada pela própria personagem central em uma narrativa em off que expõe seus conflitos internos. Porém, mais do que um recurso de estilo, cada acontecimento em cena também é filtrado pela visão do xerife, transformando o público em testemunha ocular da visão particular do xerife.

    O senso de realidade é manipulado pelo personagem central, dando-nos a impressão de que, a princípio, temos apenas um conflito breve de um homem da lei que se entrega aos desígnios de uma mulher. Somente no desenrolar da ação, conforme adentramos o cotidiano de seus pensamentos, compreendemos a motivação direta de Ford. Um ponto de vista que transforma a brutalidade de pesadas ações violentas em atos comuns, como se a conduta da personagem não estivesse errada ou fosse agressiva.

    Diante de tantas obras que acompanham a personagem da lei, Thompson se aprofunda em uma mente obtusa incapaz de reconhecer seu desvio do comportamento normal. Dentro de sua psique, as reações extremas são consideradas naturais e, por consequência, estas impressões são passadas ao público. O choque que recebemos vem da incredulidade, do absurdo e da frieza do sub-xerife ao tratar suas agressões e assassinatos como meras imperfeições de caráter que podem ser corrigidas com força de vontade e um número mínimo de vítima.

    Através da personagem, a trama também situa o público no coração americano, em um universo de falsos bons costumes e preconceitos morais enraizados. O ambiente também é responsável pela repressão psicótica que a personagem retinha até então. Por flashbacks que retomam sua infância, observamos que, desde o princípio, havia um desnível em seu caráter que foi expandido após perder laços familiares e não mais conseguir conter a fúria interna.

    Interpretado por Casey Affleck, a dose de fúria e sutileza da personagem é bem desenvolvida, demonstrando como o ator é muito mais denso do que seu irmão famoso. O jeito franzino, os traços suaves e a voz um tanto arranhada se modificam quando o seu demônio interno assume e guia-o. O Assassino em Mim é um interessante estudo sobre como funciona a mente desviada a partir de sua própria visão do mundo exterior, uma história que também merece ser lida na narrativa original de Thompson.

  • Crítica | Interestelar

    Crítica | Interestelar

    Interestelar

    Desde que o primeiro homem andou sobre esse planeta, o céu e as estrelas exercem uma fascinação na espécie como nenhum outro fenômeno da natureza. Não à toa, praticamente todos os povos terrestres tinham como deuses planetas e estrelas, dadas sua magnitude, distância e beleza. Portanto, nada mais natural que, na era moderna, as artes tentem reproduzir esse senso de admiração pelo desconhecido. Dentre todas, o cinema é a que chega mais próxima de construir e reproduzir essas sensações para o público dito “comum”, que em meio à correria do dia a dia, mal tem tempo de olhar para o lado, quanto mais para cima.

    Desde Georges Méliès, passando pelo sempre cultuado 2001 – Uma Odisseia no Espaço, Contatos Imediatos de Terceiro GrauContato e, mais recentemente, por Gravidade, o Universo exerce um fascínio por sua exuberante beleza, ao mesmo tempo que assusta por suas escalas inimagináveis de grandeza e a sensação de que, ali, estamos perto de ser literalmente nada. Ciente de todas essas questões, o cultuado diretor britânico Christopher Nolan se lançou em uma empreitada arriscada, a de fazer uma história que se passa nesse cenário e que, ao mesmo tempo, possa emplacar um sucesso comercial.

    Interestelar gira em torno do piloto Cooper (Matthew McConaughey), que cuida de sua fazenda no interior dos EUA junto a sua família. Em um futuro não muito distante, que flerta com uma distopia onde a humanidade não foi destruída, mas passa por dificuldades e tenta viver normalmente, a sociedade não precisa mais de engenheiros e pilotos, pois a exaustão natural do planeta, junto ao crescimento da população, provocou a escassez de comida, sendo essa a atual função de Cooper, que nunca superou o fato de não ter levado adiante sua vocação. Sua filha, Murph (Mackenzie Foy/Jessica Chastain/Ellen Burstyn), mostra uma grande inteligência e inclinação para a ciência, enquanto seu filho, Tom (Timothée Chalamet/Casey Affleck), se mostra contente em seguir seus passos de fazendeiro, tudo aos cuidados do pai de sua falecida esposa, Donald (John Lithgow).

    Cooper tenta ao máximo se esforçar para cumprir suas tarefas como fazendeiro e pai, mas a frustração de não ser piloto sempre o impede de dar a tudo a atenção e importância que merecem. A passagem em que ele discute com os responsáveis da escola de seus filhos, onde os livros de história sobre a exploração espacial foram alterados, é excelente na medida em que mostra o descompasso entre aquele estágio da humanidade, que se contenta em apenas sobreviver, e a reminiscência de um passado sonhador, na figura de Cooper, que imaginava expandir as fronteiras da humanidade rumo ao espaço. A discussão a respeito do pioneirismo da exploração espacial – relembrando o Velho Oeste -, e o papel da ciência como salvadora da humanidade também poderia ser mais problematizada. O filme ignora condições sociais e ideologias das quais a ciência é fruto. Ela não existe sem seres humanos dotados de vontade produzindo-a, e da mesma forma que ela é tratada sozinha como a salvadora da humanidade, também poderia ter sido a causadora de sua extinção.

    Dentro deste mundo, os fenômenos naturais com os quais estamos habituados não acontecem mais do mesmo jeito. Elementos como uma poeira constante (que às vezes se transforma em tempestades) e alterações na gravidade por vezes acontecem, mas a preocupação com o dia a dia é tão grande que poucos ligam. Menos Murph. A criança percebe em seu quarto que algo estranho, que ela chama de “fantasma”, acontece, já que os livros de suas estantes sempre caem sozinhos. Cooper diz a ela para compilar dados e analisá-los, para depois se chegar a uma conclusão, como manda a lógica científica. Prontamente, Murph realiza o pedido do pai e em pouco tempo descobre uma mensagem codificada, em código Morse, e que, para a surpresa e espanto de Cooper, os leva a uma instalação secreta da NASA.

    Lá, Cooper reencontra um antigo amigo de seus tempos de piloto, o professor Brand (Michael Caine), e conhece a filha dele, Amelia Brand (Anne Hathaway). Então, a história dá uma guinada. Cooper é convidado para fazer parte de um projeto de tentativa de salvação da humanidade, que será extinta por uma “praga” que consome nitrogênio e altera o balanço da atmosfera. O projeto, que estava em andamento há anos, levou equipes diferentes de cientistas para outra galáxia através de um buraco de minhoca posicionado perto de Saturno por “alguém”, que ninguém sabe quem, mas que não estaria ali por acaso. E esse seria o caminho da viagem, o qual envolveria muitos riscos, provavelmente sem retorno.

    Nesse momento, o desenvolvimento dos personagens e suas angústias é parado para dar vazão a uma velha mania de Nolan, que é explicar para o espectador tudo o que os especialistas do filme pretendem fazer. Nesse caso, o professor Brand explica todo o passo a passo para Cooper, e o fato de escolherem um ex-piloto e fazendeiro, que apareceu por acaso naquela base para pilotar a missão mais importante da humanidade, causa um certo estranhamento, em que a explicação dada, onde “algo” o enviou ali, convence o espectador mais crédulo, mas não aquele mais exigente. A explanação do professor Brand sobre os planos A (resolução de sua equação e retirada da população da Terra para outro planeta) e B (popular o novo planeta com material genético guardado) também é acometida por isso.

    Chamado de volta a sua vocação, Cooper aceita a missão e precisa deixar a família, para o desespero de sua filha. A promessa do retorno do pai não resolve o conflito, que ecoará para sempre na vida de ambos. O relógio que Cooper dá a Murph como uma tentativa de criar um elo sentimental e temporal entre ambos também falha nesse sentido.

    Ao abandonar a Terra e ir para o espaço, o filme toma outra proporção, e as discussões científicas entre os personagens, para decidirem o próximo passo da missão, são sempre explicativas dentro de um limite do aceitável, mas bem perto deste limite. Para um espectador sem nenhum tipo de conhecimento científico, talvez ajudem-no a entender alguns conceitos básicos e o que estaria acontecendo em determinados momentos. Porém, para este mesmo espectador, explicação alguma ajudaria a entender fenômenos mais complexos, como o que acontece dentro de um buraco negro, o que, na verdade, ninguém sabe. Se em A Origem o excesso de explicações sobre uma trama relativamente simples acaba entediando o público, em Interestelar isso não acontece, pois as informações estão inseridas em um contexto totalmente diferente do que estamos habituados, e os diálogos ajudam-nos a familiarizar tanto com o tema quanto com as motivações por trás de cada personagem. Obviamente, escorregões acontecem, quando Amelia Brand discorre sobre o amor, mas são poucas as vezes.

    A sequência de aproximação, e quando entram no buraco de minhoca, é belíssima e lembra muito a viagem de Ellie, em Contato, ao transformar uma viagem espacial sob condições inéditas e extremas em uma aventura por si só. Ao mesmo tempo, a chegada ao local se transforma em uma paisagem visual para o vislumbre do espectador e dos protagonistas. Juntos na viagem estão os outros cientistas Doyle (Wes Bentley) e Romilly (David Gyasi), além dos computadores com inteligência artificial TARS (voz de Bill Irwin) e CASE (voz de Josh Stewart), que garantem bons alívios cômicos.

    Ao transformar o desconhecido do espaço em potenciais riscos para os astronautas, Nolan consegue criar situações de tensão de forma eficiente, e utilizando-se de toda a complexidade de estar em uma realidade com tempo e espaço totalmente diferentes, o horror da situação aumenta ainda mais, como na excelente sequência dentro do planeta aquático onde estava uma das cientistas que buscavam mundos habitáveis. Lá, tudo o que poderia dar errado, deu, em referência a uma própria brincadeira do filme com a “Lei de Murphy”. O fato do planeta estar próximo do buraco negro Gargantua faz com que poucas horas ali se transformem em quase 30 anos perdidos na Terra, e o peso de tais erros, ainda mais brutal sobre os tripulantes. Ao retornar à nave, percebem que se passaram 23 anos na Terra, e muita coisa aconteceu. Os filhos de Coop cresceram, e Murph, que agora trabalha com o professor Brand na NASA, ainda não superou a partida do pai, enquanto Tom permanece cuidando da fazenda. A teoria da relatividade é citada, usada e explicada extensivamente no filme e serve de fundo para explicar a motivação de Coop para tentar retornar logo para a Terra.

    Por perderem muito tempo e combustível nesse planeta, sobram mais dois para visitarem: um do Dr. Mann (Matt Damon), brilhante cientista, e outro do Dr. Edmmonds – que tinha um relacionamento amoroso com Amelia -, ambos com motivos para serem visitados. Porém, o lado racional de Cooper fala mais alto e eles seguem para o planeta de Mann, que, desesperado pela solidão e medo da morte, manda o sinal mesmo sem ter encontrado nada para tentar escapar, o que também garante boas sequências de ação e tensão, mesmo que previsíveis, com os velhos discursos do vilão e tudo mais. Aqui, ele poderia encarnar de forma mais enfática o papel crítico sobre a ciência, mas foi feita a escolha mais simples.

    A transformação do homem racional e altruísta em um homem egoísta, contradizendo todos os argumentos racionais de Cooper para escolherem aquele planeta, é feita de forma rasa ao contrapor o velho “sentimento versus razão”. A fuga do Dr. Mann danifica o equipamento espacial que acopla as naves, e a sequência para tentar encaixar a nave pilotada por Cooper e Amelia lembra bastante Gravidade, ao colocar seres humanos em risco no espaço, realizando manobras praticamente impossíveis para tentarem se salvar, mas sempre sem abusar da expectativa e tensão, que poderia cansar caso fosse esticada demais.

    Nesse momento, é também revelado para Murph e para Coop e Amelia que o plano original do professor Brand sempre foi o B, e a sua equação gravitacional não resolveria o problema de como salvar a humanidade, que sempre esteve condenada. Portanto, a viagem de volta de Coop seria impossível.

    Com o gasto excessivo de combustível, agora não havia o suficiente nem para Cooper voltar para casa, nem para irem ao planeta de Edmmonds. A solução é usar os recursos para contornar Gargantua e usar sua força para impulsionar a nave, mas Cooper engana Amelia e solta sua nave, caindo no buraco negro. E dentro do buraco negro onde Nolan se rende a homenagear, à sua maneira, o clássico espacial de Kubrick. Se em 2001 – Uma Odisseia no Espaço estamos sozinhos com Dave, dando a cada imagem o nosso próprio significado, Cooper faz questão de perguntar ao computador TARS cada passo da etapa no qual se encontra, em uma conversa que não chega a incomodar, mas tira um pouco o poder do espectador de ter a mesma epifania visual e criativa que Kubrick corajosamente permitiu.

    Assim como em 2001, a estrutura de dentro do buraco negro falou diretamente com Cooper, dando a ele elementos de sua natureza para conseguir se comunicar – no caso, a biblioteca do quarto de Murph quando criança. Lá, todas as condições são radicalmente diferentes de tudo o que conhecemos, e tanto o tempo quanto a gravidade são distorcidos. A estrutura consegue distorcê-los de forma padronizada, fazendo com que Cooper envie os dados da equação gravitacional que resolveria o problema de como salvar a população da Terra, ou seja, ele era o fantasma de Murph quando criança tentando se comunicar com ela. Todas essas cenas dentro do buraco negro, apesar de serem atrapalhadas por tanta explicação, brincam com conceitos da física, ao mesmo tempo que garantem uma gama enorme de emoções, em grande parte por causa da brilhante atuação de McConaughey.

    Após enviar a mensagem para Murph usando o mesmo relógio que havia dado à menina, ela consegue decifrar os dados e salvar a humanidade, enquanto Coop é reenviado pela estrutura do buraco negro e encontrado pelos terráqueos do futuro em Saturno. Nessa conclusão, um pouco da magia inicial se perde, pois o objetivo principal do desenlace é explicar e resolver praticamente todas as pontas soltas do filme, não deixando margem para praticamente nada, a não ser o paradeiro e situação de Amelia Brand. O reencontro de Coop com Murph, já idosa e prestes a morrer, não garante muitas emoções, e o passeio turístico dentro da estação espacial em Saturno soa desnecessário.

    Porém, em relação ao aspecto técnico, a produção funciona muito bem. As sequências no espaço, sempre em silêncio, garantem uma atmosfera de suspense que se mantém, até misturar com o som dos ambientes fechados dos atores. O jogo de luzes dentro das naves, remetendo sempre ao sol (o nosso, ou não), é sempre interessante de acompanhar. A também já criticada parceria com Hans Zimmer mostra sinais de cansaço, mas ainda funciona para compor canções que, por vezes, casam perfeitamente com os momentos vividos na tela, em especial nas cenas finais.

    Muito se tem comparado Interestelar a outras produções do gênero, mas nenhuma comparação é justa. Nolan, como qualquer artista, retira influências de suas obras preferidas e as coloca ali, misturadas a seus próprios elementos dentro de uma narrativa própria, que tenta fazer uma homenagem não só à ficção científica, mas ao próprio sentimento humano de querer saber o que existe além. Quem condena a exploração espacial por ser gasto inútil de dinheiro não consegue ver mais adiante. Como o próprio filme cita, a tecnologia espacial gerou vários outros frutos para a humanidade, como as comunicações via satélite e a máquina de ressonância magnética, que poderia ter salvado a vida da esposa de Coop. Se a humanidade gasta dinheiro à toa, ali realmente não é o lugar. O Professor Brand também afirma que cada pedaço de metal sendo usado na construção daquelas naves poderia ser utilizado na fabricação de uma bala de uma arma, então, de certa forma, tudo aquilo foi positivo. É junto a esse conceito básico e humanitário que o filme se posiciona e se constrói, em como a ciência, ao desvendar o funcionamento por trás da natureza, nos ajuda a entender como ela é bela e, principalmente, nos torna mais humildes e capazes de admirar tudo o que está lá fora.

    Texto de autoria de Fábio Z. Candioto.

  • Crítica | Gênio Indomável

    Crítica | Gênio Indomável

    good will hunting

    A sensibilidade de Gus Van Sant já rodou o globo e faz tempo, mais de dez anos. O cara toca projetos com mãos de fada e satura o lado racional de cada um até não sobrar nada, senão o suprassumo de uma carga emocional plena e linear, território que conhece como poucos na tarefa de traduzir vibrações em narrativas. O âmbito da matemática, ciência exata, todavia, não é frio nem quente, mas indiferente a todo um mundo relativo e cheio de fatores que não podem ser expressos por números, e é justamente no abismo entre o exato e as reviravoltas da vida – que não podem ser pré-calculadas – que o diretor de Elefante encontrou um grande desafio para ser o que é. No caso, um coração forçado a usar uma régua para medir o que sente. Não é justo.

    Will Hunting é um geniosinho arrogante e irritante (“Smartass”, em inglês) na pele de Matt Damon, um Damon inspirado como nunca mais viria a ser, sob o manto, que incorpora com prazer, de um cara de 21 anos perdido na vida, nos desejos e no entorno do próprio umbigo. É quase um Mark Zuckerberg que curte falar besteira e dançar em balada, de postura descolada enquanto analítica na onisciência que presume ter. Mas Will é o corpo divisível de Gênio Indomável, uma estrutura que se move na direção de diálogos bem construídos e de situações insubstituíveis, na tentativa de criar uma realidade que Gênio ao menos consegue nos convencer sobre, mas jamais nos preencher com ela.

    Na odisseia de um escravo do próprio intelecto acima da média, feito Ozymandias em seu habitat natural na gélida Antártida, Gus transmite-nos ideias através do amor de quem inventa uma nova teoria física, e nos incentiva a prestar atenção no que ocorre nos corredores de Harvard com esta mesma emoção. Van Sant faz até parecer que foi fácil, e isso é tão admirável quanto a implicância do bater de asas de um canário e uma tempestade, a léguas de distância.

    E é por isso que a amizade de Will com o analista Sean Maguire é peça-chave na trama, espécie de A Rede Social sem a visão técnica, mas com metade do raciocínio lógico de um David Fincher  o resto é inteligência emocional. Robin Williams, sendo em pessoa tudo o que o filme poderia ser, numa alusão aqui à composição de Milton Nascimento, faz o coração que completa o amigo, o qual só calcula perdas e danos, sendo a figura do analista a mais interessante e rica de reflexões, num filme de ótimas intenções e que se apega a nenhuma delas para decolar em suas verdades. Gus Van Sant esqueceu de levar seu filme a sério, pois este habita o campo minado da batalha particular de um artista, onde Lolita habitou em Stanley Kubrick um dia.

    Contradição: se Gênio Indomável consegue ser laçado apenas pela maturidade de um cineasta ainda em ascensão, na época, mesmo pontuado pelo veterano Williams, por onde então entra ar nesse pastel? Vencedor do Oscar de roteiro original, o filme perde claramente seu rumo na segunda metade, quando corações e mentes são subestimados no poder de integração, e a história perde grande parcela de seu fascínio na perda de suas harmonias. Se filmes são equações, a força do Cinema, então, não é proporcional aos efeitos que reproduz.

  • Crítica | Amor Fora da Lei

    Crítica | Amor Fora da Lei

    amor fora da lei

    Poetas e contadores de histórias gostam de relacionar o amor ao proibido, e a evolução da associação do sentimento ao que a sociedade vê como reprovável é natural. Tal conceito é utilizado no cinema largamente; por mais repetitivo que seja, o clichê ainda chama a atenção. Recentemente, Amor Bandido atraiu a atenção de quem era fã de Matthew McConaughey e Jeff Nichols ao dar uma abordagem mais diversificada e de ângulo diferente do mito de Bonny e Clyde e do que foi visto em Uma Rajada de Balas. Em Amor Fora da Lei, David Lowery apresenta um clima mais rural e até white trash à máxima, apresentando um casal apaixonado não tão normal quanto a maioria.

    Após uma bela introdução, que põe os cônjuges em uma corriqueira troca de carícias e farpas, Robert Muldoon e Ruth Guthrie (Casey Affleck e Rooney Mara, respectivamente) se põem em um tiroteio, fazendo com que um dos policiais seja baleado. Como um autêntico cavaleiro de armadura, “Bob” assume a autoria do atentado e é levado à penitenciária em uma cena de despedida que transita entre o tocante e o grotesco, com a câmera enquadrando um beijo terno e as vestes imundas pela poeira e pelo pecado de suas ações, que foram causadas de forma direta ou negligentemente.

    Bob não se sente o réu sentenciado que na realidade é, e em virtude disso tenta arranjar a sua liberdade à força, tencionando sua própria fuga em cinco oportunidades, finalmente tendo êxito no sexto tiro. Uma vez na área aberta novamente, ele procura encontrar sua amada numa jornada país adentro, mudando drasticamente a vida de quem ele encontra em sua estrada rumo à perdição.

    Apesar de aparentar no começo o contrário, Ruth aguarda ansiosamente a chegada de seu amado. Fazer os terceiros pensarem que ela teme pela vida de sua filha faz parte da atuação teatral para afastar qualquer suspeita de envolvimento com a fuga de Bob. O nome original da película, Ain’t Them Bodies Saints, remete à ausência de santidade nos envolvidos da trama, qualidade esta que também pode ser interpretada pela falta de inocência e até por certa responsabilidade pelo crime, independente do julgamento parecer desigual.

    A trajetória do fugitivo rumo ao seu destino final o faz praticar o que ele foi acusado de fazer outrora. O rastro de sangue que ele deixa é acompanhado de um sentimento de sobrevivência, mas que não o resguarda da culpa de ter que ameaçar as pessoas e matá-las quando isso se mostra necessário. Sua ida para casa se faz por vias tortuosas; o personagem percorre o caminho sentindo sua vida escorrer pelos dedos. Ignorando o bom senso, ele prossegue em busca de sua musa, mal pensando na própria sobrevivência.

    A cena em que Ruth e Bob finalmente se encontram é singela. A moça tenta guardar suas lágrimas, mas é quase inevitável que ao menos algumas escorram em seu rosto, especialmente depois de toda uma vida esperando por ele. Por estar quase convalescendo, a enfim restrita reunião ocorre, variando entre o presente, nada pessimista e calcado no real, e uma imaginação de ambos abraçados em tempos mais simples, sem toda a arquitetura de bandidos em fuga. Em seus sonhos, Bob vive em uma casa idílica onde o casal poderia morar e ser feliz, num paraíso intocado, distante demais dos áridos dias que ambos sofriam. A sensibilidade com que Lowery trabalha o roteiro é ímpar ao utilizar o conceito de “falar de modo leve de coisas graves” a potências altíssimas, sem recorrer a um sentimentalismo banal.

  • Crítica | Tudo Por Justiça

    Crítica | Tudo Por Justiça

    tudo por justiça

    O silencioso início do filme tem a função de anestesiar o espectador antes de introduzi-lo ao caótico e violento cotidiano de Harlan DeGroat, personagem interpretado por Woody Harrelson. No entanto, o estado de paz é cortado pelas atitudes nada amistosas do truculento homem, tanto com a mulher com quem se encontra quanto com o pobre sujeito que decide interferir na briga “conjugal”. Tudo Por Justiça é apenas o segundo filme em que jovem ator Scott Cooper dirige, precedido pelo bem-sucedido Coração Louco, filme que rendeu a Jeff Bridges seu primeiro Oscar. Cooper mais uma vez se mostra um bom realizador, especialmente em relação ao trabalho com seu elenco.

    Apesar de sua história ser mostrada aos poucos, em breves momentos nota-se que Russell Baze (interpretado por Christian Bale) é um personagem que busca adaptação a algo que não lhe é natural  no caso, um novo estilo de vida, dentro dos conformes da lei. Já de início é mostrado trabalhando exaustivamente para findar seus débitos com John Petty (Willem Dafoe). Sua busca por um modo mais tranquilo de viver é atravessado por um triste evento no qual, por um descuido imperdoável, se envolve num acidente de carro em que uma criança falece. Ele tenta socorrê-la, mas o esforço é em vão e acaba por ser preso. Sua rotina muda radicalmente, mas seu ethos permanece inabalável. Ele demonstra ser um homem de passado sombrio, mas com uma tentativa de manter seu caráter intacto, mesmo com os pecados cometidos. Seu alívio ao se ver livre das barras de metal da penitenciária é carregado de simbolismo, retratando a dupla liberdade do indivíduo, tanto a física quanto a da alma.

    Os primeiros passos, já liberto, vão de encontro a recuperar o tempo perdido, mas suas ações envolvem somente a observação da rotina, tanto a de sua ex, Lena Warren (Zoë Saldana), quanto a triste sina que seu irmão Rodney (Casey Affleck) impôs a si mesmo. Na sua primeira atitude de confronto, ele vê o caçula explicitar seu trauma por ter lutado no Iraque e ter visto muitos horrores, o que de certa forma explica o modo de conseguir o próprio sustento, ainda que seja feito por meio da destruição de seu corpo. A auto-combustão parece ser parte dos destinos os quais os Baze não conseguem fugir. Mesmo diante da mais triste das rejeições, Russell se mostra carinhoso com sua alma gêmea, o que ressalta toda a qualidade de sua moral.

    Resignado, Russell recebe de modo tranquilo as péssimas notícias de que o atentado que cerceou a vida de John Petty, e possivelmente a de Rodney, não pode ser investigado a fundo pelos policiais, graças à falta de cooperação dos populares. Os motivos dessa falta de elucidação são confusos na cabeça de Russell, já que o responsável pela investigação é o novo par de Lena. Muito mais do que isto, a teimosia do ex-presidiário é movida pela esperança de encontrar seu jovem irmão ainda vivo, mesmo que as chances de isso acontecer sejam mínimas.

    O exercício de contenção de Russell torna-se ainda maior quando ele vem a saber do consumado falecimento de Rodney. Assim que ele ouve as palavras definitivas, sua audição é interrompida por um zumbido intermitente e se recolhe, agindo naturalmente, em nada diferente do que vinha fazendo antes, ainda que um leve mudança em seu semblante possa ser percebida. O desejo incontido de finalmente dar vazão ao seu desejo se torna cada vez maior à medida que isto lhe é negado. Ele põe em prática um plano de vingança, engendrado de forma engenhosa mas ainda assim errático, o que torna o ato ainda mais verossímil por conter falhas de concepção e por caracterizar a frieza e crueldade do homem mau. O processo é lento e doloroso, em alguns momentos se assemelha a uma tortura e é curioso o cenário onde tudo ocorre, uma paisagem verde com predominância da luz do dia, contrastando com as trevas da alma de Russell.

    A coragem do personagem  e do roteiro de Cooper e Brad Ingelsky  em dar números finais à vingança é muito grande, visto que o risco de cair no pecado da redenção é muito grande, plausível dado o andar da trama. Outra interessante leitura do filme caracteriza-se pela análise da trajetória sob os olhos de Harlan, visto que ele é, inclusive, o primeiro personagem apresentado, trocando o ponto de vista do herói falido pelo de um anti-heróis que usa a máscara de vilão eventualmente. Dada a multiplicidade de interpretações e de temáticas, a execução de Tudo Por Justiça é assaz competente e rara. Possui narrativa simples mas que em momento algum é descartável ou libertina, ao contrário, apresenta uma história cativante e com personagens reais, como o homem comum.

  • Crítica | Medo da Verdade

    Crítica | Medo da Verdade

    gone baby gone

    Após um desgaste em sua carreira de ator, Ben Affleck decidiu se reinventar, dessa vez de maneira distinta do habitual, e acabou coescrevendo e dirigindo seu primeiro longa-metragem. Baseado no romance de Dennis Lehane, Gone Baby Gone, Affleck retrata as agruras do comportamento humano, em um thriller policial desesperançoso e melancólico.

    A adaptação cinematográfica da obra literária de Dennis Lehane traz um comparativo direto com o longa-metragem Sobre Meninos e Lobos, de Clint Eastwood, também de Lehane, ambos os diretores abordam a realidade de uma comunidade americana que está à margem da sociedade, repleta de seres marginalizados pela classe mais favorecida, e construindo assim, um viés sob a ótica desses personagens.

    Medo da Verdade traz como plano de fundo o desaparecimento de uma garotinha de 4 anos em um bairro do subúrbio de Boston. A investigação policial, coordenada pelo Capitão Jack Doyle (Morgan Freeman) e conduzida pelos investigadores Remy (Ed Harris) e Nick (John Ashton), não vem obtendo êxito no bairro, já que existe um código de silêncio que não pode ser quebrado por um fator externo. Por isso, os tios da menina decidem contratar uma dupla de detetives particulares da região que teriam contatos e informações que a polícia não teria acesso. Os dois detetives, Patrick (Casey Affleck) e Angie (Michelle Monaghan) aceitam o caso e imergem intensamente na investigação.

    A trama traz um thriller policial em sua essência, no entanto, assim como Eastwood em ‘Sobre Meninos e Lobos’, ou Scorsese em Ilha do Medo (também adaptado da obra de Lehane), Affleck usa o gênero para discutir outros temas. Conflitos sobre moralidade, religião e ética estão presentes de forma visceral nesta obra de Affleck.

    Os personagens da trama são todos extremamente bem construídos, profundos, reflexivos e repletos de nuances. Suas atuações eficazes carregam o longa dentro da atmosfera densa proposta pelo filme, tudo isso aliado a fotografia acinzentada e opaca da noite, que envolve suas personagens nas sombras, e a saturação amarelada do dia dos subúrbios de Boston. A direção de arte que confere veracidade a essa degradação proposta pelo filme, seja nos ambientes residenciais fechados ou nas ruas do bairro.

    Ben Affleck em sua estreia na direção, demonstra uma incrível habilidade em realizar uma desconstrução de valores e conceitos, colocando em xeque nossos ideais e questões éticas contra a parede à todo instante. Até qual ponto a verdade será a melhor de nossas escolhas? Quão frágil é nossa percepção sobre o que é certo e errado? Um excelente trabalho de estudo de personagens e de um grupo social.

    Ouça nosso podcast sobre Ben Affleck.