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  • Crítica | Tudo Por Justiça

    Crítica | Tudo Por Justiça

    tudo por justiça

    O silencioso início do filme tem a função de anestesiar o espectador antes de introduzi-lo ao caótico e violento cotidiano de Harlan DeGroat, personagem interpretado por Woody Harrelson. No entanto, o estado de paz é cortado pelas atitudes nada amistosas do truculento homem, tanto com a mulher com quem se encontra quanto com o pobre sujeito que decide interferir na briga “conjugal”. Tudo Por Justiça é apenas o segundo filme em que jovem ator Scott Cooper dirige, precedido pelo bem-sucedido Coração Louco, filme que rendeu a Jeff Bridges seu primeiro Oscar. Cooper mais uma vez se mostra um bom realizador, especialmente em relação ao trabalho com seu elenco.

    Apesar de sua história ser mostrada aos poucos, em breves momentos nota-se que Russell Baze (interpretado por Christian Bale) é um personagem que busca adaptação a algo que não lhe é natural  no caso, um novo estilo de vida, dentro dos conformes da lei. Já de início é mostrado trabalhando exaustivamente para findar seus débitos com John Petty (Willem Dafoe). Sua busca por um modo mais tranquilo de viver é atravessado por um triste evento no qual, por um descuido imperdoável, se envolve num acidente de carro em que uma criança falece. Ele tenta socorrê-la, mas o esforço é em vão e acaba por ser preso. Sua rotina muda radicalmente, mas seu ethos permanece inabalável. Ele demonstra ser um homem de passado sombrio, mas com uma tentativa de manter seu caráter intacto, mesmo com os pecados cometidos. Seu alívio ao se ver livre das barras de metal da penitenciária é carregado de simbolismo, retratando a dupla liberdade do indivíduo, tanto a física quanto a da alma.

    Os primeiros passos, já liberto, vão de encontro a recuperar o tempo perdido, mas suas ações envolvem somente a observação da rotina, tanto a de sua ex, Lena Warren (Zoë Saldana), quanto a triste sina que seu irmão Rodney (Casey Affleck) impôs a si mesmo. Na sua primeira atitude de confronto, ele vê o caçula explicitar seu trauma por ter lutado no Iraque e ter visto muitos horrores, o que de certa forma explica o modo de conseguir o próprio sustento, ainda que seja feito por meio da destruição de seu corpo. A auto-combustão parece ser parte dos destinos os quais os Baze não conseguem fugir. Mesmo diante da mais triste das rejeições, Russell se mostra carinhoso com sua alma gêmea, o que ressalta toda a qualidade de sua moral.

    Resignado, Russell recebe de modo tranquilo as péssimas notícias de que o atentado que cerceou a vida de John Petty, e possivelmente a de Rodney, não pode ser investigado a fundo pelos policiais, graças à falta de cooperação dos populares. Os motivos dessa falta de elucidação são confusos na cabeça de Russell, já que o responsável pela investigação é o novo par de Lena. Muito mais do que isto, a teimosia do ex-presidiário é movida pela esperança de encontrar seu jovem irmão ainda vivo, mesmo que as chances de isso acontecer sejam mínimas.

    O exercício de contenção de Russell torna-se ainda maior quando ele vem a saber do consumado falecimento de Rodney. Assim que ele ouve as palavras definitivas, sua audição é interrompida por um zumbido intermitente e se recolhe, agindo naturalmente, em nada diferente do que vinha fazendo antes, ainda que um leve mudança em seu semblante possa ser percebida. O desejo incontido de finalmente dar vazão ao seu desejo se torna cada vez maior à medida que isto lhe é negado. Ele põe em prática um plano de vingança, engendrado de forma engenhosa mas ainda assim errático, o que torna o ato ainda mais verossímil por conter falhas de concepção e por caracterizar a frieza e crueldade do homem mau. O processo é lento e doloroso, em alguns momentos se assemelha a uma tortura e é curioso o cenário onde tudo ocorre, uma paisagem verde com predominância da luz do dia, contrastando com as trevas da alma de Russell.

    A coragem do personagem  e do roteiro de Cooper e Brad Ingelsky  em dar números finais à vingança é muito grande, visto que o risco de cair no pecado da redenção é muito grande, plausível dado o andar da trama. Outra interessante leitura do filme caracteriza-se pela análise da trajetória sob os olhos de Harlan, visto que ele é, inclusive, o primeiro personagem apresentado, trocando o ponto de vista do herói falido pelo de um anti-heróis que usa a máscara de vilão eventualmente. Dada a multiplicidade de interpretações e de temáticas, a execução de Tudo Por Justiça é assaz competente e rara. Possui narrativa simples mas que em momento algum é descartável ou libertina, ao contrário, apresenta uma história cativante e com personagens reais, como o homem comum.

  • Crítica | Álbum de Família

    Crítica | Álbum de Família

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    Tracy Letts é um escritor pouco ortodoxo. Suas peças já renderam ótimos roteiros de filmes, como Possuídos e Killer Joe: Matador de Aluguel, ambos de William Friedkin. Em Álbum de Família, o autor parece querer grafar uma afeição em trocar farpas com a instituição família, pervertendo o tempo inteiro os seus conceitos e tradições só para demonstrar o quanto o circo é anacrônico e hipócrita em sua essência.

    Cada um dos rebentos possui o seu próprio código ético e um conjunto de perversões com peculiares e curiosidades. Eles fazem questão de ser assim: seus pecados são a marca registrada de suas vidas, o que os diferencia do mundo e, claro, uns dos outros. A casa da matriarca Violet, interpretada por Meryl Streep, é sempre muito movimentada, e quando está cheia transpira incômodo e sufocamento, produzindo calor em quem a adentra (exceto aos os que lá vivem), além de parecer uma mansão de filme de terror. Violet é amarga, ácida, opressora com todos que a cercam e pouco preocupada com as pessoas na maior parte de tempo. Ainda assim, ela mostra-se interessada em cuidar dos seus, demonstrando a dicotomia que é ser mãe e sofrer do mal misantrópico.

    O momento em que Barbara, a filha mais velha (interpretada pela veterana Julia Roberts), atravessa é muito semelhante ao da mãe. A estética das duas serve como avatar do estado depressivo que atravessam, simplificado pelos cabelos maltratados de ambas. Diante  das tristezas que elas possuem, não há muita lógica em cuidar-se ou transpirar feminilidade. No lugar disso há o cansaço e o enfado em ter de prosseguir uma vida sem muitos objetivos. O único momento em que a primogênita escova os cabelos e demonstra amor próprio é quando está tomada pelo desespero, assim que descobre que pereceu — seu superego assumira e, no estado de emergência, ela age, baseando em seu instinto de preservar o melhor que consegue. As semelhanças entre as duas também se dão na personalidade passiva-agressiva e, obviamente, opressora com as figuras masculinas.

    O trabalho com os personagens utiliza-se do uso de estereótipos cômicos, até mesmo para tornar a louca história mais universal possível, maximizando a sensação de sufocamento e claustrofobia, tanto dos caracteres quanto do espectador.

    Demonstrações pequenas de ódio, como o desprezo pelos mais jovens, é um argumento também mostrado, mas a praxe durante as brigas é o amargor, que segundo Violet, tem a ver com a forma como a mulher envelhece, deixando a leveza e graça para se tornar algo feio, não só externa como internamente. A verdade torna-se uma arma branca que fere os familiares, explicitando de forma cruel como a decadência destrói a auto-estima. O canhão de ofensas de Violet consegue atingir a todos, e ela se usa dos segredos de toda a vida para humilhá-los, mesmo os que não disputam rivalidade com ela.

    O roteiro de Letts é cruel e pródigo em causar terror, mostrando, nas relações familiares doentias, os sentimentos que variam entre o ódio completo e o cinismo exacerbado, contrastando com a solidariedade mútua. Todos os personagens são repletos de defeitos, não há por quem torcer, tampouco existe redenção moral; mesmo os que aparentam fragilidade e quietude, escondem uma carga de ofensas e um potencial destrutivo, condição esta que parece inerente ao clã. O que Barbara faz, em relação às mágoas impingidas sobre suas irmãs para supostamente protegê-la da verdade, a faz perceber que ela não está tão distante do lodo da geração anterior. O signo da peruca de Violet funciona como uma máscara no intuito de esconder a fragilidade da alma da mãe, que só é agressiva quando veste a cabeleira postiça; quando não a usa, se mostra vulnerável e semi-morta, como sua alma prossegue.

    John Wells conduz o filme com a maestria de não atrapalhar as ótimas atuações de seu elenco e nem manchar o belo roteiro que tem em mãos.

  • Crítica | Amor Bandido

    Crítica | Amor Bandido

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    O terceiro longa-metragem de Jeff Nichols começa utilizando a infância como alegoria para o início da existência, mas sem poupar o público, pois a mocidade é retratada sem muitas fantasias ou idealizações. A crise, os amores e relacionamentos mal resolvidos resvalam nos pequenos protagonistas, Ellis (Tye Sheridan) e Neck (Jacob Loflan) – e os influenciam negativamente na puberdade de ambos. O inferno astral a que Ellis é submetido o deixa anestesiado e carente, e por isso ele não estranha a presença de um elemento desconhecido nas redondezas de sua pequena cidade.

    A casa de Galen (Michael Shannon, mais uma vez em um filme de Nichols), tio de Neck, é a representação visual da decadência típica da cidadezinha: um lugar sujo, imoral, hostil, e pervertido. Até o sexo, que poderia ser algo belo, é tratado de forma degradante, sem o mínimo de romantismo ou tato. Os habitantes do lugarejo parecem parados no tempo, estacionados no pior momento de suas vidas.

    O anti-herói, personificado por Matthew McConaugh, está foragido e utiliza a floresta como esconderijo, onde se encontra com a atenção máxima em tempo integral. O único auxilio e as únicas mãos amigas que encontra, até então, partem dos dois meninos. Mesmo sem conhecê-lo, Ellis se doa inteiramente para que o enlameado Mud fique o mais confortável possível – a procura do infante é por alguém do mundo adulto que não o fira sempre que houver uma tentativa de aproximação de sua parte. As tonalidades escolhidas por Nichols para retratar os locais comuns ao menino sintetizam suas sensações: enquanto que em sua casa, o local incômodo, predominam as cores marrom e cinza, as cenas na floresta onde ele está com o seu igual são vivas, prevalecendo o verde e o amarelado da blusa do novo amigo.

    O modo como Mud pensa e desenvolve sua vida demonstra que ele não tem todas as propriedades de raciocínio típicas de um adulto. Apesar de não possuir a inocência dos meninos, seu discernimento é igualmente imaturo e inconsequente, e este é o motivo que o faz se identificar tanto com eles, pois ambos carecem de uma segura figura paterna – o presente do fugitivo poderá vir a ser o futuro do jovem rapaz.

    O ancião Tom, interpretado por Sam Shepard, é uma das poucas vozes lúcidas perto do personagem-título. Suas palavras evidenciam o quão imprudentes e levianas são as motivações de seu antigo protegido, e ao receber a verdade, Ellis nega tudo, como sua contraparte mais velha faz. Mud não consegue mudar, somente se enreda no círculo vicioso em que está. Sua decepção com a rejeição coincidentemente ocorre em paralelo com a bronca do pai em Ellis, e ambos se mostram como excluídos dos sentimentos e relações que tanto apreciavam. A aproximação dos dois serve como uma simbiose.

    Juniper (Reese Witherspoon), a antiga namorada do protagonista, é a representação da covardia humana e da falta de coragem para arcar com os desejos do coração, não só para o homem, mas também para Ellis. O menino se decepciona com tantas rejeições e culpa a si mesmo – no caso, a contraparte do que poderia vir a ser: Mud. Na fuga que tenta fazer de si mesmo, o anti-herói cai num covil de serpentes, onde é envenenado, numa simbologia clara à inexorabilidade do enfrentamento de seus próprios problemas. Fugir, no caso, é a pior das soluções. Ao ver o menino em apuros, o personagem principal larga o arquétipo anti-heroico e veste a capa do clássico salvador. Mal pensando em si, corre para acudir o amigo e se torna visível para aqueles que o procuram, mas, dessa vez, não se preocupa em ser finalmente pego.

    Após todas as reviravoltas, Ellis vê a chance de mudar sua vida. O rapaz, que antes temia o divórcio dos pais, se vê nesta situação e parece não ter mais receio da nova condição. Assim como Mud, ele resolve deixar os medos e o passado de lado para finalmente evoluir e viver a própria vida, ainda que as agruras e os erros futuros estejam garantidos.

    Amor Bandido é um filme sobre deslocamento, sobre a tentativa de encontrar um lugar no mundo. Mensagens presentes também em Shotgun Stories e O Abrigo do mesmo Jeff Nichols, mas que em momento algum são repetitivas, em razão da ótima forma de abordar as necessidades humanas com a qual o realizador exerce em seus roteiros autorais.